“Minha vida é a música.
Meu amor
é a música.”
fala de Dale Turner,
personagem vivido por Dexter Gordon
no filme
“Por Volta da Meia Noite”
Quem é amante de jazz e afeito às comparações futebolísticas a diversos
outros assuntos, vai concordar: se Miles Davis é o Pelé e John Coltrane o Garrincha do jazz, Dexter Gordon é o
Nilton Santos. Miles por conta da longevidade e quantidade de gols feitos nas diferentes
eras em que atuou. Coltrane pela meteórica e decisiva passagem, marcada pela
genialidade, pela paixão por sua arte e pela habilidade jamais igualada.
Gordon, por sua vez, poderia ter o mesmo apelido que o zagueiro do Botafogo e
das duas primeiras seleções brasileiras campeãs mundiais: “enciclopédia”. O
saxofonista era um craque do jazz.
Atravessando em atividade da fase áurea ao declínio do gênero, dos anos
40 aos 90, o californiano Dexter Keith Gordon estudou clarinete aos 13 anos e
na adolescência já dominava o sax tenor. Só na primeira década como músico
profissional já somava passagens pelas bandas de Louis Armstrong, Nat “King”
Cole, Lionel Hampton, Ben Webster, Lester Young e nas orquestras de
Fletcher Henderson e Billy Eckstine, esta última, com a qual tocou para gente
do calibre de Sarah Vaughan e Dizzy Gillespie. Ainda nos anos 40, gravou
pela Savoy, ao lado dos colegas Wardell Gray e Teddy Edwards, discos revolucionários
que se tornariam referência para a então nova geração de saxofonistas tenores,
entre os quais Coltrane e Sonny Rollins. Como se não bastasse, na década
seguinte, o jovem alto e galante foi também um dos precursores de outra
revolução: o estilo mundialmente assimilado chamado bebop.
Chegado aos anos 60, na faixa dos 30 e já com toda essa bagagem, mesmo
não sendo uma celebridade de massas (o que cantores como Frank Sinatra e Tony
Bennett cumpriam com autoridade), era evidente que o passe de Dexter Gordon
estava valorizado. Pois o produtor Alfred Lion resolveu bancar. Em 1961, chama-o
para seu selo, Blue Note, no qual permanece por quatro anos. O crème de la crème dos sete álbuns
gravados por Gordon neste período é “Go!”,
de 1962. Com a companhia de uma estelar “cozinha”, formada pelo requintado
pianista Sonny Clark, o ágil baterista Billy Higgins e o flexível baixista
Butch Warren, Gordon usa de toda sua maestria e compõem um disco impecável,
considerado um dos melhores de todos os tempos da discografia jazz. Virtuose e
dono de um estilo abarcante – no qual se ouviam facilmente a fineza de Armstrong,
a pulsação de Charlie Parker, a sutileza de Young e a potência de Coleman
Hawkins – é possível derivar do seu fraseado a tradição e a modernidade. Ele,
que havia passado pela descoberta do swing,
pelo estouro das big bands e pelo
advento do cool e do bebop, junta tudo isso de uma forma
absolutamente natural e híbrida.
Nesse clima abre a literalmente saborosa “Chees Cake”, única composição
do álbum de autoria de Gordon. Acordes de baixo anunciam o começo, somando-se a
este a bateria, marcada no prato de ataque. É quando vem Gordon com seu
vigoroso e elegante sopro, extraído de pulmões possantes guardados em sua
parruda caixa torácica. O riff, dos
mais marcantes do cancioneiro jazz. Desenvolve-se um solo extenso e gostosamente
inventivo, rebuscando o bebop e o recheando-lhe
com novos temperos, que coloca a canção no limiar entre o cool e o hard bop. Clark
assume brevemente em um notável solo antes de Gordon retornar para a segunda
intervenção. Nova maravilha. Fluxo altamente vibrante e suingado, com uma
engenhosa escolha das notas e escalas que só poderiam sair de um ”decano” como
Gordon.
"Guess I'll Hang My Tears Out to Dry", na sequência, é um
verdadeiro convite à melancolia e ao romantismo da noite nova-iorquina. Balada
de ouvir dançando agarradinho ou para afundar as mágoas num copo de bourbon sem gelo. Linda. O soprar de
Gordon é seguro e cheio, mas não menos lânguido e introspectivo, como quem está
escutando o próprio coração e reproduzindo-o em sons. É possível sentir cada nota,
cada sentimento. O sax se alonga em sua conversa com os apaixonados e/ou
descornados, tomando-lhe quase 4 minutos. Dá um passe para que Clark faça, com
habilidade, mate no peito e ponha no chão. O pianista faz um afago nas teclas,
enquanto Higgins vaporiza a atmosfera com uma levada nas escovinhas tendo como
companheiro para isso Warren serpenteando as cordas. Mas não dura muito tempo a
vez do trio, pois Gordon “retoma a bola” para finalizar a canção repetindo
frases e retomando as mesmas ideias amorosas de seu sax. Junto a "Blue in Green", de Miles, “Round Midnight”, com Chet Baker, “Naima”, de Coltrane, “Like
Someone in Love”, com Ella Fitzgerald, está entre as 10 grandes baladas jazz da
história.
"Second Balcony Jump" vem para elevar o ânimo num jazz bluesy animado e gracioso. Nada menos
que 3 minutos e 40 de um improviso solto e ininterrupto de muita expressividade
e agilidade de Gordon. Como nas anteriores, é Sonny Clark quem tem a primazia
do segundo solo, o qual faz com absoluta destreza de quem “chuta” com as duas
valendo-se da liberdade dada pelo líder. Gordon reaparece já dentro da área para
finalizar com uma mais curta improvisação em que ratifica sua presença. Higgins
dá um breve solo antes do saxofonista terminar o número brincando ao executar o
clássico desfecho: “pam-pam-ram-ram-pam/
pam pam!”.
Sintonizado com um ritmo latino que se fazia novo nos Estados Unidos e
que tomava o gosto dos músicos estrangeiros, uma tal de bossa-nova, Gordon traz
uma feliz interpretação do clássico “Love for Sale”. Assim como Stan Getz,
Charlie Byrd, Henri Mancini, Vince Guaraldi e outros impressionados com as inovações harmônicas e melódicas levadas a eles principalmente por conta da
trilha do filme “Orfeu Negro”, de 1959 (o disco “Bossa Nova at Carnegie Hall”,
o definitivo carimbo internacional da bossa-nova, seria gravado no final
daquele ano), o saxofonista entra no gingado brasileiro e tece uma malemolente
versão para a música de Cole Porter. Muito ajudado pela marcação sambada de Higgins. Clark, visivelmente movido pelo piano de Tom Jobim, é outro a entrar
no espírito bossa-novista. Gordon, por sua vez, dá um show de manutenção dos
tempos durante o riff, soltando a
criatividade e apuro nos improvisos. Clark, por sua vez, vive aqui seu mais
inspirado solo, engenhoso dentro dos tempos circulares que encadeia.
"Where Are You?" é mais uma balada para morrer de amor. As
pronúncias seguras de sentimento do sax impressionam pela elasticidade e
controle dos tempos, realizando leves atrasos, ataques carregados e modulações,
todas precisas. Por volta dos 3 minutos e 30, Gordon intensifica a emotividade
ao subir um tom. Prenúncio de uma breve pausa para o mais uma vez sutil e
inteligente dedilhado de Clark, envolto num clima de nightclub, de fumaças de cigarro e cheiro de trago no ar, forjada
pela condução de Higgins e Warren. “Go!” finaliza com a sibilante "Three
O'Clock in the Morning", a qual começa com o piano marcando o tique-taque
do relógio nas agudas teclas pretas. São três da manhã e é possível enxergar um
casal enamorado passeando feliz e bêbado pelas ruas desertas da Big Apple
entrando de bar em bar e alheios a qualquer coisa que não seu affair. É assim que o disco se encerra:
na felicidade inebriada da boemia da Village Vanguard.
A lenda em torno de Dexter Gordon não terminaria em “Go!”. Um pouco
pela desvalorização de “velhos” como ele em detrimento dos jovens ases do free-jazz e da avant-garde – sem falar
nos astros pop ascendidos naquela década, quase hegemônicos na indústria
fonográfica de então –, um pouco para se isolar por conta do vício em heroína,
o músico norte-americano refugia-se na Europa. Lá é redescoberto e passa a
viver em Paris e em Copenhague, onde vira a celebridade que não tinha sido até
então. Torna à terra natal somente em 1976, quando é recebido com honras.
Afinal, não é todo dia que se tem de volta o herdeiro de Armstrong, Parker,
Hawkins e Young. Passados o estouro do rock
‘n’ roll, acalmado o fervor dos anos hippies
e assimilada a hibridização do jazz com o rock – a esta época já haviam morrido
Coltrane, Lee Morgan, Jimi Hendrix, Janis Joplin e iam-se já seis anos do rompimento dos Beatles –, Dexter Gordon finalmente ocupa seu lugar dentro de
casa.
Ainda, quatro anos antes de morrer, aos 63, roda, com o cineasta
francês Bertrand Tavernier, o memorável filme “Por Volta da Meia-Noite” (1986),
em que protagoniza o papel justamente de um saxofonista de jazz norte-americano
autoexilado em Paris, onde é ovacionado. A abordagem dos problemas com drogas e
álcool, os desajustes familiares e a saudade do ninho demonstrada pelo
personagem tornam o filme bastante autobiográfico, mesmo que a história se
baseie também em parte na trajetória de dois dos mestres de Gordon: Young e Bud
Powell. A aura mítica que se cria em torno do alter-ego de Gordon, Dale Turner, é tão natural quanto a sua
interpretação de si mesmo no longa: os gestos entre o charmoso e o ébrio, a voz
naturalmente rouca, a fala pausada, o sorriso maroto, o porte altivo preservado
da juventude. Pela atuação, o músico chegou a concorrer ao Oscar de Melhor Ator
naquele ano. Não precisou nem vencer para reforçar o mito do então último
expoente da gênese do jazz, gênero do qual ele foi, se não o maior como um Pelé
ou o mais genial Coltrane, o exemplar mais completo como Nilton Santos. De modo que “Go!” não é simplesmente um disco: é um “golaço!”.
FAIXAS
1. "Cheese Cake" (Dexter Gordon) - 6:33
2. "Guess I'll
Hang My Tears Out to Dry" (Jule Styne/Sammy Cahn) - 5:23
3. "Second
Balcony Jump" (Billy Eckstine/Gerald Valentine) - 7:05
4. "Love for
Sale" (Cole Porter) - 7:40
5. "Where Are
You?" (Jimmy McHugh/Harold Adamson) - 5:21
6. "Three O'Clock
in the Morning" (Dorothy Terris/Julian Robledo) - 5:42
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OUÇA O DISCO
por Daniel Rodrigues
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