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quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

"O Vingador do Futuro", de Paul Verhoeven (1990) vs. "O Vingador do Futuro", de Len Wiseman (2012)



Paul Verhoeven pode não ser dos diretores mais elegantes no que diz respeito à sua obra, com algumas coisas bem toscas e sua tradicional violência exacerbada, mas não há como negar que, entre erros e acertos, o diretor holandês já colocou alguns de seus filmes na galeria de clássicos do cinema como é o caso do icônico "Robocop", do polêmico "Instinto Selvagem" e do frenético "O Vingador do Futuro", eletrizante ficção científica de ação que, encorajada por sua dinâmica e potencial, ganhou há alguns anos atrás uma nova versão cinematográfica. O problema principal do remake de "O Vingador do Futuro", de 2012, é que ele tenta se levar a sério demais. Quer tomar um viés político, social, até ecológico. O instigante argumento, baseado no conto de Philip K. Dick ("Blade Runner" e "Minority Report"), é mais bem aproveitado na versão original que é muito mais descontraída que a última, sem chegar a cair exatamente na comédia. A leveza, mesmo entre tiros, explosões e naquele momento o recorde de mortos em filmes de ação, se deve em grande parte à figura do carismático Arnold Shwarzenegger que, mesmo com suas inegáveis limitações de atuação, mesclava como poucos, especialmente naquele momento da cerreira, a capacidade de encarnar o brutamontes durão ao mesmo tempo que fazia o bobão cômico. Já no novo, a estrela principal é Colin Farrell, de quem já não gosto muito mas que, independentemente da minha opinião pessoal, não há como negar que não chega perto do carisma de Shwarzenegger. Ele até se esforça, faz lá uma gracinha que outra mas, notoriamente, está concentrado em sua missão, está compenetrado, está preocupado e isso torna seu personagem chato e distante.
Douglas Quaid (Shwarzie no original e Farrel no remake) é um operário de mineração que, cansado de sua vidinha rotineira é seduzido por um anúncio da empresa Rekall que promete implantes de memória que serão como férias realmente vividas em sua vida com a opção de incrementar a aventura e assumir outra identidade, outra atividade. Quaid escolhe ser agente secreto mas no momento do implante de memória algo dá errado (ou parece dar) e nos é revelado que aquele cliente já tinha um implante anterior e que não seria quem achava que era. Com a diferença que o primeiro Quaid queria férias em Marte e o segundo na União da Bretanha, o centro urbano e administrativo de um planeta Terra semidestruído por uma guerra química, a ação se desenrola em ambos, desenfreadamente, a partir do momento que Quaid sai da Recall. Tudo é muito parecido mas no de 1990 tudo é mais charmoso e cativante, até mesmo os defeitos como, por exemplo, os cenários de Venusville, a zona do meretrício de Marte, bem primários mas... o que seria de "O Vingador do Futuro" sem eles?
A refilmagem tem a vantagem do avanço dos recursos tecnológicos mas os efeitos visuais do original não ficam devendo em nada mantendo-se até hoje como referência no quesito. A cabeça-bomba da "mulher das duas semanas" e o raio-X no terminal de passageiros, os rostos inchando até os olhos quase saltarem das órbitas quando Quaid e Melina ficam expostos à atmosfera de Marte, a própria reprodução da superfície do planeta baseada em imagens obtidas pelas sondas da NASA são impactos visuais que não serão esquecidos facilmente.

"O Vingador do Futuro" (1990)
cena do disfarce no terminal de passageiros em Marte 

"O Vingador do Futuro' (2012)
cena do disfarce no terminal de passageiros da UFB
(referência à cena do original)

Além disso tem os personagens periféricos, muito mais cativantes, cada um a seu modo na versão primeira: Lori, a esposa, está muito melhor na pele de Sharon Stone do que da "soldadona" Kate Beckinsale, embora a disputa seja acirrada no quesito beleza; Melina, a agente do original (Rachel Ticotin) é muito mais simpática do que a do remake, Jessica Biel, feminina e carinhosa quando é pra ser mas durona na medida certa, e até por isso, mais carismática; Cohaagen na nova versão é quase um ninja, enfrentando no braço, de igual para igual o agente Houser (Quaid) numa das cenas decisivas do novo filme, ao passo que no anterior era somente, e muito apropriadamente, só mais um empresário bundinha bem filha-da-puta.
E tinha o Benny do táxi que tinha sete filhos pra criar; tinha o capanga, o cara que explode a cabeça de outro no "Scanners" do Cronenberg (Michael Ironside), e que sempre fazia bons vilões; e tinha o Kuato que ficava na barriga de um cara nos subterrâneos de Marte... e na refilmagem sequer tem um Kuato! Onde já se viu? O remake até faz algumas referências ao velho como à gorda na estação de embarque, à mutante de três seios, mas soam tão jocosas que, se foram homenagem, soaram mais como um injustificável escárnio.
"O Vingador do Futuro" 1990, de Paul Verhoeven ganha com facilidade. Não goleia, mas faz aquele 2x0 clássico, sem esforço. Tem melhores jogadores, melhor técnico e mais conjunto. O filme de Len Wiseman até é esforçado, tem suas qualidades, joga alguma bola, é verdade, mas, me desculpe..., Clássico é Clássico!

O momento em que as memórias são implantadas em Quaid, na Recall, em cada uma das versões.
Ambas os filmes deixam a dúvida se tudo o que acontece a partir dali foi real ou não.

Num jogo corrido, Paul Verhoeven confirma que no mata-mata, ele é o cara e não tem pra ninguém.



sábado, 15 de julho de 2023

“Não! Não Olhe!”, de Jordan Peele (2022)


Sim, nós olhamos*

Numa das cenas do filme “Harriet”, de Kasi Lemmons (2019), que conta a história da ativista e heroína negra do século 19 nos Estados Unidos, o pai da personagem, num das expedições clandestinas empreendidos por ela com a intenção de libertar negros escravizados do jugo dos senhores de terra, a recebe de olhos vendados. Ele sabia que a filha ali estava, mas, numa atitude aparentemente inútil, bloqueava a visão para que, se cobrado pelos patrões, tivesse consigo a sinceridade de poder dizer que não a tinha visto com os olhos. Essa atitude aparentemente pueril ou até irracional traz, no fundo, uma preocupação para além do racional, visto que ética, além de, noutra esfera, ligada ao conceito de cinema. É este aspecto ético que, noutras formas e complexidades, norteia a obra do cineasta norte-americano Jordan Peele e, mais propriamente, seu longa “Não! Não Olhe!” (“Nope”), de 2022.

Peele, assim como os conterrâneos, contemporâneos e irmãos de cor Kasi, Anthony Fuqua, Ryan Coogler, Barry Jenkins, Ava DuVernay, Steve McQueen e outros, tem plena noção do seu “lugar de fala” enquanto triunfante realizador negro dentro do sistema da indústria cinematográfica. Peele, no entanto, guarda características bem peculiares. Primeiro que, diferentemente de seus pares, mais multitemáticos em abordagem, ele identifica-se fortemente com o cinema fantástico, reclamando para si um filão jamais explorado tão audazmente, nem na reivindicadora blackexplotation dos anos 70: o Black Horror. Segundo que, pelas condições produtivas, seu fazer cinematográfico identifica-se com o “cinema de autor”. Ele dirige e produz aquilo que escreve e ainda dá assinatura a suas obras, estágio que poucos cineastas alcançam – ainda mais negro e em tão pouco tempo de trajetória. 

São assim “Corra!” (“Get Out”, 2017), consagrado terror psicológico que o alçou mundialmente, e “Nós” (“Us”, 2019), outro filme de horror de rara habilidade narrativa tanto em roteiro quanto em direção. Filmes comerciais, mas capazes de aprofundamento crítico e filosófico. Imbricado à forma, pop e instigante, o conteúdo de ambos os filmes redimensiona problemáticas da questão negra como preconceito, animalização e extermínio sócio-étnico-cultural. O “terror” na já marcante obra de Peele é mais do que o sobressalto da poltrona ou o arregalar de pupilas: são séculos de um terror verdadeiro de desumanização e apagamento o qual foi (e é) submetido o povo negro. E que ganham ainda maior potência na tela diante do choque provocado ao evidenciar que este mesmo terror está presente em uma sociedade moderna incapaz de superar comportamentos e mentalidades inaceitáveis. Peele não brinca e nem pasteuriza o racismo: ele, ao revesti-lo de estereótipos fílmicos e elementos narrativos consagrados, escancara o quanto esta doença humana é assustadoramente vulgar.

“Não! Não Olhe!”, bem menos arrepiante que seus anteriores, é um suspense sci-fi cujos apontamentos críticos à questão social e racial se dispõem de uma forma renovada. A história se passa numa cidade do interior da Califórnia, que começa a ter eventos bizarros e extraterrestres. Os irmãos Emerald e OJ (interpretados por Keke Palmer e Daniel Kaluuya), donos de um rancho de cavalos vizinho a um parque de diversões, não apenas presenciam estes fatos estranhos como passam a se envolver diretamente com eles depois que perdem seu pai em virtude de tais fenômenos. Outra figura central na trama é nipo-americano Jupe (Steven Yeun), astro-mirim de uma série de televisão no passado e apresentador de um show de velho oeste naquele parque.

Keke Palmer e Daniel Kaluuya protagonizam
a ficção de Peele, cuja mensagem vai além do gênero

A coesão da narrativa que se percebe em “Nós” e, principalmente, em “Corra!” talvez falte um pouco ao roteiro um tanto desigual de “Não! Não Olhe!”, tecnicamente impecável como seus antecessores, mas bem mais dado à espetacularização imagética das ficções-científicas do que à suscetibilidade neural provocada pelo terror psicológico. Porém, o longa, mesmo sem total assertividade – como recai a obras que se propõem a transpor barreiras – avança em aspectos antes obscurecidos na sociedade norte-americana e no cinema enquanto reflexo do contexto histórico e sociopolítico. Questões fadadas a não serem enxergadas, como identidade, crença, cultura e ancestralidade. Como se tivessem que obedecer a uma regra social intolerante, que impõe não serem olhadas de modo que permaneçam invisíveis simbolicamente. Sem estes preceitos, a natureza humana perde sentido, e sem identidade e moral, resta a animalização. Refazendo o ditado popular: quem não é visto, é apagado.

Peele, por este motivo, traçou paralelos entre homem e natureza em diferentes níveis em “Não! Não Olhe!”. Primeiro, entre o selvagem e o civilizado. O filósofo inglês Thomas Hobbes diz que “a natureza fez os homens tão iguais quanto às faculdades de corpo e do espírito”. Nada mais é do que a utilização do impulso irracional do cavalo domesticado por OJ durante os bastidores para a gravação de uma cena audiovisual. A insegurança do rapaz, um homem negro de origem simples diante da elite majoritária branca, simbolizada pela equipe presente no set, o reduz como indivíduo. Acuado, ele se desumaniza e se animaliza. Nem a aparição da irmã, bastante mais desenvolta do que ele, consegue salvar o cavalo de reagir espontânea e naturalmente com agressividade ao estímulo visual quando se vê num espelho. Pelo contrário: OJ ao mesmo tempo identifica-se e sente vergonha de Emerald com sua verborragia e gestos amplos, pois, inconscientemente, também a vê animalizada tal uma macaca. Semelhante ao humano, mas necessariamente inferior. Como o cavalo, ver-se no espelho é uma tarefa repelente quando não se tem consciência da própria natureza.

O chimpanzé Gordy: metáfora
central da história
A alegoria do primata na relação entre instinto e razão, homem versus animal, é ainda mais profundamente explorada no filme por Peele quando da aparição do chimpanzé Gordy, espécie de metáfora central da história. É ele que, no passado, em virtude do mesmo desrespeito e exploração ditados pela engrenagem capitalista, faz valer seus instintos mais sinceros – e violentos – durante as tensas gravações de uma fictícia sitcom. Inspirando num caso real ocorrido nos Estados Unidos, Gordy ataca a equipe e, assim, equipara de fato tanto homens quanto bichos com aquilo que lhes é comum: a morte e a finitude. Uma (forçada) volta às origens. Traumatizado com este episódio da infância, Jupe, é o único a quem o macaco poupou por lhe tratar com dignidade e carinho – ou seja, que o olhava sem a lente do preconceito. O coração vê sim e mais do que se possa supor.

Reina nesta apropriação do estado natural do homem a dicotomia ética a qual o filme se concentra. Hobbes sustenta que, diante da necessidade de preservação da individualidade e do direito natural à sobrevivência, o ser humano busca lançar mão dos meios necessários para preservá-la e evitar todas as ações que sejam contrárias a ela. A criação do estado político, diante da quase irrefreável ação de eliminação do outro, nada mais é do que o obstáculo necessário para a contenção destes instintos. Acreditam ter encontrado a justiça, mas alcançaram algumas migalhas de harmonia. O “lobo do lobo do homem” está lá, preservado; apenas há convenções que lhe limitam a barbárie.

Limitam até certo ponto. Na prática, a falácia liberalista atribui o direito à riqueza a todos, mas a destina àqueles que formal e historicamente sempre tiveram mais condições de deter o poder: os brancos. Se o valor que as pessoas ou coisas possuem é resultado de convenção social, o que acontece com aqueles que foram convencionados por séculos como uma raça inferior? Difícil desfazer mentalidades vigentes, principalmente quando estas asseguram influência e domínio. A relação de fornecedor e comprador exposta na cena em que OJ tenta domesticar o cavalo para a gravação audiovisual expõe bem esta contradição: não há lei de mercado mediando, pois a liberdade não é dada a quem, de antemão, é subjugado por sua atribuída condição inumana. Basta ver que ninguém no set enxerga OJ de fato, a ponto de não considerarem seu importante alerta para a preservação do bem estar do cavalo e a própria finalidade para a qual estavam todos ali. 

O cinema norte-americano de muito mira suas câmeras, consciente ou inconscientemente, à questão da animalização dos pretos. Esta subclassificação, que situa o afrodescendente numa posição de espécie exótica e quase humana numa sociedade em que, na escravidão, furavam-se os olhos de escravos como castigo, denota a mentalidade racista imperante e transposta para Hollywood por décadas. Quebrariam este ciclo mais consistentemente duas produções apenas nos anos 60, quase meio século após a instauração da indústria cinematográfica: “A Noite dos Mortos-Vivos” (George Romero, 1968), terror que atribui naturalmente um raríssimo heroísmo a um protagonista negro, e “Ao Mestre com Carinho” (James Clavell, 1966), drama no qual se via numa das primeiras vezes um negro na tela em um papel preponderante. Não por coincidência, ambos as produções surgem à época das lutas pelos Direitos Civis nos Estados Unidos. 

Porém, os séculos de massacre social e cultural pesam. A mítica figura de “King Kong”, por exemplo, originalmente lançado em 1933 mas persistentemente retornada nas décadas subsequentes, carrega consigo a simbologia desta relação incongruente entre selvageria e civilização. Imagem preconceituosa, aliás, que nenhuma das refilmagens teve capacidade (ou intenção) de desfazer. A atração sexual implícita entre o gorila gigante, bastante empretecido em feições, e a mocinha, tão branca e loira quanto os códigos arianos permitem, joga luz sobre a dualidade instinto/razão. Afinal, a sexualização do negro é, definitivamente, uma das patologias as quais o brancocentrismo não consegue resolver. Hobbes diz que a riqueza sem a liberalidade deixa de ser poder e expõe o homem à inveja.4 Mesmo tendo despertando o amor no coração da mulher, aquela existência aberrante é incompatível com a ordem social. A solução? O apagamento. Ninguém mais o vê, simples. 

O emblemático King Kong em versões ao longo da história

A força descomunal de “King Kong” serve também como uma bela metáfora. Tudo que a autoproclamada justa sociedade norte-americana desconhece ou não controla, classifica como fantástico e inimiga de seus valores morais. O cinema sci-fi, como o que Peele recursou em “Não! Não Olhe!”, é causa e consequência deste pensar ufanista e egoico, visto que se vale largamente do artifício do estranhamento a depender das ameaças vigentes à ideologia de sua época. E se esta ameaça vier do céu ou de outro planeta, fica ainda mais fácil justificar a segregação. Já serviram de símbolo para estes fenômenos alienígenas o comunismo (“Vampiros de Almas”, Don Siegel, 1956), a crise nuclear (“O Enigma de Andrômeda”, Robert Wise, 1871), as doenças venéreas (“Enraivecida”, David Cronenberg, 1977), a tecnologia (“O Exterminador do Futuro”, James Cameron, 1984), os vírus letais (“Eu Sou a Lenda”, Francis Lawrence, 2007) e até a emancipação feminina (“Invasores”, Oliver Hirschbiegel, 2015). Tudo o que não se detêm controle. Em “Não! Não Olhe!”, cujo discurso é fruto das motivações pós-George Floyd, o monstro, reelaborado e em certa medida mais palpável, é o próprio sistema: incontrolável, insaciável, intolerante e, por natureza, forjado sobre bases segregadoras. 

Organismo que rejeita o feto, este estranhamento é gerado pelo próprio sistema. E vai além: esconde e determina que este não deva existir, que não deve ser visto. A dicotomia, portanto, instaura-se. Como um filho bastardo e imperfeito, o monstrengo descomunal e incontrolável existe, e por isso deve ser desconsiderado, pois só assim pode ser domado. Caso contrário, ele solapa, consome, elimina. Mastiga tudo que vê pela frente e ainda, faminto, exige mais. Por isso, o alerta: “não, não o olhe”. Se o fizer, as energias serão magicamente todas roubadas, pois o que não falta a este estranho sem forma é força e até razão. Irônica e metalinguística a cena em que o “cinema de arte” é sugado pelo alien na figura estereotipada do cineasta-autor: branco, excêntrico e idealista, mas frouxo. 

Afora isso, o filme suscita a linguagem cinematográfica ao aludir à função psicológica do olhar. Novamente, todavia, de maneira original. No cinema de Peele, este paralelo também está diretamente ligado à abordagem do gênero de terror/fantasia, pois dela se depreendem proposições críticas potentes e coerentes com o discurso do cineasta. Ele usa a gramática do cinema para ressignificar a permanente indagação ética: “de onde vem o racismo?” Em “Corra!”, o mistério do aliciamento de jovens negros pela abastada família branca se desvenda quando vídeos gravados são vistos através do olhar das lentes. Em “Nós”, o enigma se esconde naquele apavorante reconhecimento visual à duplicidade dos corpos sem identidade ou moral. Já em “Não! Não Olhe!”, cujo mesmo recurso linguístico não apenas se repete como se torna o cerne, há uma sobreposição de olhares: o dos personagens, o do espectador, o da natureza, o social, o histórico e o identitário. 

É claro que o título provocativo do filme de Peele tem como finalidade não a repelir mas, justamente, atrair o olhar a uma necessária tomada de consciência humanitária. Juntamente com os cineastas negros de sua geração, também autores de obras de vital relevância para a recente cinematografia dos Estados Unidos e para a discussão do problema urgente do racismo, o jovem realizador forja o que pode ser chamado de “cinema de conscientização”. Mais do que reagir como a blackexplotation, denunciar como a L.A. Rebellion ou levantar contradições como Spike Lee, esta geração avisa que veio para mudar. O que pode ser entendido como sinal dos tempos, também é prova de que há muito espaço jamais ocupado historicamente por estes em virtude da hegemonia branca. Porém, na era do Vidas Negras Importam, outro lema advindo da luta racial dos Estados Unidos pode ser parafraseado de forma a amalgamar estas dignas intenções: “sim, nós olhamos”.

* Texto originalmente publicado na edição de nº 32 da revista Teorema

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trailer oficial de "Não, Não Olhe!"


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 19 de março de 2020

10 Filmes de Epidemias e Contaminações em Geral





As gotículas de saliva livres ao ar no bom sul-coreano "A Gripe".

Essa onda toda de vírus, quarentena, isolamentos, incerteza faz, inevitavelmente vir à cabeça de um cinéfilo diversas vezes em que o cinema retratou situações desse tipo, em alguns casos com muita semelhança. Como fazer listinha de filmes é o que a gente gosta, vamos aqui com 10 filmes em que transmissão de algum tipo de vírus, mal, infecção, doença ou algo inexplicável rendeu um filme e nele causou caos, pânico, alarde, correria, mortes ou tudo isso junto.
Já que não dá pra sair de casa, o negócio é ficar na frente da TV e ver alguns dos filmes que indicamos aqui.
Isso, é claro, se você não for entrar em pânico.
Calma! Calma!
Sem pânico.
Senta na poltrona, saca o controle remoto e simbora catar os filmes da nossa lista no streaming.


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1. "Contágio", de Steve Soderbergh (2011) - Não tem como não começar a nossa listinha com esse que, nesses tempos de alto risco de contágio, virou praticamente uma febre (ops!) no streaming. Um dos grandes méritos do filme do diretor Steve Soderbergh é o fato de  ao fato de ser, possivelmente, o mais verossímil e realista do ponto de vista científico e procedimental. O filme mostra, dia a dia, o avanço de uma doença com características muito semelhantes à atual que estamos vivenciando com as consequências sociais, as ações das autoridades e a corrida contra o tempo e contra os números crescentes de vítimas dos pesquisadores e órgãos de saúde. A primeira tosse, o contato com parentes, amigos, a propagação da doença, o aumento vertiginoso de mortes, a impotência das autoridades, o esforço dos cientistas, a quarentena, o consumo histérico, o sensacionalismo de parte da imprensa, o caos... tudo está muito bem retratado em "contágio" e de maneira muito convincente. 
Além de pertinente, na atual situação, um ótimo filme que mantém o interesse e a tensão o tempo todo. Detalhe para as cenas em que o diretor faz questão de mostrar mãos em maçanetas, corrimãos, botões de elevador, barras de ônibus, que só nos fazem lembrar o quento estamos em perigo.




2. "Epidemia", de Wolfgang Petersen (1995) - Outro que vai mais ou menos na mesma linha que o anterior, mas que peca por ser excessivamente hollywoodiano. Neste, um macaco levado para os EUA para pesquisas militares apanhado de uma aldeia na África, que havia praticamente sido dizimada por uma doença possivelmente provocada a partir dele, é "desviado" por um funcionário de triagem ao chegar ao seu destino, nos Estados Unidos, desencadeando a partir daí uma epidemia local rápida e letal, fazendo com que a pequena cidade de Cedar Creek seja mantida em quarentena. O filme até é bom, tem ritmo, tem envolvimento, mas as americanices tipo, soldado bom / soldado mau, perseguições frenéticas (até de helicóptero) e uma solução excessivamente rápida, comprometem um pouco o produto final.

"Epidemia" - trailer




3. "A Gripe", Sung-Soo Kim (2013) - Em meio a todo o exagero e heroísmo característico do cinema de ação sul-coreano, "A Gripe", mantém uma boa coerência e um bom grau de verossimilhança. O filme começa expondo uma situação de trabalho semi-escravo em que imigrantes miseráveis de Hong Kong se sujeitam a  serem transportados dentro de um contêiner para a Coréia para servir de mão de obra barata. O problema é que um deles, lá dentro, já demonstrava pequenos sinais de uma gripe e, um ambiente daqueles, fechado com aglomeração, era a pedida perfeita para o vírus se desenvolver. Ao chegar ao destino, praticamente todos já estão mortos pela doença, com exceção de um que sobreviveu e que foge para a área urbana de Bundang, uma cidade próxima a Seul e espalha a doença. O pânico chega, o caos cresce, o governo isola a cidade e em meio a isso tudo, uma médica, In-hye, especialista em doenças infecciosas vê sua filha ser contaminada pelo novo vírus, para não abandoná-la entre os doentes entra na área de quarentena e, mesmo de lá, com a ajuda do bombeiro Ji-Goo, com as poucas informações e recursos que tem, procura respostas e uma solução para o caso. Meio exagerado, cheio de clichês mas até bastante aceitável no que diz respeito à origem, ao avanço e todo o desenrolar social da coisa toda. 
Se nada convenceu você a não sair de casa, as cenas das gotículas se espalhando no ar quando os infectados tossem, o farão.





4. "Ensaio sobre a Cegueira", de Fernando Meirelles (2008) - Aqui a epidemia não traz mortes. Pelo menos, não diretamente. Mas talvez seja o mais assustador se pensarmos a que ponto de degradação moral o ser humano pode chegar. Uma cegueira repentina começa a se alastrar entre a população e, diante do quadro, com um crescente e incontrolável número de casos, as pessoas são levadas pelas autoridades para isolamentos. Neles, com o passar do tempo e com o número de doentes crescendo e os problemas de higiene, comida, comunicação aumentando, revelando da pior maneira possível os mais desprezíveis e abjetos comportamentos humanas. Dentro de um destes locais de quarentena, uma mulher não infectada, em solidadriedade e amor ao marido, é mantida com ele no sanatório e, para não revelar-se a única sã lá dentro, sujeita-se, com toda uma decepção humana e resiliência, a todas as situações que aquele confinamento acarreta. 
O filme do brasileiro Fernando Meirelles baseado na obra de José Saramago, com a aprovação do escritor, traz uma série de outras questões importantes mas, principalmente, escancara como o ser humano se comporta em uma situação crítica dentro de um grupo em um espaço restrito, num estado limite, e como nessas situações, ao invés de prevalecer o espírito de solidariedade, ordem, princípios, o que revela-se é a vaidade, anarquia e sobretudo, o egoísmo. O fato de um cidadão estocar comida, álcool gel e outros gêneros de necessidade, privando vários outros ter terem a possibilidade de adquirir tais produtos, é uma pequena mostra de que muito do que está nessa ficção, não passa muito longe da realidade.




5. "Sentidos do Amor", de David MacKenzie (2011) - Outro filme que explora os sentidos. Mas aqui as pessoas não perdem apenas um, mas todos. Às voltas com a investigação sobre uma aparente epidemia que leva à perda de olfato, uma epidemiologista envolve-se emocionalmente com um chef de cozinha e juntos, cada vez mais apaixonados, eles vão presenciando, vivenciando e sofrendo, em meio a memórias e questionamentos, a gradual perda dos demais sentidos. 
Interessante é que cada perda de sentido é precedida por uma crise emocional individual com choro, raiva, excessos, e um caos coletivo posterior a ela que leva a reações parecidas com a de "Ensaio Sobre a Cegueira", como violência, desordem, ganância, com a diferença que em "Sentidos do Amor", as pessoas, passado o desespero inicial, ao perderem um, meio que conformam-se e acabam meio que se adaptando aos sentidos que restam. "Não consigo cheirar, mas posso sentir o gosto da comida...", "Não consigo sentir o gosto, mas posso ver a cor...", "Não posso ver, mas posso sentir sua textura...", e assim por diante. Mas pelo progresso da epidemia, em breve não restará nenhum sentido e nisso, o filme do escocês David MacKenzie é mais otimista que o de Fernando Meirelles, sugerindo que, ao final, mesmo que percamos todos os sentidos, o amor persistirá. O mais importante  "sentido" de todos.
Muito bom filme. Bela condução, ótima fotografia e boas atuações do casal Eva Green e Ewan McGregor. Daqueles filmes que fui assistir não apostando nada, achando que seria só mais uma historinha romântica boba e me surpreendeu muito positivamente.





6. "[REC]", de Jaume Balgueró e Paco Plaza (2007) - Não tem como falar de epidemias e contágio em massa sem falar em filmes de terror que talvez seja o segmento, que à sua maneira, com a sua linguagem, mais explora o assunto. "[REC]", especificamente, tem uma situação peculiar que torna pertinente sua citação neste momento: o isolamento compulsório, a quarentena imposta por autoridades. Um prédio em Madrid é isolado pelas autoridades após o cão de um dos moradores apresentar, em uma clínica veterinária próxima, sinais de uma perigosa infecção que veio a levá-lo à morte mas, estranhamente, voltar à vida e agir de forma violenta e descontrolada. Só que dentro do prédio, uma dupla de jornalistas que acompanha, despretensiosamente, uma equipe do corpo de bombeiros em uma chamada a respeito de uma senhora que parece estar se sentindo mal ou algo do tipo e o que eles não sabem é que, não só a pessoa que os bombeiros vão atender, como outros moradores já tiveram contato com o animal, ou entre si e o vírus já se espalhou. Aí, véi..., o bicho pega! Como o mal é transmitido pela saliva, cada vez que um é mordido por outro infectado descontrolado e violento, a legião de zumbis aumenta dentro daquele pequeno edifício. E não tem pra onde fugir!
Filme alucinante! Correria escada acima, escada abaixo num espaço restrito sem muito pra onde correr. Um dos melhores filmes de terro e de zumbis dos últimos tempos. A situação não deixa de lembrar, de certa forma, a do navio de cruzeiro atracado no Recife, em quarentena, onde dois passageiros foram diagnosticados com o Covid-19. A mente do cinéfilo já fica pensando: "Imagina se fosse um vírus zumbi do '[REC]'...".




O parasita de laboratório saindo de um dos hospedeiros.
7. "Calafrios", de David Cronenberg (1975) - Mais um exemplo de um filme em que a epidemia começa a se propagar, inicialmente, dentro de um prédio mas que, aqui, inevitavelmente, seguirá mundo afora. Nesse caso, temos um parasita produzido artificialmente, em princípio com a ideia de substituir órgãos humanos, implantado numa cobaia humana, que, por uma mutação, desvia-se, por assim dizer da sua finalidade, e passa a estimular uma atitude sexual desenfreada e violenta no paciente. Sabedor do fracasso de sua intenção inicial e das consequências da ação daquele "órgão" num humano, o médico inventor mata sua cobaia, sua amante, uma adolescente ex-aluna, na intenção de destruir o organismo que criara e, em seguida se mata arrependido da criação e do crime. Mas o que ele não sabia é que a bela Annabelle não era mais popular do que imaginava naquele condomínio e o parasita já estava espalhado por aí.
O filme aborda, à maneira Cronenberg, com muito sangue, gosma e nojeira, as doenças sexualmente  transmissíveis e está entre os grandes clássicos do terror trash da história. Se a epidemia atual não tem a ver, necessariamente, diretamente, com sexo especificamente falando, embora, é claro, o toque, a saliva, a relação em si, possa transmitir, "Calafrios", especialmente seu final, reforça a necessidade de restringir ao máximo alcance de uma epidemia. Porque depois que ela sair do seu lugar de origem...




8. "Os 12 Macacos", de Terry Gillan (1995) - A propósito de cruzar fronteiras, a cena do embarque no avião com a valise cheia de ampolas com o vírus, nos dá uma noção de como uma epidemia passa de um país para o outro. É lógico que no filme foi proposital mas a coisa toda do trânsito é que faz com que essa cena em especial me venha à mente. "Os 12 Macacos"  é mais uma das geniais ficções distópicas de Terry Gillan e nela, em 2027 (olha aí a proximidade!!!), o mundo é devastado por um vírus e os sobreviventes são obrigados a viver no subsolo da Terra. Um prisioneiro é selecionado para voltar a 1996, o ano de início da epidemia, para recolher evidências para que cientistas, no futuro, investiguem suas causas e tentem encontrar uma cura que evite aquele futuro sombrio. Filme que já se tornou um cult, lembra muito visualmente e, um pouco conceitualemente, outros dois do diretor, "Teorema Zero" e "Brazil - O Filme".

cena final - "Os 12 Macacos"




9. "Fim dos Tempos", de M. Night Shyamalan (2008) - Sem dúvida, o pior desta lista! Menciono porque a primeira parte, na cidade, quando a epidemia se manifesta fazendo com que as pessoas se suicidem, é alucinante! Mas fica por aí. O filme é uma droga. Clichês, más atuações, roteiro ruim e tudo mais. O mote é que uma espécie de toxina espelhada no ar faz com que as pessoas percam seu senso de auto-preservação e, assim que em contato com aquele elemento, tirem automaticamente suas vidas. Ok! A coisa toda poderia servir se, além dos defeitos já enumerados, as soluções não fossem tão estúpidas, pífias e pouco plausíveis. Assim que a situação na cidade fica praticamente insustentável, nosso protagonista, Elliot Moore (Mark Wahlberg) um professor de ciências em crise no casamento, resolve fugir para outro o interior de trem com um colega do trabalho, a filha e a esposa, com quem vive uma crise conjugal. Ora, por que diabos aquela coisa se concentraria apenas em um lugar se está no ar? O que leva a crer que aqui você não está a salvo e ali está? Ok... Depois de muito "Acho isso", "Acho aquilo", parece que percebe-se que a toxina está na vegetação, nas plantas e eles que liberam o elemento que causa a perturbação mental responsável pelos suicídios. Mas aí que fica pior porque nosso grupo de sobreviventes, numa área rural passam a evitar a vegetação e a adivinhar qual é nociva ou não. Nem o ritmo ou o interesse se mantém, porque o argumento é tão estapafúrdio que, chega um momento que a gente quer mais é que acabe de uma vez.
O filme é péssimo de um modo geral, mas os personagens fugindo do vento e se escondendo numa casa como se o ar não pudesse entrar por uma fresta, um vão, etc, é o fim dos tempos.




10. "Epidemic", de Lars Von Trier (1997) - Vai um filme de arte aí pra completar a lista? Um escritor e um diretor pressionados para cumprir um prazo para um filme, percebem que o roteiro em que trabalharam durante um ano inteiro está perdido e não poderá ser recuperado, assim o recomeçam e o ao novo projeto dão o nome de Epidemia. Nele, contam a história de um país infectado por uma epidemia, cujos governantes são médicos. Os homens do poder estão em segurança enquanto as pessoas, de um  modo geral sofrem com a doença, mas um deles, um dos médicos-governantes, resolve sair para para combater o mal. Eles terminam este novo roteiro em poucos dias e durante o jantar de apresentação do trabalho para o produtor, um hipnotizador, que aparece de surpresa no local, parece aproximar a ficção criada por eles da realidade, pois logo após a visita inusitada, o roteirista começa a mostrar sinais da doença que escrevera para o filme. 
Filme pouco conhecido do polêmico Lars Von Trier, é estrelado por ele e faz parte da trilogia Europa completada por "Elemento do Crime" e "Europa". Naquela época, um trabalho do ainda promissor Lars Von Trier.

O médico, do filme dentro do filme, saindo de seu gabinete e
indo tentar levar a cura à população.







por Cly Reis
colaboração: Daniel Rodrigues
e Vagner Rodrigues