"Lindonéia, a Gioconda do Subúrbio" de Rubens Gerchmann (idro, colagem e metal sobre madeira, 60 x 60, 1966 foto: Leocádia Costa, MAM - Coleção Chateaubriand
Antes de mais nada, um aviso aos
navegantes das águas de Iemanjá: Dorival Caymmi não é música. Para o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, a verdadeira
arte manifesta algo que não está somente naquilo que se percebe na epiderme da
obra, mas, sim, na sua estrutura, no seu significado mais profundo. Assim como
uma “Guernica” de Picasso é mais do que uma pintura ou “Tempos Modernos” de Chaplin
mais do que um filme, pois são marcos históricos divisores-de-águas da
sociedade, o que Caymmi produziu tem uma amplitude antropológica que vai além
dos limites da música. Caymmi conseguiu traduzir através de sons os costumes de
um povo, os jeitos de um povo, o pensar de um povo. “Canções Praieiras”, de 1954,
é isso: extrapola o sentido de uma simples gravação. É um documento fonográfico
de suma importância para tudo o que se possa classificar como cultura no século
XX, seja popular, folclórico ou erudito, pois ele foi um criador de linguagem.
Como disse
Gilberto Gil , Caymmi é o início da “nova idade de ouro da canção”. A universalidade da
música deste baiano abençoado pelos orixás está em cada som, em cada dedilhado
graúdo mas delicado na viola, em cada entoar do seu barítono, em cada rebolado sensual
do seu canto. Nos temas, os conflitos, sentimentos e a luta diária pela
sobrevivência daquele que vive em contato com o que há de mais primitivo e puro
na natureza: o pescador. E os elementos dessa poética são os mais essenciais da
vida: o mar, a água, a terra, o vento, a noite, a morte. De uma coesão conceitual
impressionante, as oito faixas que compõem o disco trazem tudo isso do primeiro
ao último segundo. Terra, mar e céu, assim como as dimensões do homem, da
natureza e do místico, são trazidos em sua poesia em plena simbiose,
equiparados, indistinguíveis. Tudo voz e violão, executados com tanta
naturalidade que passa a sensação de que ele gravou na beira da praia, com os
pés sobre a areia e olhando pro mar, apenas deixando os sons virem. “Canções Praieiras” é uma
escritura de clássicos absolutos, todos irreparáveis. O que dizer de “É Doce
Morrer no Mar”, “O Mar” ou “A Jangada Voltou Só”? Operísticas, as três trazem o
tema da morte, mas abordado sob a ótica mística e singela do pescador. Deslumbrante,
mágico e de uma dramaticidade teatral espantosa. De tão visuais, é possível
enxergar um filme em cada música. Misturando um pouco das histórias de cada uma,
olhem só no que dá:
CENA 1 - EXTERNA – FIM DE TARDE – Várias tomadas do mar
agitado. CENA 2 - INTERNA – FIM DE TARDE - Pescador Pedro se despede com
pesar de sua amada, Rosinha de Chica, pois não sabe se vai voltar da pescaria. CENA 3 - INTERNA – FIM DE TARDE – Já sozinha, Rosinha, intuindo o pior, reza chorando.
CENA 4 – INTERNA/EXTERNA – NOITE - Pedro e seus companheiros,
Chico, Ferreira e Bento, encontram-se na praia para iniciar o trabalho. Pegam a
jangada e ganham o mar bravio na noite ventosa. CENA 5 - EXTERNA – NOITE – Já em alto-mar, as águas se revoltam.
Os pescadores acreditam ser por vontade de Iemanjá. Eles lutam para sobreviver,
mas não resistem e caem no mar. CENA 6 - EXTERNA – MANHÃ - A jangada aparece na beira da
praia toda quebrada e sem os pescadores. Juntam várias pessoas da comunidade de
Jaguaripe. As moças choram de fazer dó. Comoção geral. CENA 7 - EXTERNA – MANHÃ – O corpo de Pedro aparece em outra
ponta da praia próximo às pedras, todo roído dos peixes. CENA 8 – EXTERNA – TARDE – FLASHBACK – Os pescadores felizes
na festa da aldeia. Chico vestido de boi adornado na procissão de Natal. Bento,
cantando modinhas e dançando, diverte a todos. Pedro e Rosinha trocam olhares
de amor. CENA 9 – EXTERNA – FIM DE TARDE - Rosinha, traumatizada,
enlouquece. Passa a zanzar pela praia catatônica e com os olhos marejados dizendo
baixinho: “Morreu. Morreu”. CENA 10 – EXTERNA – FIM DE TARDE – Sob o sol vespertino, a
onda do mar quebra lindamente na areia da praia. FIM
Um roteiro de cinema
perfeito! Caymmi é capaz de criar imagens, verdadeiros quadros da realidade de
uma cultura, semelhante ao que fizeram, cada um em sua área, Jorge Amado,
Caribé e Pierre Verger da mesma Bahia de Todos os Santos. Neste sentido, a
música de Caymmi é extremamente figurativa, pois consegue ser literária ao
mesmo passo que é cênica e imagética. “Canoeiro”, das que mais me assombro, reproduz
em sons e versos o movimento sincronizado e o canto de um grande grupo de
pescadores no ato da pesca, com aquela rede gigante sendo tirada do mar lotada
de peixes. Sempre que ouço lembro sempre de cenas de “Barravento”, do também
baiano Glauber Rocha.
O fantástico (sereias, lendas,
cultos, santos, Batucajé) está constantemente presente. Assim é a incrível “Lenda
do Abaeté”, com seus acordes de violão graves parecendo berimbau e clima
introspectivo (até assustador) que arrepia ao se escutar, pois dá a impressão
que faz suscitar sensações muito viscerais do ser humano. O disco fecha com a
brejeira “Saudade de Itapoã”.
Em águas calmas. É de Caymmi que nasce toda
a construção melódica da MPB moderna – esta uma das mais modernas e criativas
expressões musicais de todo o mundo no último século. Carmen Miranda conquistou
o planeta mostrando, com música dele, o que é que a baiana tem. Os grandes
intérpretes, de Nelson Gonçalves a
Gal Costa, de Elizeth Cardoso Nara Leão,
sempre reverenciaram sua obra. A bossa nova herdou-lhe as inusitadas
dissonâncias, o ritmo e o gingado nordestino do samba, além da engenhosidade
timbrística e harmônica e, largamente, o estilo sintético. Voz e violão. Foi o
exemplo que bastou para
João Gilbertoajudar a criar uma música universal como
a bossa nova. Tudo isso porque, mais do
que um músico que transpõe a realidade para sua arte, Caymmi é, justamente,
ator e personagem dessa própria realidade. Ele é sua própria arte. Morto em
2008, deixou uma obra relativamente pequena se comparado com outros
contemporâneos seus (Cole Porter, Noel Rosa, Carlos Gardel, Pixinguinha,
Ernesto Lecuonda). Mas sua música vai além das fronteiras da própria música; é
arte em sua mais pura essência. Simplesmente, Dorival Caymmi é como o mar
quando quebra na praia: é bonito. É bonito.
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FAIXAS:
01 - Quem Vem Pra Beira do Mar 02 - O "Bem" do Mar 03 - O Mar 04 - Pescaria (Canoeiro) 05 - É Doce Morrer no Mar 06 - A Jangada Voltou Só 07 - Lenda do Abaeté 08 - Saudade de Itapoã
(Todas de autoria de Dorival Caymmi)
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Caetano Veloso lança seu melhor disco desde os anos 70. Ops! Ato falho. Desculpem: não foi ele, e sim a também baiana, também tropicalista, também cantora Gal Costa com o CD “Recanto”, certamente seu melhor trabalho desde “Cantar”, de 1974. Porém, meu engano não foi à toa: assim como o mencionado LP dos anos 70, marcante obra do tropicalismo a qual Caetano dirigira e dera o norte de todo o trabalho, este novo projeto repete a fórmula engendrada pela dupla: Gal pondo seu belo canto a serviço de uma ideia coesa e verdadeira e Caetano com a batuta, produzindo e concebendo.
As semelhanças vão além do formato, uma vez que, a princípio, o colorido e tropical “Cantar” – cujo repertório inclui, entre outros compositores, quatro canções de Caetano –, parece não ter nada a ver com o obscuro e ruidoso “Recanto”, totalmente construído com novas composições do “mano Caetano”. “Recanto Escuro” (assista ao vídeo abaixo), sua mais nova obra-prima – que entra para o time de “Sampa”, “Gema” e “Trilhos Urbanos” – abre o disco dando o tom soturno e introspectivo que perfará boa parte do restante do disco. Uma melodia quase invariável, bela e triste, sem refrão. Seca. Letra de reflexão, de lamento, como que ecoada de um recanto escuro de onde saem confissões vasculhadas na alma tanto dele quanto dela. Mas o que poderia ser feito só ao violão e voz, ganha, no arranjo eletrônico texturado de Kassin, uma cara de peça da vanguarda erudita, um Stockhausen, um Xenakis, um Varèse. Absolutamente genial!
O tom de vanguarda, ora com ares de Velvet Underground, ora Brian Eno, ora Silver Apples, perpassa todo o disco, dando-lhe um caráter moderno e duro, que responde ao estilo introspectivo da maioria de suas faixas, como o rock “Cara do Mundo”, a bossa-modernista “Autotune Auterótico” e a genial eletro-monofonia “Neguinho”, um 9 Inch Nails menos pesado mas tão corrosivo quanto que remete também ao krautrock de Neu! e Faust. Clima sujo que encaixa totalmente com a letra, mordaz e ferina. Caetano solta o verbo com sentenças como: “Neguinho compra 3 TVs de plasma, um carro GPS e acha que é feliz”, ou ainda: “Neguinho quer justiça e harmonia para se possível todo mundo. mas a neurose de neguinho vem e estraga tudo”. No rim.
Belas também a bossa com pitadas eletrônicas, “Mansidão”, a mais “Gal” de todas, e “Segunda”, um xote só ao cello e prato de cozinha, totalmente acústico. Mas outra surpreendente é “Miami Maculelê”, um funk carioca estilizado na qual o ouvido apurado de Caetano consegue extrair uma das coisas que sempre me chamaram atenção neste estilo dito vulgar e pobre musicalmente, que é a intenção de abrasileirar o ritmo estrangeiro. O funk carioca não é só a batida funkeada do rap, pois contém, no repique da batida, uma pitada de samba, o que, nessa salada toda, acaba por remeter aos sons e danças africanos e indígenas da raiz brasileira, uma embolada, um coco, um batuque, um... maculelê.
As referências ao período heróico da MPB não ficam só em Gal, mas em Caetano e na Tropicália como um todo. E é aí que se dão as semelhanças entre o histórico “Cantar” e o atual “Recanto”. Se antes Rogério Duprat ou Guilherme Araújo eram os maestros que davam corpo aos arranjos , agora é o jovem Kassim que destila seus computadores para cumprir esta função. Outra autoreferência está em “Tudo Dói”, que dialoga com “Lindoneia”, do Tropicália 1 (1967) ao transmitir o mesmo sentimento de depressão de uma mulher solitária (não sem querer, “Lindoneia” também tinha sido dada a uma intérprete cantar, Nara Leão).
Venho notando certo furor quanto a este Caetano rocker e tecnológico, que, desta vez, não se concretizaram em críticas, mas em elogios. Um pouco porque, com Gal interpretando tão bem, obviamente, os méritos são muito dela. Porém, novamente parece que Caetano nada de novo contra a corrente, pois os que elogiaram não parecem saber por que o fazem, uma vez que estranham algo que não é de hoje, basta ter um pouquinho de interesse – ou coragem. A parceria com Kassin, por exemplo, vem desde o pouco comentado “Eu não peço desculpa”, dele e de Jorge Mautner (2002). A veia experimental e vanguardista, igualmente, vem desde o concretista “Araçá Azul” (1972) e está claramente em músicas como a parafraseada “Doideca” (brincadeira com o termo “dodeca-fonia”), do CD “Livro” (1997), ou no “Rap Popcreto”, do Tropicália 2 (1993).
O fato é que gostei por demais de “Recanto”. Outro dia, em conversa com outro colaborador deste blog, meu primo Lúcio Agacê, ele me ponderou algo com certa razão. Para ele, o fato de a “finada” Gal voltar dando um salto tão grande diante daquilo que vinha conseguindo produzir se deve exclusivamente a Caetano, alguém que, além de um amigo generoso, é um cara que está sempre se renovando. Concordo se comparado com a fraca Gal que veio degringolado nos anos 80 e se instaurou na mediocridade nos 90. Mas tropicalista é tropicalista. Se compararmos àqueles primeiros idos dela, “Gal” (1969), “Fa-Tal” (1971), “Índia” (1973) e, principalmente, “Cantar”, seu ápice, a musicalidade não está muito diferente. Mais avançada em certos aspectos, menos explosiva do que antes, mais high-tech em texturas; porém a Gal de “Recanto” recupera a Gal daquela época - mesmo com 40 anos de atraso.
Num ano de um ótimo Chico Buarque novo, de um surpreendente Criolo e de um elogiado Lenine, 2012 começa também com uma nova Gal recantando-se. Antes tarde do que nunca.