"Bota pra fudê!"
Ele é uma espécie de
"Live at Leeds" brasileiro, um “Live at
Apollo” tupiniquim, um “Janis in Concert” em Santos. Possivelmente seja o
grande disco ao vivo nacional de todos os tempos. Sei que tem o “Sinal Fechado”
do
Chico, o “Barra 69” do
Gil e do
Caetano, o “Rádio Pirata Ao Vivo” do
RPM, “O Tempo
Não Pára” do Cazuza, mas nenhum deles tem essa energia contagiante, a integração
com o público, a anarquia do
“Viva”do
Camisa de Vênus.
Por um irônico acaso (será?), gravado no Dia Internacional da Mulher
daquele 1986, o show é um festival de deselegâncias e baixaria conduzidos com
uma irreverência e bom-humor tais por Marcelo Nova que ficaria impossível mesmo
para a mais ferrenha das feministas ficar chateada com aqueles caras ali
mandando bater com um pau numa mulher.
O discurso antes de tocarem a música “Sílvia”, lembrando da
data comemorada, é o que melhor ilustra essa sacanagem constante no show:
primeiro, Nova se defende da acusação de machista, elogia, tece loas, rasga
seda pelas mulheres, e depois, ao final, como que cobrando pela gentileza,
manda a mulherada abaixar as calcinhas. Dá pra levar a sério? Não dá. Tanto que
o público, inclusive a parte feminina dele, responde ao refrão “Ô, Sílvia”,
puxado por Nova, com o coro pejorativo de “piranha”.
“Bete Morreu”, um punk rock acelerado e pegado é outra que não
poupa a mulherada com uma letra pesada e agressiva sobre o estupro e morte uma
dondoca da sociedade. Por coisas como essa e pela série de palavrões desferidos
desmedidamente é que as execuções públicas de praticamente todas as músicas do
álbum foram proibidas, exceção feita a “Homem Forte” canção lenta, séria e
cheia de dramaticidade, e à boa “Rotina”.
Mas mesmo que não fosse pelos temas fortes, pela malícia,
pelo ar desafiador, pelo tom de protesto bastaria a letra de “My Way”,
adaptação do clássico da música mundial outrora imortalizado na voz de Sinatra,
para justificar o desejo da Censura de ter o Camisa de Vênus longe dos ouvidos
do público. A versão em português criada por Marcelo Nova é um glorioso e fantástico
festival de palavrões, sacanagem e putaria do início ao fim desfilado sobre uma
melodia simples, compassada, com o público marcando a batida com palmas.
Barbaridades como “caminhando de norte a sul eu vi muita gente tomar no cu” e “Eu me fodi mas resisti” são algumas das pérolas
que podem ser encontradas nessa adaptação que por certo faz seus autores darem
voltas nos respectivos túmulos até hoje.
“Hoje” e “Rotina”, a primeira mais punk que a outra,
sonoramente falando, são como supõe os nomes, dois retratos da vida cotidiana,
ambos expostos com a habitual acidez, sarcasmo e ironia da banda; e "Solução Final", com letra tipicamente punk, atirando pra todos os lados, desde Guerra Fria, Direitos Humanos até à Coca-Cola, é uma canção apenas interessante, nada mais que isso.
Apresentando
uma letra interessantíssima e inteligente que passeia pela História atribuindo
pensamentos conflitantes a personagens como Marx, Hitler, Jesus e Freud (“Freud
sacou um dia que ele podia pirar”), “Metástase”, é uma daquelas do que se pode
considerar a linha séria da banda, novamente com participação superbacana do
público, acompanhando a batida forte e marcada com palmas e o tradicional ‘bota
pra fudê”, grito que transformara-se numa espécie de marca registrada do
Camisinha nos shows.
E com muitos “bota pra fudê” é que a banda é recebida na
primeira faixa, na época o grande sucesso da banda, o punk irreverente “Eu Não
Matei Joana D’Arc”, numa versão eletrizante, vibrante, pegada, com a galera
praticamente dividindo os vocais com o vocalista Marcelo Nova e entoando o
refrão num uníssono arrepiante.
O encerramento do álbum não podia ser mais adequado: “O
Adventista”, a derradeira faixa, é um daqueles finais históricos. No que
Marcelo Nova anunciava como sendo “O Hino da Nova República”, com letra de fino
sarcasmo em que ‘se esforça’ em botar fé em diversas coisas não muito críveis,
promissoras ou recomendáveis, chegando à conclusão pessimista de que tudo não tinha
mais jeito mesmo, e tascando então, no finalzinho, um “Pai Nosso” alternando
cada frase da oração com o refrão “não vai haver amor nesse mundo nunca mais”
deixado a cargo do público. Êxtase total! Final apoteótico!
Este é outro daqueles casos clássicos em que é altamente
recomendável que se tenha o formato LP. Embora o CD tenha faixas a mais, estas
não são ao vivo. São simplesmente faixas bônus de estúdio, o que não paga o
fato de perder uma das boas músicas do show, “Rotina” que curiosamente não aparece
na mídia digital. Além disso, e não menos importante, a versão CD não tem o
tal discurso machista no início de “Silvia” e muda a ordem das músicas, o que
faz toda a diferença em determinados casos como a inversão da seqüência
“Sílvia” com “Bete Morreu”; o fato de “My Way” no disco abrir o lado B; e a
passagem de “Metástase” para “O Adventista” que no CD, nem sequer é a última
das ao vivo. Ou seja, se tiver toca-discos em casa, vale a pena dar uma catada
no LP por aí pelas feiras e brechós da vida.
Tipo de disco que dá vontade de ver a banda ao vivo. Sempre
quis depois de ter ouvido o “Viva” mas pensei que tivesse perdido a
oportunidade para sempre quando a banda anunciou sua primeira separação, porém
anos depois, quando anunciaram uma reunião (caça-níqueis, diga-se de passagem)
para shows, não desperdicei a chance. Assisti finalmente a um show dos caras no
Auditório Araújo Vianna em Porto Alegre, pelo prazer de presenciar toda aquela
vibração, curtir aquele punk irreverente, mas muito também pelo gosto de gritar,
ali, ao vivo, junto com a galera “Ô, Sílvia piranha”, “não vai haver amor nessa
porra nunca mais”, e claro, como não poderia deixar de ser, o “bota pra fudê”.
BOTA PRA FUDÊ, Camisa!
BOTA PRA FUDÊ!
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FAIXAS (ordem do LP):
Lado A
1. "Eu Não Matei Joana D'Arc" (Gustavo Mullem / Marcelo Nova)
2. "Hoje" (Karl Hummel / Marcelo Nova)
3. "Homem Forte" (Karl Hummel / Marcelo Nova)
4. "Solução Final" (Karl Hummel / Marcelo Nova)
5. "Rotina" (Karl Hummel/ Gustavo Mullem / Marcelo Nova)
Lado B
1. "My Way" (Anka / François / Revaux / Thimbault / versão: Marcelo Nova)
2. "Bete Morreu" (Marcelo Nova / Robério Santana)
3. "Silvia" (Marcelo Nova / Robério Santana)
4. "Metástase" (Karl Hummel / Marcelo Nova)
5. "O Adventista" (Karl Hummel / Marcelo Nova)
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Ouça: