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sábado, 11 de agosto de 2018

"Despertar dos Mortos", de George A. Romero (1978) vs. "Madrugada dos Mortos", de Zack Snyder (2004)




Despertar dos Mortos (1978)
dirigido por: George A. Romero

Um filme que vence a barreira do tempo e se torna icônico, “Despertar do Mortos” é uma obra completa que serviu e serve de inspiração para o “gênero de zumbis” até os dias de hoje. Obrigado, George Romero!
Os mortos estão retornando à vida e atacando os vivos. Quatro sobreviventes do ataque escondem-se em um shopping abandonado e planejam contra-atacar. No entanto, milhares de mortos-vivos descobrem o esconderijo e iniciam um novo massacre, contaminando outros sobreviventes que retornam como zumbis e somam-se ao exército de abomináveis criaturas.
Devo afirmar que é um filme bem longo, com mais de duas horas de duração, e seu ritmo é um tanto parado, o que recomenda que não se espere ver muitas cenas de ação. Elas até existem, há algumas, é verdade, mas não é toda aquela ação tipo tiro, porrada e bomba.
Apesar do roteiro não ser uma grande obra, a narrativa do filme é uma delicia, divertida e ao mesmo tempo tensa, fazendo-nos, até mesmo, ficar realmente preocupado com o grupo de sobreviventes. Por trás da mascara de “apenas um filme de zumbis”, "Despertar dos Mortos" traz toda uma critica social ao consumismo, levando zumbis a um shopping, e mesmo algumas referências a racismo. Contudo, se você não quiser levar em consideração esses aspectos do filme, tudo bem, a escolha é sua, mas deixar isso passar fará você perder boa parte da graça da obra.
Tudo que temos do gênero de zumbi na cultura pop devemos a esta obra. Ela foi o carro chefe, um marco na temática. Tudo funciona: as atuações, a narrativa, e a maquiagem, quando necessário, se faz presente de maneira espetacular. Miolos, tiros e muita diversão, “Despertar do Mortos” marcou seu lugar na historia.

"Despertar dos Mortos" - trailer


"Madrugada dos Mortos" (2004)
dirigido por: Zack Snyder

Sabe quando a pessoa passa um tempo fora e volta diferente? Você vê a essência dela, a reconhece mas percebe que ela esta diferente...? Um diferente positivo. É isso que “Madrugada dos Mortos” faz com os filmes dos zumbis.
Após mais um dia de trabalho, tudo que Ana quer é tomar um banho ao lado do marido e dormir. Mas nas primeiras horas da manhã ela é violentamente atacada por uma legião de mortos-vivos e se descobre em um pesadelo real: o mundo inteiro está tomado por zumbis. Em fuga desesperada, Ana se une a um pequeno grupo de sobreviventes que se refugiam num shopping center enquanto o mundo lá fora se transforma literalmente no inferno.
Esse remake de Zack Snyder, não tem ênfase na questão da critica social e aposta muito mais na ação. “Madrugada dos Mortos” é muito mais um filme de ação do que uma obra de terror. Sua ação é frenética, o ritmo é ótimo, há excelentes tomadas aéreas e temos ótimas sequências de tiros em zumbis, que, a propósito, graficamente são lindas também.
O filme de Snyder é muito bem dirigido conseguindo trabalhar com êxito com um grupo de sobreviventes bem maior do que no original, o que torna a parte as relações entre eles mais impessoal e garante uma maior possibilidades de interações. O fato de termos pouquíssimo, quase nada, do background da maioria dos personagens é ótimo, uma vez que assim criarmos teorias e expectativas sobre cada um deles, o que acaba sendo bom, pois há casos em que imaginamos que algum deles poderia agir de determinada maneira mas então aquele personagem toma uma atitude totalmente o contrária do que esperávamos, criando uma quebra de expectativas bastante interessante.
"Madrugada dos Mortos" não chega a ser uma obra espetacular mas conseguiu dar um ar revigorado aos zumbis. Pode não ter o mesmo peso que sua versão original mas ajudou, em sua época, a redefinir os filmes do gênero. Uma ação frenética e uma câmera ágil tornam a experiência de assistir a esse filme uma coisa deliciosa. Corra e vá assistir esse filme, mas corra mesmo porque os zumbis aqui são muito rápidos.

"Madrugada dos Mortos" - trailer

ROLA A BOLA
Começa o jogo! Esse realmente é um mata mata. Dois times que jogam pra frente, gostam de jogar bonito, ousar, mas também mordem na hora de marcar.
"Madrugada dos Mortos" é muito rápido, seu inicio de partida é frenético e, olha lá... dribla um, dois, passa pelo posto de gasolina, desvia do helicóptero pegando fogo, E GOOOLAÇO.  "Madrugada dos Mortos" 1 x 0.
O forte elenco e toda aquela ação fazem os fãs do futebol moderno torcerem muito para a “A Madrugda dos Mortos”  e seu futebol veloz, e impulsionado pela torcida, o time de Zack Snyder vai para cima. Bola na trave !Com zumbis ágeis como esses não podemos negar que é um futebol bonito e objetivo. Lá vem mais uma explosão e quase mais um gol.
A partida vai transcorrendo com pressão de “Madrugada dos Mortos”. Mas seu jogo frenético cansa no final e é ai que “Despertar dos Mortos” dá o pulo do gato.  Seu jogo inovador que fez escola, com diálogos certeiros como se fossem uma bela tabela na frente da grande área, a força do conjunto que joga regular e uniformemente o tempo todo, o elenco jogando bem e acalmando o jogo nos momentos chave com humor na medida certa... De repente, Bum! GOOOOOL. "Despertar Dos Mortos" empata o jogo. 1 x 1.
Acho que desta vez teremos um empate pelo equilíbrio das duas equipes e pelo bom futebol desempenhado por ambos. Seria o mais justo. Mas, futebol não é justiça. Tem horas que a camisa pesa, toda a história de um time lhe dá forças para no final da partida usar a mística de suas cores e, não foi diferente aqui. George Romero deu inicio a esta onda pop de zumbis e esta originalidade é seu grande diferencial e sempre vai ser....  GOOOOL de "Despertar do Mortos". 2 x 1.

"Queremos vocês"! A fúria zumbi, à esquerda na versão original de Romero,
e à direita na competente refilmagem de Snyder.

Uma bela partida! Cada um no seu estilo, ambos fantásticos e divertidos, porém a originalidade do primeiro, do mestre Romero, me conquistou.





Vagner Rodrigues

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Os 100 Melhores Filmes de Terror da IndieWiere (e aquelas 12 títulos que faltaram)


 
Cada vez mais fica claro que listas são feitas para serem complementadas. As famosas (e polêmicas) seleções de melhores do cinema não desmentem: por mais criteriosas que sejam em suas elaborações, sempre deixam aquela sensação de que algo faltou. Ainda mais quando o tema envolve os melhores “de todos os tempos ", que, por motivos óbvios - o de abarcar tudo que o universo daquela temática ou recorte deve oferecer -, corre muito mais risco de erro.

"O Iluminado", um clássico do terror incontestável.
Mas há outros
Caso da lista divulgada recentemente pelo IndieWire, reconhecido portal sobre cinema, que elaborou uma publicação com os 100 melhores filmes de terror de todos os tempos. Por si só, aliás, um gênero polêmico, seja pela classificação de um filme dentro desse gênero (às vezes, discutível se é terror ou não), seja pela paixão que exerce sobre seus milhares de fãs (o que supõe uma maior diversidade de preferências). 

Porém, a IndieWire encarou a empreitada. E o fez muito bem, por sinal. Tem de tudo: zumbi, monstro, slasher, vampiro, espírito, lobisomem. Sangue, morte e medo para todos os gostos. Podem se achar listados os principais filmes de terror que se conhece. Clássicos incontestes como "O Iluminado", "O Bebê de Rosemary", "Tubarão" e "O Massacre da Serra Elétrica" estão lá. Igualmente, a consideração a obras nem tão badaladas, mas inegavelmente merecedoras, tal "A Beira da Loucura", de John Carpenter (69°), "Irmãs Diabólicas", de Brian De Palma (87°) e "Violência Gratuita", de Michael Haneke (15°). Até mesmo a primeira colocação a "Possessão" (de Andrezej Żulawski) surpreende, mas é bem interessante em se tratando de uma lista claramente revisionista. Também é apreciável o prestígio aos orientais com várias produções do Japão e Coreia do Sul da década de 50 até a de 2000. Como diz a própria publicação, “prestamos atenção às seleções que abriram caminho em inovações para o gênero e para o cinema como um todo”.

No entanto, há controvérsias, claro. A começar pela má colocação de alguns títulos que fazem jus a uma melhor pontuação, seja por sua importância para o gênero ou para a própria história do cinema, como "A Hora do Pesadelo", pondo o icônico Freddie Krugger apenas no 98° lugar; o referencial "Psicose", obra-prima de Alfred Hitchcock e possivelmente top of the tops numa relação mais tradicional, aqui contentando-se somente com o 39° posto; ou o já citado "O Bebê...", 42°, recorrentemente tido como um dos principais filmes da história do cinema em todos os gêneros. E "Nosferatu" de Murnau, na 40ª? Ou "O Exorcista" só 51ª? Sinistro...

Mas são as ausências que mais gritam tal qual a mocinha clichê fugindo do serial killer no meio da noite. Ver uma seleção de 10 dezenas de obras de terror e enxergar algumas sendo esquecidas (ou preteridas) motiva àquilo que referimos no início do texto: o ímpeto de querer complementá-la. Por isso, trazemos aqui 12 títulos não listados pela IndieWire, mas que consideramos essenciais de constarem. Tirar alguns? Ampliar? Adicionar aquele "plus"? Tanto faz. Importante é contribuir com mais filmes certamente cabíveis numa lista como esta: legal, mas incompleta. Os amantes do terror hão de concordar.


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"O MAL QUE NOS HABITA", de Damián Rugna - ARG (2023) - Um desses recentes, mas que já mexeu com as estruturas do universo do horror é o aterrorizante argentino "O Mal Que nos Habita". Tem possessão, tem gore, tem violência extrema, tem canibalismo, tem sobrenatural, tem perseguição e, de quebra, ainda, na entrelinha, crítica social. A gente fica apavorado com o que vê, cenas gráficas e sangrentas daquelas de fechar os olhos, como a famosa sequência do cachorro matando a menininha; espantado com o que aconteceu mas não viu, como o garoto que comeu a avó; e amedrontado pelo que não vê, a maldição que persegue os moradores de uma cidadezinha interiorana na argentina e que pode estar em qualquer um, em qualquer lugar. Um dos grandes filmes do gênero nos último anos.





"TERRIFIER", de Damien Leone - USA (2016) - "Terrifier" surgiu meio que como um cult. Era uma espécie de clássico do underground daqueles que só tinha visto quem conseguia por algum meio menos convencional. Mas o fato é que, mesmo difícil, restrito a alguns fanáticos sanguinários e incansáveis ratos de internet, o filme era muito comentado pelas barbaridades, atrocidades e brutalidades de um palhaço mímico que comete uma verdadeira carnificina numa noite de Halloween. E de fato, a fama não era a toa. "Terrifier" é dos filmes mais brutais que já assisti. As coisas que faz o palhaço Art são duvidáveis até para o mais acostumado fã de slashers. Tipo, "Ele não vai fazer isso... não vai fazer...  Fez!!!". O visual da fantasia preto e branco com uma mini-cartola, aquele sorriso sujo assustadoramente amplo, a determinação em seus objetivos assassinos, o sadismo doentio, e o talento para as execuções de suas vítimas fazem de Art um dos novos grandes matadores do cinema e mais um personagem clássico do horror.



"INVASÃO ZUMBI", de Yeon Sang-ho - KOR (2016) - Os zumbis foram mudando ao longo da história do cinema desde que George Romero os 'inventou". Já foram apalermados, organizados, individualistas, inconscientes, cruéis, devoradores, possuídos, experimentais... Em "Invasão Zumbi" um dos grandes baratos é que ao invés de zumbis lentos, descoordenados, capengando com os braço estendidos para a frente e babando, temos zumbis rápidos. Velozes, determinados, imparáveis e vorazes! A partir do momento que o primeiro infectado entra no trem de Seul para Busan o frenesi não tem mais fim. Aí ele morde um que morde outro que morde outro, e os corredores apertados do trem são o cenário perfeito para um dos filmes de zumbi mais alucinantes que já se viu.





"ATIVIDADE PARANORMAL", de Oren Peli - USA (2007) - Sei que o found-footage já tá enchendo no saco de tanta coisa que se fez no formato desde o sucesso do fenômeno "A Bruxa de Blair", mas não dá pra ignorar e deixar de fora o igualmente criativo "Atividade Paranormal". Basicamente uma câmera num tripé posicionada no quarto de um jovem casal que suspeita sua casa, suas vidas, estejam sendo atormentadas por alguma força sobrenatural, um espírito, um demônio ou algo assim. Para tentar tranquilizar a esposa Katie e esclarecer as dúvidas, o marido, Micah, aficionado por eletrônicos, vídeos, filmagens, coloca câmeras gravando o tempo inteiro em vários pontos da casa, inclusive no dormitório do casal. É, e para desespero dos dois, as imagens revisadas nos dias seguintes às gravações, depois de suas noites de sono, confirmam seus piores temores: tem alguma coisa lá. Simples? Sim, mas eficiente. O passar dos dias, o aumento gradual da atividade, dos fenômenos mantém o interesse do espectador. Sem graça? Uma câmera fixa na mesma posição... Que nada! Aquele silêncio, aquela imagem parada na amplitude do quarto faz a gente ficar com o olho atento a cada detalhe, a cada cantinho. Será que a porta vai mexer? Será que sai alguma coisa debaixo da cama? E o lençol? E o chinelo? E o pé dela? E o pé dele?... Pior é, depois de ver o filme, ir dormir e ter que apagar a luz do quarto.



"CREEPSHOW", de George A. Romero - USA (1982) - Se um filme dirigido por George A. Romero com argumento e roteiro de Stephen King, inspirado nos clássicos quadrinhos de terror dos anos 50 não é uma das melhores coisas do mundo do terror, eu não sei mais o que é bom ou não. Com todo aquele colorido e visual de HQ na tela, com arte desenhada, fontes Comic Sans, layout de tela como uma página de papel, os mestres do terror nos apresentam cinco contos recheados de medo, morte, sangue e humor, com mortos-vivos, criaturas assassinas, coisas de outros planetas, infestações incontroláveis, em tramas envolventes que desfilam ódio, traição, vingança, ambição e repugnância. King, Romero, quadrinhos, sangue, decapitações, zumbis, insetos nojentos, monstros... O que pode ser melhor que isso?







trailer de "Creepshow"



"O SEGREDO DA CABANA"
, de Drew Godard - USA/CAN (2012) - Reverência e crítica ao mesmo tempo, "O Segredo da Cabana" brinca com os clichês dos filmes de horror construindo a partir disso, por incrível que possa parecer, uma obra inteligente e singular. Grupo de jovens, cabana no meio do nada, lenda local, livro no porão, despertar de algo sobrenatural... Sei, sei. Já vimos tudo isso. Mas e se tudo isso estivesse sendo meticulosamente controlado por uma espécie de central mundial de eventos paranormais que decide qual monstro, assombração ou criatura será destinado para cada local, e quando e como o maligno deverá agir? Tipo de arma, tipo de morte, ambiente, essas coisas... Enquanto o 'escolhido' entra em ação, os funcionários do local, que já prepararam tudo, luz, nevoeiro, trilhas, dificuldades, obstáculos, apostam entre si, enquanto assistem por um circuito privado de vídeo, como se dará, efetivamente, cada execução: morte rápida, lenta, decapitação, mutilação, estrangulamento, muito sangue, pouco sangue, etc. Lá pelas tantas as coisas fogem do controle desse pessoal da retaguarda da 'empresa' e dois dos jovens descobrem suas instalações secretas subterrâneas, e é quando muita coisa passa a entrar em jogo, incluindo a existência da humanidade se aquela horda de aberrações, mantida até então sob controle, for libertada e sair pelo mundo afora. A hora em que os garotos abrem os elevadores das criaturas é um dos momentos de maior caos que já se viu em filmes do gênero, e ao mesmo tempo um dos momentos mais "lindos" para fãs de terror. Tudo está ali: Lobisomens, vampiros, bruxas, ciclopes, górgonas, dragões, duendes doentios, crianças malignas, palhaços assassinos, répteis gigantes, zumbis famintos, surgem todos ao mesmo tempo, remetendo a diversas referências do mundo do cinema que entusiastas do gênero com certeza não deixam de notar. "Hellraiser", "It", "O Chamado", "Poltergeist", "O Iluminado", "A Noite dos Mortos-Vivos", "A Múmia", "O Monstro da Lagoa Negra", "O Massacre da Serra Elétrica" e outros mais... todos estão homenageados nas celas de vidro ou corredores de sangue da tal 'empresa', a fábrica de pesadelos do diretor Drew Godard. Um deleite para nós, cultuadores desses filmes! Uma crítica ao cinema hollywoodiano, seus vícios, seus padrões, seus métodos, sua influência e abrangência, mas também, de certa forma, uma cutucada quanto ao mundo em que vivemos como um todo, no qual uma minoria de poderosos, 'donos do mundo', decide como as coisas são e como devem continuar sendo. 


"POLTERGEIST, O FENÔMENO", de Tobe Hooper – USA (1982) - Assim como "O Exorcista", "Tubarão" e "Pânico", o filme de Tobe Hooper - àquela altura, início dos anos 80, bem melhor aparado pela indústria do cinema do que quando realizou na raça o independente "O Massacre da Serra Elétrica" em 1974 - é daqueles que títulos que, independentemente da colocação conforme o critério adotado para a seleção, não pode faltar a uma lista de 100 best horror of all times de jeito nenhum. Produzido por Steven Spielberg e com trilha do craque Jerry Goldsmith, além do enorme sucesso que fez à época de lançamento, tornando-se um marco dos filmes de terror assim como os citados acima, "Poltergeist" "cumpre" algo que nem sempre filmes do gênero, por mais bem feitos que sejam, conseguem alcançar: ele assusta. Depois de assisti-lo, nunca mais se olha para uma árvore ao lado da janela da mesma maneira.



“O ESTRANHO MUNDO DE ZÉ DO CAIXÃO”, de José Mojica Marins - BRA (1968) - O máximo que a lista da IndieWire vai fora da América do Norte, da Ásia ou da Europa é um filme do Oriente Médio (“Garota Sombria Caminha pela Noite”, do Irã) e outro da América do Sul, o chileno “Santa Sangre”. Talvez por essa pouca atenção além do circuito tradicional tenham deixado de voltar seu olhar para o Brasil e o seu grande ícone do cinema de horror: José Mojica Marins, o homem por trás do personagem cujo mundo é tão estranho quanto magnífico. Os gringos que não se façam de loucos, pois o conhecem muito bem como Coffin Joe, quando o brasileiro foi descoberto nos festivais internacionais de cinema como Avoriaz, nos anos 90, e passou a ser cultuado. Poderia ser o seminal “O Estranho Mundo de Zé do Caixão” ou o lisérgico “O Despertar da Besta”, mas “O Estranho Mundo de Zé do Caixão” é sua obra mais bem acabada e sintética do estilo híbrido de seu cinema, que vai do trash e o vampirismo ao gótico e o body horror.



“O MENSAGEIRO DO DIABO”, de Charles Laughton – USA (1955) - Se tem um filme absolutamente injustiçado nessa listagem publicada esse filme é "O Mensageiro do Diabo". Clássico da segunda fase do cinema noir, o único longa dirigido pelo experiente ator inglês Charles Laughton impressiona pela perfeição em todos os aspectos fílmicos: fotografia, roteiro, edição, trilha, atuações. E que atuações! Robert Mitchum, que encarnaria o perigoso Max Cady na primeira versão de "Cape Fear" 12 anos depois, leva muito para aquele papel o clima do personagem deste filme, o assassino de viúvas ricas Harry Powell. Mas não só Mitchum: a perseguida Willa, vivida por Shelley Winters e, principalmente, as crianças (Lilian Gish e Billy Chapin) dão um show de interpretação, lembrando o desempenho acima da média de outra dupla de pequenos atores noutro título clássico do terror: "Os Inocentes" (41° da lista).





“AS DIABÓLICAS”, de Henri-Georges Clouzot – FRA (1955) - Um dos critérios adotados pela IndieWire para compor a lista é de que os filmes não fossem somente fantásticos, mas também dessem medo. Seguindo esta lógica, "As Diabólicas" não estar presente é definitivamente um equívoco. Uma das mais marcantes obras da cinematografia francesa dos anos 50 pré-Nouvelle Vague, "As Diabólicas" assusta pra caramba! Michel Delassalle dirige com mão de ferro um pensionato para meninos, assistida por sua doce esposa Christina. Ele tem por amante Nicole Horner, professora da instituição. Cansadas do despotismo de Michel, as duas mulheres unem para assassiná-lo. Alguns dias depois do crime, no entanto, o cadáver desaparece e situações estranhas começam a se suceder. Esteticamente impressionante, algo expressionista, é contado de forma magistral pelo diretor Henri-Georges Clouzot, mestre de narrativas tensas a se ver pelo sufocante Palma de Ouro "O Salário do Medo", de 1953. O ambiente sombrio do pensionato, a figura arrepiante de Simone Signoret como a fria Nicole e, principalmente, as reviravoltas do roteiro, fazem deste filme uma obra-prima do gênero do terror. Ah: e é uma das inspirações de Hitchcock para produzir "Psicose". Não precisa dizer mais nada, né?


trailer de "As Diabólicas"



"A CASA QUE PINGAVA SANGUE", de Peter Duffell - ING/IRL (1971) - Típico filme de terror inglês "das antigas": histórias criativas, instigantes e bem contadas. Reunião de quatro histórias que são contadas ao Inspetor Holloway, que investiga o misterioso desaparecimento do ator de filmes de terror Paul Henderson após mudar-se para uma antiga casa. Assassinos que saem dos livros para a realidade, um museu de cera que desperta desejos proibidos, uma menina alijada de uma boneca e uma capa capaz de dar poderes a um homem fazem dessa reunião de pequenos filmes - mas interligados entre si - daqueles clássicos que dava gosto de assistir na tevê com a dublagem da TKS. E ainda conta no elenco com o veterano Peter Cushing, que viveria Sherlock Holmes no cinema em 1984, e ele: Christopher Lee, lenda do terror.





“HALLOWEEN III – A NOITE DAS BRXAS”, de Tommy Lee Wallace – USA (1982) - Tá ok: já tem o clássico “Halloween” do Carpenter, o filme que melhor captou o lado sombrio dessa comemoração muito peculiar da cultura norte-americana, abrindo a porta para uma interminável sequência que perdura até hoje, mais de 40 anos após seu lançamento. Mas é impossível não referir nessa relação de melhores de terror uma dessas sequências, a de nº 3. Curiosamente (e isso é uma das qualidades do filme de Tommy Lee Wallace), não tem nada a ver com a história do assassino Michael Myers entabulada nos até então outros dois anteriores. Mas a principal qualidade de “Halloween III” é o de ser absolutamente arrepiante como poucos filmes o são. Antecipando a viagem paranoico-televisiva de “Videodrome” de Cronenberg e resgatando ideias de obras como “Invasores de Corpos”, dos filmes de zumbis, inova a abordagem dos filmes de bruxa ao adicionar, inclusive, a crítica ao sistema capitalista, capaz de penetrar no cérebro dos consumidores e lobotomizá-los para vender seus produtos. Isso tudo sem deixar de ser sanguinolento. Em uma época em que se começava a discutir os efeitos nefastos da propaganda subliminar, é de arrepiar só de ouvir aquele jingle maldito mas aparentemente inocente.



Cly Reis
Daniel Rodrigues

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

"Invasão Zumbi", de Yeon Sang-ho (2016)



"Invasão Zumbi" é um dos melhores filmes de zumbis dos últimos tempos. O longa sul-coreano do diretor Yeon Sang-ho é de tirar o fôlego, manter os olhos grudados na tela e os nervos à flor da pele o tempo inteiro. A partir do momento que o primeiro infectado por uma contaminação industrial entra no trem de Seul com destino a Busan, a ação não para mais. Neste trem um executivo frio e egoísta, sentindo-se culpado por praticamente ter ignorado o aniversário da filha, aceita levá-la para Busan onde terá uma reunião de negócios e poderá com a mãe que mora naquela cidade. Só que o trem vira um verdadeiro inferno a partir do momento que, cmo é natural num filme de zumbis, o infectado morde um, que morde outro, que morde outro e aí, véi... é correria naquelas corredores apertados, é vagão sem saída, é vagão que dá direto em mais um monte de zumbis. A sensação de claustrofobia, angústia, ansiedade do espectador é constante e inevitável. E não são zumbis lerdos, sonsos! São zumbis ágeis, rápidos e irrefreavelmente famintos e vorazes. A cena da correria na estação de Daejeon, onde tentam parar, acreditando que ali é seguro, garantido pelo exército, é tensa e desesperadora. Os militares que deveriam garantir sua segurança estão infectados! É mais corrreria e correria! O momento em que os mortos-vivos forçam os vidros da estação e aquele monte de zumbis despencam em cima dos vagões é memorável, a que  os zumbis correm atrás do trem, se dependurando um ao outro faz considerada uma das grandes sequências de terror da história do cinema.
"Volta que deu ruim! Os milico tão tudo zumbizado."
Além de tudo, por incrível que pareça, o filme carrega em si toda uma ideia de solidariedade, de não pensar se pensar apenas em si mesmo, uma reflexão sobre a solidão da tecnologia dos dias de hoje, do individualismo e a indiferença em nossa sociedade. Mas mensagens à parte, no que "Invasão Zumbi" verdadeiramente se propõe, não decepciona: é um baita filme de terror. Consegue com muita qualidade, um boa direção, um argumento simples mas bem sustentado, entrar naquele panteão dos grandes filmes de zumbis, inaugurado por George Romero e no qual não é qualquer um que pode ser considerado digno de entrar.
Se o cinema sul-coreano já provou recentemente ao mundo que é bom de filme policial com o já clássico "Oldboy", é bom de ficção científica, de cinema catástrofe com elogiadíssimo "O Hospedeiro", que é bom de drama, conquistando os principais prêmios do cinema mundial com "Parasita", não deixa dúvidas com "Invasão Zumbi" que, se o assunto for terror, o pessoal por lá manda bem também.



"Invasão Zumbi" - trailer

Cly Reis

sábado, 15 de julho de 2023

“Não! Não Olhe!”, de Jordan Peele (2022)


Sim, nós olhamos*

Numa das cenas do filme “Harriet”, de Kasi Lemmons (2019), que conta a história da ativista e heroína negra do século 19 nos Estados Unidos, o pai da personagem, num das expedições clandestinas empreendidos por ela com a intenção de libertar negros escravizados do jugo dos senhores de terra, a recebe de olhos vendados. Ele sabia que a filha ali estava, mas, numa atitude aparentemente inútil, bloqueava a visão para que, se cobrado pelos patrões, tivesse consigo a sinceridade de poder dizer que não a tinha visto com os olhos. Essa atitude aparentemente pueril ou até irracional traz, no fundo, uma preocupação para além do racional, visto que ética, além de, noutra esfera, ligada ao conceito de cinema. É este aspecto ético que, noutras formas e complexidades, norteia a obra do cineasta norte-americano Jordan Peele e, mais propriamente, seu longa “Não! Não Olhe!” (“Nope”), de 2022.

Peele, assim como os conterrâneos, contemporâneos e irmãos de cor Kasi, Anthony Fuqua, Ryan Coogler, Barry Jenkins, Ava DuVernay, Steve McQueen e outros, tem plena noção do seu “lugar de fala” enquanto triunfante realizador negro dentro do sistema da indústria cinematográfica. Peele, no entanto, guarda características bem peculiares. Primeiro que, diferentemente de seus pares, mais multitemáticos em abordagem, ele identifica-se fortemente com o cinema fantástico, reclamando para si um filão jamais explorado tão audazmente, nem na reivindicadora blackexplotation dos anos 70: o Black Horror. Segundo que, pelas condições produtivas, seu fazer cinematográfico identifica-se com o “cinema de autor”. Ele dirige e produz aquilo que escreve e ainda dá assinatura a suas obras, estágio que poucos cineastas alcançam – ainda mais negro e em tão pouco tempo de trajetória. 

São assim “Corra!” (“Get Out”, 2017), consagrado terror psicológico que o alçou mundialmente, e “Nós” (“Us”, 2019), outro filme de horror de rara habilidade narrativa tanto em roteiro quanto em direção. Filmes comerciais, mas capazes de aprofundamento crítico e filosófico. Imbricado à forma, pop e instigante, o conteúdo de ambos os filmes redimensiona problemáticas da questão negra como preconceito, animalização e extermínio sócio-étnico-cultural. O “terror” na já marcante obra de Peele é mais do que o sobressalto da poltrona ou o arregalar de pupilas: são séculos de um terror verdadeiro de desumanização e apagamento o qual foi (e é) submetido o povo negro. E que ganham ainda maior potência na tela diante do choque provocado ao evidenciar que este mesmo terror está presente em uma sociedade moderna incapaz de superar comportamentos e mentalidades inaceitáveis. Peele não brinca e nem pasteuriza o racismo: ele, ao revesti-lo de estereótipos fílmicos e elementos narrativos consagrados, escancara o quanto esta doença humana é assustadoramente vulgar.

“Não! Não Olhe!”, bem menos arrepiante que seus anteriores, é um suspense sci-fi cujos apontamentos críticos à questão social e racial se dispõem de uma forma renovada. A história se passa numa cidade do interior da Califórnia, que começa a ter eventos bizarros e extraterrestres. Os irmãos Emerald e OJ (interpretados por Keke Palmer e Daniel Kaluuya), donos de um rancho de cavalos vizinho a um parque de diversões, não apenas presenciam estes fatos estranhos como passam a se envolver diretamente com eles depois que perdem seu pai em virtude de tais fenômenos. Outra figura central na trama é nipo-americano Jupe (Steven Yeun), astro-mirim de uma série de televisão no passado e apresentador de um show de velho oeste naquele parque.

Keke Palmer e Daniel Kaluuya protagonizam
a ficção de Peele, cuja mensagem vai além do gênero

A coesão da narrativa que se percebe em “Nós” e, principalmente, em “Corra!” talvez falte um pouco ao roteiro um tanto desigual de “Não! Não Olhe!”, tecnicamente impecável como seus antecessores, mas bem mais dado à espetacularização imagética das ficções-científicas do que à suscetibilidade neural provocada pelo terror psicológico. Porém, o longa, mesmo sem total assertividade – como recai a obras que se propõem a transpor barreiras – avança em aspectos antes obscurecidos na sociedade norte-americana e no cinema enquanto reflexo do contexto histórico e sociopolítico. Questões fadadas a não serem enxergadas, como identidade, crença, cultura e ancestralidade. Como se tivessem que obedecer a uma regra social intolerante, que impõe não serem olhadas de modo que permaneçam invisíveis simbolicamente. Sem estes preceitos, a natureza humana perde sentido, e sem identidade e moral, resta a animalização. Refazendo o ditado popular: quem não é visto, é apagado.

Peele, por este motivo, traçou paralelos entre homem e natureza em diferentes níveis em “Não! Não Olhe!”. Primeiro, entre o selvagem e o civilizado. O filósofo inglês Thomas Hobbes diz que “a natureza fez os homens tão iguais quanto às faculdades de corpo e do espírito”. Nada mais é do que a utilização do impulso irracional do cavalo domesticado por OJ durante os bastidores para a gravação de uma cena audiovisual. A insegurança do rapaz, um homem negro de origem simples diante da elite majoritária branca, simbolizada pela equipe presente no set, o reduz como indivíduo. Acuado, ele se desumaniza e se animaliza. Nem a aparição da irmã, bastante mais desenvolta do que ele, consegue salvar o cavalo de reagir espontânea e naturalmente com agressividade ao estímulo visual quando se vê num espelho. Pelo contrário: OJ ao mesmo tempo identifica-se e sente vergonha de Emerald com sua verborragia e gestos amplos, pois, inconscientemente, também a vê animalizada tal uma macaca. Semelhante ao humano, mas necessariamente inferior. Como o cavalo, ver-se no espelho é uma tarefa repelente quando não se tem consciência da própria natureza.

O chimpanzé Gordy: metáfora
central da história
A alegoria do primata na relação entre instinto e razão, homem versus animal, é ainda mais profundamente explorada no filme por Peele quando da aparição do chimpanzé Gordy, espécie de metáfora central da história. É ele que, no passado, em virtude do mesmo desrespeito e exploração ditados pela engrenagem capitalista, faz valer seus instintos mais sinceros – e violentos – durante as tensas gravações de uma fictícia sitcom. Inspirando num caso real ocorrido nos Estados Unidos, Gordy ataca a equipe e, assim, equipara de fato tanto homens quanto bichos com aquilo que lhes é comum: a morte e a finitude. Uma (forçada) volta às origens. Traumatizado com este episódio da infância, Jupe, é o único a quem o macaco poupou por lhe tratar com dignidade e carinho – ou seja, que o olhava sem a lente do preconceito. O coração vê sim e mais do que se possa supor.

Reina nesta apropriação do estado natural do homem a dicotomia ética a qual o filme se concentra. Hobbes sustenta que, diante da necessidade de preservação da individualidade e do direito natural à sobrevivência, o ser humano busca lançar mão dos meios necessários para preservá-la e evitar todas as ações que sejam contrárias a ela. A criação do estado político, diante da quase irrefreável ação de eliminação do outro, nada mais é do que o obstáculo necessário para a contenção destes instintos. Acreditam ter encontrado a justiça, mas alcançaram algumas migalhas de harmonia. O “lobo do lobo do homem” está lá, preservado; apenas há convenções que lhe limitam a barbárie.

Limitam até certo ponto. Na prática, a falácia liberalista atribui o direito à riqueza a todos, mas a destina àqueles que formal e historicamente sempre tiveram mais condições de deter o poder: os brancos. Se o valor que as pessoas ou coisas possuem é resultado de convenção social, o que acontece com aqueles que foram convencionados por séculos como uma raça inferior? Difícil desfazer mentalidades vigentes, principalmente quando estas asseguram influência e domínio. A relação de fornecedor e comprador exposta na cena em que OJ tenta domesticar o cavalo para a gravação audiovisual expõe bem esta contradição: não há lei de mercado mediando, pois a liberdade não é dada a quem, de antemão, é subjugado por sua atribuída condição inumana. Basta ver que ninguém no set enxerga OJ de fato, a ponto de não considerarem seu importante alerta para a preservação do bem estar do cavalo e a própria finalidade para a qual estavam todos ali. 

O cinema norte-americano de muito mira suas câmeras, consciente ou inconscientemente, à questão da animalização dos pretos. Esta subclassificação, que situa o afrodescendente numa posição de espécie exótica e quase humana numa sociedade em que, na escravidão, furavam-se os olhos de escravos como castigo, denota a mentalidade racista imperante e transposta para Hollywood por décadas. Quebrariam este ciclo mais consistentemente duas produções apenas nos anos 60, quase meio século após a instauração da indústria cinematográfica: “A Noite dos Mortos-Vivos” (George Romero, 1968), terror que atribui naturalmente um raríssimo heroísmo a um protagonista negro, e “Ao Mestre com Carinho” (James Clavell, 1966), drama no qual se via numa das primeiras vezes um negro na tela em um papel preponderante. Não por coincidência, ambos as produções surgem à época das lutas pelos Direitos Civis nos Estados Unidos. 

Porém, os séculos de massacre social e cultural pesam. A mítica figura de “King Kong”, por exemplo, originalmente lançado em 1933 mas persistentemente retornada nas décadas subsequentes, carrega consigo a simbologia desta relação incongruente entre selvageria e civilização. Imagem preconceituosa, aliás, que nenhuma das refilmagens teve capacidade (ou intenção) de desfazer. A atração sexual implícita entre o gorila gigante, bastante empretecido em feições, e a mocinha, tão branca e loira quanto os códigos arianos permitem, joga luz sobre a dualidade instinto/razão. Afinal, a sexualização do negro é, definitivamente, uma das patologias as quais o brancocentrismo não consegue resolver. Hobbes diz que a riqueza sem a liberalidade deixa de ser poder e expõe o homem à inveja.4 Mesmo tendo despertando o amor no coração da mulher, aquela existência aberrante é incompatível com a ordem social. A solução? O apagamento. Ninguém mais o vê, simples. 

O emblemático King Kong em versões ao longo da história

A força descomunal de “King Kong” serve também como uma bela metáfora. Tudo que a autoproclamada justa sociedade norte-americana desconhece ou não controla, classifica como fantástico e inimiga de seus valores morais. O cinema sci-fi, como o que Peele recursou em “Não! Não Olhe!”, é causa e consequência deste pensar ufanista e egoico, visto que se vale largamente do artifício do estranhamento a depender das ameaças vigentes à ideologia de sua época. E se esta ameaça vier do céu ou de outro planeta, fica ainda mais fácil justificar a segregação. Já serviram de símbolo para estes fenômenos alienígenas o comunismo (“Vampiros de Almas”, Don Siegel, 1956), a crise nuclear (“O Enigma de Andrômeda”, Robert Wise, 1871), as doenças venéreas (“Enraivecida”, David Cronenberg, 1977), a tecnologia (“O Exterminador do Futuro”, James Cameron, 1984), os vírus letais (“Eu Sou a Lenda”, Francis Lawrence, 2007) e até a emancipação feminina (“Invasores”, Oliver Hirschbiegel, 2015). Tudo o que não se detêm controle. Em “Não! Não Olhe!”, cujo discurso é fruto das motivações pós-George Floyd, o monstro, reelaborado e em certa medida mais palpável, é o próprio sistema: incontrolável, insaciável, intolerante e, por natureza, forjado sobre bases segregadoras. 

Organismo que rejeita o feto, este estranhamento é gerado pelo próprio sistema. E vai além: esconde e determina que este não deva existir, que não deve ser visto. A dicotomia, portanto, instaura-se. Como um filho bastardo e imperfeito, o monstrengo descomunal e incontrolável existe, e por isso deve ser desconsiderado, pois só assim pode ser domado. Caso contrário, ele solapa, consome, elimina. Mastiga tudo que vê pela frente e ainda, faminto, exige mais. Por isso, o alerta: “não, não o olhe”. Se o fizer, as energias serão magicamente todas roubadas, pois o que não falta a este estranho sem forma é força e até razão. Irônica e metalinguística a cena em que o “cinema de arte” é sugado pelo alien na figura estereotipada do cineasta-autor: branco, excêntrico e idealista, mas frouxo. 

Afora isso, o filme suscita a linguagem cinematográfica ao aludir à função psicológica do olhar. Novamente, todavia, de maneira original. No cinema de Peele, este paralelo também está diretamente ligado à abordagem do gênero de terror/fantasia, pois dela se depreendem proposições críticas potentes e coerentes com o discurso do cineasta. Ele usa a gramática do cinema para ressignificar a permanente indagação ética: “de onde vem o racismo?” Em “Corra!”, o mistério do aliciamento de jovens negros pela abastada família branca se desvenda quando vídeos gravados são vistos através do olhar das lentes. Em “Nós”, o enigma se esconde naquele apavorante reconhecimento visual à duplicidade dos corpos sem identidade ou moral. Já em “Não! Não Olhe!”, cujo mesmo recurso linguístico não apenas se repete como se torna o cerne, há uma sobreposição de olhares: o dos personagens, o do espectador, o da natureza, o social, o histórico e o identitário. 

É claro que o título provocativo do filme de Peele tem como finalidade não a repelir mas, justamente, atrair o olhar a uma necessária tomada de consciência humanitária. Juntamente com os cineastas negros de sua geração, também autores de obras de vital relevância para a recente cinematografia dos Estados Unidos e para a discussão do problema urgente do racismo, o jovem realizador forja o que pode ser chamado de “cinema de conscientização”. Mais do que reagir como a blackexplotation, denunciar como a L.A. Rebellion ou levantar contradições como Spike Lee, esta geração avisa que veio para mudar. O que pode ser entendido como sinal dos tempos, também é prova de que há muito espaço jamais ocupado historicamente por estes em virtude da hegemonia branca. Porém, na era do Vidas Negras Importam, outro lema advindo da luta racial dos Estados Unidos pode ser parafraseado de forma a amalgamar estas dignas intenções: “sim, nós olhamos”.

* Texto originalmente publicado na edição de nº 32 da revista Teorema

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trailer oficial de "Não, Não Olhe!"


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 29 de junho de 2023

"Onze Homens e Um Segredo", de Lewis Milestone (1960) vs. "Onze Homens e Um Segredo", de Steve Soderbergh (2001)






Onze de cada lado. De um lado "Onze Homens e um Segredo", de 1960, do outro "Onze Homens e um Segredo", de 2001. Vinte e dois homens e um só objetivo: a vitória. Dois timaços! No time de 1960, Frank Sinatra, Dean Martin, Sammy Davis Jr., Shirley McLaine, Angie Dickinson, Cesar Romero, no de 2001, George Clooney, Brad Pitt, Matt Damon, Julia Roberts, Don Cheadle, Andy Garcia.
Duas equipes organizadas, cheias de jogadas ensaiadas e que, pode-se dizer, são especialistas em roubadas de bola. Tanto que o grande objetivo em ambos os casos, é roubar uma verdadeira bolada de alguns dos maiores cassinos de Las Vegas. Embora a meta seja a mesma, a montagem dos elencos é feita de forma bem distinta e as estratégias utilizadas para chegar ao "gol" têm suas diferenças.
Enquanto que, no filme original, o grupo que pretende realizar o ousado roubo é constituído por ex-militares que se conheceram na Segunda Guerra, no novo, a gangue é formada por trapaceiros de marca maior, dos mais variados estilos (um ladrão de bancos, outro batedor de carteira, outro trapaceiro nas cartas...). Se no primeiro estão a serviço de um milionário ganancioso, no segundo são recrutados por Danny Ocean, um manjado salafrário que acaba de sair da cadeia mas que já planeja um golpe de proporções inimagináveis.
No original, o roubo em si, ainda que bem elaborado, é bem mais simples que o da nova versão, que, por sua vez, envolve muito mais complicadores e dificuldades, como seguranças, senhas, aparelhagem, etc. Em "Onze Homens..." de 1960, a ideia é, na noite de ano novo, na hora da virada, causar um blecaute em Las Vegas, explodindo uma torre de alta-tensão e, durante o tumulto, tanto da comemoração quanto da escuridão, aproveitar o destravamento dos cofres, e realizar o assalto em cada um dos cinco cassinos.
No remake, também há o elemento do blecaute, no entanto, sua duração é bem mais curta e por isso mesmo, a ação dos bandidos tem que ser muito mais bem pensada e ágil. O corte de energia, causado neste segundo filme, por uma pequena 'explosão nuclear' acontecerá durante uma grande luta de boxe nas dependências de um dos cassinos, evento que fará com que muito mais dinheiro circule naquela noite. A "vantagem", por assim dizer, dos ladrões da nova versão é que eles têm que chegar a apenas um cofre que atende às três principais casas de jogos da cidade... Ótimo? Só que não! Exatamente por ser um único local de armazenamento de toda a féria dos cassinos, a segurança é muitíssimo mais reforçada e a parafernália tecnológica de lasers, identificações, travamentos, etc., é praticamente intransponível.
Até para superar toda essa dificuldade, o plano de execução da refilmagem é muito mais elaborado e surpreendente. O antigo é legal, tem o spray infravermelho que somente os integrantes do grupo conseguem ver com os óculos especiais na hora do apagão, a ação sincronizada de entrar nos cofres exatamente na hora que as pessoas cantam a canção de ano novo, o dinheiro nas latas de lixo, o caminhão de coleta urbana saindo sem suspeitas. Tudo muito bacana. Só que no novo, tem o roubo do gerador do museu de tecnologia pra causar um apagão na cidade toda, o velho "milionário grego" distraindo a atenção do proprietário com a maleta, o jovem Linus se passando por fiscal de jogos para roubar a senha do chefão do cassino, um pequeno chinês acrobata que cabe dentro de um carrinho de coleta de dinheiro, uma explosão fake dentro do cofre, a entrada da S.W.A.T., um falso tiroteio, a fuga do falso furgão e a saída tranquila dos ladrões, pela porta da frente, tudo isso enquanto o líder, Ocean, leva uma "surra" numa sala isolada para lhe servir de álibi de que em momento algum participara de qualquer daqueles eventos. 

"Onze Homens e Um Segredo" (1960) - trailer


"Onze Homens e Um Segredo" (2001)  - trailer


No mais novo, embora paire alguma dúvida, ao final, quanto à impunidade do grupo, uma vez que os capangas do proprietário ainda estão de olho em Ocean e sua turma, mesmo meses depois do acontecido, o êxito da operação em si, se confirma e em princípio, cada um sai com sua parte. Já no antigo, embora o roubo se concretize, um incidente com um dos integrantes, o eletricista, que sofre um infarto na rua logo após a missão, é a pista para que o sagaz e oportunista Duke Santos, vivido por Cesar Romero, o Coringa da antiga série de TV do Batman, padrasto de um dos integrantes da gangue, ligue alguns pontos e perceba que o enteado está envolvido. Desta forma, Santos, pedindo metade do ganho do assalto, chantageia o grupo que se vê obrigado a ocultar o dinheiro e, nisso, acaba, de maneira frustrante, perdendo tudo o que havia conquistado.
O mais recente leva vantagem também no ritmo. Enquanto o anterior era mais arrastado até o recrutamento de todos os integrantes, o mais novo é mais dinâmico e até mesmo essa etapa é mais envolvente e interessante. A propósito, a montagem, a edição do remake é grande responsável por essa dinâmica. Cortes rápidos, telas divididas, zooms in, flashbacks, películas diferentes, imagem granulada... Um show de Steven Soderbergh e sua equipe.

"Onze Homens e Um Segredo" (1960) - abertura de Saul Bass


Apesar de tudo isso, os Onze Homens do oscarizado Lewis Milestone é que saem na frente, logo nos primeiros movimentos do jogo, com um gol relâmpago de um décimo segundo jogador. A abertura genial do mestre Saul Bass, cheia de grafismos imitando os luminosos das fachadas dos cassinos, garante um gol para o time de 1960, antes do primeiro minuto de jogo. Mas basta o time de Steve Soderbergh botar a bola no chão para passar a dominar o jogo. A montagem alucinante garante o empate, o roteiro mais elaborado, mais inusitado, garante a virada e a trilha sonora espetacular, cheia de soul e jazz, marca o terceiro. Milestone tem Sinatra com a 10, ele é bom, joga muita bola, apesar de muita gente achar que ele era bom só de microfone, mas Clooney, o homem de confiança do professor Soderbergh, é o cérebro do time e faz melhor essa função que o Rei da Voz. Gol dele. 5x1. Brad Pitt até está melhor como braço direito do chefe da gangue, na atualização, do que Dean Martin, praticamente na mesma função no time antigo, Matt Damon é mais interessante e completo que seu equivalente Peter Lawford, Don Cheadle mais cativante que Richard Conte como o especialista em elétrica, mas o time de 2001 não transforma essas oportunidades em gol. Mas num drible desconcertante, daqueles de derrubar narrador, o desfecho do roubo com toda a enganação à qual nós espectadores somos submetidos, com bolsas cheias de pornografia num carro comandado por controle remoto, e com os ladrões saindo, pela porta da frente do cassino, com as bolsas de dinheiro, é um golaço numa jogada brilhantemente construída. O time de 1960 desconta pela ótima cena da contagem regressiva para a virada do ano, intercalada por um balão vermelho na tela, cortando de um para o outro cassino. 6x2 é o placar final da partida.

Dois grandes elencos mas, com um time mais bem encaixado, com jogadas mais trabalhadas e com um craque mais centralizador das jogadas, os onze de Ocean da versão de 2001, à direita, levam com alguma tranquilidade e faturam a premiação milionária da competição.


Um oceano de distância separa o time de 1960 do time de 2010
Vitória tranquila como roubar doce de criança.






Cly Reis


segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Duelo - com Paulo Telles (1ª parte)



Nosso convidado do Duelo do mês é o radialista, locutor, cinéfilo e blogueiro Paulo Telles. Morador da Lapa, no Rio de Janeiro, o famoso bairro boêmio carioca não é páreo para o fascínio cinéfilo de nosso entrevistado. Telles divide seu tempo entre as locuções e roteiros de rádio e as várias colaborações para blogs e revistas de cinema. Dentre elas, a DVD Magazine, onde possui uma coluna. Seu blog, Filmes Antigos Club, está há 5 anos no ar. O espaço é dedicado a artigos sobre filmes clássicos que fizeram história. Telles também é um dos maiores especialistas do Brasil no tema western, tendo escrito diversos textos e resenhas sobre o gênero. Ele se considera criterioso para fazer suas matérias e põe a pesquisa como peça fundamental para redigir qualquer texto. Eu decidi entrevistá-lo e explorar todo seu vasto conhecimento de sétima arte. Ele gentilmente aceitou e colaborou com respostas bem afinadas e nos deu uma grande entrevista. Um prato cheio de spaghetti e western de todo tipo, fartura total para os amantes do bang bang. Desfrutem com armas na mão.



BINO: Paulo, vamos entrar direto no tema western. Recentemente eu li um texto seu para a DVD Magazine que foi um dos melhores que vi sobre o tema bang bang. Era sobre o Western Americano e o Europeu, uma comparação, na verdade, uma diferenciação de ambos os estilos, quase um duelo. Eu tenho notado entre amigos e cinéfilos uma divisão de preferências entre os dois. É certo que o spaghetti fez o western americano repensar sua estética de cowboy limpinho, mas ao mesmo tempo bebeu muito na fonte hollywoodiana de fazer estes filmes. Quais foram as grandes contribuições que ambos os gêneros deram um para o outro?
Eastwood e seu referencial "Os Imperdoáveis"
PAULO TELLES: Primeiramente, saudações cinéfilas aos leitores do Clyblog e obrigado pela acolhida. Esse texto foi um dos meus primeiros redigidos no meu blog Filmes Antigos Club, criado em 2010, dividida originalmente em três partes, e foi trasladado para minha coluna Revendo por Edinho Pasquale (editor do DVD Magazine) em um único artigo. Ambos os estilos deram uma indelével contribuição à sétima arte, contudo, os faroestes spaghetti ajudaram a fortalecer o gênero. Para vocês terem uma ideia, o western (por definição do famoso crítico Andre Bazin, o "cinema americano por excelência") foi extremamente explorado por Hollywood pelo menos durante os primeiros 60 anos de indústria, inclusive na TV e nos seriados infantis de cinema (ao estilo Durango Kid, The Lone Ranger, etc), praticamente repetindo uma fórmula, ou melhor, dizendo, uma estética lírica e poética. Obviamente isso foi saturando o público e a crítica, mesmo que o cinema americano nos meados da década de 1950 tentasse inovar o gênero com temas sociais e de politização. Até que veio um notável cineasta italiano chamado Sergio Leone a mostrar para as plateias do mundo que o Velho Oeste era mais pungente do que os cineastas americanos florearam, mas estes, amantes da mitologia e do folclore, não se importavam com a fidelidade dos reais acontecimentos, e sim com a legenda áurea e romântica dos mitos do Oeste Americano. Obviamente, isso não condizia com uma época violenta que fora o Velho Oeste. Ele admirava os trabalhos dos mestres Ford, Hawks, Mann, Daves, Hathaway, mas discordava do idealismo romântico e poético que estes diretores envolviam acerca de seus cowboys e no meio em que viviam, mesmo que estes cowboys fossem de teor freudiano. Se não fosse Leone, os westerns americanos ficariam quase batendo na mesma tecla, e graças a ele o gênero, no geral, sobreviveu mais um pouco e vem de certa forma, sobrevivendo. Afinal os americanos não teriam feito obras como “Meu ódio Será Sua Herança”, “Os Profissionais”, “Quando os Bravos se Encontram”, “Mato em Nome da Lei” e até mesmo "Os Imperdoáveis", de Clint Eastwood, se não fosse pela intervenção dos westerns italianos. Ambos os estilos, o americano e o europeu, cada um com sua essência, foram importantíssimos e são de um legado ímpar para a cinematografia mundial.

B: Um dos legados de Ford e de outros grandes diretores foi mitificação do homem do Oeste americano. Mas ao mesmo tempo sabemos que muito do que se via nos filmes não correspondia à realidade ou era controverso. Um dos maiores exemplo é o famoso tiroteio de O.K. Corral. Tivemos diversas produções sobre este tema e que exaltaram os participantes do tiroteio, mas a pesquisa de especialistas disse que não foi nada daquilo o que aconteceu na verdade. E outro foi uma espécie de inversão que transformou o índio em pária social pelas produções de cavalaria, aquela história de mocinho versus índio. Formato que alguns diretores repensariam anos depois – Ford foi um deles. O progresso a qualquer "custo" desnudado nas produções de Leone confrontava os mitos fordianos e CIA. A figura do pistoleiro anti-herói e errante é na verdade uma cutucada. Fale-nos um pouco do mito do cowboy.
PT: Como eu disse, os americanos são fascinados pela mitologia do Oeste Americano, e isso já acontecia antes mesmo do surgimento do cinema. Em 1883, o próprio William Frederick Cody, conhecido mundialmente como Buffalo Bill, já vinha explorando ele mesmo seu lado de “herói” nos seus espetáculos circenses do Oeste Selvagem. Quando o cinema já existia como um espetáculo, Buffalo Bill foi convidado por um dos primeiros mocinhos do Far-West, Gilbert Broncho Billy Anderson (que também era produtor) para estrelar um filme, intitulado “The Adventures of Buffalo Bill”, justamente com a intenção de demonstrar que, no cinema, a ideal “fábrica de sonhos”, realidade e lenda poderiam se confundir facilmente. Dois anos depois da morte de Wyatt Earp, em 1929, um escritor chamado Stuart Lake publicou um livro chamado “Wyatt Earp, Frontier Marshal” (“Wyatt Earp, o Delegado da Fronteira”), onde narrava as façanhas do “Leão de Tombstone”, como era Earp alcunhado. Lake sempre declarou que cada narrativa, cada palavra ou vírgula, foram do delegado, mas depois voltou atrás, dizendo que todo o livro era de sua inteira autoria, e que Wyatt nunca lhe passou informações. Contudo, já nessa época, o cinema estava em busca de heróis para mitificar o verdadeiro mocinho, e não de personagens freudianos ou em enredos elevados a tragédia grega como viria mais tarde. Com base no livro de Lake, Wyatt Earp parecia se encaixar como este novo mito cowboy. Em 1937, Randolph Scott e Cesar Romero eram respectivamente Wyatt e Doc Holliday no filme “Frontier Marshal”, um dos primeiros filmes a abordar o duelo de O.K. Corral baseado na história de Lake, cujo argumento serviria também para “Paixão dos Fortes”, de John Ford, em 1946. Mas evidente que não foi apenas Wyatt Earp o objeto desta mitificação cinematográfica, e Hollywood transformou em heróis Billy The Kid, Jane Calamity, Buffalo Bill, Jesse James, Wild Bill Hickcok, Kit Carson e até mesmo o famigerado General Custer. Todos na realidade estavam distantes de serem “mocinhos”, mas o cinema americano preferiu de início laurear tais ídolos do Velho Oeste, pondo uma legenda romântica em cada um, imprimindo lendas e descartando fatos verdadeiros. Afinal, um famoso cineasta que todo bom amante de western prestigia já falava em um de seus grandes filmes: “Isto é o Oeste. Quando a lenda é mais forte que os fatos, se imprime a lenda”. Isso mesmo, John Ford.
"Sem lei e sem alma"
Quanto ao famoso tiroteio do O.K. Corral, tão bem retratado em filmes como “Paixão dos Fortes”, “Sem Lei e Sem Alma”, e “A Hora da Pistola” (os dois últimos de John Sturges), não passou de uma tremenda farsa. O verdadeiro tiroteio, ocorrido em 26 de outubro de 1881, durou um minuto, enquanto que no filme “Sem Lei e Sem Alma” dura 15. Nem Wyatt Earp e nem seus irmãos foram heróis em nenhum momento de suas vidas, e sim assassinos acobertados pela insígnia da Justiça. Ike Clanton era um homem pacífico e ele e seus parentes foram vítimas dos Earp, porque sabiam de coisas comprometedoras a respeito de Wyatt e Doc Hollyday, este um pobre coitado. O verdadeiro Earp era o típico “171” do Velho Oeste: trapaceiro, mentiroso, amoral e covarde. Nem mesmo a amizade de Earp com Holliday era verdadeira. Foram, de fato, parceiros de copo e mesas de jogo, além de ser seu aliado e cúmplice no duelo de O.K. Corral, mas não tinham grandes afinidades. Wyatt era de uma família de rudes camponeses pioneiros do Oeste, e Doc de uma família refinada do Leste, diplomado em Odontologia e de esmerada cultura. E fato é que, na última vez que se encontraram, descobriram que eram bastante diferentes e resolveram não mais se falar. Segundo o cinema, tal fato não deve ser impresso, mas sim a lenda romântica de que os dois eram amigos inseparáveis. Contudo, o western como gênero cinematográfico foi sendo revisado a partir do início de 1950, e o protótipo do herói que vinha sendo retratado em muitos destes filmes sofreu mudanças por grande parte de cineastas revisionistas. O herói não era 100% herói, ou definitivamente, não era. Ele podia agir de acordo com sua forma de pensar sobre justiça, lei, ordem e meio que vive. Poderia cometer acertos e erros como qualquer ser humano. Enfim, foi preciso humanizar o cowboy, e mesmo os famigerados vilões também são objetos de profunda análise pela base psicológica.

B: Quem foram para você os diretores e os filmes de western que melhor deram esta contribuição, vamos dizer, social e mitológica do homem daquele meio?
James Stewart em "E o sangue semeou a terra".
mito do cowboy
PT: Acredito que Anthony Mann e Delmer Daves foram os mais prolíferos dentro desta contribuição à mitologia do homem dentro do Velho Oeste, muito embora os estilos dos diretores se diferenciem. Interessante em dizer que os cinco filmes em série estrelados por James Stewart em parceria com o cineasta Mann refletem bem a mitologia do homem em seu meio social. Basta assistirmos obras como “Winchester 73” (1950), “E O Sangue Semeou a Terra” (1952), “O Preço de um Homem” (1953), “Região do Ódio” (1954) e “Um Certo Capitão Lockhart” (1955) que veremos este mito do herói grego no meio da tragédia grega, ou em outras palavras, o mito do homem, do novo cowboy, no meio social em que ele esta vivendo. Já Delmer Daves tem uma obra “didática” que reflete muito bem o tema, “Como Nasce um Bravo”, de 1958, estrelado por Glenn Ford e Jack Lemmon, onde temos este aprendendo a ser um “cowboy de verdade” em meio a um grupo de rudes vaqueiros liderados por Ford, um dos grandes ícones do Far-West americano. Lemmon, um cara do Leste e acostumado à boa-vida, tem exatamente em sua mente o mito meio que laureado do cowboy, mas quando ele vai ver, percebe que não é nada disso.

B: Agora nos fale dos primeiros westerns realizados nos Estados Unidos.
PT: O cinema nasceu em 1895, na França, e isto já é falar nos primórdios da sétima arte e de sua invenção como meio de entretenimento. Já em 1898, nos Estados Unidos, a Edison Company (de Thomas Edison), produziu uma vinheta de um minuto de duração chamada “Cripple Creek Bar Room”, aclamado por alguns críticos e estudiosos como o primeiro western da história. Segundo Primaggio Mantovi, autor do livro “100 anos de Western”, a cena mostrava um pequeno saloon com alguns cowboys, um típico jogador do Velho Oeste, e uma garçonete de aspecto masculino que pôde ter sido interpretado por um ator. Contudo, foi “O Grande Roubo do Trem”, datado de 1903, que mereceu a honra de ser o primeiro western, por se tratar de um primeiro filme a contar uma história escrita especialmente para o cinema (logo, o primeiro script para o gênero). O filme foi feito em apenas dois dias e se tornou oficialmente o primeiro western do cinema. Vieram pioneiros como David W. Griffith, Thomas Happer Ince, William S. Hart, Cecil B. DeMille (mais tarde, o idealizador de grandes espetáculos épicos e bíblicos, como “Os Dez Mandamentos” e ”Sansão e Dalila”), e o próprio John Ford, cada um realizando uma obra ou outra no gênero. E não somente quando o cinema engatinhava em seus primeiros passos, como também ainda não se tinha o recurso do som, afinal ainda era a fase silents do cinema. David W. Griffith é considerado o pai da linguagem cinematográfica, e realizou em 1915 o filme que é considerado, de fato, o primeiro longa-metragem do cinema: “O Nascimento de uma Nação”. Thomas Ince idealizou o primeiro estúdio ao ar livre, ao comprar 20 mil acres de terra para construir sua própria cidade do Velho Oeste, contratando depois uma trupe de cowboys autênticos e índios de verdade, peritos em cavalgar, laçar e atirar. “War on The Plains” e “Custer’s Last Fight”, ambos de 1912, foram um dos primeiros westerns rodados por Ince.

vídeo O Grande Roubo de Trem

Contudo, o ano de 1914 é tido como o ano oficial do nascimento do western no cinema, porque até então não houve a preocupação em desenvolver um ator capaz de encarnar o autêntico cowboy do Oeste, ou por que não dizer, o mito. Os primeiros atores a desenvolver os heróis do gênero foram Lionel Barrymore e Francis Ford (irmão do cineasta John) e eram figuras presentes nos filmes de Griffith e Ince, mas o primeiro herói oficial do gênero foi mesmo Gilbert “Bronco Billy” Anderson. William S. Hart e Cecil B. DeMille tiveram um interesse maior pelo gênero nos primórdios do cinema americano. Ainda em 1914, DeMille estreou na direção com “Amor de índio”, e posteriormente transportou para as telas, em primeira adaptação cinematográfica, o famoso romance de Owen Wister, “The Virginian – O Paladino da Justiça”, história esta que teria várias readaptações para o cinema em épocas futuras, inclusive originando uma série de TV na década de 1960, muito famosa – “O Homem de Virginia”, estrelada por James Drury. Ainda no período silents do cinema, Cecil B DeMille dirigiu os westerns “Sonhos de Moça” (“The Girl of The Golden West”), em 1915, e refilmou, em 1918, “Amor de Índio”.
"Marked Man",
primeiro western
do mestre John  Ford
William S. Hart era um ator clássico do teatro norte-americano que tentava transferir sua carreira para o cinema, e junto com John Barrymore e o lendário Douglas Fairbanks (na minha consideração, o primeiro grande aventureiro da sétima arte), seria um dos poucos a realizar este ideal, mas Barrymore não estava interessado em westerns. Com a ajuda de Thomas Ince, que foi seu produtor, ele realizou os westerns “Um Negócio Perigoso”, em 1914; “Terra do Inferno”, em 1916 (considerado o primeiro western adulto); “Serás minha escrava”, também de 1916; “The Tiger”, em 1918; e “Wagon Tracks”, em 1919. Juntos, a dupla Hart e Ince alcançaram sucesso de crítica e público que nem eles ao certo poderiam imagina.
John Ford começou sua carreira em 1914, como assistente de direção, ator e até dublê, com o nome artístico de Jack Ford. Iniciou na arte da direção em 1917, dirigindo “A Marked Man”, seu filme favorito e um dos poucos que adorava mencionar em suas entrevistas. Entre este ano de 1917 até 1920, Ford realizou 28 westerns para o estúdio da Universal, todos de grande importância para o gênero. Em 1924, Ford realizou uma obra-prima, o épico do gênero “Cavalo de Ferro”, estrelado por George O’ Brien, que havia sido dublê de Tom Mix. Existem ainda muitas outras obras do gênero realizadas nos primeiros anos da indústria cinematográfica, mas numerá-las todas é um trabalho que requer ainda pesquisa de minha parte.

B: O papel da mulher na sociedade do Oeste americano era bem secundário, penso que nas produções do gênero western isso também não era diferente. São raros os filmes em que tivemos mulheres como protagonistas e com personagens fortes. O que você pensa disso?
PT: Penso que isso não é necessariamente verdade em termos de produção do gênero. Temos ótimos filmes em que a mulher é a protagonista. É verdade que não são muitos, mas devemos fazer justiça aos cineastas que se lembraram delas. Anthony Mann fez isso em “Almas em Fúria”, em 1950, colocando Barbara Stanwyck como a heroína freudiana e corajosa que desafiava a “madrasta má” vivida pela dama do teatro americano Judith Anderson, para defender seu pai, vivido por Walter Huston (pai do cineasta John). Stanwyck era considerada por Hollywood como a “Madrinha dos Westerns”, e tudo porque ela era perfeita para o gênero. Ela cavalgava muito bem e sabia atirar de verdade, sendo também uma extraordinária atriz em outros gêneros, geralmente em papéis bem avançados para as atrizes de sua época. Barbara atuou em fitas westerns como “A Bandoleira” (ou “Na Mira de um Coração”), dirigido por George Stevens, em 1935, onde viveu a lendária Annie Oakley, e fez um importante papel feminino em “Aliança de Aço”, de Cecil B. DeMille, dividindo as honras com Joel McCrea. Anos mais tarde, na década de 1960, foi a estrela de um famoso seriado de TV do gênero, “The Big Valley” (1965-1969), onde viveu a corajosa matriarca de uma família.
Barbara Stanwyk,
madrinha do western
Também tivemos um personagem forte feminino como protagonista num grande clássico americano do gênero dirigido por um dos grandes artesãos da sétima arte, o brilhante Nicholas Ray. Falo de “Johnny Guitar”, realizado em 1954, onde Joan Crawford esbanja toda a ousadia e a coragem como nunca antes exibidas no cinema. Joan está perfeita como a dona de saloon perseguida por uma banqueira que sente um ódio mortal por ela (vivida pela também brilhante Mercedes McCambridge), enquanto ela também é defendida por um “herói-bandido” que sempre carrega um violão, Johnny Guitar (vivido por Sterling Hayden). Uma das obras mais psicológicas do gênero com um surpreendente espaço para a reivindicação feminina, tendo como pano de fundo a disputa de duas mulheres pelo amor de um mesmo homem, onde o confronto final entre as duas é inevitável. Em 1994, aproveitando o embalo da volta dos westerns no mercado de cinema graças ao estrondoso sucesso de "Os Imperdoáveis", de Eastwood, veio “Quatro Mulheres e Um Destino”, dirigido por Jonathan Kaplan, onde temos um elenco de primeira, lideradas pelas poderosas Madeleine Stowe, Mary Stuart Masterson, Andie MacDowell e Drew Barrymore, onde são elas as grandes protagonistas da obra. E pouco tempo depois, veio Sharon Stone protagonizando em “Rápida e Mortal”, em 1995, contracenando com Gene Hackman. Seja como for, as mulheres estão sempre marcando o seu território no gênero, sejam como protagonistas ou personagens secundárias, talvez mesmo servindo como a fonte de motivação para o herói ou o mito do Velho Oeste. Sem a cativante presença feminina, o western não tem graça.

B: Vamos falar de spaghetti, vamos falar de Leone. A meu ver foi um diretor completo, inovador e vanguardista. Estava à frente de seu tempo em relação a muitos diretores de seu país e até de Hollywood. Mesmo assim ele foi massacrado pela crítica em sua época, algo que Peckinpah e outros também sofreram na pele. Porque ele demorou tanto a ser reconhecido e valorizado?
Um dos principais respossáveis
pelo faroeste spaghetti,
Sergio Leone
PT: Foi, em grande parte, o preconceito de alguns críticos. Tanto Leone quanto Sam Peckinpah utilizaram muito do excesso da violência em suas obras, algo inovador para os padrões dos anos de 1960. Os críticos de então acreditavam que o público poderia ficar chocado com esta nova maneira de se fazer Western. Tanto a violência mostrada por Peckinpah quanto as mostradas por Leone eram uma arte incompreensível para a crítica da época, muito embora Sergio se preocupasse não somente com a violência, mas com todo um conjunto. Contudo, ambos os diretores tiveram merecido reconhecimento lá pela metade dos anos de 1970, quando suas obras foram revisitadas por críticos de mente mais aberta. Outro fator que também que veio a demorar o reconhecimento destes dois mestres foi a desconstrução do mito do cowboy romântico. Leone, assim como Peckinpah, derrubaram de vez todas as lendas romanescas do gênero, que já eram obsoletas já no fim da década de 1950. Alguns críticos de início não viam isso com bons olhos, e muito menos, Hollywood. Contudo, como sabemos, foi graças ao sucesso dos Westerns italianos que o cinema americano teve que se reinventar para não perder a concorrência, e não deu outra. Outro motivo que ajudou também a retardar o reconhecimento de Leone & Cia foi justamente alguns cineastas de baixo orçamento tentarem imitar o estilo de Leone sem sucesso, o que o incomodava, pois achava que o estavam plagiando. Por isso que muitas vezes tivemos faroestes europeus tão pobres e inexpressivos que mal passaram das prateleiras das locadoras de vídeo, muitos deles feitos com baixíssimo orçamento e roteiros sem pé e nem cabeça. O próprio Sergio Leone declarou a respeito de seus imitadores durante uma entrevista: "Sou considerado o Pai do Western Spaghetti, mas se eu soubesse que teria feito parir tanto fdp..."


(continua...)