O faro quase instintivo para escolher um filme para assistir tendo em mãos poucas informações a seu respeito me ajudou a fazer uma escolha acertada dias atrás, quando Leocádia e eu aproveitamos a promoção “PartiuCinema”, do Praia de Belas Shopping, em Porto Alegre, para pegar um cineminha durante a semana. A opção foi pelo longa “Alfa”, de Albert Hughes (2018), no qual apostamos e não saímos decepcionados. Pelo contrário: ficamos muito surpreendidos positivamente. Muito bem conduzido em seu todo, com imagens exuberantes e fotografia caprichada, entre outras qualidades, o longa é uma daquelas atrações cinematográficas aptas a qualquer tipo de público sem desmerecer a inteligência de nenhum deles.
Na história, que se passa há 20 mil anos na Europa, na Era do Gelo, o jovem Keda (interpretado por Kodi Smit-McPhee), passa a lutar pela sobrevivência quando, após um acidente, é abandonado por sua tribo, que pensa que ele havia morrido. Dentre os diversos desafios que tem de enfrentar para tentar retornar à sua aldeia, Keda, já muito machucado, é atacado por uma matilha. Ele consegue ferir um dos lobos, mas decide não matar o animal, de quem passa a cuidar e com quem estabelece uma relação de amizade a partir de então.
A impressionante cena do ataque do javali a Keda
Com um ritmo narrativo muito bem orquestrado pela direção de Hughes (“Do Inferno”, 2001, e “O Livro de Eli”, 2010, ambos codirigidos com seu irmão, Allen Hughes) e em uma montagem eficiente (a cargo de Martin Gschlacht), o filme constrói uma verdadeira saga, a qual faz trazer à tona elementos inatos da natureza humana, como o medo, a solidão, a culpa, mas também o amor, a amizade e a força interior. Igualmente, os laços familiares, como a ancestralidade e a ligação emocional com os pais, fonte de todas as representatividades da existência. É este amor profundo de pai e mãe que, unindo coração e coragem, faz Keda se transformar como indivíduo e superar os obstáculos com os quais se defronta no caminho. E não são poucos! Impressionantes as sequências do ataque aos javalis logo no início e a de sua queda nas águas geladas, com as imagens subaquáticas emocionantes.
Tudo no filme é conduzido, entretanto, com muito equilíbrio. Sem exageros nem vazios. Isso se reflete num dos trunfos de “Alfa”, que é seu equilíbrio de planos e movimentos de câmera. Hughes segue um storyboard bem desenhado, o qual usa com inteligência tanto nos enquadramentos mais próximos do objeto filmado (feições faciais, expressão dos olhos, “tomadas de ombro” do animal para o protagonista e vice-versa) como, principalmente, sabe se valer muito bem da imensidão da natureza selvagem do cenário – com montanhas, campos, cavernas, céu e outros – em ótimos plongées aéreos e planos longos, que requerem muita habilidade para serem utilizados sem causar sensação de distanciamento no espectador quando não deve ou precisa.
A fotografia bem cuidada, que explora a imensidão da natureza selvagem
Igualmente integrado, o argumento inicial, de que ali começou na história da humanidade a convivência entre pessoas e animais da forma como a concebemos hoje, doméstica e amigável, embora careça de maior investigação socioantropológica, parece totalmente plausível da forma como é contextualizada no enredo.
Até nas referências a outros filmes “Alfa” é certeiro. Há momentos em que, pela temática, estética e ambientação, lembre “O Regresso” (2016), porém com um protagonista não motivado pela vingança, como no longa de Alejandro González Iñárritu, mas, sim, por um sentimento muito mais elevado, que é o amor. Igualmente, Hughes faz breves e bem-vindas alusões ao oitentista “Koyanisquaatsi”, o clássico documentário-visual de Godfrey Reggio, nas cenas em que a câmera percorre rapidamente os vales sob a sonorização de uma música levemente minimalista, a qual lembra, obviamente, a que o genial compositor Philip Glass criou para a obra de 1983 e que se tornou escola para o audiovisual mundial desde então. Até "Era uma Vez no Oeste", o memorável faroeste spaghetti de Sergio Leone (1968) é resgatado com propriedade.
Enquadramento de "Alfa" inspirado no clássico "Era Uma Vez no Oeste"
Todos esses predicados fazem de “Alfa” um épico dos tempos modernos do cinema. Para além de pretensos épicos, lançados às pencas todos os anos e que necessariamente não sustentam tal condição, o filme de Hughes consegue este feito numa boa, sem forçar a barra. Chega a ser até estranho (não frustrante, não entendam mal!) em se tratando de cinema norte-americano: nem nos momentos em que podia forçar as lágrimas do espectador, isso não acontece. Seria até aceitável, a considerar que todo o restante até então explora outros estímulos que não o sentimentalismo. E não ocorre nem no clímax, quando se revela ser, na verdade, uma loba e não um animal macho que acompanhou Keda. A cena é bonita, tocante e simbólica, mas não apelativa.
“Alfa” é um programão tanto para as crianças quanto para os vovôs, pois é apto a que todos se entretenham, vibrem e se envolvam com essa bem contada história. Feito cada vez mais raro no cinema, uma vez que os nichos temáticos e o empobrecimento dos conteúdos (mal ajudados pela febre dos remakes e franquias) tomam conta de boa parte da produção cinematográfica dos grandes estúdios. Neste sentido, o filme carrega também um pouco de “O Urso”, de Jean-Jaques Annaud, de 1989, capaz de unir todos os tipos de classificação – ou melhor, dissolvê-los. Por fim, “Alfa”, como um bom filme de busca, tal como no mais alto cinema de Abbas Kiarostami ou Win Wenders, nos impele a refletir sobre qual realmente é a maior aventura empreendida: a das emoções físicas vividas no percurso ou aquela que nos faz viajar pelas descobertas do próprio íntimo? A nós, espectadores e amantes dos pets, fica também a mostra do quanto os animais de estimação, em suas consciências discutivelmente irracionais, ensinam aquilo que é principal na vida - inclusive a apurar o faro para escolher um bom filme como este para assistir.
“Quem
se lembra de Suzanne Vega apenas pelo hit mundial ‘Luka’
está perdendo a chance de conhecer
uma das artistas mais
inteligentes da música do nosso tempo.
Ela vem de um passado folk,
mas a partir do trabalho com o produtor Mitchell Froom
lançou alguns
dos melhores discos da carreira.
Este álbum traz Suzanne Vega num
estado encantado.
Falando de coisas que acontecem à sua volta com um
olhar delicado,
a compositora e violonista nos transporta para perto
dela.
O disco é permeado de sonoridades instigantes.
Doses certeiras
de dúvida existencial,
sensualidade, paixão e alguns mistérios.”
Fernanda Takai
Na
minha adolescência, eu e meus amigos sempre tivemos gostos musicais
parecidos. Éramos praticamente unânimes quanto a The Cure e The Smiths, por exemplo. Mas todos tinham suas paixões, aqueles pelos
quais nutriam um sentimento especial. Não que se deixasse de gostar
também em certa medida do que os outros preferiam; mas aquele era
“queridinho” de cada um. Tinha quem fosse fã de Sting, de Depeche Mode, de New Order, de Genesis. A minha “queridinha” era
Suzanne Vega. Sempre me encantaram a elegância, a limpidez da voz e
o lirismo das músicas dessa compositora, violonista, poeta e cantora
surgida nos anos 80 com seu estilo folk-pop arrojado que
remete a Leonard Cohen, Lou Reed, Bob Dylan e a bossa nova –
especialmente Astrud Gilberto. Percebi que, desde o início, ela
trilhara por um caminho de invariavelmente trabalhos bem elaborados,
que, por consequência, lhe renderam grandes sucessos, como “Tom’s
Diner”, “Book of Dreams”, “Blood Makes Noise” e,
principalmente, o belo e melancólico megahit “Luka”. A
música, um dos melhores exemplos de perfect pop de toda a
história do rock, encheu seus bolsos e a deixou mundialmente
conhecida.
Mesmo
com o estrelato, Suzanne Veja nunca quis ser apenas “a cantora de
Luka”. Com o inseparável violão, ela construiu uma carreira
sólida e em crescente evolução, primando pelas letras literárias,
harmonias e arranjos sofisticados e pungentes, batida do violão
marcante, influências da MPB, dos sons étnicos e até da vanguarda
(haja vista as parcerias com Philip Glass). Depois do aclamado álbum
de estreia (produzido por Lenny Kaye e Steve Addabbo, de 1985), teve
como parceiro e arranjador o competente Anton Sanko, com quem cunhou
“Solitude Standing”, de 1987, e “Days of Open Hand”, de 1990.
Quis o destino, entretanto, que, em 1991, ela conhecesse o também
versátil Mitchell Froom – que trabalhara com Elvis Costello no
passado. Não só trocou de parceiro na música como o assumiu na
vida, casando-se com Froom e tendo como fruto (até se separarem, em
1998) uma filha, Ruby, e dois excelentes discos: o “febril” “99.9
F°”, de 1992; e este, o primoroso “Nine Objetcs of Desire”, de
1996.
Auge
da musicalidade da artista, auge da feminilidade da mulher. Mãe pela
primeira vez e próxima de completar 40 anos, Suzanne realça a sua
beleza alva e doce de bailarina profissional (é graduada em Dança
Moderna desde os 18) e compõem um disco arrasador em que vida
artística e pessoal se homogeneízam. São 12 faixas em que Miss.
Suzanne aborda temas como sexo, maternidade, prazer, orgasmo,
castidade, culpa. Elementos do imaginário feminino e íntimo, do
erotismo à religião, estão expostos, na epiderme. Tudo com uma
sensibilidade ímpar e num invólucro perfeito. Desde a capa, em que
Suzanne aparece com uma maçã, a picardia está presente. Mas do
jeito dela, sob sua ótica (tanto que a maçã não é eroticamente
vermelha, mas exoticamente verde). Na arquitetura sonora, Froom
estabelece um diálogo igualmente inteligente entre sons eletrônicos,
instrumentos de base e timbres, modulados pela mesa de som com
tamanha adequação que somente alguém muito próximo à artista
como ele poderia realizar.
Uma
batida tribal dá os primeiros acordes, quando entra um brilhante
riff de guitarra heavy-country. É “Birth-Day”,
faixa inicial que relata, numa poesia forte, o momento do parto (“Uma
coisa eu sei/ esta dor vai passar/ Atravesso tudo o que me resta
sentir/ Eu espero para conhecer o meu amor se tornando real”).
No refrão, o nascimento; e os sons não se fazem cândidos, mas,
sim, estouram saborosamente ruidosos. Como diria Tom Zé: um rebento
como um “orgasmo invertido”.
Em
“Headshots”, a sensação de sensibilidade à flor da pele é
evidente. Desde a bateria e o baixo retumbantes até à voz e a
respiração de Suzanne, a qual é ouvida no mesmo patamar sonoro que
os enigmáticos samples de cítara, do gongo oriental e do
sensual assovio. Exímia contadora de histórias, na tradição dos
bons trovadores folk-country norte-americanos, Suzanne fala
sobre uma mulher que vê estampado num anúncio de “procura-se” o
rosto de um ex-amor, que agora parece triste e fatalmente distante
dela: “A placa diz ‘Headshots’/ É tudo que eu vejo/ Um
menino torna-se uma imagem/ De culpa e simpatia/ E então eu penso em
você/ Em memória/ Dos dias em que estávamos juntos/ E eu sabia que
você me amava/ Essa era a diferença/ Daquilo que vemos/ Mas isso é
história.../ Ah...”.
Enteada
de um escritor porto-riquenho, Ed Vega (com quem aprendera o gosto
pela poesia e literatura), Suzanne cresceu, por causa dele, na região
latina de Manhattan, Nova York. Por isso, sua veia de música
brasileira não só se justifica como é extremamente presente.
“Caramel”, hit do disco, talvez seja o segundo melhor
exemplo disso em seu cancioneiro: uma linda bossa nova com todos os
elementos característicos da batida de João Gilberto e a
complexidade harmônica de Tom Jobim. A letra, sobre um amor
impossível, carrega em referências sensoriais ao paladar
(“caramelo”, “canela”, “pele”). E ela diz: “Então,
adeus/ doce apetite/ Nem uma única mordida/ Poderia satisfazer...”.
A voz de Suzanne é suave, sugerindo um sussurro de dor e
prazer. O refrão é ainda mais belo com a característica pronúncia
perfeita de seu canto. E o charme do solo de clarinete, então!? Um
show.
Digo
que “Caramel” é a “segunda” grande bossa de Suzanne Vega
porque a melhor é “Thin Man”. Tocado com instrumentos de rock,
mas em um inconfundível ritmo de samba, tem uma das mais belas
melodias de voz criadas pela compositora. O violão, centro harmônico
da melodia, desenha a canção como fazem todos os bons “filhos de
João”. Sensual e cadenciada, põe a personagem no universo de um
homem de modos finos e misterioso. “Ele não é meu amigo, mas
ele está comigo/ E ele me promete uma paz que eu nunca conheci/ Eu
não posso desistir, não, eu tenho que resistir/ Mas eu podia mesmo
ser a única a resistir àquele beijo tão verdadeiro...”
A
capacidade de incutir toques étnicos ao folk (como já
procedera claramente em "Room off the Street", “In the
Eye” e “As a Child”, de discos anteriores) faz com que Suzanne
Vega não restrinja as influências apenas à música brasileira ou
latina, mas também aos sons árabes e orientais. “Stockings”,
sobre uma moça que se atrai pela voluptuosa amiga (“Você sabe
onde a amizade termina e paixão se inicia?/ É entre o que liga suas
meias-calças à sua pele...”), é exatamente isso: uma linha
de violão de natureza country, porém simplificado, direto ao
ponto, quase um riff de guitarra. E acompanhando o canto limpo
dela a percussão de tablas, isso sem falar nas cordas, que Froom
escreve em notas bem próprias das danças arábicas.
“Casual
Match”, pouco variável e mais fraca do disco, nem por isso chega a
desnivelar o repertório, pois na sequência vem a outra “música
de trabalho” de “Nine Objects...”: “No Cheap Thrill”,
pop-rock infalível como Suzanne sabe fazer com o pé nas
costas; e “Lolita”, uma rumba estilizada que, mais uma vez
literária, Suzanne referencia à imagem da clássica ninfeta
nabukoviana, revelando a farsa deste estereótipo (“Ei, garota/
Não seja como um cão toda a sua vida/ Não peça/ Algumas poucos
migalhas de afeto/ Não tente/ Para ser mulher de alguém/ Tão
jovem/ Você precisa de uma palavra de proteção...”).
A
maternidade, em forma de “descobrimento” de si mesma e da nova
vida que entra em seu universo, volta na emocionante “World Before
Columbus”. Mais do que uma declaração de amor à filha (“Se
o seu amor fosse tirado de mim/ Cada cor seria preto e branco/ Seria
tão monótono como o mundo antes de Colombo...”), Suzanne faz
uma crítica ao materialismo do mundo moderno e uma ode ao verdadeiro
afeto, engendrando um deslocamento temporal e simbólico típico de
escritores como ela (“Aqueles homens que têm cobiça por terra/
E por riquezas estranhas e novas/ Quem ama essas bugigangas de
desejo/ Oh, eles nunca vão ter você”).
“Honeymoon
Suite” resgata a Suzanne Vega original, a trovadora de violão em
punho, num country voz-viola tão germinal que parece ter sido
extraído de um filme de faroeste. Enigmática, imaginativa. E para
fechar todo esse clima de volúpia, um... jazz! Sim, um jazz
swing marcado no piano e cheio de simbologias à morte, à
passagem do tempo e ao prazer carnal: “Se você me perguntar
como faz para chegar ao/ meu humilde mapa/ Eu sei por que porta você
pode entrar/ Mostre-me sua fraqueza/E o tempo está
queimando, queimando, queimando/ Queima até o fim”. Um final
digno desse caldeirão de ideias e sentimentos.
(Mas
eu falei “final”? Ops!)
Ainda
não é o fim! Suzanne Vega ainda nos revela, depois de um longo
silêncio após o término da 11ª faixa – como aquele presente
picante escondido meio ao alcance para que possa ser revelado com
surpresa –, “My Favorite Plum”, uma valsa sexy conduzida
na guitarra do craque Tchad Blake em que reveem-se o gozo e o prazer
que entra pela boca, tendo a delicada e saborosa fruta vermelha como
metáfora-chave.
Um
disco que, desde que conheci se tornou um dos favoritos da discoteca.
Já havia me impressionado bastante com “99.9F°”, quando a
parceria com o então marido começou. Mas este representa na
carreira dela uma consolidação de várias coisas: musicalidade,
personalidade e, principalmente, feminilidade. È tão forte e
sincero que o deleite de escutar suas canções é quase carnal:
quando se está numa faixa, já se sabe a delícia que será quando
chegar à seguinte. Deseja-se ouvir cada uma delas. E que cheguem, e
que se aproveite enquanto estão tocando, e quando terminam, e quando
começa outra, e quando virá a próxima, nossa!... Hum, acho melhor
parar por aqui, porque 12 vezes é demais.
****************************
FAIXAS:
1. Birth-Day (Love Made Real) - 3:38
2.
Headshots (Suzanne Vega/Mitchell Froom) - 3:08
3.
Caramel - 2:53
4.
Stockings - 3:30
5.
Casual Match (Vega/Froom) - 3:10
6.
Thin Man - 3:39
7.
No Cheap Thrill - 3:10
8.
World Before Columbus - 3:26
9.
Lolita (Vega/Froom) - 3:33
10.
Honeymoon Suite - 2:56
11.
Tombstone - 3:07
12.
My Favorite Plum - 2:47
todas as composições de Suzanne Vega, exceto indicadas
Todo mundo que parou para dar pelo menos uma espiada no One World, hoje é convidados para fazer o mesmo, só que com o Música da Cabeça. E nosso cast de participantes não deixa nada a desejar pro evento da Lady Gaga! Confere: Milton Nascimento, Robert Johnson, Ratos de Porão, Philip Glass, Jorge Ben Jor, Bob Marley e mais. Tem ainda "Cabeção" com a eletro-indie Bent, mais "Música de Fato" e "Palavra, Lê". O MDC não é live, mas tá vivinho da silva na Rádio Elétrica, às 21h. Produção, apresentação: Daniel Rodrigues. #togetherathome
abrir os olhos, se não estiver tocando ao fundo essa música,
provavelmente você está indo para o lugar errado."
Robert Christgau,
crítico musical
sobre “Blue Bell Knoll”
Era uma vez uma falange de anjos que, de saco cheio da exigência de
serem angelicais o tempo todo, se revoltaram e desceram dos Céus. Desafiadores,
eles vieram cair na Terra de propósito, justo neste planetinha atrasado dentre
os tantos bilhões que podiam escolher na galáxia. Claro que foi, justamente,
para desafiar as divindades. Se aqui achariam a inveja, a tristeza, a ganância,
a incompreensão, a violência, era exatamente onde suas almas jovens e rebeldes
queriam ficar. Como filhos desgarrados que precisavam se autoafirmar, puseram
toda a revolta para fora. E como se não bastasse, inventaram de formar uma
banda de rock, para desespero dos santos. Queriam seguir Lúcifer e não o chato
do Gabriel. Assombro geral no firmamento.
No começo, foi o punk. Jogaram fora as auréolas e trajaram roupas de
segunda mão rasgadas e sujas. Muito couro duro e escuro; nada de sedas leves e
brancas como antes. Na música que criavam, todo esse inconformismo era transmitido
na forma de depressão. Compunham canções soturnas, carregadas, chorosas, em que
a guitarra mais parecia gemer pedindo clemência. O baixo, grave em sonoridade e
intenção, e a bateria, marcada, repetindo uma interminável marcha fúnebre. Eram
chamados não apenas de punks, mas de gothic-punks,
ou seja, os punks de espírito dark. E
na voz da anja, dor. Muita beleza e afinação divina. Mas dolorida. Gravaram o
primeiro disco assim, em 1982, chamado “Garlands”, onde descarregaram as mágoas
e aflições que vinham guardando desde casa, quando romperam com o Pai em busca
do reconhecimento de si mesmos.
Acontece que uma vez anjo, sempre anjo. Os desgarrados, à medida que
iam produzindo, iam também, pouco a pouco, amenizando a raiva. E, não
coincidentemente, voltando a serem cada vez mais angelicais. O bom “Head Over
Heells”, segundo deles, de um ano depois, é o meio termo entre esses dois polos
de estado evolutivo. Avançam mais um pouco no sentido da suavização e chegam já
praticamente renovados no referencial "Treasure", de 1984, que, embora lírico,
ainda guarda um pouco da densidade dark
dos anos iniciais. Já com as asas de volta, depois do astral “Victorialand”
(1986), atingem o ápice da manifestação de suas almas celestiais com “Blue Bell Knoll”. Os querubins em
questão são Elizabeth Fraser (voz), Robin Guthrie (guitarras, teclados) e Simon
Raymonde (baixo): os escoceses do Cocteau Twins.
Maduros tecnicamente e afeitos aos estúdios da 4AD, eles mesmos produzem
um álbum altamente delicado e sofisticado, bastante marcado pelas texturas
espaciais dos teclados e pelas programações de ritmo. É assim que começa a
faixa-título, numa das aberturas de disco mais belas da discografia do pop britânico dos anos 80: um ataque de
teclados que lembra o som de cravo junto com a guitarra e bateria só no bumbo e
chipô. Camadas sonoras preenchem o espaço. Não demora, subindo um tom, entra a
deslumbrante voz de Liz Fraser articulando de improviso a letra em cima de uma
melodia vocal. Já começa nesse nível. Em seguida, a bonita “Athol-Brose” antecipa
uma das melhores do disco: “Carolyn’s Fingers”, encantadora, que, se for
considerar o tema, essa tal Carolyn deve realmente ter dedos mágicos. Brit-pop clássico, com a tradicional
batida funkeada em tempo 2/3, mas com o também tradicional riff twiniano. E o mais relevante: Liz Fraser dando um show de
vocal, adicionando uma carga erudita ao pop-rock
como poucas vezes se tinha visto. Deste jeito, jamais.
Guthrie, um guitarrista de qualidade, como boa parte de sua geração (Will Sergeant, Barney Sumner, Daniel Ash, irmãos Reid) não chegava aos pés em
técnica de um Jimmy Page, Eric Clapton ou um Jeff Beck (no pós-punk, não raro o baixista era mais hábil que o guitarrista na
banda). Porém, sua criatividade para compor e aproveitar os recursos sensoriais
e de textura que as cordas lhe proporcionam é gigantesco. Foi a mente inventiva
e observadora de Guthrie que cunhou uma rica assinatura melódica para a banda.
Ele sintetizou uma espécie de “base de riffs”
para o Cocteau Twins, a qual transmite, em notas geralmente de som cintilante,
exatamente esse espírito suave e etéreo que lhes é característico. Trata-se de
uma combinação de notas em tempo 7/7 que se assemelha ao andamento de uma valsa
mas que, avaliando bem, é bastante hipnótica visto sua estrutura cíclica em
arpejo. Com essa base, Guthrie é capaz de criar infinitos riffs, infinitas combinações valendo-se da variação de tom, das
texturas, dos arranjos, dos timbres e por aí vai. Como um pintor que se vale
das mesmas tintas para pintar quadros diferentes. É tão inteligente e marcante
que pode até nem conter todas as 7 notas (6, 5 ou até 4 apenas), mas percebe-se
o mesmo esqueleto ao se ouvir. O que apareceu pela primeira vez em 1983, na
linda “Sugar Hiccup” (e que já vinha sendo já largamente usada por eles, basta
ouvir “Pandora”, do “Treasure”, ou várias de “Victorialand”), é claramente
repetido em “Carolyn’s Fingers”, na melodiosa "Suckling the Mender",
cujo arranjo vocal do refrão a faz ganhar cores orientais, e em "Spooning
Good Singing Gum", outra linda, que chega a pôr o ouvinte para voar.
O estilo Ethereal criado pelos Twins, impressionista e sofisticado, é
fruto de uma improvável mescla de pós-punk,
ambient music, new age, folclore celta e música barroco-renascentista, Isso
é evidente em "The Itchy Glowbo Blow" e noutra balada, "A Kissed
Out Red Floatboat", com seus sons espaciais e um lindo refrão, onde Liz,
em overdub, põe o tom lá em cima.
“Ella Megalast Burls Forever” é outra magnífica balada que evoca, aliás, tanto o
sentido moderno do termo (canção sentimental em andamento lento) quanto sua
acepção primeira, medieva, de uma forma de poesia lírica em estrofes. Chega a
ser litúrgica de tão elevada, pois faz vir à mente suntuosas igrejas em que o
som se propaga às alturas. Os ecos, as sobreposições e os contracantos só fazem
aumentar essa sensação.
A voz de Liz Fraser, aliás, é um caso à parte. Ela não ficou conhecida
no meio pop-rock alternativo como “a
voz de Deus” por acaso. Talvez a melhor pupila de Cathy Barberian – mas também
bastante inspirada em Meredith Monk, Joni Mitchell e nos intrincados arranjos
de voz de Philip Glass – Liz foi, desde o início dos Twins, o maior destaque da
banda. Soprano – diferente de Barberian, uma mezzo –, foi aperfeiçoando a técnica e soltando seu canto até
chegar ao status que adquiriu. A
capacidade de alcance dos agudos e a fluência pelas escalas são típicas de uma
voz treinada e, acima de tudo, emocionalmente livre. “Cico Buff”, balada ambient muito terna, e "For Phoebe
Still a Baby", cheia dos ornamentos vocais, foram escritas para que ela as
conduzisse. Até o conteúdo do que ela canta tem sentido superior quando cria
melismas e inventa palavras ininteligíveis e sem sentido semântico nenhum,
apenas experenciando a musicalidade da pronúncia e dos encadeamentos. Não é
possível – nem necessário – entender o significado, pois a música é sentida na
essência, e essa é a própria concretização da linguagem universal da arte
musical. Provavelmente, seja esse o idioma dos anjos.
Depois de “Blue...”, a sina desses anjos na Terra permaneceu no caminho
de iluminação e de cores, influenciando diretamente bandas como Lush, Stereolab, My Bloody Valentine, The Cranberries, The Moon Seven Times, entre outras. Nos anos
seguintes, vieram os também ótimos “Heaven or Las Vegas” (1990, considerado
para muitos o melhor do grupo), “Four-Calendar Café” (1993) e “Milk &
Kisses” (1998), este, o último antes da dissolução após apenas nove discos de
estúdio (contando com o em parceria com o compositor vanguardista Harold Budd,
“The Moon & The Melodies”, de 1986).
Nessa trajetória, eles viram que tinham razão quando se autoexpurgaram,
pois o mundo precisa, sim, de um pouco de Satanás para sair do conformismo e
quebrar barreiras. O Diabo, afinal, é o pai do rock. Mas compreenderam,
igualmente, que havia uma inquestionável beleza naquilo que Gabriel representava
– e que ele não era o chato como eles pintavam. Foi em “Blue Bell Knoll” que aprenderam
isso e a não fugirem de seus próprios destinos, e que aceitar e elaborar suas
próprias naturezas era o caminho mais acertado. Isso vale tanto para anjos
quanto para pessoas. Quem sabe, então, não foi este, desde o início, o designo
divino aos Twins quando vieram em missão: ensinar aos humanos que o importante
é seguir o próprio coração?
vídeo de"Carolyn's Fingers" -Cocteau Twins
************
FAIXAS:
1. "Blue Bell
Knoll" - 3:24
2.
"Athol-Brose" - 2:59
3. "Carolyn's
Fingers" - 3:08
4. "For Phoebe
Still a Baby" - 3:16
5. "The Itchy
Glowbo Blow" - 3:21
6. "Cico
Buff" - 3:49
7. "Suckling the
Mender" - 3:35
8. "Spooning Good
Singing Gum" - 3:52
9. "A Kissed Out
Red Floatboat" - 4:10
10. "Ella Megalast Burls Forever" - 3:39
todas as composições de autoria
de Fraser, Guthrie e Raymonde.
Este é um ÁLBUNS FUNDAMENTAIS que bem pode ser também um Claquete, pois filme e trilha estão totalmente conectados, uma vez que imagem e som não existiriam um sem o outro. Esse conceito integral tão típico das artes cênicas e visuais só poderia vir de artistas que souberam antever o que hoje é chamado de arte contemporânea. Sim, antever, afinal estamos falando de uma obra datada de 1924. A música? A peça “Entr’acte”, do compositor vanguardista francês Erik Satie. O filme correspondente é outra joia, dirigida pelo cineasta René Clair, o mesmo de clássicos do cinema mundial “A Nós a Liberdade” (1931), a “versão europeia” de “Tempos Modernos”, de Chaplin.
Clair chamou Satie para um desafio a que os dois, inquietos como eram, se instigaram. A proposta era a seguinte: o pintor e poeta Francis Picabia, desgostoso com os companheiros de dadaísmo, quis cutucar, igualmente, os surrealistas. Redigiu, então, um balé para o grupo Ballets Suédois, que estrearia em Paris, em pleno Théâtre des Champs-Élysées. O jocoso nome da produção dizia tudo: “Relâche”, o aviso que se colocava na porta dos cinemas quando as sessões eram suspensas. Isso ainda não era nada: no dia da avant-première, um dos cartazes do espetáculo trazia um aviso provocativo ao público: “Se você não gostar, o caixa lhe venderá apitos por dois centavos.” Pois o balé, com apitaços de vaia ou não, conteria dois atos e, no intervalo, seria apresentado um curta-metragem dirigido por Clair cuja trilha, assim como a de todo o espetáculo, coube a Satie. O resultado dessa química foi tão afrontosa que a música do filme se destaca a dos dois movimentos da dança, sendo inclusive desvinculada deles. Ou seja, um deboche homérico, uma vez que justamente a programação secundária (momento de dispersão e que exige menor concentração do público) é a mais representativa de todo o programa, pondo-se acima do principal.
Tal índole de ruptura e escárnio são típicos de Satie, um inclassificável compositor em constante mutação ao longo dos tempos. Ele já havia, àquela altura, composto obras marcantes para a história evolutiva da música europeia (“Relâche” é seu último trabalho antes de morrer, em 1925), como o tríptico “Gymnopédies” (1888) – com seus incomuns 18 compassos contínuos de apenas seis (!) notas, sem desenvolvimento nem transição, apenas um instante prolongado – e outras inovadoras peças, como o balé “circense-surrealista” “Parade”, que causou furor em 1917. Influenciado pela música de Debussy, Ravel e Stravinsky, bem como pelos modernistas franceses do Les Six, misturava o ragtime americano e a sonoridade fútil do teatro de variedades ao clima do cotidiano de uma Paris em efervescência cultural – deste o esoterismo ocultista até o populismo dos cabarés. Satie circulava por todas as correntes (dadaísmo, futurismo, surrealismo, cubismo, expressionismo, simultaneísmo) sem, contudo, filiar-se a nenhuma delas. Em “Entr’acte”, compõe uma peça totalmente despojada, sem cadência nem compasso definido: apenas marcação de ritmo e harmonia, relegando a segundo plano a melodia. O motivo sonoro, maldito feito uma engenhoca que se estragou naquele ponto, vai e volta, mecanicamente, doentiamente. “Entr’acte” é, assim, a gênese do minimalismo. A repetição e as cacofonias incômodas ao ouvido mostram o quanto Satie prenunciava os tempos esquizofrênicos da sociedade pós-moderna, em que a emoção vira produto e o homem vira máquina. Evidente esta analogia na sequência do funeral, em que todos os convidados, parecendo bestas, estão fora do tempo, até que o próprio caixão dá no pé e todos passam, simbolicamente, a correr atrás da morte. Aqui, Satie faz uma paródia da “Marcha Fúnebre” de Chopin, em que sua escrita para piano, rítmica e sem firulas, revela a influência da música de dance-hall e da vida urbana moderna.
Como na trilogia “Quatsi”, da dupla Godfrey Reggio-Philip Glass, “Entr’acte” é um filme-música (ou a música-filme, tanto faz). Dura pouco mais de 20 minutos, suficientes para entrar para a história da música no século XX e marcar o movimento surrealista no cinema, tendo sido produzido, inclusive, cinco anos antes de “Um Cão Andaluz”, de Luís Buñuel e Salvador Dalí (não é de se estranhar que a estreia de ambos os filmes tenha rendido enorme bafafá na sociedade parisiense da época). Ali já estavam, porém, vivas, as inovações técnicas (câmera na mão, efeitos de luz e lente, sobreposições, distorções visuais, enquadramentos incomuns) e conceituais (roteiro não-linear, narrativa poética, descompasso temporal da ação/personagem, desconstrução psicológica do palco-cenário) que marcariam o cinema avant-garde. O curta foi influência direta para o brasileiro Mário Peixoto em sua obra-prima “Limite” (1930) e para o “cinema de poesia”, que vai da Pier-Paolo Pasolini e Jean-Luc Godard a Júlio Bressane.
A Paris daquele início de século XX dava todos os elementos para essa ebulição criativa. A Cidade-Luz fervia em sua beomia noturna. Estavam lá a esta época algumas das mais inteligentes cabeças das artes em todas as frentes: Pablo Picasso, Ernest Hemingway, Coco Chanel, Stravinsky, Marcel Duchamp. Jean Renoir, Jean Cocteau, Man Ray, Gertrude Stein, David Milhaud e os próprios Buñuel, Dalí, Clair e Satie. Com tanta produção, os rótulos empregados eram os mais diversos. “Entr’acte”, um típico produto consciente do entre-Guerras, capta esse espírito de diversidade, homogeneizando todas as vertentes. O filme é uma alegoria irônica e pessimista do futuro, como a antecipação das apropriações ideológico-simbólicas da publicidade (a bailarina em slow-motion vista em total contraplongê que vai e volta com a função de “encantar os olhos”), a erotização da violência através do artefato militar (o canhão “varão” que desencadeia a desordem no início do filme) e a fragilidade e a vigília da vida moderna em época de olhos digitais e mídia a la big brother (os dois homens manipulando a cidade em um tabuleiro feito marionete). Já a música, inegavelmente dadaísta, traduz isso a seu jeito: tal como Satie inaugurara em “Parade” sete anos antes, uma nova arte de colagem sonora é criada: melodias interrompidas quando ainda mal começaram, dissonâncias em abundância, ritmos entrelaçados e sobrepostos, ataques inesperados e paradas fora do tempo, fugas quebradas que “homenageiam” um passado já desfeito. Wagner, ópera italiana, escola austríaca, romantismo, classicismo: “nunca mais!”, bradava.
Havia quem criticasse Satie por suas miniaturas musicais com escalas pouco convencionais, harmonias estranhas e uma total ausência de virtuosismo instrumental, reduzindo-o a um compositor de fracos recursos técnicos. Se o era, é mais louvável ainda, pois sua criatividade e capacidade transformadora são tamanhas que não é exagero dizer que ele é um dos precursores do espírito “faça você mesmo”, o grito dos punks, estes, os revolucionários roqueiros do fin de siècle. O fato é que uma obra tão significativa como “Entr’acte” exerceu influência direta na vanguarda pós-Segunda Guerra, tanto no meio erudito quanto no jazz e no rock. Para citar quatro exemplos expressivos: Terry Riley, em seu eletro-minimalista “A Rainbow in Curved Air”, de 1969; a mente “saudavelmente doentia” de Syd Barrett em “The Piper at the Gates of Down”, do Pink Floyd, do mesmo ano; as primeiras obras de Glass, tanto “Music in 14 Parts” (1971-74) quanto “Music with Changing Parts” (1971); e a maestrina jazzista Carla Bley em “Musique Mecanique” (1978). Se tamanho alcance não é digno de elogio, é, no mínimo, reflexo da recorrente contradição que caracterizaria os ilógicos e amorais tempos de hoje. Tempos, aliás, aos quais Satie já se fazia pertencer mesmo não vivendo neles. E para que precisaria?
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O CD traz ainda a íntegra de “Relâche”, com seus dois movimentos interpostos por “Entr’acte”, e a obra “Trois Morceaux en Forme de Poire” – que contém a conhecida peça “Maniere de commencement” e “Ragtime Parade”, arranjo posterior ao balé “Parade” escrito por Hans Ourdine –, todos em versão para piano. No vídeo, a trilha de “Entr’acte” é arranjada para orquestra, com regência de Henri Sauguet, de 1967.
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I. Trois Morceaux en forme de poire: 1. Maniere de commencement - 4:05 2. Prolongation de meme - 0:47 3. Lentement - 1:27 4. Enlevé - 2:43 5. Brutal - 2:12 6. En plus - 2:21 7. Redite - 1:31 8. Ragtime Parade - 2:33 II. Relâche - Premier Acte: 9. Ouverture - 1:09 10. Projection - 0:42 11. Rideau - 0:24 12. Entrée de la Femme - 1:14 13. "Musique" - 0:37 14. Entrée de l'Hommes - 0:38 15. Danse de la Porte tournante - 0:54 16. Entrée des Hommes - 0:39 17. Danse des Hommes - 0:42 18. Danse de la Femme - 1:04 19. Final - 1:15 III. Entr'acte: 20. Cheminées, ballons qui explosent - 1:29 21. Gants de boxe et allumettes - 0:42 22. Prises d'air, jeux d'echecs et bateaux sur les toits - 0:57 23. La Danseuse et figures dans l'eau - 0:42 24. Chasseur; et début de l'enterrement - 1:25 25. Marche fúnebre - 0:51 26. Cortege au ralenti - 1:35 27. La Poursuite - 1:10 28. Chute du cerceuil et sortie de Borlin - 1:00 29. Final (écran crevé et fin) - 1:05 IV. Relâche - Deuxieme Acte: 30. Musique de Rentrée - 0:56 31. Rentrée des Hommes - 0:54 32. Rentrée de la Femme - 1:15 33. Les Hommes se dévetissent - 0:34 34. Danse de l'Homme et de la Femme - 1:13 35. Les Hommes reganent leur place et retrouvent leurs pardessus - 0:51 36. Danse de la Brouette - 1:21 37. Danse de la Couronne - 0:57 38. La Danseur depose la Couronne sur la tete d'une specatrice - 0:46 39. La Femme rejoint son fauteuil - 1:05 40. Petite Danse Finale (la Queue du Chien) – 0:43
"O Mistério de Candyman", de 1989 já ocupa seu lugar entre os clássicos do terror, mas "A Lenda de Candyman", de 2019, não veio pra brincadeira e quer desbancar o favorito.
É o caso de remake que não é exatamente uma refilmagem, estaria mais para uma sequência, um reboot, uma vez que tem ligação com os fatos já acontecidos, faz referência a personagens da trama original, mas cria de tal forma um novo conceito que o termo re-fazer torna-se totalmente mais adequado.
No original, de 1989, uma pesquisadora acadêmica, Helen, em busca de um bom assunto para sua tese universitária, investiga uma suposta lenda urbana de um homem negro, com um gancho no lugar de uma das mãos, que, segundo dizem, aparece sempre que invocado, cada vez que seu nome é repetido cinco vezes diante de um espelho. Ela mergulha na pesquisa e descobre que, há mais de um século atrás, o homem em questão, um negro filho de escravos, dotado de grande talento artístico, contratado para pintar um retrato da filha de um importante aristocrata, teria sido morto cruelmente por um poderoso aristocrata, depois de se apaixonar e engravidar a moça. O negro, conta a lenda, teria sido torturado, sua mão decepada e colocado um gancho em seu lugar, além de lambuzado em favos de mel, exposto a abelhas dentro de um antigo apiário, sendo picado até a morte e depois ainda, como se não bastasse jogado em uma fogueira. Ela visita um conjunto habitacional de baixo padrão na periferia de Chicago, o Cabrini-Green, construído no local onde há tempos atrás teria ocorrido a barbaridade com o artista, e onde moradores alegam ver a entidade, atribuindo a essa assombração a autoria de vários crimes ocorridos lá.
Ainda cética e incrédula quanto à lenda, ela invoca a entidade e a partir de então sua vida torna-se um inferno. Visões, apagões, pesadelos passam a fazer parte de seus dias, e assassinatos nos quais ela estivera presente nas cenas dos crimes, a tornam a principal suspeita das mortes, sendo que, sem memórias claras, nem ela mesmo tem certeza de não tê-los cometido.
É que Candyman, depois de invocado por Helen, passa a ter com ela uma estranha ligação e a exige em sacrifício em troca da vida de um bebê que sequestrara no Cabrini-Green. E, vingativo e ressentido, não pretende parar de matar até que Helen se entregue a ele e compense, de certa forma, a mulher por quem foi sacrificado.
"O Mistério de Candyman" - trailer
No novo, essa questão da injustiça social, do julgamento racial, de um negro pobre ser morto simplesmente por ser negro e pobre, ganha muito mais força e significação. Em "A Lenda de Candyman", todos aqueles fatos já teriam acontecido e agora ecoam como um boato, um mito distante, uma lenda, que quase ninguém leva a sério. No entanto, Anthony, um artista plástico em crise criativa, em busca de uma maior expressão em sua arte, que pretende recorrer às raízes do povo negro, suas mazelas, suas dores como inspiração para sua arte e nesta busca, numa conversa casual, esbarra na tal da lenda de Candyman. Descobre que o bairro onde vive localiza-se numa área hoje revitalizada mas que outrora abrigava um bairro de classe baixa tido como "barra pesada", onde um homem negro que costumava dar doces para as crianças, fora morto injustamente, linchado pela polícia. Resolve desenterrar a história e ver até onde aquilo tudo tem algum fundo de verdade. O próprio interesse dele na história, no personagem e sua verificação dos fatos e contestação dos acontecimentos desperta a força sobrenatural adormecida. Curioso, cada vez mais intrigado e envolvido com a história, meio que na brincadeira, ele resolve invocar a entidade, só que aquilo era tudo que Candyman precisava: um homem negro, angustiado, em busca de respostas, em busca de si mesmo... Quando esse negro se olha no espelho ele vê todos os negros injustiçados, subestimados, subvalorizados, pré-julgados, espancados, linchados, mortos, e todos esses negros estão simbolizados na figura de Candyman.
Inspirado pelo personagem que pesquisara e descobrira, Anthony cria uma instalação artística, uma espécie de espelho de banheiro, repleto de símbolos, imagens e recados em seu interior, que, exposta numa galeria causa alvoroço e incita alguns brancos desavisados, céticos, descrentes, ignorantes, a ousarem dizer seu nome na frente do espelho. "Candyman, Candyman, Candyman, Candyman, Candyman...". Branco, você não devia ter feito isso...
Se para um negro que o chama ele surge com essa força ancestral poderosa (assustadora, é verdade, difícil de incorporar com naturalidade), para um branco que o faz, por galhofa ou curiosidade, Candyman revela toda sua fúria justiceira deixando um rastro de sangue vingativo.
Aos poucos Candyman vai se apossando de Anthony. O que vemos é desagradável, não é bonito mas... é isso: nunca foi bonito. É a vez do artista encarnar toda a injustiça e a violência sofrida pelos negros ao longo dos tempos. Mas ele aceitará essa tarefa?
"A Lenda de Candyman" - trailer
Jogo duríssimo, hein...
Propostas de jogo parecidas mas com alternativas táticas diferentes.
Se o primeiro é um filme de serial-killer sobrenatural que toca em pontos sensíveis, como machismo, desigualdade social, violência policial, gentrificação e, sobretudo, racismo; o segundo coloca essas discussões no centro da trama e, ao contrário, faz do terror um acessório importante.
É o duelo dos técnicos! De um lado o britânico Bernard Rose que não brilhou muito em trabalhos posteriores mas que aqui mostra muita competência, e do outro a jovem treinadora Nia da Costa, cheia de novas ideias e já mostrando um ótimo trabalho em seu segundo longa. Mas com tramas tão bem desenvolvidas, mais do que um duelo de treinadores, a batalha dos Candyman revela-se uma guerra dos roteiristas. De um lado, nada menos que o mestre do terror Clive Barker, idealizador e roteirista do filme de 1989, e do outro um dos grandes nomes do gênero na atualidade, o excelente Jordan Peele. Como dá pra notar, comissões técnicas de peso.
E dentro de campo a coisa não é diferente. O antigo aposta nas individualidades com Virginia Madsen, do primeiro "Duna", numa ótima atuação, no papel da pesquisadora Helen, e o lendário Tony Todd, do remake de "Noite dos Mortos-Vivos", espetacular como o personagem que dá nome ao filme. O novo, sem nenhuma grande estrela, aposta no conjunto e como ponto a seu favor traz um um elenco predominantemente preto num filme sobre questões negras.
Partida equilibradíssima!!!
Quem leva?
Tony Todd é um Candyman muito melhor, mais assustador, mais impressionante com aquele rosto crivado de abelhas, do que o inexpressivo Michael Hargorve que é o Candyman que aparece na maior parte das vezes na nova versão. Embora sejam utilizados outros atores também no papel ao longo do filme em diferentes situações, Hargrove é quase aquele jogador que joga 'no nome'. Impressiona porque é O CANDYMAN, pois qualquer ator podia estar ali que faria o mesmo efeito, tanto que, grande parte das vezes, sequer vemos seu rosto com nitidez. Candyman 89 abre o placar.
Nia da Costa mostra-se mais diretora que Bernard Rose com um produto final mais bem acabado. Cor, iluminação, direção de arte, opções estéticas... tudo depõe a favor da norte-americana que conduz seu time com fluidez para o gol. Candyman 2019 empata o jogo. Jogada com o dedo da treinadora.
Mas o time de 1989 tinha uma arma secreta. A trilha sonora ficara a cargo de ninguém menos que o gênio Philip Glass. E ele não decepciona, entregando uma atmosfera tensa mas ainda assim extremamente elegante e sofisticada. É Candyman 89, novamente à frente no placar. 2x1.
Num time sem grandes estrelas, a diferença está na casamata. A treinadora Nia da Costa desequilibra de novo, com três momentos incríveis: o flashback recontando a origem do Candyman e os acontecimentos em Cabrini-Green, contado com muita sensibilidade estética num teatro de sombras; a morte da crítica de arte, Rebecca, sendo erguida e arrastada por uma força invisível, no interior de seu apartamento, filmada numa tomada afastada, quase como um vizinho observando; e a evocação final de Brianna, a namorada de Anthony, dentro da viatura entendendo o verdadeiro significado do Candyman. Cena fantástica, linda mas brutal, violenta mas emocionante. Golaço! Candyman 2019 deixa tudo igual novamente, 2x2.
Michael Brown, Jesse Washington, Sarah Bland, Geroge Floyd... Todos eles são Candyman. Diga o nome deles.
Difícil dar a vitória para algum dos dois aqui mas... a denúncia social, o recado anti-racista, a incisividade do discurso, a reinvenção de um clássico, dão a vitória para "A Lenda de Candyman".
A evocação de Candyman na frente do espelho é um convite a que cada negro olhe seu reflexo e entenda que a imagem que vê guarda consigo cada um dos outros tantos que foram escravizados, espancados, pendurados em árvores, injustiçados, vistos com desconfiança só por serem negros, presos só por serem negros, mortos por serem negros. Quando Nia da Costa propõe que seus personagens falem o nome de Candyman, remete ao "Say Her Name", movimento que defende mulheres vítimas de agressão policial. Uma provocação inteligente colocada de forma brilhante. Chamar o Candyman é um desafio para que evoquemos nomes como Jesse Washington, Michael Brown, George Floyd e outros tantos. Você, irmão, negro, não esqueça dos nomes deles e delas. Você, branco, você tem coragem de dizer o nome deles? É golaço! Sabe de quem? Candyman é o nome da emoção!
Vitória da Lenda de Candyman. Mas não foi fácil. Dois times de respeito num jogo, daqueles, para não esquecer.
No alto, à esquerda, Helen, e à direita, Anthony, ambos em busca de respostas sobre Candyman. Abaixo, os dois Candyman, à esquerda, o da primeira versão e, à direita, o (ou um dos) da refilmagem.
Parafraseando a letra daquela música que a galera canta no estádio:
“Lou e eu tivemos uma conversa, e se tornou muito mais importante expor o que nós dois tínhamos [de relação com Andy Warhol], criando um show com apenas duas pessoas no palco, para que todos vissem nossa história. Achei que era mais importante – quase mais importante do que a música”.
John Cale
“O que você experimenta por meio desse registro é o relacionamento entre nós e Andy. Não se trata apenas de Andy; não é apenas, ‘oh! ele fez isso, ele fez aquilo’. Quando você experimenta ‘Drella’, é sobre John e eu, é sobre mim e Andy, e é sobre John e Andy. Queremos que você conheça melhor Andy Warhol, que você o sinta como John e eu o sentimos, para que você possa vivenciar a presença dessa pessoa única e incrível e se aproximar dela.”
Lou Reed
Há quem contradiga o ditado de que “dois raios não caem no mesmo lugar”. Se for considerar a parceria entre Lou Reed e John Cale, essa máxima realmente não se aplica. Tanto pela raridade do fenômeno quanto por sua fugacidade, em todas as ocasiões em que os dois estiveram juntos ao longo de quase quatro décadas, o céu proporcionou um espetáculo irrefreável de belezas, mas também não demorou a se precipitar com violência. E isso, não apenas uma, mas duas, três vezes pelo menos. Tal como forças da natureza semelhantes e intensamente fortes, não suportam uma a outra pela tamanha atração que exercem entre si, repelindo-se mutuamente tão logo realizem seu feito.
Foi assim com Reed e Cale desde sempre. Dois dos maiores talentos de sua geração de prodigiosos jovens artistas nascidos no pós-Guerra, são figuras essenciais para a cena da contracultura nova-iorquina, que mudou os rumos da vida social na segunda metade do século XX. Isso, contudo, não impediu que as desavenças se manifestassem. Pelo contrário, era-lhes como dar mais munição. Já na Velvet Underground, histórica banda que cofundaram com Moe Tucker e Sterling Morrison nos anos 60 e espinha dorsal do rock junto a Beatles, Bob Dylan e Rolling Stones, isso já acontecia. Mesmo com a alta sinergia artística que os unia e os colocava como o principal núcleo criativo do grupo – capaz de inventar algumas das mais elevadas obras da música contemporânea, como “Heroin”, “Venus in Furs” e “Sister Ray” –, as diferenças falavam mais alto do que as semelhanças. A Velvet continuou com Reed até este partir para sua própria carreira no início dos anos 70, mas Cale, incomodado com o parceiro, não suportou mais do que dois discos e saltou fora um ano após a estreia no clássico "Disco da Banana" para voos solo e na produção musical.
Já veteranos, os integrantes da banda promoveram uma nova aproximação somente 25 anos, em 1993, para o memorável show “Live MCMXCIII”. A turnê comemorativa, que vinha emocionando fãs por onde passava, entretanto, mal havia começado e teve de ser subitamente interrompida por causa de brigas entre os dois líderes. De novo os iluminados raios se chocavam e faziam fechar o tempo, transformando a situação festiva em um dilúvio de ferozes descargas elétricas.
A Velvet com Nico: apadrinhados por Andy
Somente um milagre da natureza para fazer com que tanto talento (e ego) pudesse permanecer minimamente em harmonia por algum tempo, mesmo que curto, sem que se provocasse imediatamente mau-tempo. Esse milagre tinha nome e lhes era um velho conhecido desde os tempos das performances multimídia da Exploding Plastic Inevitable, nos primeiros anos da Velvet. Chamava-se Andy Warhol. Fazia já três anos que o pai da pop art e padrinho artístico da turma havia dado adeus, deixando neles uma sensação de dívida para com a figura que, junto com eles – mas também abarcando-os –, havia transformado os cânones da cultura mundial para sempre com sua proposta artística ousada e conectada com a pós-modernidade. No entanto, ainda precisou que um segundo raio teimasse em se lançar no mesmo ponto: praticamente um ano depois, a cantora e modelo alemã Nico, parceira do histórico primeiro disco da Velvet e musa musical de Cale por vários anos, também morria. A despedida de Nico, que dera voz a alguns das principais composições da dupla, como “All Tomorrows Parties” e “Femme Fatalle”, deixou a Cale e Reed mais do que evidente que aquele 1990 lhes trazia um aviso do firmamento. Sim, precisavam unir-se. Foi então que, entre tempestades e quietações, nasceu “Songs for Drella”, o qual completa 30 anos de lançamento.
Precavidos do próprio histórico, a combinação foi a seguinte: por três meses, os dois – e somente os dois –, suportariam o confinamento e baixariam a cabeça para comporem conjuntamente um repertório inteiramente novo em memória a Andy. Três meses apenas. O que talvez seja muito pouco tempo para alguns, foi mais do que suficiente para que os conflituosos, mas não menos experientes e afinados companheiros, compusessem uma obra-prima única em vários aspectos. A começar pela ocasião em si, para a qual Reed e Cale conceberam também algo especial, uma vez que sabiam da responsabilidade que lhes cabia: somente eles podiam cumprir aquela tarefa. Embora a vastidão da influência de Andy para a arte, estabelecendo nesta um "antes" e um "depois" de si, eram Reed e Cale seus verdadeiros herdeiros na música. Por isso, entendiam que a homenagem a Andy pedia pompas. Afinal, somente um indivíduo ímpar na humanidade poderia juntar Drácula com Cinderella (daí, o apelido “Drella”). Com isso, “Songs” saiu não apenas um disco, mas uma ópera-rock, que respeita toda a estrutura clássica tal como o rock havia incorporado ao narrar uma história de apogeu e miséria e final necessariamente trágico. Outra excepcionalidade é ter apenas os dois no recinto tocando, cantando, gravando, mixando e produzindo a si próprios. O resultado é um disco de sonoridade minimalista mas altamente expressiva, em que não há percussão, sopros, orquestra ou outras vozes, apenas as cordas vocais dos dois falando pela de Andy e intercalando-se e a de seus instrumentos: guitarras, baixo, viola e piano/teclados.
Cale, Reed e Andy em 1976: relação antiga e muito cúmplice
Para narrar a trajetória de Andy, Cale e Reed determinam, então, 15 movimentos em que se ouvem a sofisticação do art rock, a fúria do punk, a ousadia da vanguarda, a tradição clássica europeia e o palpável da canção pop. Tudo que Andy lhes legou em ideias e conceitos, desde a Velvet até as suas carreiras solo, era revisado e revisitado de forma altamente madura e concisa, mas também emocional e devota. Num teor erudito, a provocativa “Smalltown” começa como uma espécie de minueto ternário em allegro em que a voz de Reed faz resgatar o desejo do jovem Andy antes de mudar-se para a cosmopolita Nova Yprk nos anos 50. Gay, estranho e totalmente deslocado em sua Pittsburgh natal, ele tinha uma única certeza: a de que queria sair dali. “De onde é que Picasso vem/ Não há Michelangelo vindo de Pittsburgh/ Se a arte é a ponta do iceberg/ Eu sou a parte mais ao fundo“.
A percepção de que o destino de Andy era mudar os padrões da sociedade começa a ser desenhada a partir do momento em que ele pisa na Big Apple, mais precisamente quando “abre a casa” na 81st Street, em Manhattan, para receber toda a fauna de artistas e doidões de uma Nova York em plena ebulição criativa. Era a Factory, seu lendário estúdio de onde a arte ocidental entrou de um jeito e saiu de outro para nunca mais ser a mesma. A dupla dá a este momento ares litúrgicos e ambientais, mas ao mesmo tempo recorre ao minimalismo nas três notas repetidas que formam o núcleo melódico de "Open House", o mesmo que usaram em "Waiting for the Man", outra sua do repertório da Velvet.
Enquanto Cale canta a busca de Andy por patrocínio junto aos mecenas endinheirados, a quem apresenta um portfólio com suas embalagens de Brillo e uma tal banda chamada Velvet Underground (“Style It Takes”), Reed, na sequência, sob um ruidoso e minimalista rock, traz o artista em atividade (“Work”) fazendo lembrar o som hipnótico e sequencial de contemporâneos de anos 60, mas estes, da cena avant-garde da Califórnia, Philip Glass e Steve Reich. Logo começam, entretanto, os problemas. “Trouble With Classicists”, numa melodia neo-renascentista quase declamada por Cale, traz as idiossincrasias entre a arte moderna e classicismo, bem como o embate com os críticos.
A efervescência nova-iorquina agora está nas veias de Andy. A intensa “Starlight”, com as guitarras distorcidas de Reed e o toque atonal do piano de Cale, fala da casa LGBT que abrigou seus pares: Ingrid, Viva, Little Joe, Baby Jane, Eddie S. “Starlight aberto/ Luz das estrelas abre sua porta/ Isso se chama Nova York/ Com filmes na rua/ Filmes com pessoas reais/ Que você recebe é o que você vê”. Desses personagens reais surgem as famosas fotografias e serigrafias como as que imortalizou de Marylin Monroe, Elvis Presley ou Truman Capote. O genial e inquieto rapaz do interior agora se encontra totalmente consigo mesmo. Criador e criaturas se homogeneízam. Para Andy, cantado no elegante timbre de Cale numa das mais brilhantes do disco, “rostos e nomes são tudo a mesma coisa”. Kitsch, celebridades, sexo, drogas, noite, ruas. Em "Faces and Names" a arte sai pelos poros, seja pela pintura, cinema, teatro ou música. São os “15 minutos de fama” e muito mais. Andy, no auge, prossegue formando novas figuras, como Reed canta noutra maravilha de “Songs”, “Images”. A viola ao estilo La Monte Young de Cale e a guitarra com efeitos de pedal de Reed formam um corpo dissonante só para registrar que, além do figurativo, o abstrato também integra o repertório pictórico do artista visual.
A dupla em 1990 na rara reunião para homenagear o pai da pop art
Tanta exposição resulta na primeira grande crise, fato presente nas cinco faixas seguintes, que é a tentativa de assassinato que Andy sofreu da feminista radical Valerie Solanas, a qual se sentira ofendida com ele em razão de um desacerto profissional. A melodiosa “Slip Away (A Warning)” fala justamente do conselho de amigos para que fizesse o movimento inverso do que vinha procedendo: ao invés de “open house”, fechar seu estúdio. Pressentimento do pior. A barra segue pesada com “It Wasn't Me”, em que Andy tenta convencer Solanas a não se suicidar e de que ele não tinha culpa. O tiro, literalmente, saiu pela culatra: em 3 de junho de 1968, ela invade a Factory armada e desfere três tiros contra Andy, o que lhe deixou sequelas físicas e emocionais para o resto da vida. “I Believe”, outra ótima, narra com detalhes e urgência a cena do atentado, da chegada dela ao local à agonia de Andy no hospital. Solanas, que passou três anos na prisão pelo ocorrido, morreria 14 meses depois de Andy (e dois antes de Nico) em abril de 1988.
O belo country “Nobody But You” versa ainda sobre o traumático episódio (“Eu realmente me importo muito/ Embora pareça que não/ Desde que eu fui baleado/ Não há ninguém além de você”), encaminhando o musical para um desfecho, como se sabe, melancólico como em todas as óperas. Na discursiva e etérea “A Dream”, Cale traz sua veia new age e neoclássica captada junto a outros parceiros, como Terry Riley, Brian Eno e Kevin Ayers. A letra é um fluxo de pensamento de Andy, cuja descrição de um sonho traça um panorama de vários momentos de sua biografia: os primeiros anos, a Velvet, pessoas de convivência, a amizade com Reed e Cale, o incidente na Factory e as feridas que a vida lhe trouxe. A indagação: “Puxa, não seria engraçado se eu morresse neste sonho antes que eu pudesse inventar outro?”, quase ao final da faixa, denota o pressentimento de que os últimos traços de um artista sublime estavam sendo dados.
A arquitetura narrativa de “Songs” - que mantém um exemplar equilíbrio entre densidade e leveza, tonalismo e dissonâncias, agitação e calmaria, classicismo e vanguarda, agressividade e lirismo - surpreende mais uma vez na virada da contemplativa e extensa “A Dream” para o blues ultramoderno “Forever Changed”, talvez a mais impactante de todo o álbum. Ciente da proximidade da morte, Andy compreende igualmente a sina de todo grande artista: a permanência do seu legado. “Eu fui”, mas tudo “mudou para sempre”. A consciência da eternidade. Se Cale emenda as duas anteriores, é Reed quem tem o privilégio de desfechar este réquiem. Isso porque, ao invés de prosseguirem a narrativa na terceira pessoa, como que falando pela voz de Andy, são as próprias palavras de Reed que compõem a letra de“Hello It's Me” numa emocionante carta de despedida. “Andy, sou eu, não te vejo há um tempo/ Eu gostaria de ter falado mais com você quando você estava vivo”, abre dizendo na singela balada, mais uma como “Femme Fatale” e “Sunday Morning” composta pelos dois em meio aos vários proto-punks raivosos e sinfonias ruidosas dos tempos de Velvet.
Terminada a gravação, também não durou muito a turnê de “Songs”. Após algumas apresentações, Cale e Reed separaram-se novamente, como raios excelsos que entram em choque depois de mal se aproximarem. A última ocasião, o reencontro da Velvet, três anos dali, foi sentenciada com a partida de Sterling Morrison dois mais tarde e a do próprio Reed, em 2013. Antes da tormenta, contudo, o tempo colaborou para que registrassem este impecável e sui generis disco, que evidencia o quanto figuras como Andy Warhol fazem falta sempre. E por quê? Porque, como um Michelangelo, um Mozart, um Picasso, um Shakespeare, ícones revolucionários invariavelmente deixam lacunas impreenchíveis, simplesmente. Ouvir “Songs” hoje, a três décadas de seu lançamento, dá a dimensão do que existências como as de Andy, Reed, Nico e Morrison significam depois que partem e da importância dos que ficam, como Cale e Moe. Raios muito raros que, incrivelmente, caíram no mesmo lugar. Justo por isso que o disco tenha se concluído com estes versos: “Bem, agora Andy, acho que temos que ir/ Espero de alguma forma que você goste deste pequeno show/ Eu sei que é tarde, mas é a única maneira que eu sei/ Olá, sou eu/ Boa noite, Andy”.
Show de"Songs for Drella", deLou Reed e John Cale (1990)
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FAIXAS:
1. “Smalltown” - 2:03
2. “Open House” - 4:16
3. “Style It Takes” - 2:54
4. “Work” - 2:36
5. “Trouble With Classicists” - 3:40
6. “Starlight” - 3:26
7. “Faces And Names” - 4:11
8. “Images” - 3:28
9. “Slip Away (A Warning)” - 3:04
10. “It Wasn't Me” - 3:29
11. “I Believe” - 3:17
12. “Nobody But You” - 3:44
13. “A Dream” - 6:33
14. “Forever Changed” - 4:49
15. “Hello It's Me” - 3:03
Todas as composições de autoria de Lou Reed e John Cale