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segunda-feira, 18 de julho de 2022

Lee Morgan - "Lee-Way" (1961)

 

"Todos ficavam espantados: tinha um garoto que tocava como um veterano e tinha grandes ideias. Ninguém restava dúvida 
de que ele seria uma estrela." 
Charli Persip, baterista da orquestra de Dizzie Gillespie

Mais de uma vez já falamos aqui sobre a trágica morte de Lee Morgan, dada a narrativa novelesca que envolve o crime (foi alvejado pela própria esposa, Helen) como, principalmente, pela prematuridade da perda deste grande talento da história do jazz. Contudo, não há o que lamentar. Nos pouco menos de 34 anos que viveu e dos 15 em que produziu, desde seu surgimento através da orquestra de Dizzie Gillespie e da banda Art Blakey, na segunda metade dos anos 50, até sua partida, que completa 50 anos em 2022, o trompetista edificou uma das mais notáveis obras da discografia jazz moderna. Com o aval e a qualidade técnica do selo Blue Note, Morgan deu a largada na carreira solo em 1956 e só parou no fatídico 19 de fevereiro de 1971. 

Embalado, ele começava os anos 60, seus mais produtivos, com mais de 10 discos entre próprios e em participações protagonistas. Tanto que, no primeiro ano daquela década, não tardou a vir primeira obra-prima: “Lee-Way”, gravado em 1960 e lançado um ano depois. Acompanhado de um supertime que contava com Jackie McLean, no sax alto; Bobby Timmons, ao piano; Paul Chambers, baixo; e o professor Blakey na bateria, Morgan explora todas as vertentes que o influenciaram e compunham o cenário do jazz da época. Hard bop, cool, modal e be-bop e até uma passadinha pela vanguarda: tudo com absoluta fluidez e, às vezes, simultaneamente. É o que se vê na brilhante faixa de abertura, "These Are Soulful Days". Obra de um front man maduro, apesar dos apenas 22 de idade à época, seu arranjo não apenas se constitui desses vários estilos como, principalmente, é possível vê-los hibridizando-se naturalmente. O ouvinte começa escutando um blues elegante, suingado, mas sem perceber, dentro do próprio riff, já está submerso num clima melancólico de cool jazz, quase sensual. Repete-se o chorus e, ao invés de seguir na mesma linha, o compasso cai para um ritmo marchado, dando uma pitada de avant-garde.

E quem começa solando? Morgan? Não: Chambers. Craque do baixo, o homem que já havia entrado para os anais do jazz ao tocar em “Kind of Blue”, de Miles Davis, um ano antes, desfila um estiloso solo. O qual, aliás, grosso modo ele não termina, visto que mantém seu suingue por debaixo do improviso seguinte. De Morgan agora? Não: de Timmons. Mais um lindo solo carregado de alma blueser aproveitando as escalas de Lá e Si. Quem pensa que agora será a vez do band leader, está enganado. Parceiro generoso, Morgan concede a McLean o espaço para uma contribuição carregada de sentimento para, finalmente, entrar em campo. Que improviso com desenvoltura e graça!

"These...” mostra que Morgam sempre soube muito bem abrir um disco, pegando pelo ouvido quem escuta já de pronto. O que se veria em “The Sidewinder” e “Serach for the New Land”, iniciadas com suas memoráveis faixas-título, ou em “The Gigolo”, com outra célebre, “Yes I Can, No You Can't”. Depois, em tese, o trajeto é mais facilitado, certo? Não é esta a escolha do “caminho de Lee”. Em clima de trilha de filme policial, "The Lion and the Wolff" tem no piano um martelado em notas graves extremamente soul e na bateria sincopada de Blakey a base para outro tema excepcional de “Lee-Way”. Morgan, se se conteve na abertura para dar evidência a seus companheiros de banda, aqui é ele quem domina, solando com avidez por 2 min 30’. Mas todos têm espaço. E quando se diz “todos”, é o grupo inteiro, mesmo. Depois de TImmons, Chambers ensaia seu solo e passa a bola para o mestre Blakey dar um show com as baquetas em seu estilo de tocar carregado de africanidade. Mais um hard-bop exemplar.

Mais longo número do disco, com pouco mais de 12 min, a animada "Midtown Blues" traz novamente o blues, literalmente, para o centro das atenções. Outro riff contagiante, outro show de interpretações, outra mostra de sinergia de toda a banda. De autoria de McLean, é Morgan, no entanto, quem dá o sopro inicial em um improviso que joga luz sobre os velhos mestres do Mississipi. O saxofonista é quem entra em seguida com a autoridade de criador que conhece os atalhos. Com justiça, aliás, McLean é o que mais se demora performando, preenchendo quase 5 min da música, que traduz em sons a dinâmica agitada da região central nova-iorquina. Timmons também não deixa por menos ao piano, entregando notas ligeiras e agudas. Fica a Chambers a incumbência de fazer a última parte antes do chorus finalizar com a energia lá em cima.

Se a elegância sempre foi uma marca de Morgan, já o era assim nesta fase inicial de carreira, a se ver por "Nakatini Suite". O riff talvez engane, pois o desenrolar da música revela um ritmo intenso, exigindo habilidade e ligeireza dos músicos. Depois de Morgan e Timmons, é Blakey novamente quem “apavora” em inebriantes rolos na caixa, surdo e tom-tom tomados de técnica e habilidade, em que dá para perceber sua desenvoltura no chimbal e a forma como segura a baqueta, movimentada pelo pulso e não pelo bíceps como fazem clássicos bateristas igual a ele.

Neste ano em que se completam cinco décadas sem o enfant terrible do jazz, nada melhor do que, ao invés de lembrar de sua morte, fazer o raciocínio contrário: lembrar da aurora de Lee Morgan. “Lee-Way” é para muitos a mais bem-acabada de suas obras do começo da carreira e, quiçá, de toda a marcante discografia do músico. O álbum que deu o caminho que ele seguiria marcando com seus passos firmes e intrépidos enquanto esteve sobre o planeta blue.

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FAIXAS:
1. "These Are Soulful Days" (Calvin Massey) - 9:25
2. "The Lion and the Wolff" (Morgan) - 9:40
3. "Midtown Blues" (McLean) - 12:09
4. "Nakatini Suite" (Massey) - 8:09

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Daniel Rodrigues

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Herbie Hancock – “Maiden Voyage” (1965)



"O esplendor de um navio marítimo em sua viagem inaugural".
Hancock,
sobre o que lhe inspirou
a compor a música “Maiden Voyage”



Ano passado, quando escrevi sobre um dos discos de jazz que mais admiro, "Empyrean Isles", de Herbie Hancock, que completava 50 anos de seu lançamento, deixei subentendido que, em 2015, outro dele não só mereceria também uma resenha quanto, igualmente, chegava ao cinquentenário. Pois a dourada década 60 para o jazz norte-americano, quando centenas de músicos produziam às pencas e com qualidade jamais vista, obviamente, contaminavam este pianista, tecladista, compositor e arranjador, um dos maiores jazzistas de todos os tempos e importante artífice da cena ocorrida cinco décadas atrás. Prodígio (aos 11, já tocava Mozart ao piano), Hancock notabilizou-se cedo no mundo do jazz de modo que, desde sua estreia como band leader, em 1962, aos 22 anos, seus trabalhos passaram sempre a ser aguardados com atenção. Após “Empyrean Isles”, já maduro e consagrado, era normal que se esperasse dele algo inovador. É quando entra nos famosos estúdios Van Gelder, em Nova York, a 17 de março de 1965, para lapidar outra pedra rara: o álbum “Maiden Voyage”.

Mas para equiparar-se ou até superar o que já havia feito, mais do que qualquer expectativa externa o próprio Hancock certamente se impunha a não apenas repetir a fórmula. Se o LP anterior trazia a semente do chamado jazz-funk, influenciando artistas da soul music, do jazz fusion, do rock e da música internacional (a ver pela MPB de Edu Lobo e Artur Verocai, para ficar em dois apenas), o desafio seguinte seria articular outra novidade dentro de seu gigantesco cabedal de referências sonoras. O jazz modal, o be-bop, a música clássica, as inovações da vanguarda, os ritmos latinos: tudo passava pela inventiva cabeça de Hancock. O resultado? Mais uma revolução dentro do jazz. E a célula disso é a monumental faixa-título, composição magistralmente arranjada e harmonizada por ele junto à não menos competente banda: o mestre do baixo acústico Ron Carter; o saxofonista tenor com blues nas veias George Coleman;  Freddie Hubbard, no trompete, outro monstro; e Tony Williams – dispensa comentários –, na bateria. Tudo amalgamado pelos cirúrgicos dedos de Rudy Van Gelder na mesa de som – além de ter uma das mais bonitas capas da Blue Note, assinada por Reid Miles.

E o que, então, essa “viagem inaugural“ de Hancock – não à toa, a faixa de abertura – trouxe de diferente? A começar, um aprofundamento do chamado jazz modal, introduzido por Miles Davis, artista do qual Hancock é um dos discípulos, no memorável "Kind of Blue", de 1959. Isso por que o tema se vale duma configuração de modos musicais distintos, organizando esses campos harmônicos através de uma distribuição entre os instrumentos espantosa. O riff de quatro acordes do piano se forma por uma conjunção sensorial dicotômica: os três primeiros soam austeros, enquanto o quarto, quase dispare, transparece vivacidade. O baixo, impositivo, logo assume a função da manutenção da base, mas a seu jeito: ondulante na passagem de uma nota para outra, dando sinuosidade ao contexto. Junto a isso, os metais, noutro andamento mas dentro do mesmo tempo, registram dois tons acima. Perfil sonoro alongado, de corpo simétrico e queda nada brusca. Parecem, sax e trompete, estar num transe. Arrematando, a delicada bateria de Williams, que suspende a melodia tanto pela manutenção nos pratos e caixa, o que lhe reforça o caráter etéreo, quanto pelo estabelecimento de um compasso arrastado (e distinto dos mantidos pelo piano e pelos metais, diga-se), no qual imprime leves atrasos no tempo. E, por incrível que pareça (não tão incrível em se tratando de Hancock): tudo fecha perfeitamente. Resta uma canção cujo centro modal é uno mas expandido, fazendo com que os acordes soem livremente mas sempre reconduzidos a este.

Os solos de “Maiden Voyage” são um caso à parte. A primazia de abrir as sessões de improviso é dada a Coleman, novo integrante e único não remanescente da banda que gravara ”Empyrean Isles”. E ele faz jus ao privilégio. Que solo! O seu melhor de todo o disco. Potente, rigoroso e lúcido. Já no final da primeira frase, anuncia a conotação vertiginosa que não apenas ele quanto todos os outros assumirão. Dois arpejos sutis mas determinados bastam para dizer isso. Sons em espiral, autorreferências, ciclos. Solo curto, mas abundantemente expressivo. Tão perfeito e afim com a melodia que não parece ter sido tirado na hora, mas sim escrito em partitura. Carter, inteligente, segura com mãos de mágico toda essa química quase improvável, enquanto Williams, este sim, sai apenas da manutenção do compasso para, aproveitando-se do campo estendido do modal, quebrar o andamento, lançar rolos curtos e desenhar o ritmo do jeito que a harmonia lhe autoriza.

Aí vem a parte de Hubbard. Se em “Cantaloupe Island”, peça-chave do disco anterior de Hancock, seu trompete trazia um dos solos que se tornaria um dos mais pop do cancioneiro jazz, aqui, há quase que uma recriação daquele improviso, porém, agora, ainda mais tomado de conexões com a tradição do instrumento (Louis Armstrong, Coleman Hawkins, Miles) e com o clima astral desse passeio musical proposto por Hancock. Altíssima técnica e controle. Quase finalizando o solo, ele chama todos os instrumentos a um momento mergulho, como que submersos num redemoinho de sons no qual ele executa sons cíclicos e os companheiros reavaliam seus lugares: oscilam, tumultuam-se e se reencontram novamente na margem. Emendado, o momento do próprio Hancock desnuda ainda mais o âmago da canção: idas e vindas do inconsciente em dissonâncias e sustenidos. A ideia espiral, claro, é retomada, adicionando aí a onicidade fantástica que as teclas brancas agudas oferecem. Um colosso da música mundial e uma das maiores expressões da avant-garde dentro do jazz. Enigmática mas instigante. Hermética mas saborosa. Ousada mas cativante. Estruturalmente complexa mas hipnotizante. Melodia, harmonia, arranjo, timbres: tudo faz com que “Maiden Voyage” seja uma esfinge ainda a ser totalmente desvendada.

Na sequência, o espírito blues é o que comanda “The Eye of the Hurricane”, hard-bop efervescente, como o título sugere, e de pura habilidade e afinação entre os integrantes. A atmosfera onírica não demora a reaparecer, entretanto. “Little One”, lenta e contemplativa, abre com repetidos rolos na caixa da bateria. O baixo e o piano largam acordes soltos e os sopros estabelecem um chorus longo, para, por volta de 1min20, mudar o compasso e entrar o sax de Coleman num solo apaixonadamente carregado. A mesma linha segue Hubbard, que ora retoma as ideias centrais do próprio improviso, ora dá voos. Elegante (mas não menos comovido), Hancock revela um piano quase erudito. Então que chega a vez de Carter maravilhar com um solo extraído da alma, antes de repetirem o intrincado chorus da introdução no final.

A exemplo do álbum anterior (na faixa “The Egg”), esta obra traz também a sua de caráter abertamente vanguardista. Aqui, é “Survival of the Fittest”. Inconstante, arranca com os sopros lançando notas agudas, o que é logo interrompido por um breve solo de Williams. O ritmo que se põe é intenso, suingado, sobre o qual Coleman destrincha acordes às vezes beirando o estilo dissonante de John Coltrane, sua forte inspiração. O andamento é quebrado novamente por volta dos 3 minutos para um novo momento da bateria, o qual antecipa a entrada de Hubbard. Tabelinhas com o piano, intensificadas pelas batidas, dão às improvisações do trompetista uma dinâmica incrível. Hancock entra e, entre dedilhados rápidos ora atonais ora coloridos feito um recital romântico, retraz lances de “Maiden Voyage”. Williams, de papel fundamental na construção de “Survival...” a finaliza carregando na caixa, no ton-tons e nos pratos.

O desfecho não poderia ser mais saboroso, com “Dolphin Dance”, standart do repertório de Hancock regravada por gente como Ahmad Jamal, Chet Baker e Bill Evans. Que melodia bela! Das mais deliciosas do jazz. Os solistas deitam e rolam: Hubbard arrasa em mais de 2 minutos ininterruptos só dele; Coleman, intenso e amoroso, como um bom Dexter Gordon. Dono da canção, Hancock sublinha ainda mais a emotividade adicionando-lhe novos motivos, pondo os golfinhos para dançar juntinhos. Uma simbólica maneira de terminar a “viagem inaugural”.

O ano de 1965 foi de obras-primas do jazz como "A Love Supreme" e “Ascension”, de Coltrane, “The Gigolo”, de Lee Morgan, e “The Magic City”, de Sun Ra. E “Maiden Voyage” certamente figura entre estes, quando não entre os maiores da história, como no caso das listas de uDiscover e Jazz Resource, que o apontam entre os 50 melhores de todos os tempos. Independente de colocação, o que importa mesmo é a permanência e a perenidade dessa música sem igual alcançada por Hancock e seus músicos. O próprio Hancock, irrequieto, não retornaria mais a este ponto: depois de apenas mais um trabalho na linha modal (“Speak Like a Child”, de 1968), o músico se enfiou em projetos com Miles, produziu trilhas sonoras e, quando viu, já estava nadando pelos mares do pós-bop, do fusion e do funk para mudar novamente a cara da música do século XX. “Maiden Voyage”, assim, serviu como uma verdadeira passagem para novos caminhos. Uma esplendorosa viagem inaugural sem volta e com destino à eternidade.
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FAIXAS:
1. Maiden Voyage
2. The Eye of the Hurricane
3. Little One
4. Survival of the Fittest
5. Dolphin Dance

todas as canções de autoria de Herbie Hancock.

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OUÇA O DISCO:




quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Dexter Gordon - "Go" (1962)



“Minha vida é a música.
Meu amor é a música.”
fala de Dale Turner,
personagem vivido por Dexter Gordon
no filme “Por Volta da Meia Noite”



Quem é amante de jazz e afeito às comparações futebolísticas a diversos outros assuntos, vai concordar: se Miles Davis é o Pelé e John Coltrane o Garrincha do jazz, Dexter Gordon é o Nilton Santos. Miles por conta da longevidade e quantidade de gols feitos nas diferentes eras em que atuou. Coltrane pela meteórica e decisiva passagem, marcada pela genialidade, pela paixão por sua arte e pela habilidade jamais igualada. Gordon, por sua vez, poderia ter o mesmo apelido que o zagueiro do Botafogo e das duas primeiras seleções brasileiras campeãs mundiais: “enciclopédia”. O saxofonista era um craque do jazz.

Atravessando em atividade da fase áurea ao declínio do gênero, dos anos 40 aos 90, o californiano Dexter Keith Gordon estudou clarinete aos 13 anos e na adolescência já dominava o sax tenor. Só na primeira década como músico profissional já somava passagens pelas bandas de Louis Armstrong, Nat “King” Cole, Lionel Hampton, Ben Webster, Lester Young e nas orquestras de Fletcher Henderson e Billy Eckstine, esta última, com a qual tocou para gente do calibre de Sarah Vaughan e Dizzy Gillespie. Ainda nos anos 40, gravou pela Savoy, ao lado dos colegas Wardell Gray e Teddy Edwards, discos revolucionários que se tornariam referência para a então nova geração de saxofonistas tenores, entre os quais Coltrane e Sonny Rollins. Como se não bastasse, na década seguinte, o jovem alto e galante foi também um dos precursores de outra revolução: o estilo mundialmente assimilado chamado bebop.

Chegado aos anos 60, na faixa dos 30 e já com toda essa bagagem, mesmo não sendo uma celebridade de massas (o que cantores como Frank Sinatra e Tony Bennett cumpriam com autoridade), era evidente que o passe de Dexter Gordon estava valorizado. Pois o produtor Alfred Lion resolveu bancar. Em 1961, chama-o para seu selo, Blue Note, no qual permanece por quatro anos. O crème de la crème dos sete álbuns gravados por Gordon neste período é “Go!”, de 1962. Com a companhia de uma estelar “cozinha”, formada pelo requintado pianista Sonny Clark, o ágil baterista Billy Higgins e o flexível baixista Butch Warren, Gordon usa de toda sua maestria e compõem um disco impecável, considerado um dos melhores de todos os tempos da discografia jazz. Virtuose e dono de um estilo abarcante – no qual se ouviam facilmente a fineza de Armstrong, a pulsação de Charlie Parker, a sutileza de Young e a potência de Coleman Hawkins – é possível derivar do seu fraseado a tradição e a modernidade. Ele, que havia passado pela descoberta do swing, pelo estouro das big bands e pelo advento do cool e do bebop, junta tudo isso de uma forma absolutamente natural e híbrida.

Nesse clima abre a literalmente saborosa “Chees Cake”, única composição do álbum de autoria de Gordon. Acordes de baixo anunciam o começo, somando-se a este a bateria, marcada no prato de ataque. É quando vem Gordon com seu vigoroso e elegante sopro, extraído de pulmões possantes guardados em sua parruda caixa torácica. O riff, dos mais marcantes do cancioneiro jazz. Desenvolve-se um solo extenso e gostosamente inventivo, rebuscando o bebop e o recheando-lhe com novos temperos, que coloca a canção no limiar entre o cool e o hard bop. Clark assume brevemente em um notável solo antes de Gordon retornar para a segunda intervenção. Nova maravilha. Fluxo altamente vibrante e suingado, com uma engenhosa escolha das notas e escalas que só poderiam sair de um ”decano” como Gordon.

"Guess I'll Hang My Tears Out to Dry", na sequência, é um verdadeiro convite à melancolia e ao romantismo da noite nova-iorquina. Balada de ouvir dançando agarradinho ou para afundar as mágoas num copo de bourbon sem gelo. Linda. O soprar de Gordon é seguro e cheio, mas não menos lânguido e introspectivo, como quem está escutando o próprio coração e reproduzindo-o em sons. É possível sentir cada nota, cada sentimento. O sax se alonga em sua conversa com os apaixonados e/ou descornados, tomando-lhe quase 4 minutos. Dá um passe para que Clark faça, com habilidade, mate no peito e ponha no chão. O pianista faz um afago nas teclas, enquanto Higgins vaporiza a atmosfera com uma levada nas escovinhas tendo como companheiro para isso Warren serpenteando as cordas. Mas não dura muito tempo a vez do trio, pois Gordon “retoma a bola” para finalizar a canção repetindo frases e retomando as mesmas ideias amorosas de seu sax. Junto a "Blue in Green", de Miles, “Round Midnight”, com Chet Baker, “Naima”, de Coltrane, “Like Someone in Love”, com Ella Fitzgerald, está entre as 10 grandes baladas jazz da história.

"Second Balcony Jump" vem para elevar o ânimo num jazz bluesy animado e gracioso. Nada menos que 3 minutos e 40 de um improviso solto e ininterrupto de muita expressividade e agilidade de Gordon. Como nas anteriores, é Sonny Clark quem tem a primazia do segundo solo, o qual faz com absoluta destreza de quem “chuta” com as duas valendo-se da liberdade dada pelo líder. Gordon reaparece já dentro da área para finalizar com uma mais curta improvisação em que ratifica sua presença. Higgins dá um breve solo antes do saxofonista terminar o número brincando ao executar o clássico desfecho: “pam-pam-ram-ram-pam/ pam pam!”.

Sintonizado com um ritmo latino que se fazia novo nos Estados Unidos e que tomava o gosto dos músicos estrangeiros, uma tal de bossa-nova, Gordon traz uma feliz interpretação do clássico “Love for Sale”. Assim como Stan Getz, Charlie Byrd, Henri Mancini, Vince Guaraldi e outros impressionados com as inovações harmônicas e melódicas levadas a eles principalmente por conta da trilha do filme “Orfeu Negro”, de 1959 (o disco “Bossa Nova at Carnegie Hall”, o definitivo carimbo internacional da bossa-nova, seria gravado no final daquele ano), o saxofonista entra no gingado brasileiro e tece uma malemolente versão para a música de Cole Porter. Muito ajudado pela marcação sambada de Higgins. Clark, visivelmente movido pelo piano de Tom Jobim, é outro a entrar no espírito bossa-novista. Gordon, por sua vez, dá um show de manutenção dos tempos durante o riff, soltando a criatividade e apuro nos improvisos. Clark, por sua vez, vive aqui seu mais inspirado solo, engenhoso dentro dos tempos circulares que encadeia.

"Where Are You?" é mais uma balada para morrer de amor. As pronúncias seguras de sentimento do sax impressionam pela elasticidade e controle dos tempos, realizando leves atrasos, ataques carregados e modulações, todas precisas. Por volta dos 3 minutos e 30, Gordon intensifica a emotividade ao subir um tom. Prenúncio de uma breve pausa para o mais uma vez sutil e inteligente dedilhado de Clark, envolto num clima de nightclub, de fumaças de cigarro e cheiro de trago no ar, forjada pela condução de Higgins e Warren. “Go!” finaliza com a sibilante "Three O'Clock in the Morning", a qual começa com o piano marcando o tique-taque do relógio nas agudas teclas pretas. São três da manhã e é possível enxergar um casal enamorado passeando feliz e bêbado pelas ruas desertas da Big Apple entrando de bar em bar e alheios a qualquer coisa que não seu affair. É assim que o disco se encerra: na felicidade inebriada da boemia da Village Vanguard.

A lenda em torno de Dexter Gordon não terminaria em “Go!”. Um pouco pela desvalorização de “velhos” como ele em detrimento dos jovens ases do free-jazz e da avant-garde ­– sem falar nos astros pop ascendidos naquela década, quase hegemônicos na indústria fonográfica de então –, um pouco para se isolar por conta do vício em heroína, o músico norte-americano refugia-se na Europa. Lá é redescoberto e passa a viver em Paris e em Copenhague, onde vira a celebridade que não tinha sido até então. Torna à terra natal somente em 1976, quando é recebido com honras. Afinal, não é todo dia que se tem de volta o herdeiro de Armstrong, Parker, Hawkins e Young. Passados o estouro do rock ‘n’ roll, acalmado o fervor dos anos hippies e assimilada a hibridização do jazz com o rock – a esta época já haviam morrido Coltrane, Lee MorganJimi HendrixJanis Joplin e iam-se já seis anos do rompimento dos Beatles –, Dexter Gordon finalmente ocupa seu lugar dentro de casa.

Ainda, quatro anos antes de morrer, aos 63, roda, com o cineasta francês Bertrand Tavernier, o memorável filme “Por Volta da Meia-Noite” (1986), em que protagoniza o papel justamente de um saxofonista de jazz norte-americano autoexilado em Paris, onde é ovacionado. A abordagem dos problemas com drogas e álcool, os desajustes familiares e a saudade do ninho demonstrada pelo personagem tornam o filme bastante autobiográfico, mesmo que a história se baseie também em parte na trajetória de dois dos mestres de Gordon: Young e Bud Powell. A aura mítica que se cria em torno do alter-ego de Gordon, Dale Turner, é tão natural quanto a sua interpretação de si mesmo no longa: os gestos entre o charmoso e o ébrio, a voz naturalmente rouca, a fala pausada, o sorriso maroto, o porte altivo preservado da juventude. Pela atuação, o músico chegou a concorrer ao Oscar de Melhor Ator naquele ano. Não precisou nem vencer para reforçar o mito do então último expoente da gênese do jazz, gênero do qual ele foi, se não o maior como um Pelé ou o mais genial Coltrane, o exemplar mais completo como Nilton Santos. De modo que “Go!” não é simplesmente um disco: é um “golaço!”.
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FAIXAS
1. "Cheese Cake" (Dexter Gordon) - 6:33
2. "Guess I'll Hang My Tears Out to Dry" (Jule Styne/Sammy Cahn) - 5:23
3. "Second Balcony Jump" (Billy Eckstine/Gerald Valentine) - 7:05
4. "Love for Sale" (Cole Porter) - 7:40
5. "Where Are You?" (Jimmy McHugh/Harold Adamson) - 5:21
6. "Three O'Clock in the Morning" (Dorothy Terris/Julian Robledo) - 5:42

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OUÇA O DISCO





segunda-feira, 31 de maio de 2021

Miles Davis - "Bags Groove" (1957)

 

"Em fevereiro de 1954, pela primeira vez em um tempo, eu me sentia bem de verdade. Minha embocadura estava firme porque eu vinha tocando todas as noites e tinha finalmente me livrado da heroína. Eu me sentia forte, física e musicalmente. Me sentia pronto para tudo."
Miles Davis

Era incrível a capacidade de Miles Davis para compor grandes bandas. O músico, que completaria 95 anos no último mês de maio e cuja prematura morte completará três décadas em setembro, desde que se tornara um jovem band leader, aos 22, no final dos anos 40, estabelecera tal protagonismo. Após alguns anos de “escola” aprendendo teoria musical na Julliard School mas, principalmente, tocando na banda de Charlie Parker, o grande revolucionário do jazz, o homem que pôs o gênero de ponta-cabeça diversas vezes ao longo de meio século, em menos de 10 anos de carreira solo e menos de 30 de idade já era considerado uma lenda no meio jazz nova-iorquino. Além de lançar discos referenciais, como “Birth of the Cool” (1949/50), cujo nome fala por si, e a trilogia hard-bopCookin’/ Relaxin’/ Steamin’” (1956), o trompetista tinha um tino especial também para agregar a si outros talentos, formando grupos às vezes tão inesquecíveis quanto seus álbuns. Tanto veteranos, como Charles Mingus, Art Blakey e Max Roach quanto então novatos, como Gerry Mulligan, John Coltrane, Herbie Hancock e Tony Williams, eram recrutados por Miles, um líder natural.

Era tanto prestígio de Miles já à época, que ele mantinha contrato com duas gravadoras, Blue Note e Prestige, e estava em vias de assinar com outra: a Columbia. Toda essa autoridade permitiu que, em “Bags Groove”, de 1957, ele pudesse contar não com uma, mas duas bandas. E, diga-se: bandas de dar inveja a qualquer front man. O disco reúne duas sessões de gravação ocorridas em 1954 no famoso estúdio Van Gelder, em Nova York: a 29 de junho e a 24 de dezembro. Para cada uma, Miles teve escalações estelares. Acompanhando-o na segunda delas estão, além dos velhos parceiros Percy Heath, ao baixo, e Kenny Clarke, na bateria, ninguém menos que Milt 'Bags' Jackson, nos vibrafones, membro da inesquecível Modern Jazz Quartet e a maior referência deste instrumento na história do jazz, e Thelonious Monk ao piano, considerado um dos maiores gênios da música do século XX. Duas referências do jazz bebop e ambos tocando pela primeira vez com o trompetista. 

O disco começa com outra característica de Miles fazendo-se presente, que é a de não apenas estar ao lado de músicos de primeira linha como, principalmente, saber tirar o melhor proveito disso. As duas versões da faixa-título, de autoria do próprio Milt, são tão solares que fazem esquentar o frio nova-iorquino daquela véspera de Natal. O estilo solístico de Miles e sua liderança no comando da banda, atributos totalmente recuperados por ele naquele 1954 depois de um longo e tortuoso período de vício em heroína, ficam evidentes em seus improvisos inteligentes, econômicos e altamente expressivos. 

Mas não é apenas Miles que brilha, visto que tudo na música “Bags...” abre espaço para diálogos. A elegância característica do estilo de Miles se reflete no soar classudo do vibrafone de Milt. Poder-se-ia dizer tranquilamente que a faixa, por motivos óbvios, além da autoria e da autorreferência, é dele, não fosse estar dividindo os estúdios com Miles e Monk. Este último, por sua vez, conversa tanto com a elegância peculiar dos dois colegas quanto, principalmente, no uso inteligente e econômico das frases sonoras. No caso do pianista, mais que isso: precisão – e uma precisão singular, pois capaz de expressar sentimento.

Capa do disco com Rollins,
que corresponde ao
lado B de "Bags Groove"
O repertório do álbum se completaria com outra gravação ocorrida meses antes, só que num clima totalmente contrário: em pleno calor do verão junino da Big Apple, Miles entra em estúdio amparado por Clarke novamente, mas agora tendo ao piano outro craque das teclas, Horace Silver. Mas ao invés do vibrafone percussivo de Milt, agora a sonoridade complementar muda para outro sopro: o vigoroso saxofone tenor de Sonny Rollins. Substituições feitas, qualidade mantida. Como um time que não se afeta com a intempéries e sabe mudar as peças mantendo o mesmo esquema vitorioso, 

Os quatro números restantes são fruto da sessão feita para “Miles Davis With Sonny Rollins”, de 1954 (este, lançado naquele ano mesmo), quando Miles, que já havia trabalhado rapidamente com o saxofonista três anos antes, apresentava-o, então com 24 anos, como jovem promessa do jazz. E se o lado A de “Bags...” tinha como autor não Miles, mas seu parceiro Milt, a segunda parte também era praticamente toda assinada por Rollins. “Airegin”, um bop clássico, é o resultado do entrosamento dos dois. Miles gostou tanto do tema, que o regravaria no já referido “Cookin’” com Coltrane, no sax, Red Garland, ao piano, Paul Chambers, baixo, e Philly Joe Jones, na bateria. O mesmo acontece com “Oleo”, um gostoso jazz bluesy, que Miles aproveitaria no repertório de outro disco memorável daquela época, “Relaxin’”, e com o qual contou com a mesma “cozinha” de “Cookin’”.

“Bags...” tem ainda outra de Rollins, a inspiradíssima “Doxy” e sua levada balançante, que não muito tempo dali se tornaria um clássico do cancioneiro jazz, interpretada por monstros como Coltrane, Dexter Gordon e Herb Ellis. Completam o repertório dois takes do standart “But Not For Me”, de Gershwin. Classe pouca é bobagem. 

Isso tudo, acredite-se, antes de Miles ter lançado aquele que é considerado sua obra-prima, “Kind of Blue”, de 1959, a criação do jazz modal e com o qual contou com Coltrane, Bill Evans, Cannoball Adderley, Jimmy Cobb e Wynton Kelly. Antes de ter tocado com o infalível quarteto Williams, Hancock, Wayne Shorter e Ron Carter, noutro passo fundamental para o jazz. Muito antes de ter feito “In a Silent Way” e “Bitches Brew”, as revoluções do jazz fusion em que teve, além de Hancock, Shorter e Williams, outros coadjuvantes ilustres como Chick Corea, Joe Zawinul e John McLauglin. Como talvez nenhum outro músico do jazz, Miles tinha a capacidade de reunir os diferentes e saber extrair disso o melhor. De unir verão e inverno e torná-los a mesma estação. “Bags...” é uma pontinha de tudo isso que Miles fez e representou para o jazz e a música moderna. E haja bagagem para conter tanta história e tantos talentos orbitando ao redor do planeta Miles Davis!

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FAIXAS:
1. "Bags' Groove" (Take 1) (Milt Jackson) - 11:16
2. "Bags' Groove" (Take 2) - 9:24
3. "Airegin" (Sonny Rollins) - 5:01
4. "Oleo" (Rollins) - 5:14
5. "But Not for Me" (Take 2) (George Gershwin/ Ira Gershwin) - 4:36
6. "Doxy" (Rollins) - 4:55
7. "But Not for Me" (Take 1) - 5:45


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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

sábado, 24 de agosto de 2013

Herbie Hancock - Credicard Hall - São Paulo/SP (22/08/2013)



Desde que eu soube que Herbie Hancock viria ao Brasil, fiquei com vontade de ver o show. Gosto tanto da fase Blue Note quando da Headhunters. Aí, vi um vídeo no YouTube do show de Montevidéu e o Gopala, o baterista Julio Falavigna, colocou suas impressões do espetáculo em Buenos Aires no Facebook. Posso dizer que em São Paulo, no Credicard Hall, as coisas não foram diferentes, mas acabei vendo um outro show.

Ao começar com "Actual Proof", do disco "Thrust", Herbie mostrou que teríamos uma espécie de viagem nostálgica aos seus "greatest hits". Digo isso porque não faltaram, entre outras, "Watermelon Man" - aqui na versão Headhunters e mesclada com "Seventeen", do guitarrista africano Lionel Loueke. Ao apresentar a música, HH destaca a qualidade dos três músicos que estiveram com ele no palco: o baixista James Genus - irreconhecível, portando um baixo elétrico, ele que sempre tocou acústico, especialmente com Michael Brecker; o cultuado baterista Vinnie Colauita, realmente um músico de exceção; e o percussionista indiano Zakir Hussain, armado de um arsenal de tablas, kalimba e outras milongas mais. Herbie se revezava entre o piano acústico e o teclado e as programações. E resgatou do limbo - para alguns, de onde nunca deveriam ter saído - o keytar, aquela mistura de teclado com guitarra, de muito sucesso nos anos 80, e o vocoder, o sintetizador de voz, também muito em moda naquela década maldita. Não sou um purista, mas tendo um piano de qualidade para tocar, foi decepcionante ver HH, aos 70 anos, desperdiçar seu tempo com estes jurássicos gadgets de antão.
foto: Manuela Scarpa
Photo Rio News

Pode-se dizer que as passagens em quarteto foram muito mais interessantes do que os solos. Concordo pela metade com o Gopala. Afinal de contas, o especialista em tabla é ele e não eu. Mas confesso que cortaria meio solo de Zakir, que parecia não saber onde terminar, apesar de possuir uma técnica exuberante. Dez minutos de tablas solo foram um pouquinho demais pra mim. Assim como Hancock, que começou sozinho uma digressão pianística muito interessante do conhecido tema "Maiden Voyage", mas logo trocou o piano Steinway pelo Korg e pelo vocoder. A partir daí, Hancock resolveu disputar o espaço destinado a chatos insuportáveis como Kitaro e Yanni, num clima da pior New Age. Felizmente, o grupo voltou ao palco e partiu para mais uma das viagens de Hancock sobre temas conhecidos. Agora em cima de "Cantaloupe Island", que deu espaço para Colaiuta mostrar porque é adorado pelos bateristas de todo mundo. Ele alia uma supertécnica a um approach muscular, surrando sem dó nem trégua aqueles couros e pratos. E no bis, Hancock, jogando pra torcida, entrou com "Rockit", seu hit dos anos 80 e, de repente, invadiu sua própria praia com "Chameleon" do disco "Headhunters", um clássico do funk-jazz dos 70's, que levantou a plateia do Credicard Hall.


Entre mortos e feridos, salvaram-se todos. Mas eu gostaria de um pouco mais de música acústica. A culpa é minha. Esqueci que Herbie Hancock sempre fez estas misturas a vida inteira. E não seria aos 70 que ele iria mudar.




segunda-feira, 28 de junho de 2021

Dexter Gordon - "One Flight Up" (1964)

 

“Não sei se houve algum significado especial no título deste álbum mas, de qualquer forma, poderia ser interpretado apropriadamente como o significando de que os pretendentes avançaram num voo em criatividade, que seus voos de fantasia são mais livres do que nunca sob os céus de Paris. Juntos, os cinco oferecem uma demonstração esplêndida de como falar a língua internacional do jazz.”
Leonard Feather, do texto original da contracapa do disco

Quase chegada a metade dos anos 60, Dexter Gordon já estava consagrado como um gigante do jazz norte-americano. Saxofonista "à moda antiga", carregava no corpanzil de 1,96m a estatura de mitos do sax tenor que o antecederam, como Coleman Hawkins, Charlie Parker, Lester Young e Ben Webster. Nem a aparição àqueles idos de jovens talentos do instrumento, como John Coltrane, Sonny Rollins, Joe Henderson e Wayne Shorter intimidavam o velho músico. Menos ainda as inovações sonoras e conceituais pareciam abalá-lo. Free Jazz? Avant Garde? Pós-bop? Creative jazz? Não importava. Confiante e em plena forma, seguia na sua linha clássica como um dos precursores do bebop.

O período em que esteve na Blue Note é o melhor recorte desta boa fase. Após anos pulando entre os selos Decca, Savoy, Jazzland e outros – sem, contudo, estabelecer-se em nenhum deles –, ele emenda, entre 1961 e 1966, uma série de sete álbuns memoráveis como "Doin' Alright", "Dexter Calling" e o aclamado "Go", constante invariavelmente em listas de obras fundamentais da história jazz. Todos no melhor estilo hard-bop, sua jurisdição. Somado a isso, recebe a acolhida de braços abertos da Europa, que, assim como para com diversos outros nomes do jazz, o idolatrava. Muda-se para Paris e vive um momento iluminado na – e pela –“Cidade Luz”. A confiança era tamanha que, para sustentar toda a envergadura de Dex, fosse física ou musical, precisava de tanto chão que não cabia nem nas dimensões territoriais de Estados Unidos e França juntas. Por isso, não era se de estranhar que passasse a também pisar novos terrenos. Foi o que fez em "One Flight Up", de 1964, passo firme do músico nos domínios do jazz moderno. 

Mas como estreitar a ponte entre Novo e Velho Mundo? Levando seus músicos para gravar no Barclay Studios, em Paris, ora. Aos 41 anos, assimilando como um garoto os preceitos do jazz modal – os quais haviam se tornado comuns ao repertório jazzístico havia uns 5 anos pelas mãos, principalmente, de Miles Davis e Dave Bruback –, Gordon, como vinha procedendo já de trabalhos anteriores, rodeia-se de uma banda que casa juventude e experiência: os conterrâneos Donald Byrd, ao trompete (32 anos); Kenny Drew, piano (36); e Art Taylor, bateria (30), mais o dinamarquês Niels-Henning Orsted Pedersen (de apenas 18 anos), ao baixo. O conjunto lhe dá, ao mesmo tempo, suporte à sua verve solística admirável e o municia desse ímpeto modernizante. O resultado é uma química perfeita entre o veterano saxofonista e grupo em apenas três faixas, todas irretocáveis.

E se é pra aderir àquelas que se apresentavam como novas formas, então que seja, literalmente, com grandeza. "Tanya" é isso: 18 min e 21 seg que preenchem o lado A com a fluidez controlada das escalas modais, o que não impede (até ressalta, aliás) as capacidades de improviso. Gordon, be-bopper nato acostumado a números extensos como os que executava nos night clubs desde os anos 40, destrincha um solo magnífico em que alia seu tradicional lirismo a um vigor renovado. Mas o band leader não monopoliza o espaço, dando igual prestígio a seus companheiros, a se ver pela participação de Byrd, autor da música, e um ainda mais inspirado Drew. Isso sem falar na linha de baixo marcante de Pedersen, das melhores performances do gigante de quatro cordas que o jazz já presenciou, digna de um Ron Carter, Paul Chambers ou Dave Holland.

Fôlego recuperado, o segundo lado do álbum traz "Coppin' the Haven", escrita por outro membro da banda, o pianista Kenny Drew. Suingue com alma de blues e bossa nova, casa a classe do bebop com texturas modernas, a se ver pelo toque destacado da bateria de Taylor, potente e sem discrição nas investidas na caixa como faziam os contemporâneos Elvin Jones e Tony Williams à época. Sinais de que os gêneros pop como o a soul, o rock e a música étnica já contaminavam o ambiente jazzístico. E Gordon os assimila com generosidade madura. A se destacarem ainda os solos – além do de Gordon, impecável – de Byrd ao trompete, forte e pronunciado, e de Drew ao piano, habilidoso em conduzir o improviso e não esquecer de manter a base.

O disco finaliza com um popular song de 1939 cujos acordes o jazz já havia incorporado havia anos. Aí, sai da frente, que Dexter Gordon vem com um show de interpretação! É a balada "Darn that Dream", imortalizada na voz de Billie Holliday e gravada por Miles Davis em seu clássico "Birth of the Cool", de 1949. Com Gordon e seu quarteto, o standart se redimensiona, ganhando uma amplitude onírica invejável que somente tenoristas daquela estirpe são capazes. Quanta fineza e sensibilidade! Notas e acordes saem elegantes, altivos e esguios como o seu emissor.

Apenas em 1976, de volta à terra natal, terminaria a temporada europeia de Gordon, a qual, além de extensa, findava-se absolutamente produtiva, ajudando a reforçar a mitologia em torno do lendário artista. “One...” é um retrato desta fase áurea, a verdadeira Conexão França do jazz. Só mesmo um gigante como Gordon para plantar com tamanha autoridade e firmeza um pé em cada continente.

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FAIXAS:
1. "Tanya" (Donald Byrd) - 18:18
2. "Coppin' the Haven" (Kenny Drew) - 11:17
3. "Darn That Dream" (Eddie DeLange, Jimmy Van Heusen) - 7:30
4. "Kong Neptune” (Dexter Gordon)*
*Faixa-bônus da versão em CD remasterizada de 2015

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Dossiê ÁLBUNS FUNDAMENTAIS 2014


Sim, amigos, Chegou a hora da verdade! Os números não mentem e falam por si. é hora de fazer aquele pequeno balanço de 2014 e da atual situação dos A.F. do Clyblog. Qual artista tem mais discos indicados, que país botou mais álbuns, qual o ano que mais apresenta destaques ou qual a década mais recheada de grandes obras da música, além dos principais destaques do ano que passou.
Em 2014 o blog continuou tendo participações especiais como vem acontecendo costumeiramente em datas ou momentos importantes e não foi diferente com os ÁLBUNS FUNDAMENTAIS, que, por sinal, já começou o ano com a resenha especialíssima do jornalista e crítico musical Márcio Pinheiro, com o ótimo "Quem é Quem" de João Donato, além do essencial "Rubber Soul" dos Beatles, resenhado pelo convidado Eduardo Lattes, numa espécie de postagem-dobradinha com o álbum antagonista, "Pet Sounds" dos Beach Boys, que por sua vez estrearam, antes tarde do que nunca, no seleto time do A.F.
E falando em estreia, o ano passado marcou outros ingressos significativos no hall dos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS, como os de Ella Fitzgerald, The Police, Funkadelic e Gal Costa, que já saiu metendo dois logo de cara, por exemplo, e algumas reafirmações como as de Prince, Sepultura, Sonic Youth, R.E.M. e Madonna que botaram na roda seu segundo álbum fundamental, cada.
Mas enquanto alguns, recém, levam seu segundo trabalho ao pódio, alguns disparam na liderança, e os Rapazes de Liverpool que no último ano haviam finalmente tomado a ponta, este ano viram o Camaleão, David Bowie, empatar a parada e dividir com eles o topo da tabela, e de quebra, os rivais, Rolling Stones, aproximarem-se perigosamente. Isso no geral, porque se ficarmos no âmbito nacional, Titãs, Legião e Jorge Ben, estão mandando no pedaço. Mas se é para sermos bem exatos mesmo, quem está na frente mesmo é o Babulina que com o ingresso de seu fantástico "África Brasil", se somarmos ao clássico "Gil & Jorge" chega isoladamente à primeira posição de álbuns resenhados nos A.F.entre os brasileiros. "África Brasil" que, a propósito foi um dos que integraram a seleção diferenciada de álbuns que tinham alguma coisa a ver com futebol nas edições especiais dedicadas à Copa do Mundo chamada ÁLBUNS FUNDAMENTAIS ClyBola, que também contou com discos como o "Novos Baianos F.C.", "Chico Buarque vol.4" e "Nuvens" de Tim Maia.
Outra coisa bacana que rolou nos A.F. em 2014 foi que, no ano em que a Blue Note Records, gravadora pioneira do jazz americano, completaria 50 anos, resenhas de grandes artistas do gênero pintaram por aqui pelas mãos de Daniel Rodrigues, destacando "Empyrean Isles" de Herbie Hncock e "The Sidewinder" de Lee Morgan.
Como curiosidades, tivemos o fato de que Richard Strauss com seu "Zaratustra" de 1895 tornou-se o 3º mais antigo da seção, só atrás em antiguidade da "9ª de Bethooven" de 1824, e d"As Quatro Estações" de Vivaldi, de 1725; e lá na outra ponta, entre  os mais atuais, o interessante é que só este ano tivemos destacados mais álbuns do século XXI do que tivéramos até então em 5 anos de blog.
Mas paremos com essa conversa fiada e vamos aos números. Vamos ao que interessa.

PLACAR POR ARTISTA (GERAL)

  • The Beatles: 5 álbuns
  • David Bowie 5 álbuns
  • The Rolling Stones 4 álbuns
  • Stevie Wonder, Cure, Led Zeppelin, Miles Davis, Pink Floyd e Kraftwerk: 3 álbuns cada


PLACAR POR ARTISTA (NACIONAL)

  • Jorge Ben (4)
  • Titãs (3)
  • Legião Urbana (3)
  • Gilberto Gil (3)


PLACAR POR DÉCADA

  • anos 20: 2
  • anos 30: 2
  • anos 40: -
  • anos 50: 12
  • anos 60: 55
  • anos 70: 79
  • anos 80: 76
  • anos 90: 55
  • anos 2000: 7
  • anos 2010: 4


*séc. XIX: 2
*séc. XVIII: 1

PLACAR POR ANO

  • 1986: 14 álbuns
  • 1985: 13 álbuns
  • 1972 E 1991: 12 álbuns cada
  • 1967: 11 álbuns
  • 1968, 1969, 1970, 1971, 1976 e 1992: 10 álbuns cada


PLACAR POR NACIONALIDADE

  • Estados Unidos: 110 ártistas
  • Inglaterra: 77 artistas
  • Brasil: 70 artistas
  • Alemanha: 6 artistas
  • Canadá e Irlanda: 4 artistas cada
  • Escócia: 3 artistas
  • México: 2 artistas
  • Suiça, Jamaica, Islândia, Gales, Itália, Austrália e Hungria: 1 cada










quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Música da Cabeça - Programa #21


Já pensou num programa que tem do jazz de Lee Morgan - Blue Note Records ao punk rock dos Os Replicantes? Pois nós temos a solução! Este programa se chama Música da Cabeça, da Rádio Elétrica. Na edição de hoje, às 21h, além dos quadros fixos e móveis, a sempre abordando temas interessantes que estiveram em pauta durante a semana, vão rolar também David Bowie, Milton Nascimento, Racionais MC's e mais. Comprou a ideia? Então sintoniza lá e escuta o programa hoje. Produção e apresentação: Daniel Rodrigues.

Ouça: Música da Cabeça - programa #21

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Dossiê ÁLBUNS FUNDAMENTAIS 2015





David Bowie nos deixou
ainda na liderança dos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS
2015 acabou e como sempre, fazemos aqui no ClyBlog aquele balanço da movimentação dos álbuns fundamentais no ano anterior: artistas com mais discos na nossa lista, países com mias representantes, o ano e a década que apresentam mais indicados e outras curiosidades.
O ano abriu com a publicação de número 300 dos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS que teve a especialíssima participação do escritor Afobório falando sobre o grande "Metrô Linha 743", resenha que marcou assim a estreia, mais que merecida, de Raul Seixas no nosso time de fundamentais.
Outros que já estavam maIs que na hora de entrarem pra nossa lista e que finalmente botaram seu primeiro lá foram a musa punk, Patti Smith; o poeta do rock brasileiro, Cazuza; a banda cult Fellini; o grande Otis Redding, os new wave punk do Blondie; os na´rquicos e barulhentos Ratos de Porão; o mestre do blues Howlin' Wolf; e em especial o Mr. Dynamite, James Brown, com seu clássico no Apollo ThetreAlguns, por sua vez, se afirmaram entre os grandes tendo enfim seu segundo disco indicado pra mostrar que não foi acaso, como é o caso de Cocteu TwinsChico Science com sua Nação ZumbiLobão e Björk.
Com o ingresso, em 2015, do ótimo Ouça o que eu digo: não ouça ninguém", os Engenheiros do Hawaii finalmente completam sua trilogia da engrenagem; Bob Dylan que foi o primeiro a ter dois álbuns seguidos nos Álbuns Fundamentais, lá em 2010, depois de um longo jejum finalmente botou seu terceiro na lista, o clássico "Blonde On Blonde"; já John Coltrane que passou um bom tempo apenas com seu "My Favourite Things" indicado aqui, de repente, num salto, apenas em 2015, teve mais dois elevados à categoria de Fundamental, muito por conta do cinquentenário destes dois álbuns, bem como de outro cinquentão da Blue Note que também mereceu sua inclusão em nossa seleção, o clássico 'Maiden Voyage" de Herbie Hancock, alem do fantástico The Shape of Jazz to Come" como homenagem merecida a Ornette Coleman, falecido este ano.
Por falar em falecido recentemente, não tem como deixar de falar em David Bowie que deixa este mundo na liderança dos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS mostrando que toda a idolatria e reconhecimento do qual gozava não era a toa. Mas ele não está sozinho na ponta! Alavancado pela inclusão de seu ótimo "Aftermath", os Rolling Sones alcançam os líderes e empatam com Bowie e com seus "rivais", os Beatles, prometendo grandes duelos para as próximas edições dos A.F.
Como curiosidades, se no ano passado tivemos mais trabalhos de séculos passados, no último ano os A.F. tiveram um certo crescimento o número de álbuns produzidos no século XXI. Muito por conta de uma nova galera talentosa que vem surgindo por aí como Lucas Arruda e Tono que tiveram seus álbuns, "Sambadi" e "Aquário", respectivamente, reconhecidos  e incluídos no hall dos grandes álbuns. Os garotos também colaboraram para um fato interessante: o altíssimo número de discos nacionais neste ano. Foram 15 no total, empatando com o número dos norte-americanos neste ano e deixando bem para trás os ingleses com apenas 3 em 2015. O pulo brasileiro refletiu-se na tabela geral e pela primeira vez desde o início da seção o Brasil está à frente da Inglaterra em número de discos.
A propósito, falando de Brasil, se formos falar em termos nacionais, a principal mudança foi a elevação de Caetano VelosoEngenheiros do Hawaii e Tim Maia à vice-liderança, dividindo-a ainda com GilLegião e Titãs. Na ponta, segue firme o Babulina, Jorge Ben, com 4 álbuns fundamentais.
E aí? O que será que nos reserva 2016? Como será a batalha Beatles vs Stones? Alguém alcançará ou passara Jorge Ben na corrida nacional? E os ingleses reagirão contra os brazucas e mostrarão que são a terra do rock? Aguarde as próximas postagens e acompanhe o ClyBlog em 2016. Por enquanto ficamos com os números de 2015 e uma visão geral de como andam as coisas nos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS.


PLACAR POR ARTISTA (GERAL)

  • The Beatles: 5 álbuns
  • David Bowie 5 álbuns
  • The Rolling Stones 5 álbuns
  • Stevie Wonder, Cure, Led Zeppelin, Miles Davis, John Coltrane, Pink Floyd, Van Morrison, Kraftwerk e Bob Dylan: 3 álbuns cada


PLACAR POR ARTISTA (NACIONAL)

  • Jorge Ben (4)*
  • Titãs, Gilberto Gil*, Legião Urbana, Engenheiros do Hawaii e Tim Maia; 3 álbuns cada
*contando o álbum Gil & Jorge

PLACAR POR DÉCADA

  • anos 20: 2
  • anos 30: 2
  • anos 40: -
  • anos 50: 13
  • anos 60: 63
  • anos 70: 90
  • anos 80: 82
  • anos 90: 62
  • anos 2000: 8
  • anos 2010: 7


*séc. XIX: 2
*séc. XVIII: 1

PLACAR POR ANO

  • 1986: 15 álbuns
  • 1985 e 1991: 13 álbuns cada
  • 1972 e 1967: 12 álbuns cada
  • 1968, 1976 e 1979: 11 álbuns cada
  • 1969, 1970, 1971, 1973, 1989 e 1992: 10 álbuns cada


PLACAR POR NACIONALIDADE*

  • Estados Unidos: 125 obras de artistas*
  • Brasil: 85 obras
  • Inglaterra: 80 obras
  • Alemanha: 6 obras
  • Irlanda: 5 obras
  • Canadá e Escócia: 4 cada
  • México e Austrália: 2 cada
  • Suiça, Jamaica, Islândia, Gales, Itália e Hungria: 1 cada

*artista oriundo daquele país




Cly Reis