O encanto e a graça de Bethânia no Teatro do SESI foto: Amanda Costa |
Não sou um
expectador de shows tão rodado, bem como sei que já perdi muitos
deles que nunca mais assistirei, pois os artistas já se foram para
outro plano. Mas sei também que já vi muita coisa boa pelos palcos
da vida, e dificilmente algo se comparará ao megaespetáculo de Paul McCartney no Estádio Beira-Rio ou, noutra ponta, ao “concerto
caseiro” que Paulinho da Viola proporcionou aos porto-alegrenses
num belo domingo matinal na Redenção. Mas o que estou falando não
tem nada a ver com isso. Tem a ver com a talvez maior cantora, maior
performer, maior intérprete viva deste esférico e redundante
planeta: Maria Bethânia. E em se tratando de Bethânia não
há comparação.
O espetáculo
“Abraçar e Agradecer”, apresentado por ela no Teatro
do Sesi, em Porto Alegre, comemorando irrepreensíveis 50 anos de
sua carreira, deixa muito claro todas essas acepções: vê-se uma
artista plena no palco, ciente e aproveitadora de sua trajetória,
carregada pelo alto profissionalismo e por suas próprias
individualidade, apaixonada pelo o que faz. Como muitos gostam de
dizer – mas que a ela se atribui de fato –: uma diva. Foram cerca
de 1 hora e 45 minutos que percorrem vários momentos de sua
trajetória como uma das mais importantes artistas da história da
música brasileira.
Sob luzes intensas
de um cenário magnificamente montado por Bia Lessa apenas por estas,
Bethânia entra no palco. E é ai que tudo se ilumina de fato. A
abertura é tão grandiosa quanto autorreferencial: “Eterno em
Mim”, de autoria do mano Caetano Veloso, compositor preferido dela
(junto com Chico Buarque) e de maior presença no repertório do
show, com seis canções ao total. Tão lindo e completo que minha
sensação era de que, logo que terminou o primeiro número, a
apresentação poderia terminar ali. Exagero meu, pois tinha muito
mais. Mais uma, “Dona do Dom” (de Chico César, de quem também
Bethânia cantara outra marcante do show, o fado milongado
“Xavante”), e vem um belíssimo poema da própria Bethânia,
misto de agradecimento ao público, aos orixás, à natureza, aos
amigos, à vida e a si mesma. Tão bonito que não deixa em nada a
dever aos outros textos que, como de costume, ela entremeia às
canções nos seus shows. Neste espetáculo, obviamente, não poderia
ser diferente: tem Clarice Lispector (com três passagens), Waly Salomão, Carmen Oliveira e Fernando Pessoa.
Mas voltando às
músicas, o repertório celebra sua história na música brasileira,
mas, exceto o hit “Gostoso Demais” (Dominguinhos e Nando Cordel),
evita obviedades como “Fera Ferida”, “Reconvexo”, “Álibi”
ou “Um Índio”. Mas clássicos há, e vários deles. Tanto que
Bethânia arrasa numa versão vibrante e comovente de “Gita”, de Raul Seixas e Paulo Coelho. Todas as músicas se emendam umas nas
outras, o que faz com que intensifique ainda mais a montanha-russa
emocional que ela impõe ao público, pois além da carga gerada
pelas próprias músicas, ainda não dá tempo de respirar entre
estas. No caso, “Gita” se liga com outra de Caê: a
lírico-romântica “A Tua Presença Morena”, joia que o genial
irmão compôs-lhe para o álbum “A Tua Presença”, de 1971,
ainda no exílio em Londres. De arrebatar. Aí vem outra dele para
ela: “Nossos Momentos” (“Quem pode compartilhar dos meus
sentimentos/ Na hora que o refletor bater/ Momentos de luz e de nós/
Momentos de voz e de sonho/ Momentos de amor que nos fazem felizes/ E
às vezes nos fazem chorar”), num diálogo tanto com o que veio
antes quanto com o trecho de Lispector lido na sequência, que diz:
“Antes de julgar a minha vida, calce os meus sapatos, percorra o
caminho que percorri, viva as minhas tristezas, minhas dúvidas, viva
as minhas alegrias. Tropece aonde eu tropecei, e levante-se assim
como eu fiz.”
Gonzaguinha, outro
importante parceiro, amigo e compositor da carreira de Bethânia,
retoma a seção musical metalinguisticamente: “Começaria Tudo
Outra Vez”. No palco de LED em que Bethânia pisa se projetam de
diversas formas: flores, estrelas, letras, desenhos, geométricos. E
as luzes sobre ela ajudam a marcar a incrível performance de
uma artista que dança e interpreta com alegria e jovialidade, apesar
dos cabelos tomados de branco e os quase 70 anos. “Alegria”,
aliás, é o que ela traz em seguida no lindo samba de Arnaldo Antunes, que ganha batuques de axé. Logo após, “Voz de Mágoa”
(Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro), uma tocante interpretação do
clássico bossa-novista “Dindi” e uma ainda mais emocionante
execução de “Você Não Sabe”, de Roberto e Erasmo, compositores “incultos” para a dita intelligentsia que
Bethânia fora uma das primeiras a demonstrar a beleza de suas
construções melódicas. Quando se pensa que vai se respirar um
pouco, ela vem com “Tatuagem”, de Chico e Ruy Guerra, e aí os
olhos marejam inevitavelmente.
Depois de novo texto
de Lispector, Chico retorna noutra marcante na carreira de Bethânia:
a apoteótica “Rosa dos Ventos”, título do memorável show da
cantora de 1971 quando ela consolida este formato de apresentação
altamente íntima e com composições de diversas vertentes. Um
pout-pourri com a ótima banda comandada por Jorge Helder
preenche o interlúdio, quando Bethânia sai para trocar de figurino
e voltar para o segundo ato. “Tudo de Novo“, mais uma de Caetano,
faz a montanha-russa, que havia estacionado por alguns minutos,
voltar com toda a velocidade.
As referências aos
orixás, principalmente Iansã e Oxum, e aos elementos “água” e
“vento” aparecem do início ao fim, e bastantemente nesta segunda
parte. “Doce”, de Roque Ferreira (“A lagoa escura que a
Bahia tem/ Que a areia branca rodeou/ São as águas de Oxum que
Caymmi batizou...”), ”Oração de Mãe Menininha”, de Caymmi (“E a Oxum mais bonita, hein? Tá no Gantois...”),
“Eu e Água”, outra de Caetano (“O mar total e eu dentro do
eterno ventre/ E a voz de meu pai/ voz de muitas águas”)
dialogam entre si e mostram claramente isso. A música que dá título
ao show, de Gerônimo e Vevé Calazans (porém na ordem inversa:
“Agradecer e Abraçar”), mantém a mesma linha: “Abracei o
mar na lua cheia...”. Igualmente as três de Roque Ferreira que
vêm em sequência: “Vento de Lá” (“Foi o vento de lá, foi
de lá que chegou/ Foi o vento de Iansã dominador que dormia...”),
“Imbelezô Eu” (“Alecrim beira d'água/ Que me beijou
percebeu/ Alguma coisa em mim aconteceu/ A mão que me tocou imbelezô
eu...”) e a bela “Folia de Reis”.
Um samba antigo,
“Mãe Maria”, de Custódio Mesquita e David Nasser, precede outra
maravilhosa declamação de Bethânia – como talvez no Brasil ela seja a que melhor o saiba fazer –, agora com poesia do conterrâneo
Waly: “Cresci sob um teto sossegado, meu sonho era um pequenino
sonho meu. Na ciência dos cuidados fui treinado/ Agora, entre meu
ser e o ser alheio, a linha de fronteira se rompeu.”. Neste
momento, Bethânia, dona do repertório, faz um singular paralelo
entre a música rural (“Eu, a Viola e Deus”, “Criação”,
“Casa de Caboclo”, “Viver na Fazenda”) com a raiz indígena
brasileira (“Povos do Brasil”, o canto tupi “Maracanandé” e
a já citada “Xavante”) com o autorreconhecimento da voz (“Alguma
voz”, outra de PC Pinheiro e Dori, e “Motriz”, última de
Caetano no show), seleção de músicas cujo simbolismo, entremeada
pelo pungente e feminino texto “Candeeiro”, de Carmen Oliveira,
representa a sua própria existência como pessoa e cantora.
“Eu Te Desejo
Amor”, canção francesa de Charles Trenet e Léo Chauliac, de
1942, vertida para o português por Nelson Motta, arrebatou o
público, que a essas alturas já a aplaudia de pé. Ao final desta,
por sinal, dois minutos de aplausos diante de uma Bethânia
visivelmente emocionada que dizia: “Que plateia é essa?!”.
Mas o deslumbre não terminaria ali, pois, depois de ler um de seus
poetas preferidos, Pessoa, Bethânia inunda de emoção o teatro com
uma interpretação, esta em francês de fato, do clássico de Edith
Piaf “Non, Je ne Regrette Rien”, enquanto uma projeção no chão
de uma faixa de estrada parece cruzar-lhe o peito em alta velocidade.
“Silêncio”
fecha o show em versos que traduzem a despedida e a delicadeza
daquele momento tão especial, tanto para a artista quanto para o
público: “Silêncio, eu quero ouvir o que me diz a imensidão/
Saber se minha alma tem razão/ Quando acredita que essas coisas vão
durar”. A banda encerra ao som de outro marco da trajetória de
Bethânia: “Carcará”, de João do Vale. Sob um mar de aplausos
ela sai do palco, mas logo retorna para entoar dois sucessos: `Ӄ
o Amor”, de Zezé di Camargo e Luciano, que ela, em 1999, recolocou
num outro patamar interpretativo, e “O que é o que é”, o grande
sucesso de Gonzaguinha. É quando a plateia, já de pé e dançando,
entoou junto com ela os inesquecíveis versos: “Viver/ E não
ter a vergonha de ser feliz/ Cantar e cantar e cantar/ A beleza de
ser/ Um eterno aprendiz...”.
Pra mim, admirador
de sua obra e colecionador de vários de seus discos, a sensação
que saí foi, além do deslumbre, de que Bethânia, ainda por cima, é
ótima de estúdio. Pois a maior certeza que se tem é que ela é
inteiramente do palco. Como disse no início, dificilmente verei
apresentações melhores de algumas que já vi, pois estas estão
guardadas no coração do diletante. Mas como este show de Maria
Bethânia, a quem vi pela primeira vez, acho que nunca mais
presenciarei. Ao fim, as cortinas se cerram e não se vê mais
Bethânia, mas, como dizem os versos de Chico: “Sei que além
das cortinas/ São palcos azuis/ E infinitas cortinas/ Com palcos
atrás.” Bethânia está sempre lá, atrás das cortinas, além
das cortinhas. Ela é luz, ela é azul, ela é o palco.
por Daniel Rodrigues