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quinta-feira, 23 de março de 2017

cotidianas #503 - Pílula Surrealista #15


O monstro do armário havia chegado. Eram 22h44 e Júnior já havia sido posto na cama para dormir a uns 15 minutos, mas não pregava o olho. De frente para o móvel, cujos trincos simetricamente equidistantes, um em cada porta, davam-lhe a impressão de serem dois olhos a lhe mirar, o menino mirava-o com apenas os seus para fora do fofo edredom. Ouviu uma batida abafada. Vinha lá de dentro, com certeza. Seu coração disparara; a respiração, ofegava a ponto de escutar. E outra batida. E mais outra. Seguiu-se um ruído de algo arrastando no chão. Só podia ser a cauda do monstro, que, volumoso, precisava girar o corpanzil escamoso e úmido entre as roupas penduradas no cabide. Àquela altura, seus brinquedos, guardados numa caixa lá dentro, já deviam estar melecados pela gosma que besuntava toda a pele do visitante noturno.
Júnior tomou coragem: percebendo os pais atentos à tevê, cujo som provindo da sala chegava a murmúrios a seu quarto mas suficiente para saber que suplantaria qualquer ruído que tanto ele quanto o monstro fizessem, descobriu-se e foi pé por pé em direção ao armário. Descalço mesmo, somente o pijama a cobri-lo naquela fria noite de inverno. De frente para a porta entreaberta, enfiou temeroso os dedos pela fresta escura. Seu coração quase saía pela boca quando seus cinco dedos se encontraram com os três da afetuosa mão do monstro, o qual, sem precisar trocar-lhe palavras, o convidou a entrar.
Naquela semana inteira não pode sair para brincar com os amigos. Os pais, brabos, perguntavam retoricamente: “Onde já se viu passar a noite dormindo sentado e sem coberta dentro do armário!?”. Claro que não foram além da indignação e da reprimenda típica da limitação humana. A Júnior, sim, aquilo fez muito sentido. Tanto que ele, no seu íntimo, nunca mais fora o mesmo após aquela noite, mesmo hoje, tantas décadas depois.

Daniel Rodrigues

quarta-feira, 15 de março de 2017

cotidianas #501 - Pílulas Surrealistas #14


Olhou para os lados em meio àquele monte de gente insípida um tanto enfastiada, até que decidiu em que direção ir:
- Você tem fogo? - perguntou ela, linda e voluptuosa, apresentando o cigarro apagado entre os dedos.
- Eu não fumo... – respondeu o rapaz, tipo discreto, cabelo alinhado, roupa sem marca mas bem vestido, olhar sereno; nem parecia ter a ver com aquela festa noturna lotada de gente narcisista e insípida, vestindo marcas mas insinuantemente desalinhadas, deselegantes.
Já podia imaginar vindo de um frequentador daquele lugar chato. Decepcionada, ela já ia dando meia-volta para procurar outro que lhe acendesse, quando ele completou:
- Não fumo, mas tenho fogo.
- Ah, é?!... - retornou interessada, sentando-se ao lado dele. - Garanto que leva um isqueiro contigo só pra não desagradar as mulheres na noite.
- Não, que isso – retorquiu um tanto tímido.
- Ah, não é por isso que você leva um isqueiro, então? Sei... Então, me mostra – desafiou ela, seriando a expressão.
O rapaz mirou-a em mesmo sério silêncio por alguns segundos até abrir a boca e dela jorrar labaredas do mais vívido fogo, bastante intensas para iluminar a propositadamente escurecida boate.
Após admirar aquele feixe de lume com um sorriso de indisfarçável satisfação e tesão, ela descruzou as pernas para poder se inclinar na direção dele e, enfim, acender o cigarro. Baforou as prazerosas primeiras tragadas, soltando muita fumaça no ar, a qual misturava-se a ela.
- Onde, então: na minha ou na tua casa? – adiantou-se ela em questionar o que, agora, já era secundário: o local.
Ele recolheu o maçarico bucal e respondeu:
- Tanto faz.
No dia seguinte, a imprensa noticiou aquilo que lhe passaram:
Casal morre em incêndio em motel na Zona Sul

Conforme a polícia, pela posição que os corpos foram encontrados, as vítimas praticavam sexo quando o incêndio começou e, ao que tudo indica, não pararam mesmo com o avanço das chamas, sendo carbonizados vivos. As causas do que provocou o incêndio estão sendo investigadas.


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

cotidianas #496 - Pílulas Surrealistas #13



Mirou a gigantesca lente em direção a HAT-P-7b, uma estrela branco-amarela a 1.044 anos-luz de distância da Terra. Sozinho no Centro de Observação Espacial no meio do deserto, já passado da meia-noite, Julius pensava consigo próprio como seria a vida naquela estrela. Inóspita, temperatura em torno de 6167,85 graus Celsius, rochosa, amarelada. Não lhe intrigavam os possíveis planetas cuja semelhança com as condições terrestres pudessem gerar vida tal qual aqui. De vidas iguais às nossas já estava saturado. Queria, sim, conhecer algo novo no espaço, algo que ninguém nutrisse
maiores curiosidades. E HAT-P-7b era este lugar. O que tinha lá? Que silêncio, que imensidão, que solitude guardava? Diz que lá chove rubi... Não revelava aos colegas, pois ririam dele, aquilo que perguntava a si próprio: como pode algo estar tão longe de nós e ainda assim emitir uma luz que leva tantos anos para chegar? Cientificamente falando, era-lhe óbvio, pois, como seus colegas, estudara isso. Os livros explicavam. Mas algo dentro dele dizia que não era assim tão lógico, que carecia de uma melhor explicação, uma explicação realmente cósmica, no mais amplo sentido da palavra.
Decidiu por fim àquela curiosidade. Fez tal como se lembrava dos desenhos animados que assistia na infância: enfiou uma banana de dinamite na cauda do telescópio, montou em cima e disparou em direção à sua estrela-anã preferida. Levou consigo um pacote comprido, o qual manteve abraçado junto a seu peito durante o longo trajeto da projeção em linha reta e ascendente. Quando caiu em terra nova, realmente inóspitas, imensas e solitárias, Julius tornara-se, naquele momento, o homem feliz que nunca fora até então. Fez do côncavo de uma minicratera cama e desembrulhou finalmente o pacote, o qual trazia dentro uma luneta. Passou muito tempo ali, nem sabe quanto, pois lá os dias eram longuíssimos, e perdera a noção das horas. Pela luneta, ficou observando de longe a Terra por um ângulo que nunca tinha visto.  

Daniel Rodrigues

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

cotidianas #495 - Pílulas Surrealistas #12




O trânsito não fluía, e enquanto isso ela ia remoendo suas angústias com certo prazer, pois tinha desta vez tempo suficiente para isso diferentemente da maior parte das horas da vida. O carro, anônimo em meio ao engarrafamento, representava o único momento de solidão do dia - isso, até a hora que pegasse o filho na creche e adeus privacidade novamente. Havia sempre alguém com ela, rondando, sugando, competindo, pareando. Não conseguia ficar consigo, pensar sem que lhe atrapalhassem ou fizessem por ela. A vontade, contida, velada, como devia ser, era mesmo de acelerar e jogar aquela camionete contra um muro. "Por que você não faz, então?", perguntou-lhe o coelho no banco do carona cuja cabeça decepada segurava com uma das patas. "E a coragem? E os meus filhos? E as compras que programei pra amanhã?", retorquiu. "Não vai me dizer que você prefere ficar aqui nesse vai-não-vai a fazer alguma coisa?", questionou o bicho. "É tudo tão confuso, tão sem sentido...", queixou-se ela, e antes que as reticências tomassem conta, retomou. "Mas eu pensei que eu estivesse sozinha no carro? Eu comi você ontem no jantar do clube...", disse, percebendo agora que também carregava a própria cabeça numa das mãos. "Não sei onde você está com a cabeça pra me perguntar uma coisa dessas. Aliás, eu sei: debaixo do braço! Rsrsrs desculpe, rsrsrs, essa eu não podia deixar de dizer! Rsrsrs Então", retomando-se o coelho após o acesso de gargalhada: "isso tudo é um ‘sim’?" De repente, num raio de 20 metros não se viu mais carro nenhum, e um muro magicamente concreto surgiu-lhe à frente desimpedido, longe o suficiente para acelerar em sua direção e estuporar-lhe o carro.


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

cotidianas #493 - Pílulas Surrealistas #11



Enfiou a lâmpada mágica dentro da mochila (não queria que nenhum dos colegas de trabalho a visse) e tocou-se pra casa. Desejava coisas que talvez até nem suspeitasse, mas naquele momento achava que desejava de fato fortuna.
Mal abriu a porta do apartamento e já se dirigiu para a sala. Esperançoso em estar prestes a mudar seu destino, esfregou a lâmpada e, embora com certa demora, o gênio saiu. Perguntou ao rapaz num tom de voz sem resquícios de gratidão e em legítima má vontade, a título protocolar:
- O que desejas, meu amo?...
Mal começou a tentar responder e foi interrompido pelo gênio:
- Tu tem alguma coisa pra comer aí? Caralho, tô morrendo de fome! Tipo coxinha, salgado, docinho... E Coca-Cola, tem?
Não precisou fazer as vezes de anfitrião, pois, bastante à vontade na casa de seu novo libertador, o gênio atacou a geladeira e serviu-se por si próprio. Aplacou uma fome de séculos de cárcere. Comeu de tudo que encontrou, lambuzando-se e emporcalhando a casa toda de farelos, cobertura de chocolate, pedaços de frango frito, cascas de frutas, merengue de bolo. Também bebeu refrigerante, vinho, água tônica, uísque e arak – para lembrar os velhos tempos de antes de ser aprisionado numa lâmpada exígua e idiota.
Cantou, dançou e gritou palavrões pela janela. Jogou cerveja para cima em gesto de brinde, tomou uma parte, vomitou outra, e depois seguiu comendo e bebendo de tudo até saciar-se. Até cansar.
Bêbado e estufado, pisoteou o que comera sobre o chão e deitou-se exausto no tapete da sala.
- Tu ia me pedir uma coisa, né? Desembucha. – lembrando-se, enfim, do que porventura fora fazer ali.
- Sim! Sim! – animou-se o rapaz, que começou a enumerar-lhe os desejos, todos não menos do que grandiosos.
Pedidos totalmente em vão, visto que o gênio, incapaz de realizar qualquer desejo dele próprio, quanto menos dos outros, já dormia profundamente, roncando sobre os restos do que havia comido e vomitado.
Ao rapaz, sem alternativas nem maiores aspirações, restou ficar ali sentado diante do gênio embriagado aguardando o momento em que ele despertasse.


Daniel Rodrigues

sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

cotidianas #491 - Pílulas Surrealistas #10



Chamara um Uber fazia mais de 5 minutos e ficou naquela dúvida se cancelava ou não a corrida. "Se eu não cancelar, o cara vai dizer que passou pelo endereço e não me achou e aí eu é que vou ter que pagar. Desgraçado! Boca aberta! Eu aqui parada todo esse tempo e o cara consegue não me ver. Se fosse uma menininha gostosa garanto que chegava antes do tempo e ainda estendia tapete vermelho pra embarcar. Com mulher gorda a história é outra. Ah, não vou conhecer! Dizem que motorista de Uber é mais educado que taxista, mas não é bem assim, não! Homem é tudo igual! Garanto que era aquele ali carro preto que acabou de passar. Eu já vi ele passando por aqui faz uns 5 minutos. Ou seria aquele ali?... Humm, mais um. E outro...Tudo igual esses carros de hoje!".
Enquanto maldizia o transporte privado da cidade, ela já deixava passar mais minutos sem, contudo, fazer o cancelamento e chamar outro. No visor do celular, aparecia o avatar de um carro visivelmente perdido andando em movimentos circulares na quadra em que ela se localizava. Aquele ciclo sem destino foi se fechando numa circunferência cada vez menor até que, rápido como o redemoinho, tal um videogame sinistro, fez desaparecer a imagem daquele carrinho. Junto, apagaram-se todas as informações: do motorista, do modelo, da placa. Sumiu do sistema e mesmo o Uber nunca mais o achou o tal de Renato Queiroz, do Audi A3 2015. Quanto menos ela, que, indignada, nem foi pra casa nem chamou outra condução. Ficou ali, sentada no meio-fio com a roupa da festa que saíra aquela noite esperando que as coisas se resolvessem sozinha para ela ao menos uma vez na vida.


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

cotidianas #488 - Pílulas Surrealistas #9


Ele pensou: “Nem céu nem inferno. Não é esta a posição nem aspiração do homem. Desde que o anjo exterminador de Buñuel deixou-lhes abrir a porta e ver a guerra lá fora, o bom entendedor captou que a fronteira se quebrara. Que restava o abismo, interno e externo. Pois é em abismos que quero me ater. Breves sacramentos entre o real e o imaginário, talvez, justamente por seu revés, um retorno voraz e impiedoso à própria realidade. As situações, ora aparentemente banais, ora banais de fato, não são muito nem pouco: são, sim, aquilo que se pode ser. Aquilo que, provável, seja o único ser real. Um espinho que se encrava na pele da terra.” E tornou a se acomodar dentro da cera da vela, por ora apagada.




Daniel Rodrigues

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

cotidianas #486 - Pílulas Surrealistas #8



Ninguém sentia falta, até porque já havia muito tempo que, não se dizia bem o motivo nem quando, um governo decidiu proibir e ponto. Proibido. Estados organizados e prósperos devem ser ordeiros. Assim, não sentiam falta, pois, como em toda sociedade que se diz moderna, não havia grandes esforços de memória nem de resgate do passado, de modo que até o nome dado outrora a tal coisa essa não lembravam mais. Mas esse mundo, esférico, é muito traiçoeiro. Num dia qualquer, numa avenida qualquer, hora do rush qualquer, o engarrafamento estendia-se 1 minuto a mais do que o normal de 3 horas de duração estabelecidas em lei. Motivo inquestionável para que todos passassem a socar as buzinas. Impaciência, cólera, histeria. Relações se desfizeram por conta do atraso; negócios deixaram de ser fechados; coitos tiveram que ser interrompidos; animais, sacrificados; cultos, profanados. Pois, por um milagre, um menino, então distraído no banco de trás de um dos carros parados no quilométrico engarrafamento, percebeu a atmosfera abarrotada de som. Ruidoso, inflamado, colérico, mas sonoro. Sim: aquilo devia ser o que se proibiu no passado. Não sabia ao certo, mas só podia ter a ver com a tal lenda. Enquanto os homens seguiam buzinando entupidos de razão, o menino largara o tablet no banco para prestar atenção naquilo que, não sabia ele em sua ingenuidade, um dia os humanos chamaram de “música”.



Daniel Rodrigues

sábado, 3 de dezembro de 2016

cotidianas #485 - Pílulas Surrealistas #7





A mãe lhe contava quando pequena que aquela sementinha que ela comia ia um dia brotar e fazer crescer uma árvore dentro da sua barriga. A mulher adulta, embora tenha crescido acreditando em muita coisa igualmente fantasiosa, como príncipe encantado e amores perfeitos, já havia superado pelo menos as crenças da infância: Papai Noel, Fada do Dente, Velho do Saco, essas coisas.
A frustração (ou melhor, a repetição delas) fez com que, como costumeiramente, a vida de executiva, o bom casamento, o casal de filhos e toda a aparelhagem inerente a uma vida social invejável, não fossem suficientes para sentir-se alguém.
Nunca fora alguém. Intimamente, sempre se comparou com as árvores que via na rua escurecidas pela película do vidro do carro. Sua vida era aquilo: movia-se, mas era como se estivesse sempre no mesmo lugar. A não pensar em nada, aceitando tudo que lhe jogassem por cima, passiva como uma folhagem.
Não pestanejou em tomar tal atitude: abriu a maçã e não comeu a polpa. Cavocou e tirou-lhe do miolo as sementes, as quais engoliu com a facilidade de quem acredita que encontrou finalmente seu deus.
O tronco avantajou-se e rompeu-lhe os órgãos internos. Em seguida, os galhos rasgavam sua pele pelas laterais, costas, tronco, seios, boca e ouvidos. Isso, no quarto, e ali ficou.
Ocupados, ninguém da família notou que uma árvore florescera dentro de casa. O marido, aliás, sentiu-se livre para levar a amante para a cama do casal, agora somente dele enquanto gente.
Na primavera, algumas maçãs caíram podres no carpete de tão maduras e desaproveitadas. Foi quando a criada foi chamada para limpar aquela sujeira.



Daniel Rodrigues

sábado, 26 de novembro de 2016

cotidianas #483 - Pílulas Surrealistas #6



Hesitou entrar na loja sabendo que seria uma negociação delicada. Mas tomou fôlego e foi. Queria muito aquilo.
- O senhor gostaria de alguma coisa? - perguntou educadamente o vendedor.
- Não, obrigado. Só estou olhando. - disfarçando interesse.
- Qualquer coisa, é só chamar. Meu nome é Vinicius. Estou ali.
Caminhou em frente à vitrine demoradamente e com ar desapegado, fincando alternadamente os pés no chão por mais segundos que o normal para dar cada passo. Maior sinal de interesse.
- Vem cá, Vinicus (É Vinicius seu nome, certo?). Vinicius, me diz uma coisa: essa aqui, quanto é?
- Essa aqui? Ah, logo vi que o senhor... Seu nome, por obséquio? Rubem? Então, sr. Rubem: logo vi que o senhor sabe das coisas. Essa é das nossas mais desejadas.
- É bonita mesmo. Verde, com esses detalhes em azul - dizia olhando a vitrine agora já sem esconder a admiração.
- E olha só essas inscrições em letras serifadas! E essa imagem desse animal exótico aqui num dos lados. Está vendo? Que perfeição, não é? É realmente um objeto de desejo de muita gente. Tenho certeza que o senhor, homem de respeito e de sucesso como dá pra perceber, tem condições de adquirir.
Rubem, desejoso daquilo e do status que lhe traria, facilmente convenceu-se dos elogios.
- É, tenho que admitir que você tem razão. Sem querer ser convencido, mas posso dizer que eu sou foda! Foda mesmo. Tem que ser muito homem pra chegar onde eu cheguei e comprar assim uma coisa tão valiosa como esta. E este homem sou eu!
- Ah, eu não duvido disso, Sr. Rubem. Não duvido.
- Macho alfa, como dizem por aí.
- Certamente - assentiu o vendedor permanentemente sorridente. - Então, como o Sr. vai querer comprar?
- Ah, sim. Um homem como eu, você sabe, pode comprar de várias formas. Desta vez, quem sabe 400 automóveis e 200 cabeças de gado?
- Humm. Parece-me bom, Sr. Rubem, parece-me muito boa sua oferta. Mas vou precisar ver com meu gerente primeiro pra liberar a compra. Não que eu desconfie do senhor, imagina! Não se ofenda, mas o Sr. sabe como são as coisas, não é? Eu tenho que cumprir ordens...
- Não precisa se explicar, rapaz. Não tem problema, vá lá falar com o teu gerente. Eu aguardo aqui.
- Certo Sr. Rubem, volto num instante. Fique à vontade. O garçom irá lhe servir uma bebida. Jonas: uma bebida pro Sr. Rubem aqui, por favor! Ligeiro! - ordenou Vinicius, animado pelo negócio que acabara de fechar, pois, claro, era mentira que precisava falar com o gerente, pois sabia que o mesmo nem estava na loja e que jamais se negaria uma venda a um homem importante como aquele. Fazia parte do ritual de valorização de objetos valiosos.
Enquanto Vinicius entrava loja adentro para fingir a conversa com o gerente, Rubem fitava com olhar infantil na vitrine envidraçada, fechada com alarme ativado e iluminada com luzes ao redor, aquela cédula de dinheiro, única e apaixonante, a qual estava prestes a adquirir, convicto de que agora não lhe faltaria mais nada para ser um homem invejado e feliz.



Daniel Rodrigues

sábado, 19 de novembro de 2016

cotidianas #481 - Pílulas Surrealistas #5



Meredite perguntava-se retoricamente: “Que rumo tomei na minha vida, meu Deus?” Atordoada, magoada, confusa, caminhava pela avenida escura da noite até que atacou um táxi.
- Segue em frente, senhor. Só segue em frente...
O motorista, nem tão senhor quanto o protocolo pedia ou a falta de atenção dela oferecia, obedeceu. Dirigiu em linha reta por mais de uma hora, enquanto Meredite, ao seu lado, foi aliviando a tensão de tal forma que adormeceu. Nem percebeu quando o carro, como um tapete voador, ganhou altura e percorreu de cima a madrugada silenciosa da cidade. A sensação confortante da suspensão, entretanto, esta sim entrou nos sonhos de Meredite, que, em sono profundo, formou no rosto um sugestivo sorriso, que se perpetuou em seus lábios durante todo o restante da viagem.







Daniel Rodrigues

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

cotidianas #477 - Pílulas Surrealistas #3



Seu Bastos era um espirituoso contador que mantinha aquele velho escritório de contabilidade num prédio antigo do Centro Histórico avizinhado de sex shops que mais pareciam jaulas de tão gradeadas, casas de massagem largamente suspeitas quanto a suas atividades-fim e várias outras salas, a maioria desocupadas e com placas de “vende-se”. Compartilhando com ele as atividades e a solidão dos números, dona Lurdes, tão velha quanto o escritório e o prédio, provavelmente brotada um dia daqueles amontoados de papeis, pois era impossível imaginá-la fora daquele ambiente do qual fazia parte integrante há anos, bem como, de forma prática, era difícil mesmo visualizá-la conseguindo se livrar da montanha gigantesca de pastas e papeis que ocupavam mais de 80% dos 40 metros quadrados do conjunto para sair pela porta. Como seu Bastos sempre saía mais cedo do que ela e nunca a via indo embora, não era estranho que ele presumisse que ela jamais saía dali. Ademais, não precisava ter uma cabeça muito piadística como a de seu Bastos para supor que ali, no meio de traças e celulose encanecida, era o habitat de dona Lurdes. A cena facilmente se formava: batia o sono da noite, ela recostava-se na própria cadeira sem braços e estofado gasto, improvisava a pasta sanfonada como travesseiro, estendia o papelão de uma caixa arquivo-morto para cobrir-se e cumpria, sem grandes confortos mas com muita praticidade, sua característica mais marcante, mais uma noite de sono.A rotina do dia de trabalho só lhes era rompida de quando em vez quando alguém aparecia para demandar-lhes mais trabalho e levar-lhes mais papeis. O irreverente Bastos, ao ouvir o sinal do interfone, sempre gracejava, perguntando à dona Lurdes de um jeito antiquado de se referir àquilo, coisa de séculos que não se usava:
- Quem vem lá? Anuncia-te, ó, ser vindo de terras e tempos longínquos!
Numa dessas tardes quaisquer alguém bate ao interfone, Bastos graceja sua tradicional frase e dona Lurdes manda subir. Ela abre a porta e entram dois altíssimos cavaleiros feudais de armadura e espada. Um deles levanta o elmo à altura da testa e toca uma trombeta, que ecoa em todo o corredor. Era o anúncio de uma entrega a dona Lurdes de um rolo de papel cor fúcsia. Ela desenrola e lê atentamente aquelas letras escritas a punho em bico de pena pelo escriba da Corte. O carimbo, feito de sinete encarnado. Ao terminar a leitura oficial apenas para si, faz aos dois oficiais um sinal de positivo com a cabeça, que imediatamente obedecem e, marchando, levam Seu Bastos.
Já dominado pelos militares medievos e sendo levado arrastado porta afora, Seu Bastos volta-se para dona Lurdes tentando uma explicação:
- Mas... dona Lurdes?...
Foram só essas palavras que lhe saíram, talvez pelo espanto, talvez por resignação, talvez até por inconsciente concordância. Ela não lhe dá atenção, sacudindo a mão aos dois para que o tirassem dali de vez. Tiraram-no. Seu Bastos agitava-se entre aqueles dois brutamontes talhados a vida inteira para as operações repressivas, e até por isso agitava-se em silêncio, sem gritos nem grandes esperanças de se desvencilhar de fato. Fazia-o para cumprir protocolo, como fez a vida toda. Uma prisão silenciosa foi aquela. Quando dobraram no sentido da escada, sumindo do corredor, dona Lurdes trancou novamente a porta e jogou sobre a pilha o rolo de papel, quiçá o último dos milhões que um dia entraram naquela sala.


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

cotidianas #474 - Pilulas Surrealistas #2




Veronique chegou do trabalho louca por um banho. Um banho que lhe fosse renovador. Enquanto largava a bolsa e os papéis de trabalho sobre a cômoda, seu filho, criança de 8 anos que aos 30 se tornará diretor de um laboratório de medicamentos letais ligado à ONU, correu até o banheiro e pegou o sabonete, ainda na embalagem. Com uma hidrocor preta escreveu sobre o papel o radical “nitro” antes da palavra “glicerina”.
Veronique jogou os primeiros jatos do chuveiro sobre o rosto, e depois sobre o colo, o busto, a vulva, as coxas. Notou que à medida que esfregava o sabonete sobre o corpo, sua pele ia desmanchando-se, misturando-se com a água que caía implacavelmente vertical na direção do chão. Não se importou com o efeito do ácido, visto que a sensação lhe estava deveras agradável. Misturada à espuma, Veronique escorreu inteira pelo ralo enquanto a água do chuveiro, soltando vapor e seu canto chiado, ajudava a empurrá-la para baixo e a não precisar pensar mais nas forcas e nas guilhotinas.


Daniel Rodrigues

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

cotidianas #472 - Pílulas Surrealistas #1



O homem adentrou confiante e disfarçadamente insolente a casa de chás, a única da cidade. Queria tomar um chá. Pediu à garçonete:
- Hoje só temos de naftalina – avisou ela, com bloquinho e caneta em punho ansiosa para anotar o invariável pedido.
- Como assim, “naftalina”?
- Sim. Naftalina.
- Naftalina naftalina? Aquela bolinha branc...
- Essa mesmo. Naftalina.
Suficiente para o homem trocar o contido semblante de homem confiante somente pelo de insolente. E sem disfarces. Despejou-lhe os impropérios mais desumanos, capazes de fazer corar um fervoroso guerrilheiro talibã e desconverter o beneditino mais temente. Ela, sem se ofender, entretanto, continha, sim, a impaciência. Queria, enfim, anotar o pedido. Quando ele terminou de vomitar-lhe palavras com o dedo em riste, ela voltou a dirigir-lhe:
- Então, o senhor já escolheu que chá vai tomar?
- Mas como assim “escolheu”, senhorita? Não foi você mesmo quem disse que só tinha de naftalina?!
- Sim.
- Então?!
Ficaram se encarando por alguns segundos: ela, com a ponta da esferográfica a centímetros do papel pronta para feri-lo com garranchos; ele, testa franzida, contrariado como um homem contrariado a quem não se pode contrariar. Com voz agora baixa, quase descrédula, tornou a questioná-la:
- Você tem certeza de que não tem outro chá? Tipo hortelã, canela, abacaxi... Não mesmo?
- Não mesmo.
- Olha: eu fico impressionado com essas coisas. É por isso que esse país de merda não vai pra frente! Me serve um desses aí, então. Mas vai rápido!
- De naftalina?
- Claro que é de naftalina, porra!
A garçonete finalmente pôde anotar o pedido, a parte da qual ela mais gostava.




Daniel Rodrigues