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quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

"Ela", de Spike Jonze (2013) e "Nebraska" de Alexander Payne (2013)






A solidão é tema de dois dos filmes que concorrem ao Oscar e que tem um jeitinho diferente de ser. O primeiro é "Ela", do Spike Jonze, que fez, entre outras coisas, "Quero Ser John Malkovich" (1999) e "Adaptação" (2002). Joaquin Phoenix (maravilhoso como sempre) é Theodore, um escritor de cartas no futuro que instala um novo Sistema Operacional em seu computador que tem a voz de Samantha (Scarlet Johanssen, incrível). Com o passar do tempo, Theodore, que tenta se recuperar de uma separação, acaba se apaixonando pela voz e pela "personalidade" deste SO autodenominado Samantha. Tudo isso filmado em Xangai e Los Angeles, duas das cidades mais poluídas e desumanas do planeta. Aliás, é isso que Jonze – autor do roteiro – quer mostrar: a substituição das relações pessoais pela tecnologia. Ao sair do filme, sentei num café e fiquei olhando as pessoas ao redor e quase ninguém conversava. Mas todo mundo teclava. Interessantes são os personagens Amy (Amy Adams arrasando de novo!) e Charles (Matt Letscher). Eles são os únicos amigos de Theodore, mas, quando se separam, Charles vira monge budista (uma referência explícita aos amigos de Jonze, os Beastie Boys, cujo integrante falecido, Adam Yauch, também praticava o budismo).  

O caso de amor entre Theodore e Samantha tem todos os ingredientes de um affair "normal". Ou seja, paixão, sexo e ciúme. Até que Samantha descobre que pode "falar" com várias pessoas ao mesmo tempo e, até mesmo, se apaixonar por elas. Não conto mais para não estragar a surpresa, mas Jonze demonstra que ainda tem fé no ser humano.

O segundo filme que lida com a solidão de uma maneira absolutamente diferente é "Nebraska", mas um grande filme de Alexander Payne, diretor de "Eleição" (1999), "As Confissões de Schmidt" (2002) e, especialmente, "Sideways - Entre Umas e Outras" (2004). Um típico road-movie, o filme conta a busca de Woody Grant (Bruce Dern, coroando uma carreira errática, porém com mais altos que baixos) por um milhão de dólares que está convencido que ganhou. Tanto incomoda a mulher Kate (June Squibb, impagável) e o filho David (Will Forte, demonstrando não ser apenas comediante do programa "Saturday Night Live"), que este resolve atravessar dois estados com o pai para buscar o prêmio em Lincoln, Nebraska. A partir daí, Payne vai criando um mundo que ficou parado no tempo. Woody e David vão parar em Hawthorne, cidade natal do idoso. É claro que todo mundo fica sabendo do prêmio e desperta a cobiça de quase toda a população.

A decisão de Payne por filmar em P&B reforça a sensação de vazio e de abandono. Aqui sim temos "50 Tons de Cinza"! A jornada vai se desenvolvendo, mas a solidão e a alienação de Woody em relação ao mundo exterior vão piorando. E também se instala a comunicação entre pai e filho, sempre complicada pelo alcoolismo de Woody. Aquelas paisagens áridas se transformam numa metáfora das relações entre os personagens. A solidão e o desespero das pessoas estão na ganância e na inveja dos "amigos" que Woody deixou em Hawthorne. Um belo e melancólico filme.



terça-feira, 17 de setembro de 2013

Public Enemy - "It Takes a Nation of Millions to Hold Us Back" (1988)



"Vocês esqueceram que fomos trazidos para cá,
fomos roubados do nosso nome,
roubados de nossa língua.
Perdemos nossa religião,
nossa cultura, nosso Deus
...e muitos de nós, pelo modo de agir,
temos também perdido nossas mentes."
Khalid Abdul Muhamed
(introdução de "Night of Living Baseheads")




O Public Enemy poderia ser considerado apenas mais um grupo de rap/hip-hop não fossem alguns pequenos diferenciais: o primeiro deles é um vocal poderoso, quase troante do imponente Chuck D, um rapper com recursos vocais, inteligência e consciência política e social como poucas vezes se viu até então no meio; o segundo, um MC carismático, Flavor Flav, altamente original, dono de interpretações singulares e um bordão  extremamente marcante, aquele seu "yeeeaaaaahhh, boy!!!", cheio de veneno e malicia; o terceiro, um time de produção, o Bomb Squad, extremamente criativo a antenado, sempre em busca dos samples e colagens mais criativos e improváveis, complementados é claro, por outra das grandes razões, a quarta delas, que é a mão de um DJ altamente técnico e criativo, diferenciado no seu âmbito, o lendário Terminator X. Tem ainda o impacto, as letras, a politização, a contundência, as sonoridades, e aliado a isso ainda, um certo gosto pelo peso e pelo barulho, que particularmente muito me agrada. Junte tudo isso e temos o Public Enemy. Provavelmente o melhor grupo do gênero que já visitou este planeta.
Todas essas características, marcas e virtudes podem ser encontrados no seu excelente segundo álbum "It Takes a Nation of Million to Hold Us Back", de 1988, que fez definitivamente o mundo da música cair de joelhos por eles ali pelo finalzinho dos anos 80. Artistas dos mais diversas, dos mais variados gêneros como Sepultura, Slayer, declaravam sua admiração pela banda, sua música era tema de abertura de filme ("Fight the Power" em "Faça a Coisa Certa"), até o garoto do "Exterminador do Futuro 2" exibia durante todo o filme uma a camiseta com o logo da banda. O mundo enfim se derretia pelos "Inimigos" e a influência deles foi igualmente arrebatadora, quase imediata, estabelecendo uma linha para grupos como Beastie Boys, House of Pain e Cypress Hill e revolucionando a maneira de se fazer hip-hop.
A sirene de "Countdwon to Armaggedon", vinheta ao vivo que abre o disco, anuncia que algo de realmente sério está para acontecer e efetivamente isso se confirma já a partir da primeira música, a porrada "Bring the Noise" que se não é barulhenta em si, é tão potencialmente pesada que veio a inspirar uma nova versão posterior com a participação da banda Anthrax, aí sim, mais suja e guitarrada. Mas a versão do disco não fica devendo nada, sendo também extremamente pesada à sua maneira, com batida marcante, vocal agressivo e letra contundente como de costume.
A embalada "Don't Believe the Hype", apesar do tom descontraído, vem na sequência destilando veneno contra aqueles que, segundoa banda, se esforçam em criar uma imagem negativa dos negros; "Mind Terrorist", de base repetida sem ser chata, soando como uma guitarra swingada, é um show à parte do excepcional Flavor; e a arrebatadora "Louder than a Bomb" é, verdadeiramente, tão poderosa quanto uma bomba, tanto sonoramente quanto em conteúdo.
"Show'Em Watcha Got" vem com um sample de sax, muito jazz-funk, da Lafayette Afro Rock Band, num outra performance vocal espetacular dos dois com a ajudinha sagrada do mestre Terminator X nas picapes; a alucinante "She Watch Channel Zero?!" que a segue é uma pancada sonora, evidenciando bem o tal gosto pelo peso que eu referi anteriormente, com uma guitarra enfurecida, sampleada da banda Slayer, sobre uma programação de bateria perfeita e que garante o peso, e um vocal destruidor de Chuck D. Abrindo com uma gravação de um discurso do ativista negro, americano covertido ao islamismo, Abdul Muhammad, e apoiada basicamente num recorte  repetido de um sample de sax, "Night of the Living Baseheads", traz um vocal agressivo e uma posição firme sobre os usuários de drogas, especialmente o crack. "Black Steel in the Hour of Chaos" tem uma notável base construída sobre um recorte de piano; "Security of the First World" foi um achado da banda, numa mixagem feita a partir de uma música de James Brown ("Funky Drummer"), que de tal forma foi feliz e perfeita a ponto de inspirar os mais variados artistas, como Lenny Kravitz em "Justify my Love" (gravada por Madonna), My Bloody Valentine em sua "Instrumental nº 2", e tantos outros, a reproduzi-la.
"Rebel Without a Pause", traz a justa e merecida reverência e invocação do nome do DJ no refrão, quando ele responde à altura com scratches matadores; a impetuosa "Prophets of the Rage" traz outra daquelas espetaculaes dobradinhas entre Flavor e Chuck, numa integração vocal impressionante; e "Party for Your Right to Fight", outro clássico do grupo, uma variação do título "(You Gotta) Fight for Your Right (to Party!)" dos Beastie Boys, fecha o disco com embalo, ritmo, atitude e grande estilo.
Não fosse por alguns 'pequenos detalhezinhos' podia ser mais um álbum de rap, podia ser só mais um grupo de hip-hop qualquer, só mais um trecho de outra música emprestado, mais uma mixagem, mais um DJ, mais um vocalista... Podia ser. A não ser pelo fato de que todos esses detalhes fazem toda a diferença.
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FAIXAS:
1. "Countdown to Armageddon" 1:42
2. "Bring the Noise" 3:45
3. "Don't Believe the Hype" 5:19
4. "Cold Lampin' with Flavor" 4:17
5. "Terminator X to the Edge of Panic" 4:31
6. "Mind Terrorist" 1:21
7. "Louder Than a Bomb" 3:38
8. "Caught, Can We Get a Witness?" 4:53
9. "Show 'Em Whatcha Got" 1:56
10. "She Watch Channel Zero?!"  3:49
11. "Night of the Living Baseheads" 3:14
12. "Black Steel in the Hour of Chaos" 6:23
13. "Security of the First World" 1:20
14. "Rebel Without a Pause" 5:02
15. "Prophets of Rage" 3:18
16. "Party for Your Right to Fight"
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Ouvir:
Public Enemy - "It Takes a Nation of Millions to Hold Us Back"


Cly Reis

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

“Imprensa Cantada Segunda Edição: Tribunal do Feicebuqui” – Tom Zé (2013) e “Abraçaço” – Caetano Veloso (2012)



Se para todos os tropicalistas a bossa nova foi o motivo propulsor para que seguissem pelo viés da música, o tropicalismo exerceu este poder de forma ainda mais penetrante no universo pop. Jorge Mautner, o pré-tropicalista igualmente influenciado pelos acordes dissonantes de João Gilberto  pelas harmonias engenhosas de Tom Jobim e pela poesia lírica de Vinícius de Morais, um dia afirmou: “não há possibilidade de escapar do tropicalismo”. Esta frase exaltadora, ainda mais vinda de alguém tão ligado ao movimento, poderia soar exagerada. Mas não é. A Tropicália sempre se mostrou uma corrente musical que, inteligentemente, soube se construir aberta, conectada com a pós-modernidade e sem preconceitos, abarcando todas possíveis e imagináveis referências da arte (música, cinema, artes plásticas, literatura, poesia, teatro) e do contexto sociopolítico, fazendo com isso a mais bem elaborada “geleia geral”, o mais bem acabado “lixo lógico” jamais assemelhado no mundo. Um produto tão abrangente e conceitualmente elaborado que, desde o histórico “Tropicália”, de 1968, que une ópera e Luiz Gonzaga, samba-de-roda e poesia concreta, Beatles  banda marcial, tudo-junto-e-misturado, nunca mais a música brasileira deixou de andar conforme seus passos. No exterior, a ação vanguardista do tropicalismo para com o que é produzido por estrangeiros deu-se de forma diferente mas não menos elogiosa: quando não bebem diretamente na música brasileira (Brian EnoTalking HeadsBeck, Suzane Vega, Björk, Jamiroquai, Beastie Boys, a repetem e/ou a referenciam mesmo sem saber que o estão fazendo.


Ao longo dos anos seus três principais compositores, os baianos Gilberto GilCaetano Veloso e Tom Zé,vêm provando isso através de suas obras, sempre um passo à frente do resto de todas as tendências, sejam cults ou populares. Os dois últimos mostram isso novamente em seus mais recentes trabalhos: o CD “Abraçaço” (2012) e o EP “Tribunal do Feicebuqui” (2013), respectivamente. A começar pela semelhança conceitual das capas (adoração ou achincalhamento?), cada um a seu jeito e com pontos em comum, ambos os trabalhos trazem a inovação estilística e a liberdade criativa que não se nota em nenhum outro lugar do planeta com a mesma integridade de proposição. 

Começando pelo de Tom Zé: surgido por um incidente em que o artista, ao autorizar que uma música sua fosse usada para um comercial da Coca-Cola, sofreu, por conta disso, críticas severas pelo Facebook de ditos “fãs“ acusando-o de “vendido ao sistema”, “Tribunal do Feicebuqui”, além do evidente sarcasmo do título, já nasce impregnado com essa tensão. Tensão, porém, que parece ter feito bem a Tom Zé como autor, pois o motivou a se reencontrar com a agudez de sua obra popular, e não uma obra popular marcada pela agudez. Estudado em música erudita pela linha da vanguarda, Tom Zé é, antes de tudo, um filho dos sons populares, das cantigas de cortejo, do samba urbano de Adoniran Barbosa, do canto das lavadeiras, dos trovadores nordestinos e, principalmente, da bossa nova. Porém, como todo músico ligado a avant-garde, vinha, nos últimos tempos, progressivamente, evoluindo para uma música excessivamente hermética em que o percentual de erudito se sobrepunha ao de popular – basta ouvir os dificílimos e chatos “Estudando o Pagode” (2005) e “Danc-Êh-Sá” (2006), excessivamente rebuscados e distantes do ouvinte. Processo igual ao que invariavelmente acontece com músicos desta linhagem, basta ver a obra de Pierre Boulez (do dodecafonismo ao serialismo ao estrtuturalismo figurativo) ou Stockhausen (do atonalismo à eletroacústica à música de influência “esotérica”).

O trabalho atual de Tom Zé, entretanto, parece, por causa da provocação gerada, tê-lo movido a buscar uma resposta inteligível (ou seja, popular) para que sua mensagem fosse compreendida e, bingo: de volta o Tom Zé inovador e ferino da MPB. E, claro, valendo-se da carga erudita e de seu vasto intelecto, que sempre foram muito bem vindos quando não usados para que só meia dúzia de intelectuais entendessem. É o caso de “Zé a Zero”, parceria com Tim Bernardes (“Mas será revolução?/ Pocalipse se pá?/ Quando ligo na TV/ Caio duro no sofá/ Ô rapá, qualé que é?/ A copa aqui co qui calé?/ É coco colá/ Aqui copa coca acolá/ Fazendo propaganda do Tom Zé”), e a brilhante faixa-título, em que se vale das contribuições do rapper Emicida mais Marcelo Segreto, Gustavo Galo e Tatá Aeroplano para compor um arranjo bastante moderno que alia hip-hop, rock, samba, atonalismo e xote com recortes e ferramentas eletrônicas. Nela, a resposta aos críticos vem em forma de puro sarcasmo: “Não ouço mais, eu não gostei do papo/ Pra mim é o príncipe que virou sapo/ Onde já se viu? Refrigerante!/ E agora é a Madalena arrependida com conservantes”. E, então, completa: “Bruxo, descobrimos seu truque/ Defenda-se já/ No tribunal do Feicebuqui/ A súplica:/ Que é que custava morrer de fome só pra fazer música?”

A briga com os internautas parece ter trazido de volta a Tom Zé, inclusive, a coerência com sua própria obra e não apenas uma reapropriação da mesma como um mero arremedo disfarçado de metalinguagem, caso dos últimos CD’s. Isso porque “Tribunal...” é a continuação de outro EP lançado pelo artista em 1999, o “Imprensa Cantada”. Na ocasião, Tom Zé sentiu-se na obrigação cívica de fazer um registro musical para outro incidente: o da inconcebível vaia proferida ao mestre João Gilberto durante um show em São Paulo em que este, indignado, discutiu com a plateia e encerrou a apresentação. A canção era "Vaia de Bêbado Não Vale", e nela está um dos pontos de ligação de todos os tropicalistas e que, inclusive, tem eco no novo CD de Caetano: a devoção à bossa nova: “no dia que a bossa nova inventou o Brasil/ No dia que a bossa nova pariu o Brasil/ Teve que fazer direito/ Teve que fazer Brasil...”. “Tribunal...” é coerente com este primeiro volume por colocar novamente em questão um assunto do momento em forma de crônica, ligeira e fugaz como a elaboração dada pela própria imprensa. Porém, desta vez, numa plataforma mais moderna da mídia, a internet, mais precisamente, o Facebook, este tribunal e palanque aberto e incontrolável, lembrando, até mesmo, uma outra antiga obra sua: a psicopatológica “Todos os Olhos”, de 1973.

Mas a melhor faixa do novo trabalho de Tom Zé é, justamente, a que melhor responde às descabidas críticas dos detratores, pois a pergunta a que a canção rebate indiretamente é: como Tom Zé teria se tornado “vendido” a uma multinacional se ele mesmo já a tinha, como bom tropicalista (ou seja, coerente com sua ideologia), se apropriado dela? Para além dos engajamentos xiitas, em 1979 (para esclarecimento daqueles que não têm memória ou não se preocupam em tê-la), quando trabalhava para a agência DPZ, de Washington Olivetto, como publicitário, Tom Zé criara para a marca de guaraná Taí, da “bendita” Coca-Cola, um jingle em que, muito “tropicalistamente”, reelabora o clássico cantado por Carmen Miranda (ela, a própria pré-história da Tropicália) para vender o produto. Se falta memória e conhecimento aos críticos, pelo menos pesquisem um pouco antes de achincalhar! Será que esses que criticam sempre acharam que a estocada de “Parque Industrial” era apenas para a direita? A ver por este caso, ingenuamente, talvez sim. A atual versão de "Taí" , além de resgatada com muita pertinência – dando uma resposta melhor do que a própria carta de justificativa publicada por Tom Zé no Facebook explicando que o cachê seria doado à banda de sua cidade-natal, Irará, num ato um tanto descabido de autoculpabilidade, uma vez que não há culpa a se admitir –, traz cores novas ao arranjo que ele mesmo, metalinguisticamente, elaborou em 1992 em “The Hips of Tradition”, mantendo a base da melodia original e os ares de cantiga-de-roda que lhe atribiuíra naquela ocasião, porém, agora, aglutinando outros elementos pop, como rap e rock. Um destes elementos é outro ponto de convergência com “Abraçaço”, de Caetano: a apropriação do funk carioca. Sob uma base vocal que repete o tradicional: “tchum tshack tchum tchum tchum tchum tshack” do ritmo popularesco, Tom Zé reinventa a própria música de forma crítica e tropicalista na melhor acepção do gênero. 

O mesmo funk carioca serve de tema para "Funk Melódico"  de Caetano em seu “Abraçaço”. A música, de abertura quase idêntica a “Taí”, se desenvolve não para uma reelaboração modernista de uma marchinha, como na de Tom Zé, mas, sim, para uma textura eletrificada e até pesada. O expediente, que já havia sido utilizado por Caetano em outra obra recente, a faixa “Miami Maculelê”, a qual escrevera para Gal Costa em seu CD "Recanto" (2011), novamente estreita fronteiras com os ritmos africanos, mas agora de uma forma mais áspera. Se antes eram as danças afro-brasileiras que se aproximavam do repique e da cadência do funk carioca, agora é outro estilo provindo dos negros que ele estabelece paralelo: o rock ‘n’ roll. Sob um riff de guitarra arábico, efeitos de sintetizador e bateria pulsante, “Funk Melódico” é das melhores do disco, terceiro do músico com o grupo Cê, formado por Marcelo Callado, na bateria, Pedro Sá, guitarra, e Ricardo Dias Gomes, baixo. Se não o melhor da trilogia (gosto muito do homônimo à banda, de 2006, e menos do apenas regular “Zii et Ziê”, 2009), é, certamente, o mais coeso para a roupagem roqueira que esta formação imprimiu a suas composições. A guitarra de Sá dá um show, pesada e, num solo técnico e bem sacado, faz as vezes de cuíca. Esta referência não é à toa, pois Caetano constitui na letra uma interessante analogia com o samba de Noel Rosa, “Mulher Indigesta” (“Mulher indigesta você só merece mesmo o céu/ Como está no samba de Noel”), aproximando de uma forma bem original os dois ritmos pop vindos do morro do Rio: o de outrora, o batuque, e o de hoje, o funk.

O CD traz ainda outras joias, como “Um Abraçaço”, reggae-rock de linda letra, ao modo lírico-modernista de Caetano, e onde Sá, exuberante mais uma vez, nos presenteia com um solo rasgado e ruidoso ao estilo de Neil Young ou Kurt Cobain. Outra de destaque é “O Império da Lei”, samba com toque nordestino, que lembra em sua letra a atmosfera dos contos sertanejos de Guimarães Rosa e as canções-estórias de João do Valle, e que também impressiona pela sonoridade forte dos instrumentos de rock executando uma música que, normalmente, seria arranjada para um grupo de pagode, principalmente na combinação do metal da guitarra com o som cheio do tambor da bateria. Ainda, o alegre samba-reggae “Parabéns”, de refrão delicioso e pegajoso (“Tudo mega bom, giga bom, tera bom...”) e a biográfica “Um Comunista”, que relata de forma sensível e épica, num andamento lento e marcial, a história do revolucionário brasileiro Carlos Marighella. Nela, novamente Caetano e Tom Zé se reaproximam. Caetano, ao dizer, com o verbo no passado, que os “os comunistas guardavam um sonho”, conversa com “Papa Francisco Perdoa Tom Zé”, canção em que este último usa sarcasticamente a figura icônica do Papa, novo dentro do circo capitalista da sociedade moderna, para clamar por aquele que pode ser a única salvação em um mundo em que “a diferença entre esquerda e direita/ Já foi muito clara, hoje não é mais”. Numa marchinha que se transforma em rock ao final, Tom Zé ainda punge inteligentemente: “Papa Francisco vem perdoar/ O tipo de pecado que acabaram de inventar/ O povo, querida, com pedras na mão/ voltadas contra o imperialismo pagão”. Ou seja, tanto Caetano quanto Tom Zé expressam em figuras de estilo diferentes (um, pela metáfora; o outro, pela ironia) a mesma percepção desacreditada da atuação ideológica das esquerdas. (Não é difícil remontar a figura de Caetano contra a plateia no festival de 1968 ao lado dos Mutantes bradando: “Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder?”...)

Mas é quando o assunto volta a ser bossa nova que as parecenças conceituais entre os dois se tornam ainda mais visíveis. “A Bossa Nova é Foda”, disparado melhor música do álbum e talvez a melhor do ano no Brasil, é não um samba cadenciado, como fielmente Tom Zé o fez em “Vaia...”, mas, sim, um rock com riff minimalista e criativo em que o efeito do pedal wah-wah ressoa dois acordes em alturas diferentes, dando a sensação de movimento. Só mesmo um rock ‘n’ roll para dizer um elogio desta forma! A letra, além do costumeiro desbunde poético e filosófico típicos do Caetano inspirado de uma "O Estrangeiro", “Vaca Profana” ou “Uns”, traz a mesma ideia de Tom Zé de valorização da bossa nova e da pungência de sua assimilação no Brasil e no mundo, em que, como afirma, “lá fora o mundo ainda se torce para encarar a equação”, referindo-se à capacidade de unir diferentes referências musicais e socioantropológicas em um estilo tão sucinto e denso como o fez com maestria de alquimista “o bruxo de Juazeiro”, ou seja, João Gilberto. A semelhança com os versos da primeira “Imprensa Cantada” é direta: “E a Europa, assombrada:/ ‘Que povinho audacioso’/ ‘Que povo civilizado’”

Em “A Bossa Nova é Foda” Caetano ainda expõe outra ideia interessante em que é possível notar-se concordância com Tom Zé, que é o exemplo popular que a bossa nova legou. Quando diz que a velha bossa nova foi capaz de transformar o “mito das raças tristes” em “produtos” pop como os lutadores de MMA, os deuses olimpianos da era contemporânea, está apontando o mesmo que Tom Zé diz em “Vaia...”, de que, então apenas exportador de matéria-prima, “o grau mais baixo da capacidade humana”, “criando a bossa nova em 58/ O Brasil foi protagonista/ De coisa que jamais aconteceu/ Pra toda a humanidade/ Seja na moderna história/ Seja na história da antiguidade.” Tom Zé ratificava a importância social, histórica e antropológica da bossa nova para um país que passava, naquele ano, a exportar, como diz depois a letra, “o grau mais alto da capacidade humana”: a arte. O mesmo entendimento de Caetano.

Tanto “Tribunal...” quanto “Abraçaço” são dois grandes discos que valem a pena ao menos serem ouvidos com atenção e repetição, pois contêm muitas mensagens e percepções de dois artistas que nunca perderam a verve crítica e pensadora das coisas que os rodeiam. Concorde-se com eles ou não, goste-se deles ou não, o fato é que eles são, sim, muito coerentes com suas próprias obras e posturas, e isso é o que, visivelmente, mais indigna os críticos, pois não é por aí que eles podem ser criticados. Eu abertamente os admiro e não brigo com isso. Apenas discordo de Caetano em uma coisa: não é só a bossa nova: também ‘a Tropicália é foda’!


clipe oficial de “A BOSSA NOVA É FODA” - Caetano Veloso:




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FAIXAS “Tribunal do Feicebuqui":

1. Tribunal Do Feicebuqui (Marcelo Segreto/Gustavo Galo/Tatá Aeroplano/Emicida)
2. Zé A Zero(Tom Zé/Marcelo Segreto/Tim Bernardes)
3. Taí (Joubert De Carvalho/Tom Zé/Marcelo Segreto)
4. Papa Francisco Perdoa Tom Zé (Tim Bernardes/Tom Zé)
5. Irará Iralá (Tom Zé)

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FAIXAS “Abraçaco”:

1. A Bossa Nova é Foda
2. Um Abraçaço
3. Estou Triste
4. Império da Lei
5. Quero ser Justo
6. Um Comunista
7. Funk Melódico
8. Vinco
9. Quando o Galo Cantou
10. Parabéns
11. Gayana

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quinta-feira, 25 de julho de 2013

As 20 Melhores Músicas de Rock dos Anos 90

Terá sido "Smells Like Teen Spirit"
a melhor música dos anos 90?
Reouvindo uma das músicas que mais gosto do Nirvana, ocorreu-me: que outras canções de rock da década de 90 competiriam com ela? Já havia me batido essa curiosidade ao escutar outras obras da mesma época, mas desta vez a proposição veio com maior clareza de resolução. A música referida é “Serve the Servants”, que Cobain e cia. gravaram no último disco de estúdio da banda antes da morte do compositor e vocalista, o memorável “In Utero”, de 1993. Aí, interessou-me ainda mais quando percebi que o mesmo grupo, referência do período, encabeçaria a seleção. Pus-me, então, à gostosa prática de inventar uma lista: quais os 20 maiores sons de rock ‘n’ roll dos anos 90? Como critério, estabeleci que valem só composições escritas na década mesmo e sem produções contemporâneas de roqueiros veteranos, como Iggy Pop (“To Belong” podia tranquilamente vigorar aqui), The Cure (“Fascination Street”, que desbancaria várias) ou Jesus and Mary Chain (“Reverance”, como diz a própria letra, matadora). Quanto menos competir com versões definitivas para músicas mais antigas, como a de Johnny Cash para “Personal Jesus”, do Depeche Mode, ou a brilhante “The Man Who Sold the World” de David Bowie pelo Nirvana, em seu "MTV Unplugged in New York" .
Esta lista vem se juntar com outras que o clyblog  já propôs aqui (inclusive, a uma não de músicas, mas de álbuns dos anos 90) e que, como qualquer listagem que lida com gostos e preferências, é apenas uma janela (aberta!) para que outras elencagens sejam propostas. Querem saber, então, o meu ‘top twenty’ do rock noventista? Aí vai – e com muita guitarrada e em volume alto, como sempre será um bom e velho rock ‘n’ roll:

1 – “Smells Like Teen Spirit” – Nirvana (1991)


2 – “Lithium” – Nirvana (1991)
3 – “Unsung” – Helmet (1992)
4 – “Only Shallow” – My Bloody Valentine (1991)
5 – “Paranoid Android” – Radiohead (1992)
6 – “Gratitude” – Beastie Boys (1992)



7 – “All Over the World” – Pixies (1990)
8 – “Enter Sandman” – Metallica (1991)
9 – “Eu Quero Ver o Oco” – Raimundos (1996)
10 – “Wish” – Nine Inch Nails (1991)
11 – “Kinky Afro” – Happy Mondays (1990)
12 – "There Goes the Neighborhood" – Body Count (1992)
13 – “N.W.O.” – Ministry (1992)
14 - "Suck My Kiss" – Red Hot Chilli Peppers (1991)
15 - “Serve the Servants” – Nirvana (1996)
16 – "Jeremy" – Perl Jam (1991)
17 - “Army of Me” – Björk (1995)
18 - “Govinda” – Kula Shaker (1995)
19 - “Da Lama ao Caos” – Chico Scince e Nação Zumbi (1994)
20 - "Dirge" – Death in Vegas (1999)




sexta-feira, 28 de junho de 2013

100 Melhores Discos de Estreia de Todos os Tempos

Ôpa, fazia tempo que não aparecíamos com listas por aqui! Em parte por desatualização deste blogueiro mesmo, mas por outro lado também por não aparecem muitas listagens dignas de destaque.
Esta, em questão, por sua vez, é bem curiosa e sempre me fez pensar no assunto: quais aquelas bandas/artistas que já 'chegaram-chegando', destruindo, metendo o pé na porta, ditando as tendências, mudando a história? Ah, tem muitos e alguns admiráveis, e a maior parte dos que eu consideraria estão contemplados nessa lista promovida pela revista Rolling Stone, embora o meu favorito no quesito "1º Álbum", o primeiro do The Smiths ('The Smiths", 1984), esteja muito mal colocado e alguns bem fraquinhos estejam lá nas cabeças. Mas....
Segue abaixo a lista da Rolling Stone, veja se os seus favoritos estão aí:

Os 5 primeiros da
lista da RS
01 Beastie Boys - Licensed to Ill (1986)
02 The Ramones - The Ramones (1976)
03 The Jimi Hendrix Experience - Are You Experienced (1967)
04 Guns N’ Roses - Appetite for Destruction (1987)
05 The Velvet Underground - The Velvet Underground and Nico (1967)
06 N.W.A. - Straight Outta Compton (1988)
07 Sex Pistols - Never Mind the Bollocks (1977)
08 The Strokes - Is This It (2001)
09 The Band - Music From Big Pink (1968)
10 Patti Smith - Horses (1975)

11 Nas - Illmatic (1994)
12 The Clash - The Clash (1979)
13 The Pretenders - Pretenders (1980)
14 Jay-Z - Roc-A-Fella (1996)
15 Arcade Fire - Funeral (2004)
16 The Cars - The Cars (1978)
17 The Beatles - Please Please Me (1963)
18 R.E.M. - Murmur (1983)
19 Kanye West - The College Dropout (2004)
20 Joy Division - Unknown Pleasures (1979)
21 Elvis Costello - My Aim is True (1977)
22 Violent Femmes - Violent Femmes (1983)
23 The Notorious B.I.G. - Ready to Die (1994)
24 Vampire Weekend - Vampire Weekend (2008)
25 Pavement - Slanted and Enchanted (1992)
26 Run-D.M.C. - Run-D.M.C. (1984)
27 Van Halen - Van Halen (1978)
28 The B-52’s - The B-52’s (1979)
29 Wu-Tang Clan - Enter the Wu-Tang (36 Chambers) (1993)
30 Arctic Monkeys - Whatever People Say I Am, That’s What I’m Not (2006)
31 Portishead - Dummy (1994)
32 De La Soul - Three Feet High and Rising (1989)
33 The Killers - Hot Fuss (2004)
34 The Doors - The Doors (1967)
35 Weezer - Weezer (1994)
36 The Postal Service - Give Up (2003)
37 Bruce Springsteen - Greetings From Asbury, Park N.J. (1973)
38 The Police - Outlandos d’Amour (1978)
39 Lynyrd Skynyrd - (Pronounced ‘Leh-‘nérd ‘Skin-‘nérd) (1973)
40 Television - Marquee Moon (1977)
41 Boston - Boston (1976)
42 Oasis - Definitely Maybe (1994)
43 Jeff Buckley - Grace (1994)
44 Black Sabbath - Black Sabbath (1970)
45 The Jesus & Mary Chain - Psychocandy (1985)
46 Pearl Jam - Ten (1991)
47 Pink Floyd - Piper At the Gates of Dawn (1967)
48 Modern Lovers - Modern Lovers (1976)
49 Franz Ferdinand - Franz Ferdinand (2004)
50 X - Los Angeles (1980)
51 The Smiths - The Smiths (1984)
52 U2 - Boy (1980)
53 New York Dolls - New York Dolls (1973)
54 Metallica - Kill ‘Em All (1983)
55 Missy Elliott - Supa Dupa Fly (1997)
56 Bon Iver - For Emma, Forever Ago (2008)
57 MGMT - Oracular Spectacular (2008)
58 Nine Inch Nails - Pretty Hate Machine (1989)
59 Yeah Yeah Yeahs - Fever to Tell (2003)
60 Fiona Apple - Tidal (1996)
61 The Libertines - Up the Bracket (2002)
62 Roxy Music - Roxy Music (1972)
63 Cyndi Lauper - She’s So Unusual (1983)
64 The English Beat - I Just Can’t Stop It (1980)
65 Liz Phair - Exile in Guyville (1993)
66 The Stooges - The Stooges (1969)
67 50 Cent - Get Rich or Die Tryin’ (2003)
68 Talking Heads - Talking Heads: 77’ (1977)
69 Wire - Pink Flag (1977)
70 PJ Harvey - Dry (1992)
71 Mary J. Blige - What’s the 411 (1992)
72 Led Zeppelin - Led Zeppelin (1969)
73 Norah Jones - Come Away with Me (2002)
74 The xx - xx (2009)
75 The Go-Go’s - Beauty and the Beat (1981)
76 Devo - Are We Not Men? We Are Devo! (1978)
77 Drake - Thank Me Later (2010)
78 The Stone Roses - The Stone Roses (1989)
79 Elvis Presley - Elvis Presley (1956)
80 The Byrds - Mr Tambourine Man (1965)
81 Gang of Four - Entertainment! (1979)
82 The Congos - Heart of the Congos (1977)
83 Erik B. and Rakim - Paid in Full (1987)
84 Whitney Houston - Whitney Houston (1985)
85 Rage Against the Machine - Rage Against the Machine (1992)
86 Kendrick Lamar - good kid, m.A.A.d city (2012)
87 The New Pornographers - Mass Romantic (2000)
88 Daft Punk - Homework (1997)
89 Yaz - Upstairs at Eric’s (1982)
90 Big Star - #1 Record (1972)
91 M.I.A. - Arular (2005)
92 Moby Grape - Moby Grape (1967)
93 The Hold Steady - Almost Killed Me (2004)
94 The Who - The Who Sings My Generation (1965)
95 Little Richard - Here’s Little Richard (1957)
96 Madonna - Madonna (1983)
97 DJ Shadow - Endtroducing ... (1996)
98 Joe Jackson - Look Sharp! (1979)
99 The Flying Burrito Brothers - The Gilded Palace of Sin (1969)
100 Lady Gaga - The Ame (2009)

sexta-feira, 22 de março de 2013

Beck - "Odelay" (1996)




Um Homem (que perdeu a chance de ser) Célebre



"E aí voltaram as náuseas de si mesmo,
o ódio a quem lhe pedia a nova polca da moda,
e juntamente o esforço de compor alguma coisa ao sabor clássico,
uma página que fosse, uma só, mas tal que pudesse ser encadernada entre Bach e Schumann."
trecho do conto "Um Homem Célebre"
de Machado de Assis

De um modo geral, procuro nunca nutrir expectativas quanto a artistas. O que ele já fez e eu goste me basta, e o que vier de bom pela frente é lucro. Porém, a uma exceção me permito: Beck Hansen, autor do espetacular “Odelay”, de 1996. Sem exagero, Beck ficou ali-ali para parear com gênios da música norte-americana como Stevie Wonder, Gil Scott-Heron, Bob Dylan ou Tom Waits  mas, parecido com o personagem Pestana do conto “Um Homem Célebre”, de Machado de Assis, nunca superou a si mesmo – e provavelmente não o fará mais talvez por autobloqueio. Beck despontou na cena alternativa no início dos anos 90 já prometendo. Veio numa crescente e trouxe ao showbizz o excelente “Mellow Gold”, de 1994, difícil de superar. Mas ele superou. Para mim o maior disco da música pop da sua década, “Odelay” é uma obra radicalmente criativa, transgressora e crítica, um disco caleidoscópico que traz em si todas as referências musicais possíveis e imagináveis, num caldeirão sonoro de composição, execução e produção na mais absoluta sintonia.

A coisa toda já começa tirando o fôlego com “Devils Haircuit”, pós-punk com um riff repetitivo carregado de distorção, um sequenciador eletrônico propositadamente simplório e muitos, mas muitos samples, colagens, efeitos de mesa, tudo que se possa imaginar. Impressionante. “Hotwax”, na sequência, começa com uma viola caipira e muda direto para um inusitado rap-folk. E assim o álbum segue, pois tudo cabe nesta “desordem organizada” criada por Beck: folk, funk, blues, hardcore, rap, indie, soul.  As faixas são como uma montanha russa, pois tudo pode mudar a qualquer momento. E muda. Alta riqueza de texturas, sonoridades, ritmos, notações. Um barroquismo moderno esculpido por psicodelia e experimentalismo. Assim é “Lord Only Knows”, que inicia com um grito ensandecido e passa, como se nada tivesse acontecido, a uma balada folk desenhada pelos lindos canto e voz de Beck.

“Derelict”, densa e percussiva, tem um tom dark com seus elementos indianos e árabes, lembrando as peças étnico-pop de David Byrne e Brian Eno de "Remain in Light" e "My Life in the Bush of Ghosts". Já “Novacane”, outra magnífica, é um rock carregado cantado como hip-hop, com um baixo pesado e bateria marcada, ao estilo do new-rock inglês de Stone Roses e Primal Scream e um riff feito apenas na modulação da distorção da guitarra no amplificador, uma ideia estupenda. Porém, o que parece num primeiro momento uma execução de músicos cai por terra quando entra sem aviso um sample que substitui tudo, voltando, logo em seguida, ao andamento anterior. Ou seja: uma quebra que serve para mostrar que tudo era apenas um produto artificial. Para causar ainda mais espanto, a música, em sua parte final avança para uma tensão de ruídos que se transformam num ritmo de break, como que saído de um Nintendo, terminando deste jeito: noutra textura e absolutamente diferente de como começou. É como se Beck pusesse à prova o que é tocado e o que não é, pois em todo o disco é quase impossível definir isso com exatidão, como se fosse uma música feita de plástico.

Esse conceito de reciclagem está também em “Jack-Ass”, mas em forma de tributo, visto que, num lance, Beck homenageia dois mestres da música pop universal: Van Morrison e Bob Dylan. Do primeiro, ele sampleia a linda base de "It's All Over Now, Baby Blue", um clássico de Dylan que Morrison versara para o Them em 1966. E o mais importante: o faz sem parecer preguiça ou falta de criatividade, pois recria uma nova música – ao estilo Dylan, propositadamente – em cima da melodia de uma outra recriação, a do Them, num processo semiótico. “Where it’s At”, hit do disco, é mais uma brilhante. Inicia com o chiado de uma agulha sendo posta sobre um vinil, que dá lugar a um soul retrô originalíssimo com direito a scratchs, samples diversos, ruídos, microfonias e um refrão pegajoso.

Pra não deixar que a coisa desvirtue para uma palhaçada pretensamente “cabeça”, “Minus” vem mostrar que rock bom é rock básico e sem firula. Sonic Youth na veia: seca, às guitarradas, voz furiosa e ritmo punk mantido na linha do baixo, que rosna. Depois, “Sissyneck”, uma mistura de folk e eletrofunk, assonante e harmonicamente complexa, mas com um refrão saboroso e totalmente agradável ao ouvido. Já “Readmade” segue a linha de massa sonora, com muitos efeitos, texturas e trabalho de estúdio, descendo o tom do disco novamente como foi em “Derelict”. Sóbria, traz curiosamente em seu sample de destaque uma frase sonora de “Desafinado”, clássico de Tom e Vinicius na versão de Sérgio Mendes.

Quase terminando o álbum, Beck sai com outra joia: “High 5”. Um break dance ao estilo Afrika Bambaata em que não faltam scratches, efeitos de voz e, claro, guitarras pesadas. Referências aparentemente díspares convivem e se entrosam perfeitamente nesta faixa. Inicia com um violão na batida de bossa-nova, que, em seguida, dá lugar às vozes de Beck e outros rappers com vozeirão de negrão do Harlem. Lá pelas tantas, o andamento é interrompido para entrar um trecho de... “O Lago dos Cisnes”! Como se não bastasse, depois de voltar no que era e de uma breve incursão daquela mesma melodia com som de videogame barato que desfecha “Novacane”, Beck adiciona a “High 5” cuícas de samba, encontrando a tal “batida perfeita” que Marcelo D2 tanto procura mas sem precisar fazer marketing disso.

Toda essa variedade torna “Odelay” quase uma obra aleatória, uma “obra aberta”, como definiria Umberto Eco. Aí entra uma das grandes questões que o disco levanta: ele questiona o papel do músico moderno diante da tecnologia e das novas formas de interação social através das mídias. É impossível o músico hoje ter total autenticidade de sua obra, pois esta, mesmo que ele não queira, será afetada pelos efeitos externos da vida contemporânea. Trata-se de uma nova autenticidade, a das TVs cuspindo publicidades e Big Brothers, do lixo eletrônico, do lixo pornográfico, do lixo midiático, do lixo sonoro. É “a nova poluição”, termo que dá título a uma das mais geniais faixas do disco: um drum n’ bass, espécie de “Tomorrow Never Knows” pós-moderno, mantido numa base inteligente de guitarra e colagens sem receio de esconder as “sujeiras”. Ou seja, é possível escutar os remendos entre um sample e outro de propósito. Sinal dos novos tempos, em que o músico não pode mais esconder que sua música se vale de elementos que estão além dele próprio. É a “estética do arrastão”, como diria Tom Zé.

Fechando o disco, depois de todo esse arsenal de sons e ideias, Beck dá um novo recado aparentemente contraditório: o de que, se o papel do músico-autor ficou mais subjetivo hoje, não quer dizer que ele não tenha ainda espaço para compor “à moda antiga”. É isto que está incutido em “Ramshackle”: acústica, só nos violões, voz e percussão. Sem sequem qualquer efeito de computador. O que seria um final “tradicional”, num disco como “Odelay” se torna ainda mais transgressor.

Isso que Beck trouxe em “Odelay” não é necessariamente uma novidade. Miles Davis já anunciava tal fusão conceitual no final dos anos 60 com "Bitches Brew"  na mesma época, Milton Nascimento e a galera do Clube da Esquina, assim como os tropicalistas, já experimentavam toda essa musicalidade, só que com aparato técnico mais deficiente; Prince e David Bowie também já formularam com precisão essa química. Beck mesmo já mostrara muito disso no seu trabalho anterior, e os Beastie Boys já faziam tal mescla de estilos e referências numa roupagem moderna desde Paul’s Boutique, de 1989. Mas Beck apresenta tudo isso com uma maestria diferente, denso, original, além de manter um senso de ironia constante uma vez que interroga a fundo a sociedade de massas, seu massacre de informações e imagens, suas ideologias distorcidas, suas ideias que se tornam abstratas de tão sem sentido. E ele faz isso reciclando tudo que já fora produzido em música pop até então, gerando um produto pós-moderno incrivelmente bem acabado.

Depois de “Odelay”, Beck caiu na pior armadilha que um artista pode cair: a de supervalorizar a sua arte. Passou a fazer trabalhos sempre apontando para um nível técnico altíssimo, sem, contudo, concentra-se no que interessa: a alma da obra. Neste sentido, lembra o dilema de Pestana, do conto machadiano, que, descontente por compor apenas polcas, tentava, mesmo com o sucesso popular destas, produzir em vão uma obra “respeitável”, a qual, no entanto, não conferia com seu espírito. É parecido com o que aconteceu com Beck: por causa de uma ideia genuína bem executada, “Odelay”, ele passou a inverter a lógica, ou seja, a tornar forçadamente uma boa execução numa ideia genuína. Já deu várias provas disso, sendo a última em 2012, quando lançou seu novo disco. Só de partituras (!). Nada consumível ou próximo do público como foram seus triunfos com “Mellow Gold” e, obviamente, “Odelay”, que, se não tem substituto até hoje, é porque talvez ele mesmo, Beck Hensen, não se disponha a superá-lo. Pelo menos, é o que se percebe: enquanto Pestana tinha neura em se superar, Beck tem medo do autoenfrentamento.

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FAIXAS:
1 "Devils Haircut" – 3:14
2 "Hotwax" – 3:49
3  "Lord Only Knows" – 4:14
4 "The New Pollution" – 3:39
5 "Derelict" – 4:12
6 "Novacane" – 4:37
7 "Jack-Ass" – 4:11
8 "Where It's At" – 5:30
9 "Minus" – 2:32
10 "Sissyneck" – 3:52
11 "Readymade" – 2:37
12 "High 5 (Rock the Catskills)" – 4:10
13 "Ramshackle"  – 7:29

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vídeo de Where it’s At




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Ouça:




domingo, 30 de dezembro de 2012

Planet Hemp - "Usuário" (1995)




“Acenda um e ouça o que eu tenho a lhe dizer/
Esse é o Planet Hemp e
 não tenho o que esconder/

Fumo maconha sim, mas calma meu camarada/

Eles um dia vão ver que a lei estava errada.” 

versos de abertura de “Dig dig dig”



Chega a ser ridículo pensar hoje que, em 1995, mesmo ano em que o Brasil hipócrita achava engraçadinho os filhinhos-de-papai dos Mamonas Assassinas fazerem apologia ao bacanal e à felação para crianças (pra ficar em apenas dois exemplos incabíveis), os pretos da periferia carioca do Planet Hemp eram taxados de perigosos. Isso porque seu discurso não tinha a intenção de apenas vender falando qualquer baboseira apelativa, mas, sim, de ir à raiz do problema, sem meio-termo. Com palavras-de-ordem como “Legalize Já”, “Fazendo a sua cabeça” e “Aprenda a dizer não”, os caras fizeram um álbum revolucionário que quebrou barreiras sonoras e comportamentais no Brasil democrático e globalizado dos anos 90: “Usuário”. A bandeira não era só a da liberação da maconha, mas também da desigualdade social, da discriminação racial, da midiatização e da corrupção policial e política numa fala altamente engajada e denunciadora. Tudo com muita agressividade, articulação e pegada.
O Planet Hemp foi algo totalmente novo no mercado fonográfico mundial. A começar, tinha nada menos que três rappers como protagonistas. Um deles era o hoje popular Marcelo D2, então um verdadeiro prosador urbano, um poeta do subúrbio cuja lírica alia o grito de revolta do rap à malemolência consciente dos partideiros do samba. Igualmente, BNegão, dono de uma voz possante e ideias não menos, inteligentíssimo e mordaz. Para completar, Black Alien, outro feroz rapper-repentista. A banda se autodefinia como um Raprocknrollpsicodeliahardcoreragga, o que, na verdade, apenas mostra sua diversidade musical. Uniam com desenvoltura rap ao hardcore, funk, reggae, ragga, surf, punk entre outros, mas, como se não bastasse, ainda incluíam ritmos brasileiros. É inegável que se parecem com e não existiriam não fossem Rage Against the MachineBeastie BoysBody Count e Cypress Hill, mas essa levada de raiz é um grande diferencial do Planet não só no som, mas na maneira de cantar, no fraseado e nas letras.
Prova dessa gama de influências é a faixa inicial do disco: “Não Compre, Plante”, um funk-rock-soul que podia muito bem integrar algum dos volumes do Tim Maia Racional não fossem os scratches modernos do DJ Zé Gonzales, perfeitos e cirúrgicos como em todo o disco. Na sequência, “Porcos Fardados”, rap com batida sampleada de James Brown, um tiro de escopeta em forma de palavras contra a polícia. Além de citar um dos ídolos de D2 e da banda, Bezerra da Silva ("Você com o revólver na mão é um bicho feroz/ Sem ele anda rebolando e até muda de voz"), manda o recado no refrão: “porcos fardados: seus dias estão contados”.
Depois, a pesada e pegajosa “Legalize Já”, polêmico megasucesso que foi um dos responsáveis por fazer “Usuário” vender 150 mil de cópias. “Deisdasseis”, das melhores, é uma vinheta sustentada só nas vozes e no beat box mas que, pasmem!, não tem ritmo de rap, mas de baião. Sim! Parece um desafio nordestino, mas com sotaque de gurizada carioca (e, claro, com apologia à marijuana). Genial. Esta já emenda com “Phunky Buddha”, um rap-hardcore com scratches fenomenais e a ótima guitarra de Rafael Crespo, além de Bacalhau, na bateria, e Formigão, no baixo, segurando a base super bem – como, aliás, fazem em todo o disco.
“Maryjane”, outra ótima, alterna um hardcore rápido a um funk carregado. A diversidade sonora do grupo surpreende novamente em “Futuro do País”, que começa com um sample de pagode e o canto malandro de D2. A letra, crítica, põe o dedo na ferida, dizendo: “Mas eu queria somente lembrar/ que milhões de crianças sem lar/ São frutos do mal que floriu/ Num país que jamais repartiu (Pátria amada, Brasil)”. Isso, claro, não podia “terminar em samba”. Pois que uma guitarra distorcidíssima surge ao fundo até que, ao final da última estrofe, entra, como se estivesse socando, uma massa sonora de guitarras, baixo, bateria e samples, transformando-a num rock que parece as melhores e mais pesadas coisas do Ministry.
Outro hit, a clássica “Mantenha o Respeito”, traz um refrão poderoso, daqueles que incendeiam qualquer show. “Mutha Fuckin' Racists”, em inglês e bem ao estilo Body Count , alternando hip hop, heavy metal e hardcore, antecede a, para mim, melhor do disco e da banda. “Dig Dig Dig (Hempa)” é, sem dúvida, um dos clássicos do rock nacional. Primeiro que só rock não é a melhor definição. Ela começa com uma batida marcada de baião, até que, no primeiro refrão, muda radicalmente para um reggae. O ritmo nordestino retorna na segunda sessão de versos, mas, no refrão seguinte, surgem as guitarras possantes e pesadíssimas para formar um funk-rock de tirar o fôlego. Outra ideia genial é que a letra do refrão varia. No segundo, por exemplo, D2 cita nada mais, nada menos que versos de “Zumbi”, o clássico samba-rock do LP "Tábua de Esmeraldas"  de Jorge Ben, fazendo referência não só ao som do mestre, mas à negritude e à importância histórico-social do líder negro para o discurso contemporâneo do Planet.
Mudando totalmente a textura sonora apurada, o craque produtor Mario Caldato Jr. (corresponsável por toda a engenharia de estúdio dos Beastie Boys  pôs a banda ao vivo no estúdio para tocar a instrumental “Skunk”, com show de guitarras de Crespo e que ficou, propositalmente, com cara de faixa demo. “A Culpa É de Quem?” cai no rap novamente, e aí quem se destaca, além dos rappers, é Zé Gonzales, que varia o tipo de batida e os elementos sonoros. Para terminar, o hardcore acelerado “Bala Perdida”. Perfeita.
Afora as polêmicas, prisões e censuras que gerou, é evidente que “Usuário” trouxe à tona discussões então superficializadas ou até evitadas, denunciando a infinidade de coisas erradas que o sistema político do Brasil faz questão de manter para poder explorar. Dentro disso, mordazes e desafiadores, os rapazes do Planet Hemp foram muito além da imagem de adolescentes maconheiros querendo fumar sua cannabis sem parecer criminosos, pois colocaram na mesa uma série de questionamentos fundamentais para quem quer um mínimo de igualdade social em terras brasileiras. Lá pelas tantas, eles dizem: “Não vou ficar calado porque está tudo errado/ Políticos cruzam os braços e o país está uma merda/ Trabalho pra caralho e fumo minha erva/ E aí eu te pergunto/ A culpa é de quem?
E aí eu lhes pergunto: a culpa é de quem?

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FAIXAS:
1. "Não Compre, Plante!" 4:12
2. "Porcos Fardados" 3:06
3. "Legalize Já" 3:01 

4. "Deisdazseis" 0:46 
5. "Phunky Buddha" 2:50 
6. "Maryjane" 2:10 
7. "Planet Hemp" 0:26 
8. "Fazendo a Cabeça" 3:20 
9. "Futuro do País" 3:39 
10. "Mantenha o Respeito" 3:17 
11. "P... Disfarçada" 2:26 
12. "Speed Funk" 1:24 
13. "Mutha Fuckin' Racists" 3:45 
14. "Dig Dig Dig (Hempa)" 1:53 
15. "Skunk" 3:35 
16. "A Culpa É de Quem?" 3:48 
17. "Bala Perdida" 2:33 
18. "Sem título" (faixa oculta no final do álbum) 1:26

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vídeo de "Dig Dig Dig" - Planet Hemp


Ouça:

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Sean Lennon - "Into the Sun" (1998)


“Sean Lennon inteligentemente se posicionou entre o pop e o experimental, propondo uma ideia caleidoscópica como fizeram os multiculturais dos anos ‘90 Beastie Boys, Beck e Cibo Matto.” 
 Stephen Thomas

A estas alturas, segunda década dos anos 2000, já é possível identificar com clareza quais foram os grandes discos da última década do século passado, os anos 90. Depois dos anos 50, marco do nascimento do rock, dos explosivos e extrapolados ’60, dos psicodélicos e revoltados ’70 e dos criativos e inteligentes ’80, o que restaria à música pop nos ’90? Repetir-se? Não! Alguns artistas souberam recriar e até trazer coisas bem novas. "Broken" , do 9 Inch Nails, "Nevermind" , do Nirvana, ou "Loveless", do My Bloody Valentine, já elencados como Álbuns Fundamentais neste blog, são bons exemplos. “Moon Safari”, do Air, “Odelay”, do Beck, e “Big Calm”, do Morcheeba, provavelmente darão as caras por aqui ainda. Mas mesmo gostando mais de alguns destes, um que a mim marcou muito os anos 90 e com o qual me delicio a cada audição é “Into the Sun”, do cantor, compositor e multi-instrumentista Sean Lennon, o “filho do homem”.
“Into the Sun” é, simplesmente, apaixonante. De sonoridade sofisticada, experimental e com um toque artesanal, o CD de estreia deste abençoado ser – resultado da cruza de John Lennon com Yoko Ono – emenda uma pérola atrás da outra, numa explosão de criatividade e técnica. O referido ar “caseiro” não é à toa: exceto algumas participações, Sean compõe, produz, canta e toca todos os instrumentos. A delicada faixa-título – uma bossa-nova de rara beleza com direito à batida de violão a la João Gilberto – é a única em que divide o microfone, acompanhado de Miho Hatori, vocalista da banda Cibo Matto. A outra integrante deste grupo, a então namorada Yuka Honda, co-produtora e “musa inspiradora” da obra, dá sua contribuição com samples, programações e no vocal de “Two Fine Lovers”, um jazz-lounge funkeado ao mesmo tempo romântico e dançante, e de “Spaceship”, outra das melhores.
Uma peculiaridade que impressiona na música de Sean é a sua capacidade de inventar melodias de voz absolutamente belas. É o caso de “Home”, single do CD que rodava direto na MTV com o ótimo clipe de Spike Jonze. Por trás das guitarradas estilo Sonic Youth e da bateria possante do refrão, a melodia de voz é doce, linda, daquelas de cantar de olhos fechados pra saborear cada frase. Outra assim é “Bathtub”, um mescla de MPB com Beatles em que, novamente, Sean destila sua destreza com a palavra cantada, principalmente na parte final, onde se cruzam três melodias de voz apresentadas durante a faixa.
Eu sei, eu sei! É óbvio que a dúvida surgiria: afinal, a música Sean se parece com a de John? Como TUDO em música pop depois dos  The Beatles, sim; mas, surpreendentemente, menos do que seria normal pela consanguinidade. A voz, claro, lembra o timbre levemente infantil do beatle. Das músicas, “Wasted”, só ao piano e voz, e, principalmente, “Part One of the Cowboy Trilogy”, um country como os que John tinha incrível habilidade ao compor, remetem bastante. Mas fica por aí. No máximo, a parecença conceitual com álbuns do pai como “Plastic Ono Band” ou “Imagine” por conta da diversidade estilística – o que, convenhamos, não era uma característica só de sir. Lennon.
Outra marca de Sean é a composição no violão. Da ótima faixa de abertura, “Mystery Juice”, à balada “One Night”, passando pelas bossas – a já citada “Into the Sun” e “Breeze”, outra belíssima –, ele brande as cordas de nylon para extrair melodias muito pessoais e profundas. A mais intensa destas é, certamente, “Spaceship”, que começa só ao violão sobre ruídos eletrônicos e na qual vão se adicionando outros instrumentos e sons, até estourar em emoção no refrão, com guitarras distorcidas, bateria alta e a voz de Honda no backing. Ótima.
Mas a variedade musical de Sean não pára por aí. Depois de MPB, indie, country e balada, ele apresentaria ainda, se não melhor, a mais bem trabalhada música do álbum: “Photosynthesis”, um jazz-rock instrumental no melhor estilo Art Ensemble of Chicago. Puxado pelo baixo acústico, que mantém a base o tempo inteiro, tem samples, solos de flauta e de piano, até que, depois de um breve breque, a música volta com um impressionante solo de percussão latina e, emendando, um outro de trompete. Incrível! “Sean’s Theme”, mais um jazz, este mais piano-bar, fecha bem “Into the Sun”, que traz ainda “Queue”, um gostoso rock embaladinho que termina sob uma camada densa de guitarras, revelando, mais uma vez, a engenhosidade no trato com a melodia de voz.
Um “disco de cabeceira” para mim, que não canso de reouvir. Um baita disco de rock com a distinção de quem herdou o que de melhor seu pai tinha como gênio da música que foi: a sensibilidade artística.

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vídeo de "Home", Sean Lennon



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FAIXAS:
1. "Mystery Juice"
2. "Into the Sun"
3. "Home"
4. "Bathtub" (S. Lennon/Yuka Honda)
5. "One Night"
6. "Spaceship" (S. Lennon/Timo Ellis)
7. "Photosynthesis"
8. "Queue" (S. Lennon/Y. Honda)
9. "Two Fine Lovers"
10. "Part One of the Cowboy Trilogy"
11. "Wasted"
12. "Breeze"
13. "Sean's Theme"

Todas as músicas de autoria de Sean Lennon, exceto indicadas.
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Ouça: