E o Oscar de 2021 foi diferente! Pra começar, foi agora, em abril, e não em fevereiro, como tradicionalmente ocorre; não aconteceu em um auditório cheio de gente e sim numa cerimônia quase intimista com os convidados dispostos em mesas protocolarmente distanciadas; teve indicados recebendo prêmios em vários lugares do mundo, ao vivo; os números musicais foram externos, breves e distribuídos, em sua maioria, antes da cerimônia; sem orquestre e com um DJ; o prêmio de melhor filme não sendo anunciado por último; mas o mais importante: poucas vezes houve tanta diversidade e representatividade, tanto nas indicações quanto na premiação. Negros, mulheres, asiáticos, homossexuais foram premiados de forma natural e justa, por inegável mérito de seus trabalhos muito mais do que por uma pressão social como em outros momentos quando a qualquer gritaria de "mais mulheres", "mais negros", se dava três ou quatro estatuetas só para satisfazer os grupos e depois voltar à normalidade dos critérios da academia. Me pareceu que, mais que nunca, eram tão incontestes as virtudes das minorias representadas, que seria impossível não lhes prestar o reconhecimento com as vitórias em suas categorias.
Numérica e quantitativamente, não tivemos, novamente, nenhum grande vencedor, como acontecia em outros tempos quando uma só produção fazia uma limpa nos prêmios, arrebatando sete ou oito estatuetas, mas não há como negar que um filme que leva as categorias de filme, direção e protagonista é, sem dúvida o grande vencedor. Foi o caso de "Nomadland", que já vinha sendo multipremiado em outras competições e festivais e que só confirmou seu favoritismo, marcando também a segunda vitória de uma mulher Chloé Zaho, na categoria de direção. Outras mulheres também fizeram história como foi o caso de Emerald Fennel, a jovem diretora que em sua estreia ganhou o prêmio de melhor roteiro original, Youn Yuh-jung, a primeira sul-coreana a vencer o prêmio de atriz coadjuvante, e Mia Neal e Jamika Wilson , as primeiras negras a vencerem o prêmio de maquiagem e cabelo. Por falar em representatividade negra, além diversas indicações, representantes negros foram premiados em diversas categorias, nas mais variadas modalidades como na, já mencionada, maquiagem, na música, como no caso do parceiro de Trent Raznor e Atticus Ross, na trilha de "Soul", Jon Baptiste, e pela canção de "Judas e o Messias Negro" interpretada pela cantora H.E.R.; no curta "Two Distant Strangers", produzido por negros, e que aborda a morte de afro-americanos pela força policial; e especialmente, na categoria de melhor ator coadjuvante, com o prêmio para Daniel Kaluuya, interpretando o líder dos Panteras Negras, Fred Hampton.
Ainda falando em representatividade, é marcante também a participação de "O Som do Silêncio", que se só por sua mera proposta já era extremamente significativo ao abordar a temática dos deficientes auditivos, tornou-se ainda mais importante ao vencer duas categorias, a de produção de som, na qual era esperado e justíssimo, e montagem, na qual acabou sendo, de certa forma, uma agradável surpresa.
Por falar em surpresa, para muitos a grande surpresa da noite ficou com o prêmio para melhor ator, vencida pelo veterano Anthony Hopkins, pelo filme "Meu Pai", numa categoria que muitos apontavam o falecido ator Chadwick Boseman como favorito a um prêmio póstuma por sua atuação em "A Voz Suprema do Blues".
No mais os prêmios ficaram bem divididos e, acredito que, de um modo geral, com bastante justiça, premiando exatamente as melhores virtudes de cada um dos concorrentes. Dois para "Mank", , dois para "Judas e o Messias Negro", dois para "Meu Pai", dois para "Soul", dois para "O Som do Silêncio", três para "A Voz Suprema do Blues" e todos saíram felizes. Até a Glenn Close que, mesmo não levando a estatueta, em sua oitava indicação, roubou a cena da cerimônia, rebolando no desafio musical do DJ da festa. Impagável!
Confira abaixo todos os vencedores em todas as categorias:
Eita, mano! Nossa, que filme surreal! Que história mais maluca mas ao mesmo tempo com muita realidade contida nela. "Corra!" convida-nos para rirmos e nos assustarmos com o preconceito.
Chris (Daniel Kaluuya) é um jovem negro que está prestes a conhecer a família de sua namorada caucasiana, Rose (Allison Williams). Em princípio, ele acredita que o comportamento excessivamente amoroso por parte da família dela seja uma tentativa de lidar com o relacionamento de Rose com um rapaz negro mas, com o tempo, Chris percebe que a família esconde algo muito mais perturbador.
Apesar da primeira cena ser bastante impactante, o longa tem um primeiro ato muito lento, tudo muito devagar, colaborando para criar um contraste com o seu final o que você comprovará se superar essa lentidão inicial. Não estou reclamando do humor do filme (que isso fique bem claro), ele é divertido e funciona, mas parece que você está em outro filme uma vez que há momentos em que o filme cria toda uma tensão caminhando para um clímax, e corta para uma cena de humor. Você fica “Não volta pra lá, quero ver o que está acontecendo”, quebrando o clima que estava sendo construído.
O elenco do filme é muito bom desde os empregados até a família de Rose. LilRel Howery como Rod Williams é a parte cômica do filme, garantindo risadas a cada aparição; Daniel Kaluuya está ótimo, faz um trabalho corporal fabuloso e especialmente a forma como trabalha a expressão facial é primorosa; Allison Williams (linda, mas depois do filme, não quero namorar ela), tem uma transformação tal no ato final do filme, que MEU DEUS, que sua personagem torna-se completamente diferente. Incrível!
O olhar de medo. Eu também fiquei assim.
Que roteiro! Nossa! É difícil vermos algo tão original assim no cinema blockbuster de hoje. O longa acerta na maneira como aborda o racismo dentro da história. Não é aquela coisa descarada mas sim a mais comum do dia a dia, coisas do tipo “eu não sou racista, tenho até uma empregada negra, ela é praticamente da família”, só não participa do evento de família. Esse racismo que tenta ser escondido (algumas vezes de forma quase involuntária), que tanto nos deixa desconfortável, deixa o espectador ainda mais desconfortável ao assistir ao filme.
O suspense no longa é muito bem construído, deixando um ar de mistério que só vai ser revelado nos últimos minutos. Assim que que os personagens chegam à casa dos pais de Rose e mais personagens negros vão aparecendo você percebe que tem algo errado, e essa sensação incômoda só aumenta até chegar à fantástica cena da hipnose (não consigo mais tomar algo em uma xícara sem tentar hipnotizar os outros).
Uma obra diferente, autêntica, misteriosa, engraçada, assustadora. Nossa, são muitos adjetivos para essa obra que realmente se destaca. É uma viagem a revelação do filme que chega a ser surreal e um tanto bobo até, mas só não mais "bobo" que o racismo de algumas pessoas, que podem acabar transformando a visita de um namorado negro à casa de uma namorada branca em algo assustador. É essa alegoria que faz o filme genial.
É sempre muito legal assistir algum filme cuja forma dialoga com a gramática do cinema. Desde obras propositadamente metalinguísticas como “Blow Up” e “Amnésia” ou mesmo comédias aparentemente banais, tal “Cegos, Surdos e Loucos”, o uso de maneira intencional de algum dos sentidos humanos como objeto do filme é capaz de, em igual proporção, enriquecer semiologicamente a obra e intensificar a mímese desta – mesmo que isso se dê apenas subliminarmente quando o espectador não está atento ao uso desse trato técnico. Além da visão, da memória ou da fala, sentidos mais comuns de serem abordados no cinema, há filmes que se dedicam ao tema da audição, como é o caso de "O Som do Silêncio" ou "O Som do Metal". O filme de Darius Marder vale-se deste recurso narrativo-linguístico para colocar o espectador em contato com uma realidade tocante e não rato aflitiva: a dos deficientes auditivos.
Na história, Ruben (vivido magistralmente por Riz Ahmed), um jovem baterista de uma banda de heavy metal que tem com a namorada Lou (Olivia Cooke), teme por seu futuro quando percebe que está gradualmente ficando surdo. Suas duas paixões estão em jogo: a música e ela. Essa mudança drástica acarreta em muitas incertezas e angústias, a qual provoca uma série de acontecimentos, frustrações e encontros com questões muito profundas dos personagens.
Diferentemente de clássicos thrillers como "Um Tiro na Noite" e "A Conversação", que integram os diferentes aspectos da sonoridade para imprimir tensão e mistério a suas narrativas, "O Som" vale-se deste recurso sensorial em um drama, o que é bastante interessante. É comum o espectador “sentir” o som como algo a lhe provocar a intensificação dos sentidos, caso das explosões e estardalhaços das cenas de ação, mas perceber esse elemento fílmico de maneira dramática é mais incomum. Os momentos em que se ouve o som abafado do ouvido de Ruben, os ruídos estridentes, os cacos ou a angustiante sensação de silenciamento a qual o protagonista vai se deparando gradativamente são como que vividas também por quem assiste, até porque o roteiro, envolvente, é muito bem construído. Concorrente ao Oscar de Roteiro Original, a trama de “O Som” narra um percurso pessoal e existencial, que, novamente, tem tudo a ver com a gramatica cinematográfica: a percepção/captação de algo externo (som) e a consequência externa dessa transformação.
Oscarizáveis: Ahmed e Raci contracenam em "O Som do Silêncio"
Quanto ao Oscar, dos seis que disputa, mais provável são dois ou apenas um para "O Som". Ahmed, por melhor que esteja, dificilmente levará, haja vista que concorre com fortes candidatos como Gary Oldman ("Mank") e, principalmente, Chadwick Boseman ("A Voz Suprema do Blues"), apto a abocanhar a estatueta postumamente. Mas nessa categoria é daqueles casos que só a indicação e estar ao lado de excelentes e oscarizados atores, como estes dois e Anthony Hopkins (“Meu Pai”), já é um reconhecimento. De Filme, igualmente, não leva, pois têm outros bem mais fortes favoritos na frente. Ator Coadjuvante, parecido, pois somente "Judas e o Messias Negro" põe dois nesse páreo (LaKeith Stanfield e Daniel Kaluuya) contra Paul Raci.
Restam-lhe os prêmios técnicos: edição e, o que seria muito legal se acontecesse, o de Produção de Som. Contrariando a prática comum de premiar produções espetaculosas, como musicais, aventuras ou ficções científicas, cairia muito bem à Academia num momento de revisão de conceitos valorizar um drama de abordagem humana e mais humilde perto de superproduções como “Dunkirk”, “Bohemian Rhapsody” e "Ford vs. Ferrari", vencedoras das últimas três edições do Oscar na categoria Edição de Som, como era classificada a categoria até ano passado.
Independente de prêmio ou não, o fato é que "O Som" é um filme peculiar e sensível, capaz de extrair da pequena história de um drama pessoal questões universais como amor, família, caridade e perdão. Uma história que leva à compreensão de que, independentemente dos sentidos físicos, o que vale é saber escutar o som que vem do coração.
Guillermo del Toro, sempre impressionante visualmente,
tem seu filme como um dos favoritos ao Oscar.
E saiu a lista dos filmes indicados para o prêmio da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, o famoso Oscar. "A Forma da Água" do mexicano Guillermo Del Toro lidera em indicações com treze, mas "The Post", de Steven Spielberg com elenco estrelar, "Me Chame Pelo Seu Nome", "Três Anúncios Para Um Crime"e "Lady Bird", também prometem disputarem as atenções. Destaque também para a indicação de "Logan", o primeiro filme de heróis nomeado para roteiro original, para a grande surpresa do ano, o bom "Corra!", na categoria principal, para o brasileiro Carlos Saldanha, diretor da animação "O Touro Ferdinando", indicado em sua categoria, e para a indicação de uma mulher para melhor direção, Greta Gerwig, depois de todas as manifestações de atrizes na premiação do Globo de Ouro. Embora a indicação de Greta responda à contestação de Natalie Portman quando da entrega do prêmio de diretor naquela cerimônia, ela passa longe de resolver todas as questões que envolvem a figura da mulher em Hollywood, assim, independente deste "agrado" da Academia, deveremos ver novas manifestações acerca da condição da mulher não somente dentro da indústria cinematográfica norte-americana como na sociedade como um todo. E aí? Teremos gafes como aquela do anúncio do vencedor do ano passado? Termos protestos feministas? Meryl Streep leva outra estatueta para casa? Guillermo del Toro manterá a tradição mexicana de levar o prêmio de direção, já que são três prêmios nos últimos quatro anos? Muitas perguntas aguardam resposta mas elas só serão respondidas no dia 4 de março, em Los Angeles. Até lá, o negócio é ir dando uma conferida nos títulos que já estão em cartaz e nos que estrearão até lá nos cinemas,e claro ir conferindo aqui no ClyBlog as nossas impressões sobre os filmes aqui no Claquete.
Confira abaixo as listas com todos os indicados:
Melhor Filme
Me Chame Pelo Seu Nome O Destino de Uma Nação Dunkirk Corra! Lady Bird - É Hora de Voar Trama Fantasma The Post - A Guerra Secreta A Forma da Água Três Anúncios Para um Crime
Melhor Direção
Dunkirk - Christopher Nolan Corra! - Jordan Peele Lady Bird - É Hora de Voar - Greta Gerwig Trama Fantasma - Paul Thomas Anderson A Forma da Água - Guillermo del Toro
Melhor Atriz
Sally Hawkins - A Forma da Água Frances McDormand - Três Anúncios Para um Crime Margot Robbie - I, Tonya Saoirse Ronan - Lady Bird - É Hora de Voar Meryl Streep - The Post - A Guerra Secreta
Melhor Ator
Timotheé Chalamet - Me Chame Pelo Seu Nome Daniel Day Lewis - Trama Fantasma Daniel Kaluuya - Corra! Gary Oldman - O Destino de Uma Nação Denzel Washington - Roman J. Israel, Esq.
Melhor Ator Coadjuvante
Willem Dafoe - Projeto Flórida Woody Harrelson - Três Anúncios Para um Crime Richard Jenkins - A Forma da Água Christopher Plummer - Todo o Dinheiro do Mundo Sam Rockwell - Três Anúncios Para um Crime
Melhor Atriz Coadjuvante
Mary J. Blige - Mudbound – Lágrimas sobre o Mississipi Allison Janney - I, Tonya Laurie Metcalf - Lady Bird - É Hora de Voar Octavia Spencer - A Forma da Água Lesley Manville - Trama Fantasma
Melhor Roteiro Adaptado
Artista do Desastre Me Chame Pelo Seu Nome Logan A Grande Jogada Mudbound – Lágrimas sobre o Mississipi
Melhor Roteiro Original
Doentes de Amor Corra! Lady Bird - É Hora de Voar A Forma da Água Três Anúncios Para um Crime
Melhor Animação
O Poderoso Chefinho Viva - A Vida é uma Festa O Touro Ferdinando Com Amor, Van Gogh The Breadwinner
Melhor Filme Estrangeiro
Uma Mulher Fantástica (Chile) The Insult (Líbano) Loveless (Rússia) The Square - A Arte da Discórdia (Suécia) On Body and Soul (Hungria)
Melhor Fotografia
Blade Runner 2049 - Roger Deakins O Destino de Uma Nação - Bruno Delbonnel Mudbound – Lágrimas sobre o Mississipi - Rachel Morrison Dunkirk - Hoyte van Hoytema A Forma da Água - Dan Laustsen
Melhor Documentário em Longa-Metragem
Abacus: Small Enough to Jail Faces Places Icarus Last Men in Aleppo Strong Island
Melhor Documentário em Curta-Metragem
Edith+Eddie Heaven is a Traffic Jam on the 405 Heroin(e) Kayayo: The Living Shopping Baskets Knife Skills Traffic Stop
Melhor Curta-Metragem
DeKalb Elementary The Eleven O’Clock My Nephew Emmett The Silent Child Watu Wote/All of Us
Melhor Curta em Animação
Dear Basketball - Glen Keane e Kobe Bryant Garden Party - Victor Caire e Gabriel Grapperon Lou - Dave Mullins e Dana Murray Negative Space - Max Porter e Ru Kuwahata Revolting Rhymes - Jakob Schuh e Jan Lachauer
Melhor Figurino
A Bela e a Fera O Destino de Uma Nação Trama Fantasma A Forma da Água Victoria e Abdul - o Confidente da Rainha
Melhor Maquiagem e Cabelo
O Destino de Uma Nação Extraordinário Victoria e Abdul - o Confidente da Rainha
Melhor Montagem
Em Ritmo de Fuga Dunkirk I, Tonya A Forma da Água Três Anúncios Para um Crime
Melhor Mixagem de Som
Em Ritmo de Fuga Blade Runner 2049 Dunkirk A Forma da Água Star Wars - Os Últimos Jedi
Melhor Edição de Som
Em Ritmo de Fuga Blade Runner 2049 Dunkirk A Forma da Água Star Wars - Os Últimos Jedi
Melhores Efeitos Visuais
Blade Runner 2049 Guardiões da Galáxia Vol.2 Kong - A Ilha da Caveira Star Wars - Os Últimos Jedi Planeta dos Macacos - A Guerra
Melhor Design de Produção
A Bela e a Fera Blade Runner 2049 O Destino de Uma Nação Dunkirk A Forma da Água
Melhor Canção Original
"Remember Me" - Viva - A Vida é uma Festa - Kristen Anderson-Lopez e Robert Lopez "This is Me" - O Rei do Show - Benj Pasek e Justin Paul "Mighty River" - Mudbound – Lágrimas sobre o Mississipi - Mary J. Blige, Raphael Saadiq e Taura Stinson "Mystery of Love" - Me Chame Pelo Seu Nome - Sufjan Stevens "Stand Up for Something" - Marshall - Diane Warren e Lonnie R. Lynn
Melhor Trilha Sonora Original
Dunkirk - Hans Zimmer Trama Fantasma - Jonny Greenwood A Forma da Água - Alexandre Desplat Star Wars - Os Últimos Jedi - John Williams Três Anúncios Para um Crime - Carter Burwell
Numa das cenas do filme “Harriet”, de Kasi Lemmons (2019), que conta a história da ativista e heroína negra do século 19 nos Estados Unidos, o pai da personagem, num das expedições clandestinas empreendidos por ela com a intenção de libertar negros escravizados do jugo dos senhores de terra, a recebe de olhos vendados. Ele sabia que a filha ali estava, mas, numa atitude aparentemente inútil, bloqueava a visão para que, se cobrado pelos patrões, tivesse consigo a sinceridade de poder dizer que não a tinha visto com os olhos. Essa atitude aparentemente pueril ou até irracional traz, no fundo, uma preocupação para além do racional, visto que ética, além de, noutra esfera, ligada ao conceito de cinema. É este aspecto ético que, noutras formas e complexidades, norteia a obra do cineasta norte-americano Jordan Peele e, mais propriamente, seu longa “Não! Não Olhe!” (“Nope”), de 2022.
Peele, assim como os conterrâneos, contemporâneos e irmãos de cor Kasi, Anthony Fuqua, Ryan Coogler, Barry Jenkins, Ava DuVernay, Steve McQueen e outros, tem plena noção do seu “lugar de fala” enquanto triunfante realizador negro dentro do sistema da indústria cinematográfica. Peele, no entanto, guarda características bem peculiares. Primeiro que, diferentemente de seus pares, mais multitemáticos em abordagem, ele identifica-se fortemente com o cinema fantástico, reclamando para si um filão jamais explorado tão audazmente, nem na reivindicadora blackexplotation dos anos 70: o Black Horror. Segundo que, pelas condições produtivas, seu fazer cinematográfico identifica-se com o “cinema de autor”. Ele dirige e produz aquilo que escreve e ainda dá assinatura a suas obras, estágio que poucos cineastas alcançam – ainda mais negro e em tão pouco tempo de trajetória.
São assim “Corra!” (“Get Out”, 2017), consagrado terror psicológico que o alçou mundialmente, e “Nós” (“Us”, 2019), outro filme de horror de rara habilidade narrativa tanto em roteiro quanto em direção. Filmes comerciais, mas capazes de aprofundamento crítico e filosófico. Imbricado à forma, pop e instigante, o conteúdo de ambos os filmes redimensiona problemáticas da questão negra como preconceito, animalização e extermínio sócio-étnico-cultural. O “terror” na já marcante obra de Peele é mais do que o sobressalto da poltrona ou o arregalar de pupilas: são séculos de um terror verdadeiro de desumanização e apagamento o qual foi (e é) submetido o povo negro. E que ganham ainda maior potência na tela diante do choque provocado ao evidenciar que este mesmo terror está presente em uma sociedade moderna incapaz de superar comportamentos e mentalidades inaceitáveis. Peele não brinca e nem pasteuriza o racismo: ele, ao revesti-lo de estereótipos fílmicos e elementos narrativos consagrados, escancara o quanto esta doença humana é assustadoramente vulgar.
“Não! Não Olhe!”, bem menos arrepiante que seus anteriores, é um suspense sci-fi cujos apontamentos críticos à questão social e racial se dispõem de uma forma renovada. A história se passa numa cidade do interior da Califórnia, que começa a ter eventos bizarros e extraterrestres. Os irmãos Emerald e OJ (interpretados por Keke Palmer e Daniel Kaluuya), donos de um rancho de cavalos vizinho a um parque de diversões, não apenas presenciam estes fatos estranhos como passam a se envolver diretamente com eles depois que perdem seu pai em virtude de tais fenômenos. Outra figura central na trama é nipo-americano Jupe (Steven Yeun), astro-mirim de uma série de televisão no passado e apresentador de um show de velho oeste naquele parque.
Keke Palmer e Daniel Kaluuya protagonizam a ficção de Peele, cuja mensagem vai além do gênero
A coesão da narrativa que se percebe em “Nós” e, principalmente, em “Corra!” talvez falte um pouco ao roteiro um tanto desigual de “Não! Não Olhe!”, tecnicamente impecável como seus antecessores, mas bem mais dado à espetacularização imagética das ficções-científicas do que à suscetibilidade neural provocada pelo terror psicológico. Porém, o longa, mesmo sem total assertividade – como recai a obras que se propõem a transpor barreiras – avança em aspectos antes obscurecidos na sociedade norte-americana e no cinema enquanto reflexo do contexto histórico e sociopolítico. Questões fadadas a não serem enxergadas, como identidade, crença, cultura e ancestralidade. Como se tivessem que obedecer a uma regra social intolerante, que impõe não serem olhadas de modo que permaneçam invisíveis simbolicamente. Sem estes preceitos, a natureza humana perde sentido, e sem identidade e moral, resta a animalização. Refazendo o ditado popular: quem não é visto, é apagado.
Peele, por este motivo, traçou paralelos entre homem e natureza em diferentes níveis em “Não! Não Olhe!”. Primeiro, entre o selvagem e o civilizado. O filósofo inglês Thomas Hobbes diz que “a natureza fez os homens tão iguais quanto às faculdades de corpo e do espírito”. Nada mais é do que a utilização do impulso irracional do cavalo domesticado por OJ durante os bastidores para a gravação de uma cena audiovisual. A insegurança do rapaz, um homem negro de origem simples diante da elite majoritária branca, simbolizada pela equipe presente no set, o reduz como indivíduo. Acuado, ele se desumaniza e se animaliza. Nem a aparição da irmã, bastante mais desenvolta do que ele, consegue salvar o cavalo de reagir espontânea e naturalmente com agressividade ao estímulo visual quando se vê num espelho. Pelo contrário: OJ ao mesmo tempo identifica-se e sente vergonha de Emerald com sua verborragia e gestos amplos, pois, inconscientemente, também a vê animalizada tal uma macaca. Semelhante ao humano, mas necessariamente inferior. Como o cavalo, ver-se no espelho é uma tarefa repelente quando não se tem consciência da própria natureza.
O chimpanzé Gordy: metáfora central da história
A alegoria do primata na relação entre instinto e razão, homem versus animal, é ainda mais profundamente explorada no filme por Peele quando da aparição do chimpanzé Gordy, espécie de metáfora central da história. É ele que, no passado, em virtude do mesmo desrespeito e exploração ditados pela engrenagem capitalista, faz valer seus instintos mais sinceros – e violentos – durante as tensas gravações de uma fictícia sitcom. Inspirando num caso real ocorrido nos Estados Unidos, Gordy ataca a equipe e, assim, equipara de fato tanto homens quanto bichos com aquilo que lhes é comum: a morte e a finitude. Uma (forçada) volta às origens. Traumatizado com este episódio da infância, Jupe, é o único a quem o macaco poupou por lhe tratar com dignidade e carinho – ou seja, que o olhava sem a lente do preconceito. O coração vê sim e mais do que se possa supor.
Reina nesta apropriação do estado natural do homem a dicotomia ética a qual o filme se concentra. Hobbes sustenta que, diante da necessidade de preservação da individualidade e do direito natural à sobrevivência, o ser humano busca lançar mão dos meios necessários para preservá-la e evitar todas as ações que sejam contrárias a ela. A criação do estado político, diante da quase irrefreável ação de eliminação do outro, nada mais é do que o obstáculo necessário para a contenção destes instintos. Acreditam ter encontrado a justiça, mas alcançaram algumas migalhas de harmonia. O “lobo do lobo do homem” está lá, preservado; apenas há convenções que lhe limitam a barbárie.
Limitam até certo ponto. Na prática, a falácia liberalista atribui o direito à riqueza a todos, mas a destina àqueles que formal e historicamente sempre tiveram mais condições de deter o poder: os brancos. Se o valor que as pessoas ou coisas possuem é resultado de convenção social, o que acontece com aqueles que foram convencionados por séculos como uma raça inferior? Difícil desfazer mentalidades vigentes, principalmente quando estas asseguram influência e domínio. A relação de fornecedor e comprador exposta na cena em que OJ tenta domesticar o cavalo para a gravação audiovisual expõe bem esta contradição: não há lei de mercado mediando, pois a liberdade não é dada a quem, de antemão, é subjugado por sua atribuída condição inumana. Basta ver que ninguém no set enxerga OJ de fato, a ponto de não considerarem seu importante alerta para a preservação do bem estar do cavalo e a própria finalidade para a qual estavam todos ali.
O cinema norte-americano de muito mira suas câmeras, consciente ou inconscientemente, à questão da animalização dos pretos. Esta subclassificação, que situa o afrodescendente numa posição de espécie exótica e quase humana numa sociedade em que, na escravidão, furavam-se os olhos de escravos como castigo, denota a mentalidade racista imperante e transposta para Hollywood por décadas. Quebrariam este ciclo mais consistentemente duas produções apenas nos anos 60, quase meio século após a instauração da indústria cinematográfica: “A Noite dos Mortos-Vivos” (George Romero, 1968), terror que atribui naturalmente um raríssimo heroísmo a um protagonista negro, e “Ao Mestre com Carinho” (James Clavell, 1966), drama no qual se via numa das primeiras vezes um negro na tela em um papel preponderante. Não por coincidência, ambos as produções surgem à época das lutas pelos Direitos Civis nos Estados Unidos.
Porém, os séculos de massacre social e cultural pesam. A mítica figura de “King Kong”, por exemplo, originalmente lançado em 1933 mas persistentemente retornada nas décadas subsequentes, carrega consigo a simbologia desta relação incongruente entre selvageria e civilização. Imagem preconceituosa, aliás, que nenhuma das refilmagens teve capacidade (ou intenção) de desfazer. A atração sexual implícita entre o gorila gigante, bastante empretecido em feições, e a mocinha, tão branca e loira quanto os códigos arianos permitem, joga luz sobre a dualidade instinto/razão. Afinal, a sexualização do negro é, definitivamente, uma das patologias as quais o brancocentrismo não consegue resolver. Hobbes diz que a riqueza sem a liberalidade deixa de ser poder e expõe o homem à inveja.4 Mesmo tendo despertando o amor no coração da mulher, aquela existência aberrante é incompatível com a ordem social. A solução? O apagamento. Ninguém mais o vê, simples.
O emblemático King Kong em versões ao longo da história
A força descomunal de “King Kong” serve também como uma bela metáfora. Tudo que a autoproclamada justa sociedade norte-americana desconhece ou não controla, classifica como fantástico e inimiga de seus valores morais. O cinema sci-fi, como o que Peele recursou em “Não! Não Olhe!”, é causa e consequência deste pensar ufanista e egoico, visto que se vale largamente do artifício do estranhamento a depender das ameaças vigentes à ideologia de sua época. E se esta ameaça vier do céu ou de outro planeta, fica ainda mais fácil justificar a segregação. Já serviram de símbolo para estes fenômenos alienígenas o comunismo (“Vampiros de Almas”, Don Siegel, 1956), a crise nuclear (“O Enigma de Andrômeda”, Robert Wise, 1871), as doenças venéreas (“Enraivecida”, David Cronenberg, 1977), a tecnologia (“O Exterminador do Futuro”, James Cameron, 1984), os vírus letais (“Eu Sou a Lenda”, Francis Lawrence, 2007) e até a emancipação feminina (“Invasores”, Oliver Hirschbiegel, 2015). Tudo o que não se detêm controle. Em “Não! Não Olhe!”, cujo discurso é fruto das motivações pós-George Floyd, o monstro, reelaborado e em certa medida mais palpável, é o próprio sistema: incontrolável, insaciável, intolerante e, por natureza, forjado sobre bases segregadoras.
Organismo que rejeita o feto, este estranhamento é gerado pelo próprio sistema. E vai além: esconde e determina que este não deva existir, que não deve ser visto. A dicotomia, portanto, instaura-se. Como um filho bastardo e imperfeito, o monstrengo descomunal e incontrolável existe, e por isso deve ser desconsiderado, pois só assim pode ser domado. Caso contrário, ele solapa, consome, elimina. Mastiga tudo que vê pela frente e ainda, faminto, exige mais. Por isso, o alerta: “não, não o olhe”. Se o fizer, as energias serão magicamente todas roubadas, pois o que não falta a este estranho sem forma é força e até razão. Irônica e metalinguística a cena em que o “cinema de arte” é sugado pelo alien na figura estereotipada do cineasta-autor: branco, excêntrico e idealista, mas frouxo.
Afora isso, o filme suscita a linguagem cinematográfica ao aludir à função psicológica do olhar. Novamente, todavia, de maneira original. No cinema de Peele, este paralelo também está diretamente ligado à abordagem do gênero de terror/fantasia, pois dela se depreendem proposições críticas potentes e coerentes com o discurso do cineasta. Ele usa a gramática do cinema para ressignificar a permanente indagação ética: “de onde vem o racismo?” Em “Corra!”, o mistério do aliciamento de jovens negros pela abastada família branca se desvenda quando vídeos gravados são vistos através do olhar das lentes. Em “Nós”, o enigma se esconde naquele apavorante reconhecimento visual à duplicidade dos corpos sem identidade ou moral. Já em “Não! Não Olhe!”, cujo mesmo recurso linguístico não apenas se repete como se torna o cerne, há uma sobreposição de olhares: o dos personagens, o do espectador, o da natureza, o social, o histórico e o identitário.
É claro que o título provocativo do filme de Peele tem como finalidade não a repelir mas, justamente, atrair o olhar a uma necessária tomada de consciência humanitária. Juntamente com os cineastas negros de sua geração, também autores de obras de vital relevância para a recente cinematografia dos Estados Unidos e para a discussão do problema urgente do racismo, o jovem realizador forja o que pode ser chamado de “cinema de conscientização”. Mais do que reagir como a blackexplotation, denunciar como a L.A. Rebellion ou levantar contradições como Spike Lee, esta geração avisa que veio para mudar. O que pode ser entendido como sinal dos tempos, também é prova de que há muito espaço jamais ocupado historicamente por estes em virtude da hegemonia branca. Porém, na era do Vidas Negras Importam, outro lema advindo da luta racial dos Estados Unidos pode ser parafraseado de forma a amalgamar estas dignas intenções: “sim, nós olhamos”.