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segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

The Blue Mitchell Quintet - “Down With It!” (1965)

 


"Hoje quero dizer à cidade de Selma, hoje quero dizer ao estado do Alabama, hoje quero dizer ao povo da América e às nações do mundo, que não estamos prestes a dar a volta por cima. Já estamos em movimento. A verdade Dele está a marchar."
Martin Luther King, no discurso de 25 de junho de 1965 ao final da Marcha de Selma a Montgomery

Alguns seres humanos pisam sobre a Terra de tempos em tempos para que o mundo, em permanente crise, cure-se ao menos um pouco de suas chagas. Jesus, Da Vinci, São Francisco, Buda, Madre Teresa e Gandhi são desses iluminados que parecem descer de outro plano para virem fazer a diferença em meio aos mortais. Porque, claro, eles não morrem nunca. É o caso de Martin Luther King Jr., o pastor batista e ativista político norte-americano que viveu menos de 40 anos para deixar não só o justo legado de reivindicação pelos Direitos Civis de seu país, pelo qual se tornou um ícone, como, mais do que isso, um exemplo de resistência negra e de igualdade para todo o mundo, o qual nunca mais foi igual depois de sua passagem pelas bandas terrenas. De 1955 a 1968, quando foi covardemente assassinado, Dr. King transformou todos os lugares no qual pisou através da palavra e do exemplo.

O jovem Blue Mitchell viveu isso. Como milhares de norte-americanos negros, o trompetista e compositor de jazz e R&B nascido em Miami via na figura de Luther King um sopro de esperança e mudança social tão necessária a um país marcadamente desumano e desigual para com pessoas como ele. Mitchell, no entanto, ao contrário de muitos de seus pares soterrados pelo preconceito, tinha um canal para exprimir seu assombro e admiração: a música. Em “Down With It!”, de 1965, seu 11º da carreira e segundo pela Blue Note, pela a qual havia trocado sua então gravadora Riverside recentemente, não apenas avisa já no significativo título (algo como "abaixo tudo isso!", referindo-se ao racismo, à violência, à segregação) como tematiza um dos mais célebres momentos da trajetória de Luther King: a marcha sobre a cidade de Selma até Montgomery, no abertamente segregador estado do Alabama, pelo direito dos negros norte-americanos ao voto. 

O disco, lançado em julho daquele ano, é claramente tocado por este acontecimento, ocorrido menos de três meses antes e que significou, depois do revoltante Domingo Sangrento, no dia 7, a primeira grande vitória pelos direitos civis da população negra nos EUA duas semanas depois da repressão policial que comoveu o país e o mundo. Tamanho é o impacto positivo sobre Mitchell do feito de Luther King e suas centenas de corajosos correligionários, que o fato lhe inspira um blues alegre, composto em notas altas na escala. Nada estranho a quem traz o estilo musical de raiz no nome. “March on Selma” não só contraria a compreensível seriedade geralmente dada a um tema tão pesado e triste como este como, principalmente, demostra como pessoas como Mitchell se sentiram diante daquele momento histórico e tão simbólico para suas vidas. Era uma conquista pela cidadania, pelo direito de ser quem se é. Por isso, merecia mesmo que se comemorasse – até porque, talvez pressentindo que naquele mesmo ano o presidente Johnson acataria a reivindicação, mas também que, três anos dali, a celebração poderia acabar a qualquer instante com um tiro.

Bastaria, mas “Down...” não se resume somente a “March...”. Há ainda outras maravilhas do quinteto de Mitchell. "Hi-Heel Sneakers" abre o álbum num jazz-funk inspiradíssimo. Todos se esmeram e mostram de pronto a que vieram: Gene Taylor, ao baixo; Aloysius Foster, na bateria; Junior Cook, no sax tenor; e um talentoso jovem pianista que se tornaria um dos maiores nomes do jazz contemporâneo de todos os tempos: Chick Corea, com apenas 24 anos à época. Na linha do Lee Morgan e Herbie Hancock vinham realizando naquele meado de anos 60 ao introjetarem o groove pop de James Brown às linhas melódicas do hard bop, Mitchell ousa em “Hi-Heel...” para, também desta forma, valorizar as raízes negras da música.

Dr. King liderando a famosa Marcha sobre Selma, que tocou profundamente Mitchell

Já “Perception” muda todo o clima, tornado a ambiência mais contemplativa e lírica. O dedilhado do piano, claramente inspirados na bossa nova, denota um Corea já totalmente familiarizado com as harmonias jobinianas as quais aprofundaria como band leader junto a sua mezzo brazuca banda Return to Forever alguns anos depois. A bateria de Foster, cujo ritmo puxado na borda da caixa é igualmente brasileiríssimo, faz uma tabelinha afinada com o gingado do piano e do baixo de Taylor. Os sopros não ficam para trás, contudo. Perfeitos na fluidez do chorus e na elegância dos solos, primeiro Mitchell e depois Cook.

Não podia faltar ao menos uma balada no repertório, especialidade dos be-bopers da linhagem de Cannonball Adderley, Earl Bostic e Horace Silver e como foi Mitchell. "Alone, Alone, and Alone", com seus solfejos lânguidos e suplicante de trompete, faz-se a melhor e única companhia para quem quer ficar na sua sofrendo por um amor. “One Shirt”, por sua vez, exercita com maestria a linguagem do hard bop sobre um antigo tema do ragtime. Já em “Samba de Stacy” Corea e Foster retomam a química para um tema ainda mais gingado e tipicamente brasileiro. De sonoridade mais aberta e vibrante que “Perception”, no entanto, a música encerra o disco no clima de positividade que Mitchell fez questão de imprimir desde a capa de Reid Miles, a qual traz uma foto em p&b estourada de uma mulher de feições afro-americanas sorrindo. Dr. King havia triunfado.

Na semana em que os Estados Unidos celebram o Dia de Martin Luther King, um dos poucos feriados nacionais do país, este dia 17, “Down...” é mais do que um dos melhores discos de Blue Mitchell e uma trilha sonora de uma época áurea do gênero musical mais norte-americano de todos, mas também um registro socioantropológico de quem vivenciou e elaborou um acontecimento social transformador. Os feitos e a existência de figuras como Luther King são tão intensas que perduram eternamente, e a música certamente um dos mais poderosos veículos para esta perpetuação. O mundo nunca esquecerá de Martin Luther King Jr., e Blue Mitchell, testemunha ocular da história, colabora lindamente com este legado universal.

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FAIXAS:
1. "Hi-Heel Sneakers" (Robert Higginbotham) – 8:23
2. "Perception" (Chick Corea, Blue Mitchell) – 5:41
3. "Alone, Alone, and Alone" (Terumasa Hino) – 7:45
4. "March on Selma" (Mitchell) – 6:16
5. "One Shirt" (William Boone) – 7:30
6. "Samba de Stacy" (Boone) – 5:59

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

sábado, 15 de janeiro de 2022

cotidianas #741 - "Labirinto"




arte: warrakloureiro
Não haverá nunca uma porta. Já estás dentro.

E o alcácer abarca o universo
E não tem anverso nem reverso
Não tem extremo muro nem secreto centro.

Não esperes que o rigor do teu caminho
Que fatalmente se bifurca em outro,
Que fatalmente se bifurca em outro,
Terá fim. É de ferro teu destino

Como o juiz. Não creias na investida
Do touro que é um homem cuja estranha
Forma plural dá horror a essa maranha

De interminável  pedra entretecida.
Não virá. Nada esperes. Nem te espera
No negro crepúsculo uma fera.


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"Labirinto"
Jorge Luis Borges
(tradução de Augusto de Campos)

quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

"Cry Macho", de Clint Eastwood (2021)

 


Muita paciência com esse filme. Claro, se você apenas olhá-lo como filme por si só, vai se decepcionar. Mas se olhar com uma visão mais ampla sobre a carreira de Clint Eastwood, tudo que a figura dele como ator representou, e o que ele quer desmistificar agora, aí está o real valor do filme.

"Cry Macho" em si não consegue apresentar uma história, que nos prenda. A maioria dos personagens não tem carisma, ali pelo meio o longa fica extremamente parado, se arrasta, e isso tudo sem falar nas diversas cenas que são resolvidas com conveniências bem forçadas.

A grande chamada para você ir olhar o filme é, de certa forma, uma ligação com os westerns em geral ou a filmografia de Clint (focada na fase dele como ator). Aí sim, toda a desconstrução do personagem, que resolvia tudo no braço, para quem as mulheres eram apenas conquistas, agora tem que resolver tudo no diálogo, se falta força, resta experiência, o respeito com as mulheres, auxiliando até nos afazeres domésticos. Que mudança!

 Essa proposta de abordar uma figura que é extremamente importante para os filmes de faroeste de uma maneira diferente, dialoga com os dias atuais e tenta mostrar que o cowboy pode vencer tudo na força, menos o tempo. Junto  a isso, a ressignificação da figura do “macho”, são elementos  que fazem o longa ter algo para mostrar, e talvez até marcar na carreira de Clint, embora seja inegável que poderia ser muito melhor conduzido.

Até quando Clint não acerta ele é bom.


por Vagner Rodrigues