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sexta-feira, 24 de novembro de 2023

"O Mistério de Candyman", de Bernard Rose (1989) vs. "A Lenda de Candyman, de Nia Da Costa (2019)

 



Bom jogo.

Dois bons times!

"O Mistério de Candyman", de 1989 já ocupa seu lugar entre os clássicos do terror, mas "A Lenda de Candyman", de 2019, não veio pra brincadeira e quer desbancar o favorito.

É o caso de remake que não é exatamente uma refilmagem, estaria mais para uma sequência, um reboot, uma vez que tem ligação com os fatos já acontecidos, faz referência a personagens da trama original, mas cria de tal forma um novo conceito que o termo re-fazer torna-se totalmente mais adequado.

No original, de 1989, uma pesquisadora acadêmica, Helen, em busca de um bom assunto para sua tese universitária, investiga uma suposta lenda urbana de um homem negro, com um gancho no lugar de uma das mãos, que, segundo dizem, aparece sempre que invocado, cada vez que seu nome é repetido cinco vezes diante de um espelho. Ela mergulha na pesquisa e descobre que, há mais de um século atrás, o homem em questão, um negro filho de escravos, dotado de grande talento artístico, contratado para pintar um retrato da filha de um importante aristocrata, teria sido morto cruelmente por um poderoso aristocrata,  depois de se apaixonar e engravidar a moça. O negro, conta a lenda, teria sido torturado, sua mão decepada e colocado um gancho em seu lugar, além de lambuzado em favos de mel, exposto a abelhas dentro de um antigo apiário, sendo picado até a morte e depois ainda, como se não bastasse jogado em uma fogueira. Ela visita um conjunto habitacional de baixo padrão na periferia de Chicago, o Cabrini-Green, construído no local onde há tempos atrás teria ocorrido a barbaridade com o artista, e onde moradores alegam ver a entidade, atribuindo a essa assombração a autoria de vários crimes ocorridos lá.

Ainda cética e incrédula quanto à lenda, ela invoca a entidade e a partir de então sua vida torna-se um inferno. Visões, apagões, pesadelos passam a fazer parte de seus dias, e assassinatos nos quais ela estivera presente nas cenas dos crimes, a tornam a principal suspeita das mortes, sendo que, sem memórias claras, nem ela mesmo tem certeza de não tê-los cometido.

É que Candyman, depois de invocado por Helen, passa a ter com ela uma estranha ligação e a exige em sacrifício em troca da vida de um bebê que sequestrara no Cabrini-Green. E, vingativo e ressentido, não pretende parar de matar até que Helen se entregue a ele e compense, de certa forma, a mulher por quem foi sacrificado.


"O Mistério de Candyman" - trailer


No novo, essa questão da injustiça social, do julgamento racial, de um negro pobre ser morto simplesmente por ser negro e pobre, ganha muito mais força e significação. Em "A Lenda de Candyman", todos aqueles fatos já teriam acontecido e agora ecoam como um boato, um mito distante, uma lenda, que quase ninguém leva a sério. No entanto, Anthony, um artista plástico em crise criativa, em busca de uma maior expressão em sua arte, que pretende recorrer às raízes do povo negro, suas mazelas, suas dores como inspiração para sua arte e nesta busca, numa conversa casual, esbarra na tal da lenda de Candyman. Descobre que o bairro onde vive localiza-se numa área hoje revitalizada mas que outrora abrigava um bairro de classe baixa tido como "barra pesada", onde um homem negro que costumava dar doces para as crianças, fora morto injustamente, linchado pela polícia. Resolve desenterrar a história e ver até onde aquilo tudo tem algum fundo de verdade. O próprio interesse dele na história, no personagem e sua verificação dos fatos e contestação dos acontecimentos desperta a força sobrenatural adormecida. Curioso, cada vez mais intrigado e envolvido com a história, meio que na brincadeira, ele resolve invocar a entidade, só que aquilo era tudo que Candyman precisava: um homem negro, angustiado, em busca de respostas, em busca de si mesmo... Quando esse negro se olha no espelho ele vê todos os negros injustiçados, subestimados, subvalorizados, pré-julgados, espancados, linchados, mortos, e todos esses negros estão simbolizados na figura de Candyman.

Inspirado pelo personagem que pesquisara e descobrira, Anthony cria uma instalação artística, uma espécie de espelho de banheiro, repleto de símbolos, imagens e recados em seu interior, que, exposta numa galeria causa alvoroço e incita alguns brancos desavisados, céticos, descrentes, ignorantes, a ousarem dizer seu nome na frente do espelho. "Candyman, Candyman,  Candyman, Candyman, Candyman...".  Branco, você não devia ter feito isso...

Se para um negro que o chama ele surge com essa força ancestral poderosa (assustadora, é verdade, difícil de incorporar com naturalidade), para um branco que o faz, por galhofa ou curiosidade, Candyman revela toda sua fúria justiceira deixando um rastro de sangue vingativo.

Aos poucos Candyman vai se apossando de Anthony. O que vemos é desagradável, não é bonito mas... é isso: nunca foi bonito. É a vez do artista encarnar toda a injustiça e a violência sofrida pelos negros ao longo dos tempos. Mas ele aceitará essa tarefa?


"A Lenda de Candyman" - trailer


Jogo duríssimo, hein...

Propostas de jogo parecidas mas com alternativas táticas diferentes.

Se o primeiro é um filme de serial-killer sobrenatural que toca em pontos sensíveis, como machismo, desigualdade social, violência policial, gentrificação e, sobretudo, racismo; o segundo coloca essas discussões no centro da trama e, ao contrário, faz do terror um acessório importante.

É o duelo dos técnicos! De um lado o britânico Bernard Rose que não brilhou muito em trabalhos posteriores mas que aqui mostra muita competência, e do outro a jovem treinadora Nia da Costa, cheia de novas ideias e já mostrando um ótimo trabalho em seu segundo longa. Mas com tramas tão bem desenvolvidas, mais do que um duelo de treinadores, a batalha dos Candyman revela-se uma guerra dos roteiristas. De um lado, nada menos que o mestre do terror Clive Barker, idealizador e roteirista do filme de 1989, e do outro um dos grandes nomes do gênero na atualidade, o excelente Jordan Peele.  Como dá pra notar, comissões técnicas de peso. 

E dentro de campo a coisa não é diferente. O antigo aposta nas individualidades com Virginia Madsen, do primeiro "Duna", numa ótima atuação, no papel da pesquisadora Helen, e o lendário Tony Todd, do remake de "Noite dos Mortos-Vivos", espetacular como o personagem que dá nome ao filme. O novo, sem nenhuma grande estrela, aposta no conjunto e como ponto a seu favor traz um  um elenco predominantemente preto num filme sobre questões negras.

Partida equilibradíssima!!!

Quem leva?

Tony Todd é um Candyman muito melhor, mais assustador, mais impressionante com aquele rosto crivado de abelhas, do que o inexpressivo Michael Hargorve que é o Candyman que aparece na maior parte das vezes na nova versão. Embora sejam utilizados outros atores também no papel ao longo do filme em diferentes situações, Hargrove é quase aquele jogador que joga 'no nome'. Impressiona porque é O CANDYMAN, pois qualquer ator podia estar ali que faria o mesmo efeito, tanto que, grande parte das vezes, sequer vemos seu rosto com nitidez. Candyman 89 abre o placar.

Nia da Costa mostra-se mais diretora que Bernard Rose com um produto final mais bem acabado. Cor, iluminação, direção de arte, opções estéticas... tudo depõe a favor da norte-americana que conduz seu time com fluidez para o gol. Candyman 2019 empata o jogo. Jogada com o dedo da treinadora.

Mas o time de 1989 tinha uma arma secreta. A trilha sonora ficara a cargo de ninguém menos que o gênio Philip Glass. E ele não decepciona, entregando uma atmosfera tensa mas ainda assim extremamente elegante e sofisticada. É Candyman 89, novamente à frente no placar. 2x1.

Num time sem grandes estrelas, a diferença está na casamata. A treinadora Nia da Costa desequilibra de novo, com três momentos incríveis: o flashback recontando a origem do Candyman e os acontecimentos em Cabrini-Green, contado com muita sensibilidade estética num teatro de sombras; a morte da crítica de arte, Rebecca, sendo erguida e arrastada por uma força invisível, no interior de seu apartamento, filmada numa tomada afastada, quase como um vizinho observando; e a evocação final de Brianna, a namorada de Anthony, dentro da viatura entendendo o verdadeiro significado do Candyman. Cena fantástica, linda mas brutal, violenta mas emocionante. Golaço! Candyman 2019 deixa tudo igual novamente, 2x2.

Michael Brown, Jesse Washington, Sarah Bland, Geroge Floyd...
Todos eles são Candyman.
Diga o nome deles.

Difícil dar a vitória para algum dos dois aqui mas... a denúncia social, o recado anti-racista, a incisividade do discurso, a reinvenção de um clássico, dão a vitória para "A Lenda de Candyman". 

A evocação de Candyman na frente do espelho é um convite a que cada negro olhe seu reflexo e entenda que a imagem que vê guarda consigo cada um dos outros tantos que foram escravizados, espancados, pendurados em árvores, injustiçados, vistos com desconfiança só por serem negros, presos só por serem negros, mortos por serem negros. Quando Nia da Costa propõe que seus personagens falem o nome de Candyman, remete ao "Say Her Name", movimento que defende mulheres vítimas de agressão policial. Uma provocação inteligente colocada de forma brilhante. Chamar o Candyman é um desafio para que evoquemos nomes como Jesse Washington, Michael Brown, George Floyd e outros tantos. Você, irmão, negro, não esqueça dos nomes deles e delas. Você, branco, você tem coragem de dizer o nome deles? É golaço! Sabe de quem? Candyman é o nome da emoção! 

Vitória da Lenda de Candyman. Mas não foi fácil. Dois times de respeito num jogo, daqueles, para não esquecer.


No alto, à esquerda, Helen, e à direita, Anthony, ambos em busca de respostas sobre Candyman.
Abaixo, os dois Candyman, à esquerda, o da primeira versão e, à direita, o (ou um dos) da refilmagem.



Parafraseando a letra daquela música que a galera canta no estádio:
"Porque esse time bota pra ferver
E o nome dele são vocês que vão dizer"

(Digam vocês porque eu tô fora!
Vai que ele apareça mesmo...)








por Cly Reis


segunda-feira, 10 de abril de 2023

Philip Glass – "Koyaanisqatsi - Life Out of Balance - Original Soundtrack Album from the Motion Picture" (1983)

 

Versões da capa da trilha do filme
lançadas entre 1983 e 2009
Ko.yaa.nis.qatsi (da língua Hopi), n. 1. Vida louca. 
2. Vida turbulenta. 
3. A vida se desintegrando. 
4. Vida desequilibrada. 
5. Um estado de vida que exige outra forma de viver.

"'Koyaanisqatsi' permite que você experimente a aceleração e a densidade da sociedade moderna de uma nova maneira. Ele convida você a considerar a benevolência da tecnologia e a noção de progresso no mundo em que vivemos. Um mundo fora de equilíbrio".
Philip Glass


Um dos principais pensadores sobre a relação homem/meio ambiente dos tempos atuais, o cineasta alemão Werner Herzog disse, certa vez, que o engano da humanidade reside na falta de controle desta sobre seu próprio desenvolvimento. A ciência, a tecnologia, os avanços são soltados aos borbotões, numa corrida frenética desenvolvimentista que, a rigor, ninguém sabe onde vai dar. Suspeita-se, contudo, pois a natureza vem há tempos dando seus sinais. Se a Rio 92, há pouco mais de 30 anos ensinou o mundo a adotar a linguagem antes apenas restrita meramente à "ecológica", inserindo no seu vocabulário termos como “sustentabilidade”, “ESG”, “responsabilidade socioambiental” e afins, a agenda sustentável, por outro lado, não avançou tanto assim na prática. Os resultados da COP-27, em 2022, o mais importante e o maior evento já realizado sobre o tema das mudanças climáticas, foram parcos e inconsistentes. A crescente crise de energia, as concentrações recordes de gases de efeito estufa e o aumento de eventos climáticos extremos pelo globo colocam uma interrogação sobre a sociedade: ainda há tempo de reverter este quadro?

O alarme é ainda maior quando se constata que tais indagações urgentes não são de hoje. Há 40 anos uma obra referencial já trazia, com o devido peso e teor denunciativo, a questão do desequilíbrio causado pelo homem à natureza: “Koyaanisqatsi – Uma Vida Fora de Equilíbrio”. O filme do cineasta norte-americano Godfrey Reggio e produzido por Francis Ford Coppola, tornou-se rapidamente um cult movie desde seu lançamento, em 1982, prenunciando a realização de outros dois longas em formato semelhante, "Powaqqatsi - A Vida em Transformação", de 1988, e "Naqoyqatsi", de 2002, todos dirigidos por Reggio. Todos documentários experimentais forjados com imagens espetaculares sobre as consequências da mão humana sobre o Planeta e cuja trilha sonora é assinada pelo genial compositor Philip Glass. Embora a trilogia mereça total audiência, é o primeiro da série aquele que mudou parâmetros tanto do cinema quanto da música moderna. E não se está falando somente da música de vanguarda ou “erudita”, mas, sim, da música pop. Isso porque a trilha sonora de “Koyaanisqatsi”, lançada em disco um ano depois do filme, passou a servir de referência a publicidade, cinema e demais produtos sonoros e audiovisuais com que se deparam milhões de pessoas todos os dias ao acessarem seus celulares ou ligarem um aparelho de TV.

Entretanto, é a pungência da proposta de “Koyaanisqatsi”, inédita até então em formato e proposta, que a faz uma obra referencial. Meio sinfonia, meio ópera, meio vídeoarte, “Koyaanisqatsi” tem uma narrativa até simples comparado à complexidade de sua trilha sonora e de sua montagem. Os povos originários, com sua sabedoria inata e imaterial, prenunciam que o homem caminha para o próprio cadafalso. A natureza, pujante, apresenta-se em sua majestade quase intocada. Porém, integra inevitavelmente esta mesma natureza uma espécie animal que soube valer-se de artifícios biológicos e etológicos para perpetuar sua sobrevivência e passar a supostamente comandar o rumo da biosfera: um tal de homo sapiens. Este ser é capaz de, por meio de sua interferência negativa sobre a natureza e com a justificativa de progresso da própria espécie, desequilibrar todo o sistema vital. Após uma enganosa escalada desenvolvimentista, a realidade de destruição e desrespeito com a Mãe-Terra cobra o preço e os as profecias ancestrais se concretizam tragicamente.

Uma das versões de poster
do filme de Reggio
Com a ajuda do Polyrock Kurt Munkacsi na produção, Glass desembaraça esta narrativa em brilhantes 13 peças/faixas onde, absolutamente integrado com o corpo imagético do filme, não desaproveita com sua ensemble nem os ruídos de multidão e o momento de créditos finais para musicar. Tudo muito orgânico. A faixa título, um sinistro canto nativo em tom baixo, acompanhado de um órgão igualmente denso, pronuncia apenas o próprio título: “Koyaanisqatsi”. Aqui já começa a genialidade atemporal de Glass, compositor talhado na vanguarda minimalista dos Estados Unidos da geração anos 60, mas que sempre soube conciliar esta visão contemporânea à tradição musical secular. Nesta abertura, ao mesmo tempo em que se escutam aborígenes encavernados, é possível identificar traços do canto gregoriano, criado à época do cristianismo primitivo, a meados do século VII. Já “Organic” acompanha os impactantes planos aéreos de cânions e rios através de sons leves e anunciativos. “Clouds”, porém, adiciona a esta solenidade sons refletidos e longilíneos acordes de clarinete, dando maior tensão e grandiosidade à música. É a natureza em sua imponência. 

Imponência ameaçada, contudo. “Resource”, colada à anterior, quebra de vez a linha sonora e adiciona sons eletrônicos em repetições mecânicas e contínuas. O bicho-homem chegou. A paisagem das montanhas é desfigurada por explosões e máquinas pesadas, que trazem consigo o pretenso progresso. Para isso, Glass engendra sons nervosos e automáticos. O teclado vira sirenes gritantes sustentadas por intensas sessões de cordas. Não é mais a natureza que emite sons: é a consequência da mão humana, com suas máquinas implacáveis e sem alma. A pequena orquestra, fervorosa, corre para dar conta da velocidade da tecnologia simbolizada pelos teclados. Fábricas soltam seus vapores poluidores. Extensos campos são invadidos por estruturas de ferro e metal. Rios são desviados deu seu curso. Uma bomba explode em fogo sob o olhar indefeso de uma árvore...

Todas as maravilhas que o homem cria agora estão à disposição para consumo. Carros, aviões, estradas, arranha-céus. A fantástica “Vessels” aprofunda o conceito denunciativo de “Resource” ao manter a base minimalista, mas adicionando-lhes poderosas vozes. E não mais as vozes dos povos originários do início da obra, mas corais bem mais clássicos, com tons agudos e variações de escala expressando autodevoção e fascínio. É o ser humano, crendo-se Deus e apaixonado pela própria inteligência. E não há mais freio a tamanha adulação: quer-se cada vez mais e mais apressadamente. Dentro da mesma faixa, Glass promove outra quebra brusca de ritmo e passa a empregar uma conjugação do órgão, flautas e as mesmas vozes deslumbradas em células sonoras repetidas em cinco tempos para representar o frenesi do trânsito de automóveis, símbolo da indústria capitalista. Só que o compasso se torna ainda mais frenético, começando a sair do apreensível, justo quando imagens de equipamentos bélicos são mostradas. Nenhuma coincidência.

“Pruitt Igoe” ensaia um adagio que tenta reduzir tanta impulsividade. Porém, já é impossível. A própria música, à medida que avança, vai ganhando corpo e novas formas de tensão, principalmente quando se veem as assombrosas imagens de prédios de arrabalde inteiros sendo implodidos para dar lugar ao mentiroso circo do capital. A confusão da percepção de tempo é trazida com alta sensibilidade em “SloMo People”, onde pessoas ora parecem formigas numa multidão movida em altíssima velocidade, ora estão num igualmente artificial slow-motion, como o título bem sugere. De propósito, elas nunca são enquadradas tal como a realidade é. Sutilmente, Glass impõe um compasso de dois tempos, os quais simbolizam o passo de um caminhar. Passos lentos, aliás, supondo que algo está claramente descompassado. 

O compositor mantém a estrutura dual para iniciar aquele que é o mais chocante tema de “Koyaanisquatsi”: “The Grid”. Agora, perde-se de vez o controle do destino. Usando sua assinatura sônica, os sistemas de ostinatos rítmicos (motivos ou frases musicais sempre repetidos). tal como em "Rubric", das "Glassworks", de um ano antes, Glass põe agora, inversamente ao que fez antes, as flautas e piccolos sobre uma base de sintetizador grave e num ritmo convulsivo. Enquanto isso, na tela, são expostos vídeos super acelerados de carros, fábricas, supermercados, filas, telas. Movimentos tão velozes que formam traços de luzes incompreensíveis ao olho do espectador. São minutos de imagens carregadas, labirínticas, mostrando a loucura da vida cotidiana de uma metrópole. A música, por sua vez, soa vertiginosa e espiral. As vozes reaparecem com as mesmas frases e variações delas para intensificar e ratificar a lógica narrativa. Sufocante, mas genial.

cena do filme com a trilha de "The Grid": a corrida maluca da vida moderna

A breve “Microchip” (em que inteligentemente Reggio traça um comparativo de imagens de satélite das cidades com as de estruturas destas minúsculas peças de silício, as quais compõem a “alma” dos artefatos digitais) funciona como um movimento larghetto, que reequilibra o andamento. Afinal, impossível andar mais rápido do que aquilo. Este breve “knee”, no entanto, é a deixa para que Glass volte àquilo que motivou toda a obra desde o começo: a tal profecia. Criador e criatura, é o homem que tem o bônus e o ônus dos próprios atos. Assim, a música se torna um andante, porém a construção melódica começa a parecer errática. As repetições, antes simétricas, independentemente se num compasso moderado ou ligeiro, agora se tornam quebradas, inconclusas. Como uma máquina que apresentou defeito e passa a funcionar mal. Forma-se uma sucessão de sons em que as repetições denotam a prisão a que o homem se colocou: não é mais possível sair daquele círculo, que vai e volta, sem se resolver. As vozes, então, passam a conviver e a se confundirem: o coral se aproxima agora do cantochão gregoriano e o canto ancestral retraz, convicto, aquilo que já avisava: “Koyaanisquatsi”.

A cena final, um extenso plano sequência de um acidente com um ônibus espacial, profetiza, através de sua crítica ao desenvolvimento a qualquer custo, o famoso acidente com a Challenger em 1986, quando, 73 segundos após o seu lançamento, a espaçonave explodiu em pleno ar, matando todos os sete astronautas tripulantes. Para este derradeiro ato, Glass emudece todos os outros instrumentos e opta por manter apenas o órgão, que agora não tem mais caráter tecnológico, mas sim litúrgico, como uma missa fúnebre. O morto? Claro, o próprio homem. 

Assim como Herzog, o paleontólogo e biólogo evolucionário britânico Henry Gee, editor sênior da revista científica Nature, tem uma visão nada alentadora do que pode acontecer com o planeta. Aliás, no caso de Gee, ainda mais pessimista. Segundo ele, se a humanidade seguir a tendência atual, a espécie humana corre sérios riscos de entrar em extinção ou, pelo menos, ser reduzida a um número bem restrito de indivíduos. A se ver pelo atraso em se tomar medidas efetivas, o prognóstico não pode ser diferente. Isso fica escancarado quando se vê que, quatro décadas atrás, Reggio e Glass já se uniam para lançar este manifesto fílmico-sonoro em que a simbiose entre imagem e música simboliza justamente a necessidade de integração homem-natureza. Um não pode viver sem o outro. Se hoje a ideia de motivos sônicos desta trilha são largamente imitados para inumeráveis produtos audiovisuais, de comerciais de televisão a jogos de videogame, de posts em redes sociais a outras trilhas para cinema, a mensagem ecológica que a obra traz bem que poderia ser copiada também. Visionário, o filme previa com assombrosa clareza uma série de questões hoje em pauta na sociedade moderna. E embora em seu decorrer sejam cantados outros versos (principalmente, no último movimento), “Koyaanisqatsi” se resume basicamente a este termo exótico, mas que traduz o mais óbvio e essencial alerta: se não houver uma radical mudança de comportamento planetária, este “mundo em desequilíbrio” está com dias contados. E o homem também.

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FAIXAS:
1. “Koyaanisqatsi” - 3:27
2. “Organic” - 4:57
3. “Clouds” - 4:38
4. “Resource” - 6:36
5. “Vessels” - 8:13
6. “Pruitt Igoe” - 7:51
7. “Pruitt Igoe Coda” - 1:17
8. “Slo Mo People” - 3:20
9. “The Grid – Introduction” - 3:24
10. “The Grid” - 18:06
11. “Microchip” - 1:47
12. “Prophecies” - 10:34
13. “Translations & Credits” 2:11
Todas as composições de autoria de Philip Glass

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Philip Glass - "Glassworks" (1981)

 

“’Glassworks’ foi meu álbum de estreia em uma grande gravadora. Esta música foi escrita para o estúdio de gravação, embora várias peças logo tenham entrado no repertório do Philip Glass Ensemble. Uma obra de seis ‘movimentos’, ‘Glassworks’ pretendia apresentar minha música a um público mais geral do que estava familiarizado com ela até então”.
Philip Glass

O início dos anos 80 foi ao mesmo tempo desafiador e marcante para o compositor, pianista e maestro norte-americano Philip Glass. Reconhecido como um dos principais autores da esfíngica música contemporânea, o cara já tinha composto de um tudo àquelas alturas e nos mais variados formatos: ópera, concerto, sinfonia, madrigal, trilha sonora, sonata e estudos, de instrumentos solo à grande orquestra. Entretanto, quanto mais produzia, mais parecia afastar-se do gosto comum. Na mesma proporção que quebrava barreiras da música tonal secular, mais seu trabalho se tornava complexo e intelectualizado. Duas de suas mais celebradas obras, “Music in 14 Parts“ (1971-74) e “Einstein on the Beach” (1976), por mais revolucionárias e arrojadas que sejam até hoje – não raro, servindo de influência para grupos de rock –, eram impossíveis de serem executadas no rádio, visto que têm, respectivamente, 4h e 3h20min de duração cada. Como sorver, então, ideias que às vezes soavam demasiado complexas ou até inaudíveis aos ouvidos populares? A resposta veio com “Glassworks”, de 1981.

Havia, entretanto, um bom caminho pelo qual Glass precisaria percorrer para desfazer a imagem de “cabeção”. Nascido em Baltimore, em 1937, estudou, nos anos 60, na Universidade de Chicago, na Juilliard School e em Aspen com Darius Milhaud. Tudo que qualquer músico adolescente e em formação gostaria, certo? Não para o subversivo Glass. Aspirando outras dimensões sonoras, como seus contemporâneos Terry Riley e Steve Reich, as vias tradicionais não lhe bastavam. Insatisfeito com grande parte do que então se passava na música moderna, não via em nada daquilo algo que compreendesse as referências a Stockhausen, Boulez, Cage e Lou Harrison, mas também ao rock, ao jazz e à música do Oriente. Mudou-se, então, para a Europa, onde estudou com a lendária pedagoga Nadia Boulanger (que também ensinou Aaron Copland, Virgil Thomson e Quincy Jones) e trabalhou em estreita colaboração com Ravi Shankar. Retorna a Nova York em 1967, aí sim sabendo o que queria: formou a famosa Philip Glass Ensemble – formada por sete músicos, ele aos teclados, e uma variedade de instrumentos de sopro, amplificados e alimentados por um mixer – e mudou para sempre a forma como se percebe música no Ocidente.

O novo estilo musical que Glass forjou acabou sendo apelidado de "minimalismo", termo ao qual o próprio nunca gostou. Ele prefere chamar-se de um compositor de “música com estruturas repetitivas”. Baseado na reiteração extensa de fragmentos melódicos breves e elegantes que se entrelaçam e saem de uma tapeçaria auditiva, sua música imerge o ouvinte em uma espécie de clima sônico que torce, gira, circunda e se desenvolve. Sua técnica composicional própria de variações engendra uma mudança rítmica constante, somando ou substituindo notas, e fazendo com que segmentos de uma frase se repitam para criar múltiplas dela mesma – duas, três, quatro, cinco, seis vezes – antes de se contrair a dimensões novamente administráveis, o que estabelece, igualmente, relações harmônicas muito peculiares. 

Porém, passadas quase duas décadas desde que se tornara um dos principais nomes de sua geração, Glass permanecia admirado pela crítica, mas um ilustre desconhecido. Até na música pop ele havia se ensaiado. Próximo do músico e produtor Kurt Monkacsi, Glass “apadrinhou” junto com este a new wave Polyrock, a quem produziu e fez participações. Dizem nos bastidores que o cérebro da banda era ele e não os irmãos Billy e Tommy Robertson tamanha é a identificação do art rock da Polyrock com a sua música, quase uma versão baixo-guitarra-bateria-teclados do minimalismo glassiano. Porém, seja por grandeza, timidez ou algum problema legal, o fato é que isso não consta nos créditos. Glass continuava, assim, na mesma encruzilhada – mas queria sair dela.

Foi então que Glass matutou, matutou e percebeu que o negócio era recorrer, exatamente, ao conceito daquilo que sua própria música continha em abissal quantidade: a síntese. Primeiro compositor desde Copland a ingressar no selo CBS Masterworks devido a seu prestígio, Glass não quis deixar essa oportunidade escapar para, enfim, se comunicar com um maior número de pessoas. A sacada foi condensar suas ideias em pequenos temas, como “peças performáticas” curtas em que conseguisse resumir suas intenções estético-filosóficas e preservasse a qualidade emocional proposta. Nasceu, assim, “Glassworks”, um sucesso de vendas para os padrões da música erudita, que celebra 40 de seu lançamento em 2021.

Capa da caixa "Glass Box", de 2008,
que conta com toda a obra de Glass
até então, incluindo "Glassworks",
em foto clássica de Chuck Close
Em apenas seis “movimentos”, as “‘Glassworks’ são uma excelente introdução às sonoridades nítidas e pesadas, densamente embaladas, padrões que mudam lentamente e fluxo linear aparentemente imparável deste aspecto importante da música contemporânea”, como bem definiu a Gramophone Magazine. A partir deste trabalho aparentemente menos expressivo se comparado com formatos grandiosos como a sinfonia e a ópera, Glass extraiu inúmeras vezes melodias, acordes, estruturas, trechos e combinações para outras de suas obras, fosse em cinema, câmara e performance ou, até mesmo, sinfonias e óperas. Nelas, Glass produz células sonoras maleáveis e adaptáveis, como um laboratório musical próprio, da qual seguidamente recorre a fórmulas já prontas para recriações em infinitas possibilidades plásticas. 

Metalinguístico, “Glassworks” abre com a lírica “Opening”, certamente uma das mais belas composições de todo o vasto cancioneiro do compositor. De uma intrincada construção, que conjuga curtos fluxos de cinco acordes do piano em compasso um ternário, “Opening” cria uma atmosfera onírica e etérea incomum, como se Chopin resolvesse inventar uma fantasia para aplicar hipnose. Capaz de alterar os sentidos, não à toa a música serve de base para “Truman Sleeps”, da trilha do filme “O Show de Truman” (1998), cuja trama percorre, justamente, os caminhos do inconsciente. 

Já “Floe” é uma das mais utilizadas pelo próprio Glass em obras subsequentes suas. Impossível não lembrar de “Something She Has to Do”, da trilha de “As Horas” (2003), da trilha sonora de “A Fotografia” (2000) ou da ópera ‘Akhnaten” (1983). Sua estrutura rítmica hipnótica parece colocar quem escuta numa corrida em alta velocidade em que as imagens vão se passando em frente aos olhos rápida e repetidamente. Como lhe é característico, porém, Glass vai construindo seus elementos sonoro-sensitivos aos poucos, e quando se percebe já se está distinguindo da massa sonora (composta por 2 flautas, 2 sax soprano, 2 sax tenor, 2 trompas e sintetizador) um saxofone, que emite notas em clara dissonância com o restante, como se, depois da vertigem, percebesse que podia admirar aquela transformadora viagem. A noção de tempo, característica central da música de Glass tanto no sentido formal quanto cronológico e, por conseguinte, estético-filosófico (além de ser um dos motivos que o aproximam do cinema, cuja linguagem lida com a passagem temporal permanentemente), se estabelece de uma maneira muito peculiar em temas como “Floe”. Em contrapartida, porém, são capazes de gerar uma série de subjetividades. É através da noção de rapidez que se percebe o quanto o tempo depende da perspectiva – material ou imaterial – de quem observa.

“Islands” é outra largamente usada por Glass em outros projetos, haja vista temas como “Tearing Herself Away” ou “Sheba & Steven”, das trilhas sonoras de “As Horas” e “Notas Sobre um Escândalo” (2006), respectivamente. Ambas iguais à sua melodia, só que com leves diferenças em andamentos, tempos e notas, que muito lembram o tema de outra trilha clássica do cinema, “Vertigo”, composta por Bernard Hermann, com sua construção cíclica que provoca uma sensação de espiral, muito propícia, não à toa, a trillers de cinema como os vários para os quais Glass escreve trilhas.

Com um conjunto de madeiras, metais e sintetizador, “Rubric” formula um jorro sonoro motorizado difícil de apreender – mas extasiante de se ouvir. Próprio da música de Glass, seu sistema de ostinatos rítmicos (motivos ou frases musicais sempre repetidos) funciona de modo a provocar uma sensação instintiva de aflição, o que explica ter usado tal expediente nos terceiros e quartos movimentos de sua “DancePieces” (1987) ou para uma das sequências de “Koyaanisqatsi” (1982) que mostram as vertiginosas cenas das multidões das metrópoles em velocidade mais acelerada que a realidade, mas metaforicamente próxima da vida frenética da sociedade capitalista. Novamente, a questão do tempo. Alex Ross, em seu essencial livro “O Resto é Ruído - Escutando o Século XX”, ao descrever essa característica fundamental dos minimalistas, diz saborosamente o seguinte: “Evocam a experiência de dirigir um automóvel por um deserto vazio, as repetições em camadas da música refletindo repetindo as mudanças que o olho percebe – sinais da estrada, uma cadeia de montanhas no horizonte, o som grave e contínuo do asfalto sob os pneus”.

Encaminhando-se para o fim, “Façades” reduz o ritmo de modo a facilitar a captação do ouvido. E se na anterior, assim como em “Floe”, o som eletrônico prevalece, aqui, tal “Opening”, a matriz sonora é basicamente orgânica através das violas e cellos. O andamento adagio carrega um ar de suspense, suave e imponente. Entra um solo pronunciado e de registro estendido de um sax, elegante em suas plasticidade e severidade. Sem pressa, aproveitando cada segundo de desenvolvimento, cada som emitido. Junta-se outro sax ao primeiro, que, em jogos de volumes e tempos, articula um duo. Coisa da cabeça de um gênio. Estrutura vista posteriormente em várias de suas trilhas sonoras cinematográficas, como para os filmes “Janela Secreta” (2004) e “O Ilusionista” (2006), mas também em peças como “Songs from Liquid Days” (1986) e a “Sinfonia nº 7” (2005).

Delicada e rigorosa, “Façades” abre caminho para, mais uma vez metalinguisticamente, Glass fechar, exatamente, com “Closing”. Trata-se da versão forjada para cordas e madeiras para a inicial “Opening”, mas que muito bem se adapta a conjuntos sinfônicos, fazendo com que até nisso “Glassworks” tenha servido de célula-base para outros projetos que o músico viria desenvolver, a exemplo das orquestrações das sinfonias “Low” e “Horoes” (1996) – criadas sobre a obra de David Bowie e Brian Eno –, temas como o do filme “Hambuerger Hill” (1987) ou óperas como “Galileo Galilei” (2001).

De uma obra gigantesca em quantidade e importância, Glass tornou-se, principalmente após “Glassworks”, um raro pop star da música clássica. O que talvez explique o agrado a gregos e troianos é o fato de, mais do que comunicar-se com outras formas artísticas - principalmente o cinema, que tanto lida com as emoções das pessoas -, a sua arte tem uma profunda relação com a essência da natureza. Os átomos, as células, a vida interna dos seres e das coisas emana dos sons que produz, quase numa leitura hinduísta de vida e morte, de nascer e renascer, de comunhão entre opostos. Talvez por isso sua música tenha tamanha identificação com elementos elementares da existência, como o tempo e o espaço. Na prática, a penetração do estilo glassiano está em qualquer propaganda de automóvel minimamente premium ou comerciais institucionais dos mais diversos tipos de produto. O mais impressionante é que Glass conseguiu isso fazendo o inverso do que geralmente é comum aos estetas: ao invés de desvelar uma obra mais ampla em excertos para outras menores, foi, justamente, da mais enxuta (as “Glassworks”, somadas, não passam de 41 min), que melhor destrinchou elementos essenciais para toda uma musicografia – viva, pulsante e profícua. Mais do que um gênio da música, Glass é um sabedor da arte da abreviação. 

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FAIXAS:
1. “Opening” - 6:25
2. “Floe” - 5:59
3. “Islands” - 7:40
4. “Rubric” - 6:05
5. “Façades” - 7:21
6. “Closing” - 5:59
Todas as composições de autoria de Philip Glass

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OUÇA O DISCO

Daniel Rodrigues

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Philip Glass e Tim Fain- Teatro Municipal - Rio de Janeiro (15/09/2011)




Terminou no último dia 19 a série de recitais para piano e violino que o maestro e compositor norte-americano Philip Glass fez no Brasil neste mês de setembro nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Porto Alegre. Na companhia de minha mãe – que até pouco tempo não o conhecia, mas é uma boa curiosa –, pude conferir a apresentação carioca, em pleno Teatro Municipal. Um luxo e um prazer a todos que puderam admirar um pouco da vasta e incomparável obra deste que é um dos maiores gênios vivos da música moderna, uma alma revolucionária e transformadora.
O fato de se restringir a apenas dois instrumentos não tirou a graça em nenhum momento da apresentação. Muito pelo contrário. Acostumado a compor para grandes orquestras ou mesmo conjuntos de câmara, Glass, inventivo compositor e exímio pianista, é também autor de magníficas obras solo, e foi este o recheio do que pôde ser apreciado pelo público. Estavam lá, só em piano e/ou violino, suas marcas: os acordes repetidos, as estruturas minimalistas, as melodias circulares, as variações tonais escritas com perfeição. A música de Glass flerta com o rock, com a música eletrônica, com a simplicidade saudável do pop, mas sempre com o pé firme no clássico. Ou seja: uma música completa para os nossos tempos. Para que outros instrumentos, né?
Com repertório todo de sua autoria, ele e o violinista norte-americano Tim Fain presentearam, em pouco mais de uma hora e meia, a numerosa plateia com dez números, começando pela inédita e “Três Estudos para Piano”, cujo primeiro movimento é simplesmente espetacular. Seguiu-se a longa e variante “Partita para violino solo”, escrita por Glass especialmente para as mãos hábeis e de pura sensibilidade de Fain. Depois do intervalo, vieram “Metamorphosis”, para piano, e a brilhante “Music from The Screens”, para piano e violino. A primeira parte, “The Orchard”, toda em contraponto, remete direto às fugas de Bach, porém com cores que modernizam o barroco. “France” e “The French Lieutenant” completaram esta que foi das mais aplaudidas da noite.
Glass e seu piano magistral
A seguir, ouviu-se “Pendulum”, também para piano e violino, em que o músico parece ter criado uma trilha poética para o conto de Poe: um pêndulo que se sucede em movimentos contínuos, de um lado para o outro, em sons com intervalos regulares, trazendo novamente a sensação de espiral característica de sua maneira de compor.
Show terminado, minutos de aplausos. Mas viria mais. No bis, Glass anunciou em português (aliás, como fizera sempre que falava ao microfone, lendo ou não) duas de suas obras-primas: “Opening/Closing”, da célebre série das “Glassworks”, gravadas por ele em 1981. Fui com grande expectativa para que tocasse essa. E ele tocou. Uma peça onde lirismo romântico e modernismo estão incrivelmente bem casados. Depois desta, podia até ir embora que já me dava por satisfeito. Mas aí Fain sacou seu violino e mandou ver a hipnótica e cáustica “Knee 4”, da “ópera-punk” "Einstein on the Beach" um dos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS deste blog. Mesmo sem as vozes do coral, e tocando apenas uma parte da original, o violinista finalizou o recital em alto estilo com esta peça de difícil execução e requerente de muita técnica e velocidade.
Agora não precisava mais nada. Piano, violino e a magistral música de Philip Glass, além da beleza redentora do Municipal e a calorosa companhia de minha mãe. Noite de gala.



terça-feira, 6 de setembro de 2011

Philip Glass & Robert Wilson - "Einstein on the Beach" (1976)




“’Einstein [on the Beach]’ parece um estudo de sobrecarga sensorial, o que significa ser tudo e nada ao mesmo tempo.”
Tim Page 


Com a vinda do maestro e compositor norte-americano Philip Glass ao Brasil neste mês de setembro, não podia deixar de aproveitar para falar um pouco sobre a inconfundível obra deste revolucionário artista de nosso tempo. Dono de uma música hermética e profundamente instigante que questiona as fronteiras entre arte culta e popular, o ativo Glass vem empilhando ótimos trabalhos desde os anos 70, seja em trilhas para cinema, teatro, ópera, sinfonia, câmara e até música pop. Mas o seu ápice de explosão criativa é a inclassificável e genial “Einstein on the Beach”, de 1976.
Só pelo fato de ter contribuído com a invenção do estilo minimalista para a música Philip Glass já teria seu espaço no Olimpo dos grandes autores da história evolutiva da arte musical. Porém, ele fez mais. Filho da contracultura e admirador de rock, jazz, MPB, entre outros estilos “não-eruditos”, mas permanentemente conectado ao classicismo, Glass criou uma forma única de compor onde, a partir de células sonoras mínimas, gera variações graduais muito bem escritas que vão aos poucos formando uma massa complexa e densa, muitas vezes totalmente diferente daquilo de como começou.
“Einstein on the Beach” é um marco da música do final do século XX. Usando os instrumentos e as vozes de forma cirúrgica, tanto cordas e madeiras tradicionais como sintetizadores próprios da vanguarda, Glass compôs uma obra que não é propriamente uma ópera, nem sinfonia, nem um disco pop. Em quatro atos para orquestra, coro e solistas, “Einstein” é, sim, uma peça extremamente rica que mudou totalmente em forma e linguagem a música para grandes conjuntos. Composto originalmente
para teatro, onde contou com a direção do parceiro Robert Wilson, (que é creditado na capa do disco, embora não tenha contribuição musical efetiva) seu exemplo radical abriu caminho para muito do que se tornou comum hoje em diversas áreas, como teatro, cinema, publicidade, televisão, entre outros.
Glass, à esq. com o parceiro,
Robert Wilson
Como dá para supor, a obra flerta com o nonsense. A frase do título foi extraída de ‘Einstein on the beach on Wall Street’, uma das diversas sentenças sem significado lógico ditas pelo seu “co-autor”, Christopher Knowles, um autista que “canta” em algumas das 20 peças que a perfazem. Glass, confesso admirador do punk rock (aliás, ele foi integrante e produtor de uma excelente banda pós-punk, a Polyrock), usou a voz solo de Knowles salpicando palavras soltas na faixa “’Mr. Bojangles’”, lembrando muito o vocal esganiçado de Johnny Rotten dos Sex Pistols . Contemporâneo ao movimento punk, “Einstein” traz essa verve radical não só neste aspecto como nas próprias estruturas melódicas, que exploram bastante as repetições e a simplicidade composicional, igual aos riffs de guitarra do punk. Em sentido inverso, a influência do estilo de Glass também pode ser percebida fortemente em alguns artistas do rock, como Cocteau Twins, Laurie Anderson e Diamanda Galas.

Apesar do pé no pop, o legal é que a música de Glass nunca se desvincula da tradição erudita. Estão lá, preservados, Bach, Palestrina, Beethoven, Rossini. As melodias de voz (por vezes, o centro do tema, como em “Knee 3” e “Night Train”), ora se valem de modernos mezzo-sopranos e mezzo-barítonos, ora remetem diretamente ao uníssono homofônico do canto gregoriano medievo, como na base coral que sustenta a falação fora de compasso (e de senso) de Knowles em “’Mr. Bojangles’” ou na linda “Knee 4”, cuja letra resume-se a um metalinguístico “dó re mi fa sol”. Há ainda as hipnóticas “Dance 1” e “Building”, em que os teclados eletrônicos conflitam com as vozes e os outros instrumentos;  as delicadas “Entrance” e “Knee 5”; ou a impressionista “Train 1”, que coloca o ouvinte a bordo de um trem de notas metafísicas.
Extenso, “Einstein on the Beach” tem aproximadamente 3 horas e 10 minutos de duração sem interrupção entre as partes, interligadas pelos cinco “knees” (“joelhos” que, literalmente, ligam uma articulação à outra). A obra é, de fato, feita para ser sorvida do início ao fim, pois guarda a unidade temática própria da ópera, como na proposital repetição de motivos em mais de uma faixa. O coro contando números de “Knee 1” e “Knee 2”, que aparece novamente em “’Prematurely Air-Conditioned Supermarket’” e, lá no final, em “Knee 5”, mostram isso claramente.
No teatro, a estrutura musical de “Einstein” está completamente entrelaçada com a ação dos atores e a iluminação. No entanto, como toda boa “ópera”, ela não precisa necessariamente do palco para existir. A forte cena clímax, em “Spaceship”, é um ótimo exemplo: somente em sons, “descreve” o holocausto nuclear: linhas vocais pulsantes, explosão de instrumentos amplificados e notas repetitivas de um coro histérico cantando rápida e freneticamente, num reflexo das tensões fin-de-siècle.
Assim, a peça de Glass sugere uma outra ideia mais abrangente: se em formato “Einstein” subverte a tradição clássica por não contar uma história trágica, elemento básico da ópera, em contrapartida, levanta um sério questionamento: há tragédia maior do que os tempos atuais? Para traduzi-los, só mesmo com uma narrativa sem trama e ruídos musicados que transmitam loucura e ilógica através de sensações extremas. Tudo e nada. Afinal, quer imagem mais surreal do que Albert Einstein tomando sol numa praia em Wall Street após o fim do mundo?
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FAIXAS:
    1. KNEE 1 (8:04)
    2. TRAIN 1 (21:25)
TRIAL 1:
    1. Entrance (5:42)
    2. "Mr. Bojangles" (16:29)
    3. "All Men Are Equal" (4:30)
    4. KNEE 2 (6:07)
    5. DANCE 1 (15:53)
    6. NIGHT TRAIN (20:09)
    7. KNEE 3 (6:30)
TRIAL 2/ PRISON:
    1. "Prematurely Air-Conditioned Supermarket" (12:17)
    2. Ensemble (6:38)
    3. "I Feel The Earth Move" (4:09)
    4. DANCE 2 (19:58)
    5. KNEE 4 (7:05)
    6. BUILDING (10:21)
BED:
    1. Cadenza (1:53)
    2. Prelude (4:23)
    3. Aria (8:12)
    4. SPACESHIP (12:51)
    5. KNEE 5 (8:04)

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Ouça: