me veio à mente,
segunda-feira, 24 de novembro de 2014
Lee Morgan – “The Sidewinder” (1964)
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segunda-feira, 17 de janeiro de 2022
The Blue Mitchell Quintet - “Down With It!” (1965)
Alguns seres humanos pisam sobre a Terra de tempos em tempos para que o mundo, em permanente crise, cure-se ao menos um pouco de suas chagas. Jesus, Da Vinci, São Francisco, Buda, Madre Teresa e Gandhi são desses iluminados que parecem descer de outro plano para virem fazer a diferença em meio aos mortais. Porque, claro, eles não morrem nunca. É o caso de Martin Luther King Jr., o pastor batista e ativista político norte-americano que viveu menos de 40 anos para deixar não só o justo legado de reivindicação pelos Direitos Civis de seu país, pelo qual se tornou um ícone, como, mais do que isso, um exemplo de resistência negra e de igualdade para todo o mundo, o qual nunca mais foi igual depois de sua passagem pelas bandas terrenas. De 1955 a 1968, quando foi covardemente assassinado, Dr. King transformou todos os lugares no qual pisou através da palavra e do exemplo.
O jovem Blue Mitchell viveu isso. Como milhares de norte-americanos negros, o trompetista e compositor de jazz e R&B nascido em Miami via na figura de Luther King um sopro de esperança e mudança social tão necessária a um país marcadamente desumano e desigual para com pessoas como ele. Mitchell, no entanto, ao contrário de muitos de seus pares soterrados pelo preconceito, tinha um canal para exprimir seu assombro e admiração: a música. Em “Down With It!”, de 1965, seu 11º da carreira e segundo pela Blue Note, pela a qual havia trocado sua então gravadora Riverside recentemente, não apenas avisa já no significativo título (algo como "abaixo tudo isso!", referindo-se ao racismo, à violência, à segregação) como tematiza um dos mais célebres momentos da trajetória de Luther King: a marcha sobre a cidade de Selma até Montgomery, no abertamente segregador estado do Alabama, pelo direito dos negros norte-americanos ao voto.
O disco, lançado em julho daquele ano, é claramente tocado por este acontecimento, ocorrido menos de três meses antes e que significou, depois do revoltante Domingo Sangrento, no dia 7, a primeira grande vitória pelos direitos civis da população negra nos EUA duas semanas depois da repressão policial que comoveu o país e o mundo. Tamanho é o impacto positivo sobre Mitchell do feito de Luther King e suas centenas de corajosos correligionários, que o fato lhe inspira um blues alegre, composto em notas altas na escala. Nada estranho a quem traz o estilo musical de raiz no nome. “March on Selma” não só contraria a compreensível seriedade geralmente dada a um tema tão pesado e triste como este como, principalmente, demostra como pessoas como Mitchell se sentiram diante daquele momento histórico e tão simbólico para suas vidas. Era uma conquista pela cidadania, pelo direito de ser quem se é. Por isso, merecia mesmo que se comemorasse – até porque, talvez pressentindo que naquele mesmo ano o presidente Johnson acataria a reivindicação, mas também que, três anos dali, a celebração poderia acabar a qualquer instante com um tiro.
Bastaria, mas “Down...” não se resume somente a “March...”. Há ainda outras maravilhas do quinteto de Mitchell. "Hi-Heel Sneakers" abre o álbum num jazz-funk inspiradíssimo. Todos se esmeram e mostram de pronto a que vieram: Gene Taylor, ao baixo; Aloysius Foster, na bateria; Junior Cook, no sax tenor; e um talentoso jovem pianista que se tornaria um dos maiores nomes do jazz contemporâneo de todos os tempos: Chick Corea, com apenas 24 anos à época. Na linha do Lee Morgan e Herbie Hancock vinham realizando naquele meado de anos 60 ao introjetarem o groove pop de James Brown às linhas melódicas do hard bop, Mitchell ousa em “Hi-Heel...” para, também desta forma, valorizar as raízes negras da música.
Dr. King liderando a famosa Marcha sobre Selma, que tocou profundamente Mitchell |
Já “Perception” muda todo o clima, tornado a ambiência mais contemplativa e lírica. O dedilhado do piano, claramente inspirados na bossa nova, denota um Corea já totalmente familiarizado com as harmonias jobinianas as quais aprofundaria como band leader junto a sua mezzo brazuca banda Return to Forever alguns anos depois. A bateria de Foster, cujo ritmo puxado na borda da caixa é igualmente brasileiríssimo, faz uma tabelinha afinada com o gingado do piano e do baixo de Taylor. Os sopros não ficam para trás, contudo. Perfeitos na fluidez do chorus e na elegância dos solos, primeiro Mitchell e depois Cook.
Não podia faltar ao menos uma balada no repertório, especialidade dos be-bopers da linhagem de Cannonball Adderley, Earl Bostic e Horace Silver e como foi Mitchell. "Alone, Alone, and Alone", com seus solfejos lânguidos e suplicante de trompete, faz-se a melhor e única companhia para quem quer ficar na sua sofrendo por um amor. “One Shirt”, por sua vez, exercita com maestria a linguagem do hard bop sobre um antigo tema do ragtime. Já em “Samba de Stacy” Corea e Foster retomam a química para um tema ainda mais gingado e tipicamente brasileiro. De sonoridade mais aberta e vibrante que “Perception”, no entanto, a música encerra o disco no clima de positividade que Mitchell fez questão de imprimir desde a capa de Reid Miles, a qual traz uma foto em p&b estourada de uma mulher de feições afro-americanas sorrindo. Dr. King havia triunfado.
Na semana em que os Estados Unidos celebram o Dia de Martin Luther King, um dos poucos feriados nacionais do país, este dia 17, “Down...” é mais do que um dos melhores discos de Blue Mitchell e uma trilha sonora de uma época áurea do gênero musical mais norte-americano de todos, mas também um registro socioantropológico de quem vivenciou e elaborou um acontecimento social transformador. Os feitos e a existência de figuras como Luther King são tão intensas que perduram eternamente, e a música certamente um dos mais poderosos veículos para esta perpetuação. O mundo nunca esquecerá de Martin Luther King Jr., e Blue Mitchell, testemunha ocular da história, colabora lindamente com este legado universal.
FAIXAS:
OUÇA O DISCO:
domingo, 27 de outubro de 2013
Grant Green - "Matador" (1964)
Acima, a capa original de 1964,
seguida da capa da reedição em CD
|
‘My Favourite Things’ de [John Col]Trane
com o mesmo conjunto.
Mas embora o grupo se aproxime da canção
com o mesmo estilo 6/8
e da forma como Coltrane a sentia,
não a reduzem aos essenciais acordes básicos”.
O jornalista e crítico musical Márcio Pinheiro uma vez afirmou, com toda propriedade, que tudo o que os grandes nomes da MPB (Maria Bethânia, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Gal Costa, João Donato, entre outros) produziram nos anos 70 é de ótima qualidade. É só pegar qualquer disco daquela época e ouvir que não tem erro. Infalível. Tudo favorecia para que tanta coisa boa acontecesse ao mesmo tempo e com um nível altíssimo de qualidade, o que ocorre de tempos em tempos conforme o cenário cultural, político, histórico e social de determinado local. Isso se aplica à produção de jazz norte-americana dos anos 40 a 60. Na época, gênios estavam a pleno (Miles Davis, Dizzie Gillespie, Charles Mingus, Duke Ellington), outros se estabeleciam rumo ao Olimpo (John Coltrane, Wayne Shorter, Herbie Hancock, Ornette Coleman) e, além destes, igualmente talentosos e sintonizados com aquela onda (Kenny Dorham, Joe Henderson, Lee Morgan, Freddie Hubbard, Sonny Rollins e mais centenas e centenas), não ficavam para trás em maestria e qualidade. Tudo conspirava a favor: retomada da sociedade civil no pós-Guerra; surgimento de uma nova classe afrodescendente e latina em fase de transformação sociopolítica; produções de várias lugares que se complementavam e se somavam; centros urbanos (Chicago, Nova York, Filadélfia, Los Angeles) suportando técnica e economicamente este contingente; encorpo da indústria cultural; e, o mais importante: o resultado de toda uma tradição musical, artística e antropológica trazida pelos negros da África e ressignificada na América que, agora, confluía de diversas formas e em quantidades amazônicas.
As gravadoras de jazz mantinham em seus portfólios artistas de primeira linha, mas, em especial, o Blue Note, principalmente no final dos 50 aos 60, era, esta sim, infalível. Tudo muito bom, sem exceção. A este selo pertenciam vários dos melhores jazzistas da época, e um deles era o guitarrista Grant Green. Com forte base no rhythm'n blues e com extremo domínio do bebop, além de ser também um espetacular solista em baladas, ele se junta, por força do destino, a McCoy Tyner, ao piano, Elvin Jones, bateria, e Bob Cranshaw, baixo – ou seja, trocando-se Chanshaw por Jimmy Garrison, dá a “cozinha” que gravou com Coltrane o antológico “A Love Supreme”, a segunda melhor banda de jazz de todos os tempos depois do quinteto de Miles dos anos 50, que tinha o próprio Coltrane na formação. Com eles, lança, em 1964, um disco cuja alcunha fala por si: “Matador”. Em apenas duas sessões (uma em maio e outra e junho, apenas cinco meses antes da gravação de “A Love Supreme”), conta, além da maestria desses músicos, com a mão apurada de Rudy Van Gelder na técnica, o alemão responsável pela operação de estúdio de 90% das históricas gravações de jazz da época, que afina a mesa de som de “Matador”. Igualmente, na arte da capa – mais uma particularidade dos selos de jazz, inclusive o Blue Note, que a valorizavam tanto quanto o conteúdo –, quem empresta seus traços em um desenho a nanquim de um esboço de Green empunhando a guitarra é ninguém menos que Andy Warhol.
Se fosse só isso, já seria legal. Mas aí vem o que interessa: música. Na faixa-título, Green abre o disco fazendo soar seu tom característico de dedilhado muito limpo ao ouvido, em que desliga os graves e agudos do amplificador e dá ganho nos alto-falantes. Ele exercita seu estilo técnico e habilidoso do R&B, porém colocando sempre a expressividade acima da perícia. Isso fica claro na linda escalada progressiva dedilhada com a suavidade do blues e em todo o enredo, desenvolvido com segurança e alma pelo quarteto. Aqui já se nota a predileção pelas quartas de Tyner, que dá saltos de três intervalos maiores acima da tônica da melodia, o que surpreende e mexe com o ouvinte. Também, tem a marcação balanceada e cheia de groove de Jones. Todos cobertos pelo baixo competente de Cranshaw. Soul-jazz da melhor qualidade.
Aí, preparem-se, leitores-ouvintes, pois vem uma das peças mais lindas que o abençoado jazz já cunhou. E a ligação de Green com Coltrane aqui se faz inequívoca. Não é apenas pela parceria com seus músicos de fé nem só pela contemporaneidade de ambos (naquele início de anos 60, o saxofonista era já uma lenda e talvez o maior astro de jazz vivo então), mas também de repertório e espírito. Tanto é que Green pinçou justamente o maior sucesso comercial de
Coltrane para uma gravação baseada não na original canção popular natalina de Hammerstein II e Rodgers, mas na versão marcadamente modal e particular criada por Coltrane: a obra-prima "My Favourite Things". Retomando a estrutura e o clima da faixa que Trane gravara quatro anos antes, Green simplesmente arrasa. Tyner e Jones, que compunham a banda de Coltrane na histórica sessão de 1960 (junto com Steve Davis, no baixo), aqui, sabem exatamente o que fazer. O piano, elegante e preciso no seu jogo modal em três tempos (meio tom acima que na versão clássica e em compasso ligeiramente mais acelerado); a bateria, puro ritmo em ataques sincopados da baqueta na caixa, rolos engenhosos e combinação constantemente diferenciada de pratos/bumbo/caixa. E Green... Ah! Este exala inspiração das cordas de sua Gibson em construções ágeis e luminosas não de modo a imitar Coltrane, mas, sim, de homenageá-lo. Os três, junto com Cranshaw, alternam lances de liberdade dissonante e politonalismo que atinge por vezes um epicismo quase sinfônico tamanha a sintonia. Não é exagero dizer que esta “My Favourite Things” só não é melhor que a de Coltrane – o que, convenhamos, é quase impossível, uma vez que se está falando de algo comparável ao "Bolero", a “For no One”, à Cavalgada d’"As Valquírias” e obras desse porte.
Green, por mais apurado que seja, é muito coração, pois sua técnica está sempre a serviço de uma música o mais pura possível, como um bom blues ou gospel. Tal qual Coltrane, ele evita os clichês, flutuando com expressividade dentro das escalas. “Green Jeans” é assim. Neste hard bop modal, a ágil e criativa mão esquerda de Tyner impressiona por seu lirismo, enquanto a direita modula e mantém a tônica. Jones faz a “cama”, dando ênfase na consistência do ritmo e na continuidade através dos pratos. Mas é Green quem brilha. Apreciador de jazzistas não apenas do seu instrumento, como Charlie Christian e Jimmy Raney, mas, principalmente, dos de sopro como Coltrane, refletia diretamente em seu fraseado o estilo reed style de tocar como os mestres Miles e Charlie Parker, a quem admirava especialmente. “Green Jeans” mostra bem isso, pois há momentos em que até parece que o solo está saindo de um sax alto ágil e suingado e não de uma guitarra. Mas é. Ao invés do stacatto (quando cada nota aparece destacada da seguinte), muito usado pelos guitarristas, usa o legato, ligando as notas de suas frases à maneira de um saxofonista.
“Badouin”, repleta de enlevos, traz as influências folclóricas que faziam a cabeça dos jazzistas da época. Seu riff carrega toques orientais, árabes e africanos num uníssono agudo de guitarra e piano, enquanto a bateria marca um ritmo tribal. Era o show de Elvin Jones só começando... A manutenção Tyner com o baterista é impecável, na medida certa, jogando a luz sobre o solista, mas sem se ausentarem do foco. Green, assim, improvisa acordes circulares e, às vezes, até repetitivos e hipnóticos, como os de um encantador de serpentes. O solo de Tyner é cheio de expressividade e classe. Já a marcação pontuada de Jones nos pratos e nos ataques de baqueta à caixa, ora fortes, ora suaves, antecipam seu único solo no disco. Mas que solo! Imponente, Jones vale-se de todo seu arsenal polirrítmico, dobrando compassos, variando volumes e extensões, combinando as texturas, salpicando sonoridades africanas e latinas. Um espetáculo. Depois, só restava mesmo voltar ao chorus e encerrar a faixa.
Finalizando o disco, num compasso um pouco mais ligeiro que uma balada tradicional, “Wives and Lovers”, clássico de Burt Bacharach, que ganha a sua talvez mais radiosa e definitiva versão no jazz. Longe do standart pop cantado por Frank Sinatra (lindamente, diga-se de passagem), “Wives...” recebe aqui outra roupagem, o que lhe dá uma nova vida. É um prazer inenarrável ouvir Grant Green executando o riff com toda aquela singeleza, movimento e sensualidade, num controle total de tempos e durações. Seu improviso traz lances de redemoinhos sonoros que enredam o ouvinte e que, logo, se resolvem numa nova e engenhosa solução, fazendo a música evoluir para um hard bop não menos romântico. Tyner, impecável como sempre; Chanshaw, escalonando com elegância; e Jones, mais uma vez inteligente e fluido, segura o ritmo no chipô e na vassourinha arrastando no couro da caixa, adensando o clima sensual e etéreo.
Apenas quatro faixas (considerando que “Wives...” foi incluída na edição em CD), mas que carregam todos os predicados do alto nível do jazz que a Blue Note produziu naquela fase de ouro. E mais do que isso: um disco coirmão da obra-prima “A Love Supreme”, quase que, junto a “Crescent”, do próprio Coltrane e também daquele mesmo ano, um ensaio de luxo para o que o gênio do saxofone iria revelar meses depois e com praticamente o mesmo time na retaguarda. O que dizer, então, deste disco de Grant Green? Numa palavra: “Matador.
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FAIXAS:
1. "Matador" (Green) – 10:51
2. "My Favorite Things" (Oscar Hammerstein II, Richard Rodgers) – 10:23
3. "Green Jeans" (Green) – 9:10
4. "Bedouin" (Pearson) – 11:41
5. "Wives and Lovers" (Bacharach, David) – 9:01
segunda-feira, 28 de agosto de 2017
Cannonball Adderley - “Somethin’ Else” (1958)
Uma revolução geralmente é precedida de algum marco precursor. Com obras-primas da arte musical isso também acontece. Na história do jazz, uma das principais revoluções ocorridas, a do jazz modal, promovida por Miles Davis em “Kind of Blue”, de 1959, talvez soe tão original que a faça parecer ter partido do zero. Porém, resultado da própria evolução do trabalho de seu autor – ainda mais quando se pensa na tetralogia da Prestige e, principalmente, em dois dos discos que o antecederam, “Ascenseur pour l'Échafaud” e “'Round About Midnight” –, é de se supor que tenha recebido também algum outro exemplo anterior. E, de fato, se há um álbum responsável por abrir caminhos em estética e conceito para o mais célebre disco do jazz da história, este é “Somethin’ Else”, do saxofonista Cannonball Adderley.
Realizado pelo selo Blue Note um ano antes de Adderley compor o sexteto de Miles na gravação de “Kind...”, “Somethin’...” conta, não por coincidência, com o próprio trompetista na formação. Adderley pede que a gravadora Columbia o ceda e concebe, assim, uma formação de banda rara e lendária, que tinha ainda o mestre Art Blakey, na bateria; Sam Jones, no contrabaixo; e Hank Jones, no piano. Todavia, o feito fazia-se sui generis, principalmente, porque Miles não se colocava como coadjuvante desde as clássicas gravações com o mito Charlie Parker, nos anos 40. Experiente e de espírito líder, Miles, então, naturalmente assume um papel mais do que de sideman, e, sim, o de quase um “guia espiritual”. Autor da faixa-título e responsável por ajudar a escolher o repertório, ele coprotagoniza ainda praticamente todos os solos.
Em “Somethin’...” estão algumas das maiores preciosidades dos estilos cool e hard bop, além de antecipar com clareza a elaboração harmônica do jazz modal, aperfeiçoada por Miles em “Kind...”. A estonteante versão de "Autumn Leaves" é o melhor exemplo disso. Perfeita sintonia dos sopros no chorus; bateria de Blakey criativa e variante; insinuante contrabaixo de Sam Jones; e o piano de Hank vivo e sonoro. É ele quem lança os acordes iniciais da canção. Isso, só para começar, pois a música avança mais um pouco e a primeira sessão de improvisos traz um dos mais inspirados solos de Miles de toda sua carreira. Que capricho! Assertivo e poético como um Louis Armstrong. O band leader Adderley, entretanto, não sucumbe, e emenda sua primeira participação com o lirismo que lhe é característico num extenso solo da mais alta sensibilidade. A bola volta para Miles, que retoma o toque pronunciado e cool. Mas não para finalizar, contudo. Hank também solta pérolas sobre as teclas, num solo de profunda elegância, que antecede um final falso. Parece que a faixa se encaminha para a conclusão, quando, sobre a base do chorus, Hank e Miles tornam a improvisar, criando aquele efeito do jazz modal de solos sobre uma base modulada. Um prenúncio do que Miles desenvolveria junto a outro pianista, Bill Evans, um ano dali. Tudo isso faz de "Autumn Leaves" um número histórico.
Outro standart do cancioneiro norte-americano, a clássica "Love for Sale", de Porter, também ganha feições muito próprias nas mãos da banda. A começar pelo piano, que novamente dá a largada, mas, aqui, diferentemente do arrojo da primeira, lírico e romântico. A banda entra e Blakey é quem determina a virada para um jazz bem blues marcado nas vassourinhas na caixa e intercalado por alegres incursões do piano. Miles, mais uma vez o centro, sustenta todos os lances de chorus, fazendo as pontes e “knees” previstos no arranjo. Porém, agora é de Adderley que saem os improvisos. Vigoroso, rico, blues. Hard bop na essência.
A faixa-título, um blues suingado, denota a preferência de seu autor, Miles, que, não por acaso, comanda-a do início ao fim. Primeiro, no solo, inteligente em sua economia, mas altamente significativo naquilo que expressa. Somente por volta de quase 3 minutos que Adderley aparece. E para fazer bonito com seu sax exuberante, clara tradição que liga Parker, Louis Jordan e Benny Carter. Interessante notar a sintonia do grupo: ali por 4 minutos, percebendo a intensidade do approach do saxofonista, Blakey acelera o ritmo, para logo desfazê-lo e voltar ao compasso de antes, tudo desenhado pelo baixo escalonado de Sam. A segunda metade de “Somethin’...” traz um bate-bola entre Miles e Adderley, no mínimo, memorável.
Noutra abertamente bluesy, "One for Daddy-O”, esta, mais sensual, evidencia-se de largada o viçoso jazz de Adderley. Impressionantes modulações be bop são extraídas do saxofone. Miles responde, fazendo aquilo que sabe com maestria: solar. Adderley, admirado com a expressividade do colega e mestre, disse certa vez sobre Miles: “Um solo reflete a maneira como ele pensa a composição, e o solo passa a ser a coisa principal”. Hank também dá sua contribuição antes de Adderley e Miles improvisarem novamente. Ao final, ouve-se Miles perguntando ao produtor Alfred Lion: "Era isso que você queria, Alfred?". Só podia ser.
A balada "Dancing in the Dark" traz um clima ainda mais sensual: escovinhas arrastando na caixa, solo comovido do sax, piano marcando delicadamente o compasso e o baixo quase desmaiando. A única em que apenas Adderley protagoniza é justamente a que, acertadamente, fecha o disco. Assim, independente de “Somethin’...” ter a cara de um disco dele ou de Miles, o fato é que se trata de um dos mais brilhantes da história do jazz, reconhecido pela uDiscoverMusic como o melhor álbum de todos os tempos da Blue Note, um dos 30 essenciais do jazz dos anos 50 pela JazzWise Magazine e um dos 15 recomendados pelo site AllAboutJazz em toda discografia jazz. Não é para menos, uma vez que a aura e a sofisticação que arrebatariam o mundo da música em “Kind...” já estavam lançadas aqui por Cannonball, que, com um tiro de canhão, fez o arremesso no ponto certo. Depois, foi só rolar a bola pra dentro.
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O relançamento em CD inclui a faixa bônus "Bangoon" ou "Allison's Uncle", este último, o título original dado pelo fato de a sessão de gravação ter sido feita logo após a esposa do irmão de Adderley (Nat) ter dado à luz à sua filha, Allison.
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sábado, 25 de abril de 2015
Di Melo - "Di Melo" (1975)
segunda-feira, 7 de dezembro de 2020
Joe Henderson - “Inner Urge” (1964)
Todo amante de jazz tem motivos para reverenciar o ano de 1964. Assim como o igualmente rico 1959, em que pelo menos dois discos revolucionários para o gênero foram concebidos – “Kind of Blue”, de Miles Davis, e “The Shape of Jazz to Come”, de Ornette Coleman - o quarto ano da década de 1960, em que a abismal leva de grandes músicos surgidos no pós-Guerra encontrava-se em plena forma, impressiona pela quantidade de obras da mais fina estampa. De Wayne Shorter a Albert Ayler, de Lee Morgan a Sun Ra, vários dos “feras” do jazz deixaram sua marca em 1964. Quem também o fez com igual competência e qualidade foi Joe Henderson. A obra em questão é “Inner Urge”, em que o saxofonista tenor norte-americano está acompanhado de um estelar time: Bob Cranshaw, baixo, Elvin Jones, bateria, e McCoy Tyner, piano. Praticamente, o trio que acompanhava John Coltrane havia anos (afora Cranshaw, que tinha no lugar Jimmy Garrison) e que, poucos meses dali, gravaria com este o talvez maior feito não somente daquele fatídico ano, mas de toda a história do jazz: “A Love Supreme”.
Quarto disco de Henderson tanto como band leader quanto pela Blue Note, sua primeira gravadora e que o havia contratado um ano antes, carrega, como o título diz, o sincero “desejo interior” de um jovem artista em plena atividade. Em menos de dois anos, o produtivo Henderson estava com sangue nos olhos, visto que já tinha emendado outros três álbuns, sendo um deles o memorável “In ‘Out”, daquele mesmo milagroso 1964. Motivos havia, contudo, para que estivesse com todo esse gás. Embora fosse recente a carreira solo, sua trilha na música já vinha de pelo menos 15 anos antes. Dono de um estilo que oscila entre o austero e o onírico com a mesma naturalidade que seu sax salta de escala, Henderson sempre foi um “cabeção”. Estudou flauta, baixo e saxofone na Wayne State University e, mais tarde, composição no Kentucky State College, não raro destacando-se pela criatividade e aplicação, Dotado da rara habilidade de “ouvido absoluto”, era capaz de emular com perfeição seus mestres Charlie Parker, Dexter Gordon e Yusef Lateef só ao escutá-los. Nem a passagem pelo exército norte-americano, entre 1960 e 1962, foi capaz de freá-lo, visto que não parou com a música neste tempo e até ganhou prêmios tocando para os colegas soldados. Ao sair das forças armadas, sua arma passou a ser seu instrumento e o território a conquistar seria o centro nervoso do jazz, Nova York, para onde se mudou imediatamente após a baixa.
As experiências vividas e a sensibilidade musical de Henderson lhe legaram uma visão artística naturalmente abrangente, que o condicionaram a transitar do classicismo do be-bop à ousadia da avant-garde ou à complexidade harmônica da bossa nova num passo. Em “Inner”, esta ânsia de um “espírito abstrato”, como classificou o artista visual russo Wassily Kandinsky, referência da arte abstrata, está cristalina na multiplicidade e no ecletismo dos números musicais que o compõem. A perfeita engenharia sonora de Rudy Van Gelder e a produção invariavelmente caprichada de Alfred Lion estendem o tapete para a entrada da impecável faixa-título, melodiosa e instigante. São 12 minutos de passeio modal de uma turma acostumada com esse expediente desde que Miles e Dave Bruback o cunharam poucos anos antes. A alta química entre os integrantes da banda propiciam a Henderson o exercício de seus aforismos sonoros com liberdade. Enquanto Tyner dedilha notas líricas e dissonantes, Cranshaw espalha os tons graves com sabedoria e Jones... bem, Jones arrasa do início ao fim na combinação caixa/pratos e, em especial, no magnífico solo que executa quase ao final, quando não deixa o ouvinte respirar.
“Isotope”, na sequência, mantém o clima suspenso, porém agora num hard-bop colorido, suingado, que contrasta com o abstratismo da faixa inicial. Decréscimo nenhum, contudo. Espelhando-se na elegância de Dex Gordon, Henderson volta às raízes bop. Em seguida, um novo tema e uma nova guinada. As influências hispânicas, que tanto agradavam os jazzistas desde os anos 50 (a se ver pelo “Jazz Flamenco”, de Lionel Hampton, ou “Sketches of Spain”, de Miles) dominam a excelente “El Barrio”. Traços, no entanto, desenhados com os pincéis abstratos do autor, que a impregna de estilo e personalidade. A começar pelos acordes iniciais, quando as notas graves do sax de Henderson emanam caracteres típicos das terras madrilenhas. Jones, atinado, articula um compasso sincopado, enquanto o piano de Tyner e o baixo de Cranshaw insinuam movimentos airosos. Lá pelas tantas, de tão absorvido, Henderson, ao lançar um forte solfejo, chega a afastar-se do microfone, diminuindo a captação do som, o que sabiamente não foi “corrigido” por Van Gelder. Afinal, como no flamenco, é assim que “El Barrio” tinha que soar: orgânica. Tema absolutamente sensual e acachapante.
Não é exagero dizer que “You Know I Care”, versão para a canção de Duke Pearson, é das mais belas baladas do cancioneiro jazz – ao menos, do abastado ano de 1964 com certeza. Mudando totalmente de estilo – ou melhor, recorrendo a mais uma de suas facetas –, Henderson encarna o mais romântico dos jazzistas e faz ouvirem-se Coleman Hawkins, Lester Young, Gordon e... Joe Handerson também, é claro. Para um disco que, mesmo em apenas cinco faixas, não cansa de surpreender, não é de se estranhar que até o standart “Night and Day” venha igualmente cheio de originalidade. A leitura post-bop de Henderson e sua banda para o clássico de Cole Porter lhe dá um caráter sinuoso, que ora percorre os acordes-base com elegância, ora lhe acentua dissonâncias e modernidade modal. Uma reestruturação melódica que contribuiu para um olhar totalmente diferente deste popular song dos anos 30.
Por cinco anos, desde que entrara para a Blue Note, um ano antes de realizar “Inner”, até 1968, Joe Henderson apareceu em quase 30 álbuns do selo, sendo apenas cinco lançados sob o seu nome. Independentemente da assinatura, o que importava mesmo era espraiar a sua arte por tanto tempo restrita apenas aos conservatórios, aos palcos e até às trincheiras. Porém, de toda esta larga produção, “Inner” é o trabalho que melhor define sua alma exploratória e inquieta. Se "na hora marcada, as necessidades tornam-se maduras" aos "espíritos criativos", Henderson deu um jeito de não perdê-la. Por isso, por algum motivo mágico, 1964 parecia mobilizá-lo especialmente, assim como a outros de seus pares. Tanto é que, além deste e de “In ‘Out” – um lançado em abril e outro em novembro –, Henderson também integra os grupos de outros 10 projetos dentro daqueles 12 inesquecíveis meses, a maioria clássicos como ”Song for My Father", de Horace Silver, ou “The Sidewinder”, de Morgan. Pena que, tanto para Henderson quanto para todos os músicos e amantes do jazz, inexoravelmente 1º de janeiro de 1965 um dia chegou.
segunda-feira, 30 de janeiro de 2023
As Minhas 14 Preferidas de Suzanne Vega (16, na verdade)
Tem convites que são mais presentes que pedidos. Falar de Suzanne Vega já é algo que me apraz. Afinal, não é de hoje - desde os anos 80, pra falar a verdade, lá se vão mais de 30 anos - que admiro imensamente a obra desta artista californiana dona de um estilo muito próprio e sofisticado de música pop. Já a resenhei em duas ocasiões nos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS aqui do blog, aliás. E o convite? Montar uma lista com 14 músicas preferidas do cancioneiro de Miss Suzanne. Um pedido mais que uma ordem, ainda mais vindo de outro fã da artista, meu amigo igualmente radialista André Buda, para a montagem de um programa especial O Método Buda de Controle Mental na Internova Rádio Web. Aí, falar de Suzanne Vega e montar lista não é tarefa: é juntar dois prazeres.
Muito já compartilhamos André e eu impressões em relação a ela e sua encantadora música. Parte delas, pois, está nesta listagem. A melodista incrivelmente criativa. A poeta e songwritter folk. A feminista consciente e existencialista. A cantora da voz de cristal e da dicção perfeita. A conhecedora de todos os caminhos para uma composição pop e cantarolável. A exímia violonista. Enfim, características que vão aparecendo no decorrer das selecionadas e que denotam, todas a seu modo, uma arte pop altamente elegante.
Porém - e isso é uma das premissas que levou André a me convidar a colaborar tanto quanto o gosto que comungamos - o óbvio foi evitado. Ou seja, o megahit "Luka" e até "Tom's Diner", que tocou bastante no início dos anos 90 com o remix dance feita pela dupla inglesa D.N.A., não estão contemplados. Adoro ambas as músicas, aliás, mas Suzanne é muito mais do que elas. Está aqui, sim, uma playlist de 16 canções na ordem cronológica de suas feituras que, para além de transmitirem essas características as quais mencionei anteriormente (bem como outras possíveis de serem percebidas), o que se dá naturalmente, refletem a versatilidade da autora ao longo dos quase 40 anos de carreira e dão, assim, a dimensão de seu talento e de sua rica obra.
Ah! E deram 16 faixas no final, pois convenci André de socar mais duas além das que tinha pedido. Coisa de fã, consentimento de outro fã. Mesmo assim fiquei me coçando pra incluir outras amadas, como "Book of Dreams", "Night Vision", In Liverpool", "Unbound", "Pornographer's Dream"... Paciência. Mas a quem estiver lendo esta seleção, além das escolhidas, recomendo fortemente a audição destas aqui também, quando não de seus discos completos.
Seja folk, bossa nova, ethnic, blues, jazz, punk, rap, tecno ou clássica. Tudo está na voz e no violão de e uma das artistas mais completas da música pop. Uma pequena deusa, que nem todos acham ou sabem. Mas André e eu concordamos com isso, isso que importa.
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O emblemático primeiro disco |
A veia literata da filha de professora e poeta num folk “coheniano”. Suzanne no primeiro disco dizendo a que veio.
Quanta elegância musical dessa mulher, credo! Folk-soul-pop com pitadas de bossa nova - sem ser nenhum deles propriamente dito.
3. "Tired of Sleeping" (de “Days of Open Hand”, de 1990)
Perfect pop pra começar arrasando o terceiro disco. Daquelas perfeitas em tudo: letra, arranjo, estrutura, canto, poesia.
O ótimo "Days...", com 3 na lista |
5. "Fifty-Fifty Chance" (de “Days of Open Hand”, de 1990)
A mais beatle de todas de Suzanne, e ainda com arranjo de Philip Glass. Que luxo.
6. "Rock in This Pocket (Song of David)" (de "99.9 F°", de 1992)
Pedrada feminista pra arrancar o ótimo 99.9. Suzanne se renova em alto estilo.
7. "Blood Makes Noise" (de "99.9 F°", de 1992)
Eletrorap com o fluxo sanguíneo como batida, é isso mesmo? Genial (e um baita clipe)
De novo a África correndo nas veias. Sensual pra caralho.
Literalmente, encarnada. Das melodias misteriosas de Suzanne. Triste, triste! Mas linda, linda! E como toca violão, como canta com afinação e assertividade, cruzes!
Essa vem lá de dentro da selva, de tão orgânica que é. Começo arrasador do melhor disco de Suzanne.
11. "Caramel" (de “Nine Objects of Desire”, de 1995)
Sinceramente: só uma grande compositora pra fazer uma bossa nova com essa elegância e personalidade sem ser brasileira
12. "Thin Man" (de “Nine Objects of Desire”, de 1995)
Outro samba da brasileirinha Suzanne. Quanta sensualidade - e letra na primeira voz feminina.
Das mais tocantes de sua quase irretocável obra. Que letra, que melodia! Quanta beleza!
Filme brasileiro "Jenipapo" |
A única que não é de sua autoria, mas o motivo é grandioso, pois é parceria de Philip Glass com Antonio Cícero. Tá bom?
15. "Penitent" (de "Songs in Red and Gray", de 2001)
Arte do Blue Note "B&C" |
A música de Suzanne já é charmosa, agora imagine gravada pelo selo Blue Note?! E como sabe abrir um disco, né?
Daniel Rodrigues