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segunda-feira, 28 de junho de 2021

Dexter Gordon - "One Flight Up" (1964)

 

“Não sei se houve algum significado especial no título deste álbum mas, de qualquer forma, poderia ser interpretado apropriadamente como o significando de que os pretendentes avançaram num voo em criatividade, que seus voos de fantasia são mais livres do que nunca sob os céus de Paris. Juntos, os cinco oferecem uma demonstração esplêndida de como falar a língua internacional do jazz.”
Leonard Feather, do texto original da contracapa do disco

Quase chegada a metade dos anos 60, Dexter Gordon já estava consagrado como um gigante do jazz norte-americano. Saxofonista "à moda antiga", carregava no corpanzil de 1,96m a estatura de mitos do sax tenor que o antecederam, como Coleman Hawkins, Charlie Parker, Lester Young e Ben Webster. Nem a aparição àqueles idos de jovens talentos do instrumento, como John Coltrane, Sonny Rollins, Joe Henderson e Wayne Shorter intimidavam o velho músico. Menos ainda as inovações sonoras e conceituais pareciam abalá-lo. Free Jazz? Avant Garde? Pós-bop? Creative jazz? Não importava. Confiante e em plena forma, seguia na sua linha clássica como um dos precursores do bebop.

O período em que esteve na Blue Note é o melhor recorte desta boa fase. Após anos pulando entre os selos Decca, Savoy, Jazzland e outros – sem, contudo, estabelecer-se em nenhum deles –, ele emenda, entre 1961 e 1966, uma série de sete álbuns memoráveis como "Doin' Alright", "Dexter Calling" e o aclamado "Go", constante invariavelmente em listas de obras fundamentais da história jazz. Todos no melhor estilo hard-bop, sua jurisdição. Somado a isso, recebe a acolhida de braços abertos da Europa, que, assim como para com diversos outros nomes do jazz, o idolatrava. Muda-se para Paris e vive um momento iluminado na – e pela –“Cidade Luz”. A confiança era tamanha que, para sustentar toda a envergadura de Dex, fosse física ou musical, precisava de tanto chão que não cabia nem nas dimensões territoriais de Estados Unidos e França juntas. Por isso, não era se de estranhar que passasse a também pisar novos terrenos. Foi o que fez em "One Flight Up", de 1964, passo firme do músico nos domínios do jazz moderno. 

Mas como estreitar a ponte entre Novo e Velho Mundo? Levando seus músicos para gravar no Barclay Studios, em Paris, ora. Aos 41 anos, assimilando como um garoto os preceitos do jazz modal – os quais haviam se tornado comuns ao repertório jazzístico havia uns 5 anos pelas mãos, principalmente, de Miles Davis e Dave Bruback –, Gordon, como vinha procedendo já de trabalhos anteriores, rodeia-se de uma banda que casa juventude e experiência: os conterrâneos Donald Byrd, ao trompete (32 anos); Kenny Drew, piano (36); e Art Taylor, bateria (30), mais o dinamarquês Niels-Henning Orsted Pedersen (de apenas 18 anos), ao baixo. O conjunto lhe dá, ao mesmo tempo, suporte à sua verve solística admirável e o municia desse ímpeto modernizante. O resultado é uma química perfeita entre o veterano saxofonista e grupo em apenas três faixas, todas irretocáveis.

E se é pra aderir àquelas que se apresentavam como novas formas, então que seja, literalmente, com grandeza. "Tanya" é isso: 18 min e 21 seg que preenchem o lado A com a fluidez controlada das escalas modais, o que não impede (até ressalta, aliás) as capacidades de improviso. Gordon, be-bopper nato acostumado a números extensos como os que executava nos night clubs desde os anos 40, destrincha um solo magnífico em que alia seu tradicional lirismo a um vigor renovado. Mas o band leader não monopoliza o espaço, dando igual prestígio a seus companheiros, a se ver pela participação de Byrd, autor da música, e um ainda mais inspirado Drew. Isso sem falar na linha de baixo marcante de Pedersen, das melhores performances do gigante de quatro cordas que o jazz já presenciou, digna de um Ron Carter, Paul Chambers ou Dave Holland.

Fôlego recuperado, o segundo lado do álbum traz "Coppin' the Haven", escrita por outro membro da banda, o pianista Kenny Drew. Suingue com alma de blues e bossa nova, casa a classe do bebop com texturas modernas, a se ver pelo toque destacado da bateria de Taylor, potente e sem discrição nas investidas na caixa como faziam os contemporâneos Elvin Jones e Tony Williams à época. Sinais de que os gêneros pop como o a soul, o rock e a música étnica já contaminavam o ambiente jazzístico. E Gordon os assimila com generosidade madura. A se destacarem ainda os solos – além do de Gordon, impecável – de Byrd ao trompete, forte e pronunciado, e de Drew ao piano, habilidoso em conduzir o improviso e não esquecer de manter a base.

O disco finaliza com um popular song de 1939 cujos acordes o jazz já havia incorporado havia anos. Aí, sai da frente, que Dexter Gordon vem com um show de interpretação! É a balada "Darn that Dream", imortalizada na voz de Billie Holliday e gravada por Miles Davis em seu clássico "Birth of the Cool", de 1949. Com Gordon e seu quarteto, o standart se redimensiona, ganhando uma amplitude onírica invejável que somente tenoristas daquela estirpe são capazes. Quanta fineza e sensibilidade! Notas e acordes saem elegantes, altivos e esguios como o seu emissor.

Apenas em 1976, de volta à terra natal, terminaria a temporada europeia de Gordon, a qual, além de extensa, findava-se absolutamente produtiva, ajudando a reforçar a mitologia em torno do lendário artista. “One...” é um retrato desta fase áurea, a verdadeira Conexão França do jazz. Só mesmo um gigante como Gordon para plantar com tamanha autoridade e firmeza um pé em cada continente.

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FAIXAS:
1. "Tanya" (Donald Byrd) - 18:18
2. "Coppin' the Haven" (Kenny Drew) - 11:17
3. "Darn That Dream" (Eddie DeLange, Jimmy Van Heusen) - 7:30
4. "Kong Neptune” (Dexter Gordon)*
*Faixa-bônus da versão em CD remasterizada de 2015

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Chick Corea - "Mad Hatter" (1978)




“CHAPELEIRO: Se você conhecesse o Tempo tão bem quanto eu conheço você não falaria em gastá-lo, como uma coisa.
Ele é alguém.
ALICE: Não sei o que você quer dizer.
CHAPELEIRO: É claro que você não sabe!
Eu diria até mesmo que você nunca falou com o Tempo!
ALICE: Talvez não, mas sei que devo marcar o tempo
quando aprendo música.”

trecho de “Alice no País das Maravilhas”,
de Lewis Carroll


Depois de “Blow By Blow” do Jeff Beck, meu preferido, apresento pra vocês mais um favoritíssimo da casa: “The Mad Hatter”, do pianista e tecladista norte-americano Chick Corea. Como sempre, um pouquinho de história: em 1978, aos 37 anos, Armando Anthony Corea já tinha uma longa estrada na música. Tocou com os percussionistas Mongo Santamaria e Willie Bobo, com o flautista Herbie Mann e com o sax tenor Stan Getz.  Gravou seus primeiros discos solo na metade dos anos 60 e mergulhou de cabeça na sonoridade free daqueles tempos.

Em 1968, foi convidado por Miles Davis a substituir Herbie Hancock em sua banda. Participou dos seminais discos "In a Silent Way" e “Bitches Brew”. Paralelamente, tinha os grupos Circle – com e sem o multiinstrumentista Anrhony Braxton – e a primeira encarnação do Return to Forever, da qual participavam os brasileiros Airto Moreira e Flora Purim, além de Joe Farrell e Stanley Clarke. Após dois discos com esta formação, Corea foi com tudo pro fusion, trazendo para a banda, primeiro o guitarrista Bill Connors, e depois descobrindo um jovem de 19 anos, Al Di Meola.

Neste tempo todo, Corea fazia projetos especiais para a gravadora ECM, como discos de piano solo, duetos com o vibrafonista Gary Burton e trios com Dave Holland e Barry Altschul. Em 1976, sentindo a necessidade de misturar a linguagem acústica de seus discos da ECM com o fusion, muito em moda na época, Corea fez uma trilogia de discos temáticos onde estas preocupações tomam a forma de música: “The Leprechaun”, baseado nas histórias de duendes, e “My Spanish Heart”, onde ele se debruça sobre a Espanha e seus sons, ambos de 76, e “The Mad Hatter”, de 78. Na minha opinião, este terceiro é provavelmente o trabalho em que Corea consegue mesclar as duas linguagens – e o acento erudito com quinteto de cordas – com sucesso total, musicalmente falando.

Baseado no clássico livro de Lewis Carroll, "Alice no País das Maravilhas"a chave para entender o disco está na capa com Corea vestido de Chapeleiro Maluco. A viagem inicia aí. Em termos musicais, "The Mad Hatter" começa com Corea pilotando seus teclados em “The Woods”. Com moogs, mini-moogs, sintetizadores, pianos elétricos e outros bichos, ele consegue reproduzir os sons de uma floresta, com sapos, grilos e insetos, dando uma prévia do que virá pela frente, a mistura de clássico com moderno. “Tweedle Dee” segue na mesma trilha, fazendo uso das cordas e dos sopros (três trompetes e um trombone), pode-se verificar com clareza a influência de Bela Bártok em sua música. Na música seguinte, “The Trial”, temos a primeira aparição da exímia cantora e tecladista, além de mulher de Corea, Gayle Moran (que havia participado da segunda formação da Mahavishnu Orchestra, ao lado de John McLaughlin e Jean-Luc Ponty). No julgamento do Rei de Copas, retirado diretamente do livro de Carroll, Gayle canta com acento lírico: “Who’ll stole the tarts / Was it the king of Hearts?”.

O principal momento jazzístico do disco acontece com “Humpty Dumpty”, uma preferida dos músicos de Porto Alegre. Com um quarteto básico de jazz, Corea consegue performances extraordinárias de seus colegas Joe Farrell no sax tenor, Eddie Gomez no baixo acústico e Steve Gadd na bateria. Em meio a todos aqueles teclados, cordas e sopros, é interessante ouvir o contraste de um grupo acústico tocando um hard-bop clássico. Cada músico dá seu showzinho particular, mas preste atenção no som de baixo de Gomez. Madeira pura!

O lado 1 do LP termina com “Prelude to Falling Alice”, onde o tema é tocado ao piano e “Falling Alice”, quando o pianista e compositor usa de todo o arsenal sonoro para contar a queda de Alice. Gayle Moran canta o tema principal, acompanhada pelas cordas e pelos sopros. Nesta música, temos a primeira aparição de Herbie Hancock no piano elétrico, fazendo a harmonia para o solo de mini-moog de Corea. Neste período, ele e Corea começam a gravar duos de pianos. Destaque também para o sax tenor de Farrell, um talento subestimado do jazz. Como estamos no tempo do LP, há um fechamento musical da história pra que as coisas comecem de novo no lado 2.

Ao virar o disco, “Tweedle Dum” reprisa o tema de “Tweedle Dee” numa espécie de introdução da melhor faixa do disco, “Dear Alice”. Com 13 min e 7 seg, a música é uma espécie de tour de force de todos os envolvidos. Pra começar com Eddie Gomez fazendo a melodia no baixo acústico e Corea fazendo pequenos comentários ao piano acústico. Durante 2min e 46seg, o baixista conduz a música com seu solo, à medida que Gadd vai entrando aos poucos com acentos rítmicos na bateria. Moran entra para cantar o tema principal e aí temos Farrell brilhando no solo de flauta, secondado pelo quinteto de cordas e pelos sopros. Depois, Chick mostra toda sua destreza e musicalidade ao piano. Tudo isso com Gadd dando seu show à parte e mostrando porque é um dos bateristas mais cultuados do mundo. Na época, ele deu uma entrevista dizendo que pedia as partituras de piano de Corea e estudava em casa antes de gravar. Esta preocupação deu resultado: em algumas passagens de "Dear Alice", os dois instrumentos parecem uma coisa só. Esta música sozinha valeria o disco inteiro, tamanha a musicalidade que Corea e seus músicos atingem, sem falar no arranjo perfeito que contrapõe as cordas e os sopros.

Para encerrar o disco, "The Mad Hatter Rhapsody" com Corea no mini-moog e Hancock em sua segunda aparição no piano elétrico. O encontro destas duas feras é sensacional. Enquanto Corea sola, Hancock faz harmonias diferenciadas no Fender Rhodes. Nesta faixa, Hancock consegue tirar Gadd da bateria e coloca seu fiel escudeiro Harvey Mason, que dá um suingue todo especial à faixa. Depois que os dois tecladistas demonstram toda a sua qualidade, vem um interlúdio com o tema principal tocado pela flauta e pelos sopros. Claro que a latinidade não poderia ficar de fora e uma passagem de uma salsa estilizada com teclados e Gadd no cowbell fazem a cama para o tema final onde volta Gayle Moran para apoteose final. Um disco maravilhoso. Quem não tem, procure nas lojas ou na internet.
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FAIXAS:
01. "The Woods" – 4:22
02. "Tweedle Dee" – 1:10
03. "The Trial" – 1:43
04. "Humpty Dumpty" – 6:27
05. "Prelude to Falling Alice" – 1:19
06. "Falling Alice" (Chick Corea/Gayle Moran) – 8:18
07. "Tweedle Dum" – 2:54
08. "Dear Alice" (Corea/Moran) – 13:06
09. "The Mad Hatter Rhapsody" – 10:50
todas de Chick Corea, exceto indicadas

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Baixe para ouvir:


sábado, 25 de outubro de 2014

Stanley Jordan no 4º Canoas Jazz Festival



Jordn fazendo
seu peculiar "tapping" na guitarra


Fiquei sabendo hoje com alegria da vinda do guitarrista norte-americano Stanley Jordan ao Rio Grande do Sul para a 4ª edição do Canoas Jazz Festival. Promovido pela Prefeitura de Canoas, esse festival vem surpreendendo ano após ano com interessantíssimas programações e atrações internacionais que só se tem chance de ver dentro do evento. Ano passado, por exemplo, tive a oportunidade de ver um show histórico de Ravi Coltrane no Parque Municipal Getúlio Vargas, mas sei também que, em 2012, já havia estado por aqui outro monumento do, Dave Holland. Ou seja, além do Stanley Jordan, o próprio festival é uma atração em si por valorizar o estilo de forma tão consciente e qualificada.
Agora, com Jordan pisando mais uma vez em terras gaúchas, a ideia é não perder, tendo em vista que o músico já tocou diversas vezes por aqui desde os anos 80 e nunca o assisti. Sou fã do seu característico jeito de tocar desde pequeno, desde quando nem sabia que aquilo que ouvia chamava-se jazz. Além disso, ele é um cara envolvido com a arte da música de forma integral e profunda (Jordan é musicoterapeuta, e inclusive irá ministrar uma oficina a crianças carentes com deficiência em uma escola pública de Canoas). Por isso, promete ser um show marcante do autor de discos como “Magic Touch” e “Touch Sensitive”.
O Canoas Jazz tem na sua programação shows nas estações da Trensurb, entre os dias 20 e 27 de novembro, e shows em palco ao ar livre, no Parque Getúlio Vargas, nos dias 28 e 29 de novembro, este, dia em que está previsto show de Stanley Jordan. Vamos aguardar a programação completa, que sai em breve.


por Daniel Rodrigues

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Meus 10 melhores baixistas de todos os tempos

Não é a primeira vez – nem deve ser a última – que, abismado com alguma lista de supostos “melhores” publicada na imprensa, eu venha aqui por meio do Clyblog manifestar a minha contrariedade. E preferências. O modo de fazê-lo é, no entanto, não apenas criticando, mas montando a minha própria lista em relação àquele mesmo tema. Desta vez, o alvo é uma listagem publicada pela famosa revista de música britânica New Musical Express, que elencou os 40 maiores baixistas de todos os tempos (?!).

De novo, minha ressalva é pelos critérios. Como respeitar uma seleção que não inclui, pelo menos entre os 40, nomes fundamentais do instrumento para o desenvolvimento da música pop como Geddy Lee, do Rush, ou Steve Harris, do Iron Maiden? “Ah, Simon Gallup (The Cure) e Matt Freeman (Rancid) não são ‘dinossauros’ virtuosos”. Mas Krist Novoselic (Nirvana) nem Colin Greenwood (Radiohead) o são – e estão entre os votados. E mais: está lá – por merecimento, diga-se – o jazzista Charles Mingus. Ok, mas, se vai entrar na seara do jazz, da qual diversos músicos são de altíssima qualidade, técnica e influência, como não abarcar os óbvios nomes de Ron Carter, Paul Chambers, Jimmy Garrison, Stanley Clarke, Marcus Mïller e Dave Holland? Ou ainda: em 40, nenhum brasileiro? Nem Dadi, Bi Ribeiro ou Arthur Maia? Num mundo globalizado e conectado como o de hoje, foi-se o tempo em que músicos como eles eram meros desconhecidos de um país de música desimportante para o cenário mundial.

Como dizem por aí: “se não sabe brincar, não desce pro play”! Parece, sinceramente, que a tão consagrada NME não tem gente suficientemente entendedora daquilo que está tratando. As lacunas, sejam pelos critérios tortos, desconhecimento ou até preconceito, comprometem as escolhas largamente. Além disso, a ordem de preferências é bastante questionável. Parece terem optado por contemplarem baixistas de todos os estilos e subgêneros dentro daquilo que se considera música pop e deram “com os burros n’água”. Claro que há acertos, mas muito mais pela obviedade (seriam também loucos de não porem Jaco Pastorius, John Paul Jones, Kim Deal ou John Entwistle), fora que há aberrações como Flea aparecer numa ridícula 22ª posição - a Rolling Stone, em 2011, havia escolhido o baixista do Red Hot Chili Peppers como 2º melhor...

Pois, então, minimamente tentando “corrigir” o que li, monto aqui a minha lista de 10 preferidos do contrabaixo. Toda classificação deste tipo, inclusive a minha, é cabível de julgamento, sei. Porém, ao menos tento, com o conhecimento e gosto que tenho, desfazer algumas injustiças a quem ficou inexplicavelmente mal colocado ou, pior, nem incluso foi. E faço-o com algumas regrinhas: 1) sem ordem de preferência; 2) lançando breves justificativas e; 3) ao final de cada, citando três faixas em que é possível ouvir bons exemplos do estilo, performance e técnica de cada um dos escolhidos.

1 - Peter Hook
Um dos mal colocados da lista da NME, Peter Hook é certamente o baixista da sua geração que melhor desenvolveu sua técnica, tornando-se quase que o principal “riffeiro” do New Order. Entretanto, seu estilo próprio e qualidade já se notam desde o 1º disco da Joy Division. Baixo inteligente, potente e de muita personalidade.

Ouvir: “She’s Lost Control” (Joy Division); "Leave Me Alone" (New Order); “Regret” (New Order)



2 - Ron Carter
Qualquer um que pense em elencar os melhores contrabaixistas de todos os tempos, jamais pode deixar de mencionar o mestre do baixo acústico, cujo toque inconfundível tem inequívoca presença para a história do jazz, da MPB e da música pop moderna. O homem simplesmente tocou no segundo quinteto clássico de Miles Davis, participou da gravação de “Speak No Evil”, do Wayne Shorter, e tocou nos discos “Wave” e “Urubu” de Tom Jobim, pra ficar em três exemplos. Aos 80 anos, Ron Carter é uma lenda vida.

Ouvir: “Blues Farm” (Ron Carter); “O Boto” (com Tom Jobim); “Oliloqui Valley” (com Herbie Hancock)


3 - Flea
O cara parece de outro mundo. Compõe linhas de baixo complexas e não apenas sustenta tal e qual durante os show como o faz improvisando e pulando enlouquecidamente. Vendo Flea no palco, seja na mítica banda punk Fear, no Chili Peppers ou em participações como as com Jane’s Addiction e Porno for Pyros, parece fácil tocar baixo. Como diziam Beavis & Butthead: “Flea detona!”

Faixas: “Sir Psycho Sexy” (Red Hot Chili Peppers); “Pets” (Porno for Pyros); “Ugly as You” (Fear)


4 - Jaco Pastorius
Dos acertos da lista da revista. Afinal, como deixar de fora a maior referência do baixo do jazz contemporâneo? O instrumentista e compositor, presente em gravações clássicas como “Bright Size Life”, de Pat Metheny, e “Hejira”, de Joni Mitchell, equilibra estilo, timbre peculiar e rara habilidade. Como seria diferente vindo de alguém que se diz influenciado (nessa ordem) por James Brown, Beatles, Miles Davis e Stravinsky?

Ouvir: “Birdland” (com Weather Report); “The Chicken” (Jaco Pastorius); “Vampira” (com Pat Metheny)


5 - Geddy Lee
Quando o negócio é power trio, fica difícil desbancar qualquer um dos três no seu instrumento. Caso de Geddy Lee, do Rush. Mas acreditem: ele não está na lista da NME! Pois é: alguém que cria e executa linhas de baixo altamente criativas, de estilo repleto de contrapontos (e ainda toca teclado com o pé ao mesmo tempo), não poderia deixar de ser citado jamais. Pelo menos aqui, não deixou.

Ouvir: “La Villa Strangiato”; “Xanadu”, “Spirit Of The Radio


6 - Les Claypool
Outro dos gigantes do instrumento que não tiveram sua devida relevância na lista da NME (29º apenas). Principal compositor de sua banda, o Primus (outro power trio), Claypool, além disso, é um verdadeiro virtuose, que faz seu baixo soar das formas mais improváveis. Tapping, slap, dedilhado, com arco: pode mandar, que ele manja. Domínio total do instrumento.

Ouvir: “My Name is Mud”; “Tommy The Cat”; “Mr. Krinkle


7 - Simon Gallup
Se Peter Hook aperfeiçoou o baixo da geração pós-punk, colocando-o à frente muitas vezes da sempre priorizada guitarra no conceito harmônico do Joy Division e do New Order, o baixista do The Cure não fica para trás. Dono de estilo muito próprio, seu baixo é uma das assinaturas do grupo. Se a banda de Robert Smith é uma das bandas mais emblemáticas dos anos 80/90 e responsável por vários dos hits que estão no imaginário da música pop, muito se deve às quatro cordas grossas de Gallup.

Ouvir: “Play for Today”; “Fascination Street”; “A Forest


8 - Mark Sandman
Talvez a maior injustiça cometida pela NME – pra não dizer amnésia. Se fosse apenas pela mente compositiva e pelo belo canto, já seria suficiente para Sandman ser lembrado. Mas, além disso, o líder da Morphine, morto em 1999, era um virtuose do baixo capaz de inventar melodias com a elegância do jazz e a pegada o rock. Fora o fato de que seu baixo soava a seu modo, com a afinação totalmente fora do convencional, que ele fazia parecer como se todos os baixos sempre fossem daquele jeito: geniais.

Ouvir: “Buena”; “I'm Free Now”; “Honey White



9 - Bernard Edwards
A Chic tinha na guitarra do genial Nile Rodgers e no vocal feminino e no coro de altíssima afinação uma de suas três principais assinaturas. A terceira era o baixo de Bernard Edwards. O toque suingado e vivo de Edwards é um patrimônio da música norte-americana, fazendo com que a soul disco cheia de estilo e harmonia da banda influenciasse diretamente a sonoridade da música pop dos anos 80 e 90.

Ouvir: "Good Times" (Chic); “Everybody Dance“ (Chic); “Saturday” (com Norma Jean)"



10 - Bootsy Collins
Quando se pensa num contrabaixista tocando com habilidade e alegria, a imagem que vem é a de Bootsy Collins. Ex-integrante das míticas bandas Parliament-Funkadelic e da The J.B.’s, de James Brown, Bootsy é um dos principais responsáveis por estabelecer o modo de tocar baixo na black music. Quem não se lembra dele no videoclipe de “Groove is in the Heart” do Deee-Lite? A NME não lembrou...

Ouvir: “P-Funk (Wants to Get Funked Up)” (com Parliament); “Uncle Jam” (com Funkadelic); “More Peas” (com James Brown & The J.B.'s)



por Daniel Rodrigues
com a colaboração de
Marcelo Bender da Silva
e Ricardo Bolsoni

quinta-feira, 30 de abril de 2015

Ry Cooder - “Bop Till You Drop” (1979)




"Eu tinha tudo pronto, quando um desses incompetentes gerentes de gravadora ouviu a demo e decidiu que era uma merda de cachorro e que não valia a pena gravar, de modo que não me deixaria fazer isso. Aí então que eu a gravei [“The Very Thing That Makes You Rich (Makes Me Poor)”] em “Bop...” e, de repente, eles queriam saber quem era esse autor Sidney Bailey. Ridículo. Agora, até mesmo a gravadora não pode localizá-lo para lhe pagar os seus royalties. De repente, ele poderia estar sentado neste momento numa prisão e esse dinheiro poderia tirá-lo de lá. Ou talvez ele esteja doente e precise de uma operação...” 
Ry Cooder, em 1981




Fui apresentado ao Ry Cooder pelo meu amigo, colega de Famecos e atualmente professor de Filosofia da PUC, Cláudio Almeida. Ele foi aos Estados Unidos num período no final dos anos 70 e trouxe na bagagem uma fita cassete de um disco chamado “Bop Till You Drop”. Virou hit lá em casa e nas casas de amigos, especialmente na de Mauro Magalhães. A partir deste disco, começamos uma busca incessante pelos outros trabalhos do cara, um guitarrista de mão cheia e uma espécie de arquivo vivo da música americana do Século XX. É dele aquele solo lancinante de “Sister Morphine” dos Rolling Stones.

Como um profundo conhecedor da “americana”, Cooder resolveu revisitar o rhythm and blues neste disco. E se deu muito bem. O trabalho é um triunfo estilístico bem ao estilo do guitarrista. Como se não bastasse, Cooder ainda tem o que se convencionou chamar de uma voz “blue-eyed soul”, ou seja, um branco que canta como um negro.

“Bop Till You Drop” começa com uma versão de “Little Sister”, canção de Doc Pomus & Mort Schuman que foi gravada por ninguém menos do que Elvis Presley. Como eu não gosto do “rei do rock”, prefiro o clima R&B que Cooder e seus comparsas (David Lindley na guitarra e no slide guitar; Tim Drummond no baixo; Jim Keltner na bateria; Milt Holland na percussão mais os maravilhosos vocais de Bobby King, Herman Johnson e Cliff Givens) colocam no caldeirão.
“Go Home Girl” é um bolero muito engraçado, quase um reggae. Toda em cima da percussão de Holland, do órgão de Barron e das guitarras e violões de Cooder e Lindley, a canção relata as desventuras de um cara que se mete num triângulo amoroso com a namorada de seu melhor amigo. “Go on go home girl / You better go on home / You better move on” ("Vá para casa, menina/ É melhor você ir para casa / É melhor você seguir em frente"), diz ele, mandando a garota embora, apesar de amá-la muito. Segundo ele, o “amor de uma mulher e o amor de um amigo são duas coisas que não podem ser comparadas”. Num determinado momento, Frank empresta o carro para seu amigo e fica esperando, em casa. Mal sabe ele que seu amigo está dispensando SUA namorada neste exato momento. Pra fechar, Bobby King dá a primeira de muitas estrebuchadas vocais que fazem deste disco uma delícia de ouvir.

The Very Thing That Makes You Rich (Makes Me Poor)” tem uma história interessante. Composta pelo taxista Sidney Bailey, a música foi dada a Cooder num cassete pelo próprio autor, quando o guitarrista entrou em seu carro. Até aí, nada demais. O que Cooder não sabia é que já havia gravado outras duas composições de Bailey em seu disco “Paradise and Lunch”: “Fool for a Cigarrette / Feelin' Good”, que havia encontrado numa editora. Brilham mais uma vez as guitarras de Cooder e Lindley. Keltner faz misérias na bateria. E os vocais parecem saídos direto de uma missa de domingo numa igreja batista. E a letra é divertidíssima, pois é misógina de uma maneira jocosa: “Meu pai me disse em seu leito de morte / Rapaz, a mulher vai conseguir o que quiser, não se engane / Porque ela tem uma coisa que faz / o homem deixar o dinheiro bem na mão dela / e a exata coisa que faz ela rica / te faz pobre”. Sensacional filosofia popular. Mais adiante, o pai continua a aconselhar seu filho: “Nunca, de maneira alguma, cometa este erro / Prefiro subir numa cama com uma cascavel / do que trabalhar duro todos os dias pra dar meu dinheiro pra ela”. À medida que a canção avança, os vocais vão entrando naquele clima de pergunta e resposta bem ao estilo soul music. Uma das grandes surpresas do disco vem a seguir; “I Think It's Going to Work Out Fine”, música que foi gravada por Ike & Tina Turner. Aqui, numa versão instrumental, onde Ry Cooder e David Lindley carregam a melodia nas guitarras elétricas, enquanto o mandolin faz a base.

A única composição original do disco, “Down in Hollywood” é de autoria de Cooder e do baixista Drummond e traz a primeira participação da cantora funky Chaka Khan. No refrão, eles avisam os incautos que vão passear de carro em Los Angeles: “Passeando em Hollywood / é melhor que você não fique sem gasolina / Ele vai te tirar do seu carro e chutar seu traseiro / Eles estão parados numa esquina esperando um trouxa como você / Se você quer permanecer saudável, é melhor seguir em frente”. E aí começam a aparecer todas as figuras que habitam as noites de Hollywood: os gays, os cafetões, as prostitutas, os policiais. Tudo embalado por um clima soul-funk. De certa maneira, Cooder previa os temas dos rappers de hoje, em especial a violência urbana.

“Look at a Granny Run Run” foi grande sucesso na voz de Howard Tate, um cantor de soul music da segunda metade da década de 60. A recriação de Cooder mantém o sabor original da primeira versão, mas acrescenta um astral de blues, com o mandolin e seu violão de aço fazendo a introdução. O vovô fica correndo atrás da vovó, vocês imaginam com que intenção, né? Lá pelas tantas, o vovô deixa tudo explícito: “Olhe aqui, mamãezinha, pare de correr/ tudo o que eu quero é fazer um amorzinho antes que chegue a minha hora/ Não tem nada errado com isso”.

“Trouble, You Can't Foll Me” mantém a levada R&B com ênfase no blues, especialmente nas guitarras e violões que fazem uma teia de sons, segurando a onda de Cooder e seus backing vocals. As mulheres continuam a ser um problema, mas elas não podem enganá-lo. “Estou te vendo atrás daquela árvore”.

A faixa seguinte, “Don't Mess Up a Good Thing”, foi sucesso com a cantora Fontella Bass, mas aqui vira um funky superdançante com a bateria de Keltner fazendo aquela batida soul, mantendo o clima dado pelas guitarras e pelo órgão, enquanto Cooder e Chaka Khan conversam. A mulher pede que ele “não estrague uma coisa boa” e o homem diz que “mesmo que tenha pulado a cerca de vez em quando, o cheque do pagamento vai pra ela”. É interessante que Cooder revisite o R&B dos anos 50 e 60, quando as mulheres ainda não tinham voz ativa na sociedade e eram figuras decorativas que só pensavam em gastar o dinheiro de seus maridos. O revisionismo de Ry Cooder chega a este ponto, quase que um tema só no disco inteiro, apesar das composições serem todas diferentes.

Pra fechar este maravilhoso disco, “I Can't Win”, uma balada soul entoada pelo incrível Bobby King. Cooder se dá ao luxo de fazer backing vocal pro seu backing! E se você não se dobrou totalmente por este disco e esperou até o último momento, chegou a sua hora de ajoelhar e rezar na igreja de São Ry! Esta não é uma canção. É uma prece! “Tenho tentado muito encontrar um caminho pro seu coração/ mas não consigo ganhar/ seu amor”. É uma canção de coração partido, triste como ela só. Mas com este astral gospel americano de verdade e não esta chinelagem travestida e “universalizada” (se é que vocês me entendem) que a gente ouve por aí. Se não tivesse acompanhamento musical, esta ainda seria a melhor canção do disco inteiro. É de arrepiar os cabelos. Vozes de verdade, sentimentos de verdade. Há quanto tempo, você não ouvia falar nisso, hein? Bobby King ganhou este presente de Ry Cooder, que repassou para nós, ouvintes.
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FAIXAS:
1. "Little Sister" (Doc Pomus, Mort Shuman) – 3:49
2. "Go Home, Girl" (Arthur Alexander) – 5:10
3. "The Very Thing That Makes You Rich (Makes Me Poor)" (Sidney Bailey) – 5:32
4. "I Think It's Going to Work Out Fine" (Rose Marie McCoy, Sylvia McKinney) – 4:43
5. "Down in Hollywood" (Cooder, Tim Drummond) – 4:14
6. "Look at Granny Run Run" (Jerry Ragovoy, Mort Shuman) – 3:09
7. "Trouble, You Can't Fool Me" (Frederick Knight, Aaron Varnell) – 4:55
8. "Don't Mess Up a Good Thing" (Oliver Sain) – 4:08
9. "I Can't Win" (Lester Johnson, Clifton Knight, Dave Richardson) – 4:16

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