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sexta-feira, 6 de outubro de 2017

The Who - Anfiteatro Beira-Rio - Porto Alegre/RS (26/09/2017)



"Eu não acho que você poderia ter escolhido 
algum lugar no planeta Terra que proporcione 
um evento mais positivo. Na verdade, 
este era O LUGAR para se estar hoje à noite." 
Bryan Kehew, da equipe técnica do The Who, 
a respeito do show de Porto Alegre.

A gente se emocionar com uma banda é normal. Quando a gente vê que os músicos e equipe também se emocionaram com o mesmo show é a prova de que aquela noite foi realmente mágica e única. Conversei com meu pai após o show e comentei que, das bandas que NÓS dois realmente gostávamos, dos que ainda estão vivos e/ou na ativa, com o show do The Who poderíamos dizer que assistimos A TODOS: Steppenwolf, Santana, Rolling Stones, Ringo Starr e Paul McCartney (Beatles), Jack Bruce e Eric Clapton (Cream), Roger Waters e David Gilmour (Pink Floyd), Robert Plant (Led Zeppelin), Jethro Tull. Assistimos muitos shows juntos, é claro, mas estes aí com certeza são os que nos agradam fortemente e tem um sabor especial.

As lendas Daltrey e Townsend
Ver no palco (finalmente!) Roger Daltrey e Pete Townsend, acompanhados de uma fenomenal banda, com energia de garotos, com execução perfeita dos sons, com bom humor, felizes de estarem ali, felizes pelo feedback que estavam tendo do público (é o que o texto deste link fala), tocando uma sonzeira atrás da outra (óbvio que como fã eu gostaria de escutar várias mais) deu gosto, deu muito gosto esperar todo esse tempo.

Noites mágicas ficam na memória pra sempre, e estar com os que eu amo junto quase fez esse coração explodir de felicidade, não havia lugar pra se estar no planeta Terra, a não ser o show do THE WHO naquela noite.

"Listening to you
I get the music
Casing at you
I get the heat
Following you
I climb the mountain
I get excitement at your feet
Right behind you
I see the millions
On you
I see the glory
From you
I get opinions
From you
I get the story."
da letra de "See Me Feel Me", do The Who

Delírio do público porto-alegrense que conferiu o show,
elogiado pela própria equipe da banda

por Ricardo Finocchiaro Bolsoni

quinta-feira, 14 de setembro de 2023

"Robert Johnson - Pacto de Amor à Música", de J.M. Dupont e Mezzo - ed. Darkside / selo Macabra (2022)

 



"Se você é alucinado por blues,
vai adorar este livro.
Mas não é necessário amar o estilo
para apreciar este retrato do bluesman
mais famoso de todos os tempos.
Verdadeira obra-prima,
tanto pela qualidade das ilustrações
quanto pela narrativa,
esta história é mais do que 
uma simples graphic-novel
graças à poética de seu texto e 
à grandeza de seus quadros,
que são, por si só, verdadeiras obras de arte."
Lawrence Cohen, produtor musical do álbum


Algumas biografias, às vezes, podem ser melhores nos quadrinhos do que escritas. Embora tenha assistido a alguns documentários, nunca li, efetivamente, nenhuma biografia de Robert Johnson, mas o que posso afirmar é que a graphic-novel "Robert Johnson - Pacto de Amor à Música", cumpre muito bem seu papel em contar a trajetória do nome, possivelmente, mais importante da história do blues e, certamente, um dos mais importantes da história da música em todos os tempos. 

Nome sempre cercado por lendas, polêmicas e histórias mal contadas, Robert Johnson figura que mudou a forma de fazer, de tocar o blues e influenciou diversos nomes de expressão como Bob DylanRolling Stones, Led Zeppelin, Eric Clapton e outros, teve uma vida conturbada desde a infância, como era comum aos negros norte-americanos sulistas no pós-escravidão. Dotado, na juventude, de um "misterioso" talento, conquistou respeito e até uma certa inveja dentro do meio musical, ao mesmo tempo que causava a ira de produtores musicais por sua irresponsabilidade e tendência à bebida, e provocava o ódio de maridos por conta de sua reputação de mulherengo. Mas é claro, que o principal elemento que envolve o nome de Johnson é o suposto pacto com o Diabo, que teria proporcionado a ele todo aquele absurdo talento. 

Arte que remete ao impressionismo de Van Gogh
com a tradição dos negros sulistas das garrafas nas árvores
 para capturar os maus espíritos

O livro roteirizado pelo jornalista e escritor J.M. Dupont e pelo quadrinista Mezzo, como não podia deixar de ser, explora a lenda na própria narrativa, proporcionado uma condução interessante e constantemente instigante. Com as devidas liberdades artísticas e criativas diante da falta de informações precisas, com uma arte robusta e com um traço marcante, os autores nos entregam uma biografia gráfica convincente ao mesmo tempo poética e documental.

Mais uma biografia em quadrinhos que não fica devendo nada a outras em outros formatos e que comprova, mais uma vez, o valor das HQ's. Documento indispensável para amantes da música, aficcionados pelo blues, fãs de Robert Johnson e, até mesmo... adoradores do Diabo.

Arte maravilhosa de Mezzo!
O blues embalando a loucura durante a grande depressão norte-americana dos anos '30



por Cly Reis


segunda-feira, 9 de junho de 2014

Bobby McFerrin – Teatro do Bourbon Country – Porto Alegre/RS (06/06/2014)


Bobby mc Ferrin fazendo o que mais sabe; cantar
foto: Tita Strapazzon
Lá no norte, eles têm um nome que define bem o que vimos nesta noite, no show de Bobby McFerrin, no Teatro do Bourbon Country: AMERICANA. Que nada mais é do que a junção do gospel, do blues e das formas africanas da música com os ritmos puramente yankees, como o jazz,o R&B, o zydeco, os spirituals, o country e o rock.
Comandando uma banda excepcional – com destaque para os mestres Gil Goldstein nos teclados e acordeon e David Campbell nos violões, violino e mandolin – McFerrin provou que, além de dominar tecnicamente sua voz, ainda esbanjou emoção, louvando a Deus e a música. Destaque para "Jesus Feels Good", "Fix me Jesus", "Joshua (Fit the batttle of Jericho)" e, atendendo um pedido deste que vos fala, no bis, "I Shall be Released" de Bob Dylan.
Show inesquecível no Teatro do Bourbon Country
foto: Leocádia Costa
Outro petardo foi "Can't Find my Way Home", do repertório de Eric Clapton. Mais uma surpresa foi ter aberto o microfone para a plateia. Quem se deu bem foi o grande – não só em tamanho – cantor Juliano Barreto, um supertalento da cidade. Momento sublime da música nos palcos de Porto Alegre!









terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Lobão - "O Rock Errou" (1986)





"Dizem que
o Rock andou errando."
primeiro verso da letra de 
O Rock Errou"



Dizem que Lobão andou errando. Não sei... Particularmente, independente de posições e preferências políticas, a postura reacionária, raivosa e irracional deste artista nos últimos tempos desagradou sobremaneira a mim e tenho certeza que a muitos outros fãs também.
Dizem também que muito dessas manifestações e novas polêmicas talvez tenham-se devido ao fato de que o cantor já andava meio esquecido, meio desimportante no cenário musical brasileiro e tinha que, bem à sua maneira, voltar à cena. Não sei... Dizem.
Mas o que sei é que, se hoje Lobão passa por uma espécie de ocaso artístico, houve um momento em que o cara foi brilhante e produziu, no apogeu da geração BRock alguns dos discos mais importantes daquele miolo da década de 80. Se seu rock andou errando um pouco ainda em seus trabalhos iniciais, mesmo já produzindo coisas boas como "Me Chama", "Corações Psicodélicos" e "Decadence Avec Elegance", com "O Rock Errou" de 1986, o Lobo acertava definitivamente o rumo com uma pegada mais rock, mais agressiva mas ao mesmo tempo conseguindo mesclar com brilhantismo outros elementos e tendências musicais.
"O Rock Errou" é provocativo desde a capa cujo tema religioso em si já seria suficiente para arrepiar os cabelos da sociedade brasileira pós-ditadura, mas que, como se não bastasse, traz uma mulher nua, apenas com um véu cobrindo a cabeça e com as mãos sobrepostas cobrindo "as partes baixas", ao lado cantor caracterizado como padre carregando no rosto uma leve e irônica expressão de reprovação. Pra piorar, a mulher na capa, na época, tinha na época apenas 18 anos, e pra aumentar o escândalo, a 'pecadora', Daniele Daumerie, era nada mais nada menos que companheira o cantor. Note que eu disse "companheira", não esposa. Um  monte de tapas na cara da sociedade em apenas uma capa. A provocação estava só começando.
Sim, pois "O Rock Errou", faixa que praticamente abre o disco, depois de uma breve introdução instrumental de estrondosas guitarras, é uma metralhadora giratória atirando e acertando pra tudo que é lado, passando por polícia, mídia, classe artística, ditadura, políticos e respingando até no Vaticano, na Dama de Ferro e na Casa Branca. Com seu inspirado e sarcástico trocadilho do título que alimenta um refrão intenso e entusiástico, "O Rock Errou" questionava quais eram realmente os problemas do Brasil, que em meio a uma bagunça generalizada insistia em ficar se apegando a coisas pequenas como um artista que fumava maconha, uma letra de música que falava palavrão, etc... Onde foi que o rock errou?
Mais uma vez com muita ironia e inteligência, se o problema era rock, Lobão tratava de colocar um samba-rock logo na sequência dando a primeira mostra de uma tendência que se apresentaria cada vez mais frequente em sua obra a partir dali em músicas como"Cuidado, "Vida Bandida" e "Essa Noite Não", por exemplo. "A Voz da Razão", cantada em dueto com Elza Soares era uma espécie de "bate-boca" musical com pequenas trocas de acusações, culpas e responsabilidades ("Você trocou o seu amor por uma vaidade") onde a cantora dá um show e abrilhanta a canção de maneira crucial com sua voz rasgada e interpretação singular.
"Baby Lonest" uma espécie de hard-rock, parece ter seu riff chupado de "Cocaine" de Eric Clapton; "Spray Jet", de refrão em inglês tem um ótimo trabalho vocal de Lobão e destaque para a metaleira que dá um toque todo especial numa canção embalada, cheia de influências de soul music; e "Moonlight Paranóia", para mim, supervalorizada, é apenas uma boa versão em português para uma música do Aerosmith.
O pop-rock meio blues de guitarra estridente e chorosa, e de interpretação marcante de Lobão, "Revanche", uma reflexão sombria sobre a vida, a solidão, as drogas, o cárcere do qual havia acabado de sair por porte de drogas, constituiu-se desde aquele momento, lá em 86, e segue ainda até hoje como uma das grandes obras do cantor e uma de suas mais emblemáticas canções. O grito de dor e rebeldia do lobo. O uivo definitivo.
Na ótima "Canos Silenciosos" um rockão estridente de guitarras gritantes, Lobão apresenta todas as criaturas da noite, seus demônios, venenos e vilões, ao mesmo tempo exaltando a liberdade da noite ("Se a noite tá no sangue de hoje/deixa a noite rolar") e o medo nela mesmo com repressões policiais autoritárias ("Homens, fardas, cassetetes, camburões/ abusando da lei com sua poderosas credenciais").
"Glória (Junkie- Bacana)", parceria com Cazuza talvez seja a música mais subestimada do álbum e, no entanto, uma das melhores, não apenas musicalmente, com uma estrutura interessantíssima, mas especialmente pela letra, onde se nota claramente a mão de Cazuza, que a constrói como uma carta de desculpas dirigida ao vizinho, transbordando de sinceridade, pelas barulho, bebedeiras, cenas e excessos que o autor vem cometendo, tudo por causa de um amor perdido.
O disco traz duas baladas, a felina "Noite e Dia", parceria com o ex-Gang 90, o falecido Julio Barroso, exalando pura sensualidade ("A pele branca, gata garota/ No peito a ronronar/ Seu fingir dormindo, lindo/ Você está me convidando/ Menina quer brincar de amar"); e a gostosa e sexy "Click", um instantâneo de um encontro na noite carioca sob a lente de uma câmera, que fecha o álbum na medida certa.
Se o rock errou e por isso as rádios, TV's e a mídia em geral estão entupidas de sertanejos universitários e artistas inqualificáveis, se Lobão errou com escolhas equivocadas na carreira, posições extremadas, destempero, falta de tato pessoal e artístico, fica para o julgamento de cada um, mas não ha como negar que com "O Rock Errou", ele mirou no alvo, atirou para todos os lados e acertou em cheio, concebendo um dos grandes álbuns da discografia nacional. Amém, São Lobão.
***********

FAIXAS:
1. "Abertura (Instrumental)" (João Baptista/Jurim Moreira/Lobão/Torcuato Mariano) 1:23
2. "O Rock Errou" (Bernardo Vilhena/Lobão) 3:42
3. "A Voz da Razão" (Bernardo Vilhena/Lobão) 2:39
4. "Baby Lonest" (Cazuza/Ledusha/Lobão) 3:46
5. "Spray Jet" (Bernardo Vilhena/Lobão) 3:11
6. "Moonlight Paranoia (Seasons of Wither)" (Joe Perry/Steven Tyler/Versão: Bernardo Vilhena/Júlio Barroso/Lobão) 4:35
7. "Revanche" (Bernardo Vilhena/Lobão) 4:57
8. "Noite e Dia" (Júlio Barroso/Lobão) 3:14
9. "Canos Silenciosos" (Lobão) 3:22
10. "Glória (Junkie-Bacana)" (Cazuza/Lobão) 2:48
11. "Click" (Bernardo Vilhena/Lobão) 3:20

**************
Ouça:
Lobão O Rock Errou



Cly Reis

segunda-feira, 29 de junho de 2015

Cocteau Twins – “Blue Bell Knoll” (1986)



Duas variações da capa do álbum
"Quando você morrer, e, em seguida,
abrir os olhos, se não estiver tocando ao fundo essa música,
provavelmente você está indo para o lugar errado."
Robert Christgau,
crítico musical
sobre “Blue Bell Knoll”





Era uma vez uma falange de anjos que, de saco cheio da exigência de serem angelicais o tempo todo, se revoltaram e desceram dos Céus. Desafiadores, eles vieram cair na Terra de propósito, justo neste planetinha atrasado dentre os tantos bilhões que podiam escolher na galáxia. Claro que foi, justamente, para desafiar as divindades. Se aqui achariam a inveja, a tristeza, a ganância, a incompreensão, a violência, era exatamente onde suas almas jovens e rebeldes queriam ficar. Como filhos desgarrados que precisavam se autoafirmar, puseram toda a revolta para fora. E como se não bastasse, inventaram de formar uma banda de rock, para desespero dos santos. Queriam seguir Lúcifer e não o chato do Gabriel. Assombro geral no firmamento.

No começo, foi o punk. Jogaram fora as auréolas e trajaram roupas de segunda mão rasgadas e sujas. Muito couro duro e escuro; nada de sedas leves e brancas como antes. Na música que criavam, todo esse inconformismo era transmitido na forma de depressão. Compunham canções soturnas, carregadas, chorosas, em que a guitarra mais parecia gemer pedindo clemência. O baixo, grave em sonoridade e intenção, e a bateria, marcada, repetindo uma interminável marcha fúnebre. Eram chamados não apenas de punks, mas de gothic-punks, ou seja, os punks de espírito dark. E na voz da anja, dor. Muita beleza e afinação divina. Mas dolorida. Gravaram o primeiro disco assim, em 1982, chamado “Garlands”, onde descarregaram as mágoas e aflições que vinham guardando desde casa, quando romperam com o Pai em busca do reconhecimento de si mesmos.

Acontece que uma vez anjo, sempre anjo. Os desgarrados, à medida que iam produzindo, iam também, pouco a pouco, amenizando a raiva. E, não coincidentemente, voltando a serem cada vez mais angelicais. O bom “Head Over Heells”, segundo deles, de um ano depois, é o meio termo entre esses dois polos de estado evolutivo. Avançam mais um pouco no sentido da suavização e chegam já praticamente renovados no referencial "Treasure", de 1984, que, embora lírico, ainda guarda um pouco da densidade dark dos anos iniciais. Já com as asas de volta, depois do astral “Victorialand” (1986), atingem o ápice da manifestação de suas almas celestiais com “Blue Bell Knoll”. Os querubins em questão são Elizabeth Fraser (voz), Robin Guthrie (guitarras, teclados) e Simon Raymonde (baixo): os escoceses do Cocteau Twins.

Maduros tecnicamente e afeitos aos estúdios da 4AD, eles mesmos produzem um álbum altamente delicado e sofisticado, bastante marcado pelas texturas espaciais dos teclados e pelas programações de ritmo. É assim que começa a faixa-título, numa das aberturas de disco mais belas da discografia do pop britânico dos anos 80: um ataque de teclados que lembra o som de cravo junto com a guitarra e bateria só no bumbo e chipô. Camadas sonoras preenchem o espaço. Não demora, subindo um tom, entra a deslumbrante voz de Liz Fraser articulando de improviso a letra em cima de uma melodia vocal. Já começa nesse nível. Em seguida, a bonita “Athol-Brose” antecipa uma das melhores do disco: “Carolyn’s Fingers”, encantadora, que, se for considerar o tema, essa tal Carolyn deve realmente ter dedos mágicos. Brit-pop clássico, com a tradicional batida funkeada em tempo 2/3, mas com o também tradicional riff twiniano. E o mais relevante: Liz Fraser dando um show de vocal, adicionando uma carga erudita ao pop-rock como poucas vezes se tinha visto. Deste jeito, jamais.

Guthrie, um guitarrista de qualidade, como boa parte de sua geração (Will SergeantBarney SumnerDaniel Ashirmãos Reid) não chegava aos pés em técnica de um Jimmy PageEric Clapton ou um Jeff Beck (no pós-punk, não raro o baixista era mais hábil que o guitarrista na banda). Porém, sua criatividade para compor e aproveitar os recursos sensoriais e de textura que as cordas lhe proporcionam é gigantesco. Foi a mente inventiva e observadora de Guthrie que cunhou uma rica assinatura melódica para a banda. Ele sintetizou uma espécie de “base de riffs” para o Cocteau Twins, a qual transmite, em notas geralmente de som cintilante, exatamente esse espírito suave e etéreo que lhes é característico. Trata-se de uma combinação de notas em tempo 7/7 que se assemelha ao andamento de uma valsa mas que, avaliando bem, é bastante hipnótica visto sua estrutura cíclica em arpejo. Com essa base, Guthrie é capaz de criar infinitos riffs, infinitas combinações valendo-se da variação de tom, das texturas, dos arranjos, dos timbres e por aí vai. Como um pintor que se vale das mesmas tintas para pintar quadros diferentes. É tão inteligente e marcante que pode até nem conter todas as 7 notas (6, 5 ou até 4 apenas), mas percebe-se o mesmo esqueleto ao se ouvir. O que apareceu pela primeira vez em 1983, na linda “Sugar Hiccup” (e que já vinha sendo já largamente usada por eles, basta ouvir “Pandora”, do “Treasure”, ou várias de “Victorialand”), é claramente repetido em “Carolyn’s Fingers”, na melodiosa "Suckling the Mender", cujo arranjo vocal do refrão a faz ganhar cores orientais, e em "Spooning Good Singing Gum", outra linda, que chega a pôr o ouvinte para voar.

O estilo Ethereal criado pelos Twins, impressionista e sofisticado, é fruto de uma improvável mescla de pós-punk, ambient music, new age, folclore celta e música barroco-renascentista, Isso é evidente em "The Itchy Glowbo Blow" e noutra balada, "A Kissed Out Red Floatboat", com seus sons espaciais e um lindo refrão, onde Liz, em overdub, põe o tom lá em cima. “Ella Megalast Burls Forever” é outra magnífica balada que evoca, aliás, tanto o sentido moderno do termo (canção sentimental em andamento lento) quanto sua acepção primeira, medieva, de uma forma de poesia lírica em estrofes. Chega a ser litúrgica de tão elevada, pois faz vir à mente suntuosas igrejas em que o som se propaga às alturas. Os ecos, as sobreposições e os contracantos só fazem aumentar essa sensação.

A voz de Liz Fraser, aliás, é um caso à parte. Ela não ficou conhecida no meio pop-rock alternativo como “a voz de Deus” por acaso. Talvez a melhor pupila de Cathy Barberian – mas também bastante inspirada em Meredith Monk, Joni Mitchell e nos intrincados arranjos de voz de Philip Glass – Liz foi, desde o início dos Twins, o maior destaque da banda. Soprano – diferente de Barberian, uma mezzo –, foi aperfeiçoando a técnica e soltando seu canto até chegar ao status que adquiriu. A capacidade de alcance dos agudos e a fluência pelas escalas são típicas de uma voz treinada e, acima de tudo, emocionalmente livre. “Cico Buff”, balada ambient muito terna, e "For Phoebe Still a Baby", cheia dos ornamentos vocais, foram escritas para que ela as conduzisse. Até o conteúdo do que ela canta tem sentido superior quando cria melismas e inventa palavras ininteligíveis e sem sentido semântico nenhum, apenas experenciando a musicalidade da pronúncia e dos encadeamentos. Não é possível – nem necessário – entender o significado, pois a música é sentida na essência, e essa é a própria concretização da linguagem universal da arte musical. Provavelmente, seja esse o idioma dos anjos.

Depois de “Blue...”, a sina desses anjos na Terra permaneceu no caminho de iluminação e de cores, influenciando diretamente bandas como Lush, Stereolab, My Bloody Valentine, The Cranberries, The Moon Seven Times, entre outras. Nos anos seguintes, vieram os também ótimos “Heaven or Las Vegas” (1990, considerado para muitos o melhor do grupo), “Four-Calendar Café” (1993) e “Milk & Kisses” (1998), este, o último antes da dissolução após apenas nove discos de estúdio (contando com o em parceria com o compositor vanguardista Harold Budd, “The Moon & The Melodies”, de 1986).

Nessa trajetória, eles viram que tinham razão quando se autoexpurgaram, pois o mundo precisa, sim, de um pouco de Satanás para sair do conformismo e quebrar barreiras. O Diabo, afinal, é o pai do rock. Mas compreenderam, igualmente, que havia uma inquestionável beleza naquilo que Gabriel representava – e que ele não era o chato como eles pintavam. Foi em “Blue Bell Knoll” que aprenderam isso e a não fugirem de seus próprios destinos, e que aceitar e elaborar suas próprias naturezas era o caminho mais acertado. Isso vale tanto para anjos quanto para pessoas. Quem sabe, então, não foi este, desde o início, o designo divino aos Twins quando vieram em missão: ensinar aos humanos que o importante é seguir o próprio coração?            

vídeo de "Carolyn's Fingers" - Cocteau Twins

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FAIXAS:
1. "Blue Bell Knoll" - 3:24
2. "Athol-Brose" - 2:59
3. "Carolyn's Fingers" - 3:08
4. "For Phoebe Still a Baby" - 3:16
5. "The Itchy Glowbo Blow" - 3:21
6. "Cico Buff" - 3:49
7. "Suckling the Mender" - 3:35
8. "Spooning Good Singing Gum" - 3:52
9. "A Kissed Out Red Floatboat" - 4:10
10. "Ella Megalast Burls Forever" - 3:39

todas as composições de autoria de Fraser, Guthrie e Raymonde.
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Ouça:
Cocteau Twins Blue Bell Knoll






domingo, 28 de agosto de 2022

ÁLBUNS FUNDAMENTAIS Especial 14 anos do Clyblog - The Beatles - "The Beatles" ou "White Album" (1968)

 



"Todo clichê tem uma razão e o motivo pelo qual este disco é citado em 11 de 10 listas é pelo simples fato de ser genial.
Ele tem lugar quase sagrado no meu coração, inclusive fico períodos longos sem escutá-lo para sempre ter a mesma reação a cada música, um arrepio que começa na base da coluna e vai até o topo da cabeça.
Essa sensação não muda desde o meu primeiro contato com ele, aos 13 anos."
Titi Müller, 
atriz, apresentadora e ex-VJ da MTV




Branco.
O branco pode ser o nada, o vazio. Uma folha de papel sem desenho, sem palavras, sem ideias, um lapso de pensamento, uma breve falha de memória, um cegueira por excesso de luz ou mesmo a ausência total de cor. Por outro lado, é a soma de todas as cores. Todo o espectro, girando tão rapidamente, que o olho humano sequer é capaz de distinguir todas as variações cromáticas para apenas enxergar... o branco.
Branco...
Uma capa totalmente branca apenas com um nome gravado em relevo.
A aparente simplicidade por trás de uma capa totalmente branca guarda, na verdade, a complexidade de uma das obras mais sofisticadas da história da humanidade. Talvez seja exatamente essa impressão errônea do nada que, no fundo, contém tudo. Uma obra tão cheia de variedades, elementos, possibilidades, cores, que os olhos da percepção humana mal sejam capazes de assimilar tudo, de ordenar todas as informações. "The Beatles", de 1968, mais conhecido como "White Album" traz tantos elementos que muitas vezes é impossível classificar se aquele quarteto genial fizera um rock, um jazz, um blues, um foxtrote, uma suíte clássica, um folk, ou tudo isso junto numa mesma peça musical.
"White Album" tem trinta faixas e seria cansativo falar de todas, desta forma destaco aqui aquelas que na minha opinião não podem deixar de ser mencionadas, pelas razões e méritos mais diversos, embora fãs mais fervorosos e conhecedores mais eruditos possam contestar minha seleção. "Back in the U.S.S.R." que abre o disco é um rock no estilo do velho yeah, yeah, yeah mas que, claramente, com toda a bagagem adquirida de uma banda mais madura, segura e ousada, está alguns passos à frente da sonoridade da banda lá dos primórdios; "While My Guitar Gently Weaps" é uma das mais belas canções do grupo e um dos melhores trabalhos coletivos do quarteto, com o acréscimo, ainda, de Eric Clapton que dá a canja do lindíssimo solo de guitarra, um dos mais marcantes da história do rock; "Blackbird" é solar, iluminada, à primeira vista uma canção aparentemente simples, mas que apreciada com a devida atenção, revela-se um peça musical da mais alta sofisticação; o blues choroso de "Revolution 1" que eu costumava ouvir numa vinheta da Rádio Ipanema em Porto Alegre e sempre tinha a curiosidade de saber o que era aquilo; e  "Dear Prudence", linda, doce, suave, que conheci com a Siouxsie e seus Banshees e, devo admitir, nesse caso, que divido a preferência com a original. A propósito, outra que conheci com a Rainhas das Trevas do gótico, mas que, aí sim, prefiro disparado a original, é "Helter Skleter", por sinal, um das minhas preferidas do álbum e da banda, exatamente por toda a sujeira, barulheira, fúria, características pouco comuns na obra dos Beatles.
Os quatro, no estúdio, durante as
gravações do álbum, em 1968

Mas tem o rock empolgante de "Glass Onion", com todas as autorreferências; tem as "mutações" constantes de Rocky Racoon"; tem os vocais intensos de John em "I'm So Tired"; tem também o blues envenenado "Yer Blues"; a energia e o psicodelismo de "Everybody's Got Something to Hide..."; a belíssima melodia vocal de "Sexy Sadie"; a loucura psicodélica de "Revolution 9"... Ah, tudo!!!
Se "Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band" havia, praticamente criado o conceito de álbum, o "Álbum Branco", mesmo em meio a um ambiente convulsionado de uma banda em processo de fragmentação interna, levava a ideia a um nível superior. O que, pensando bem, de certa forma, possa ter colaborado para um álbum tão genial, diversificado e com um conjunto tão contraditoriamente "harmonioso". Cada membro, tão independente e autossuficiente, estava, naquele momento, maduro, seguro e plenamente apto a produzir algo tão grandioso individualmente, que o material, colocado dentro da obra do grupo, praticamente complementava o dos demais criando um produto final incrível e inigualável.
Branco também pode simbolizar pureza e tal como fazem as crianças, de maneira belíssima, a pureza permite a alguém ser o que quer ser, falar o que quer falar sem se preocupar com nada. Simplesmente ser verdadeiro.
Segundo o artista, criador da arte, Richard Hamilton, a ausência total de qualquer cor era proposta em contraste ao excesso de informação da capa do disco anterior,  "Sgt. Pepper's...". Sim, entendo... Mas, aprofundando um pouco o pensamento a esse respeito, talvez o branco do álbum signifique algo mais, Talvez signifique exatamente o momento em que cada um tenha sido totalmente puro, totalmente verdadeiro consigo mesmo, o que, assim como a verdade das crianças, sempre resulta em beleza.
E nós, que não temos nada a ver com as diferenças que eles tinham, ganhamos, aquele que tenha sido, possivelmente, o momento mais brilhante daqueles quatro caras.
Brilhante...
Sim, tão alvo, tão claro que chega a ser... brilhante.
Branco.

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FAIXAS:
(no formato LP)

Lado 1

1. "Back in the U.S.S.R." (voz de Paul McCartney) 2:43
2. "Dear Prudence" (voz de John Lennon) 3:53
3. "Glass Onion" (voz de Lennon) 2:17
4. "Ob-La-Di, Ob-La-Da" (voz de McCartney) 3:08
5. "Wild Honey Pie" (voz de McCartney) 0:52
6. "The Continuing Story of Bungalow Bill" (voz de Lennon) 3:14
7. "While My Guitar Gently Weeps" (composição e voz de George Harrison) 4:45
8. "Happiness Is a Warm Gun" (voz de Lennon) 2:43

Lado 2
9. "Martha My Dear" (voz de McCartney) 2:28
10. "I'm So Tired" (voz de Lennon) 2:03
11. "Blackbird" (voz de McCartney) 2:18
12. "Piggies" (composição e voz de Harrison) 2:04
13. "Rocky Raccoon" (voz de McCartney) 3:33
14. "Don't Pass Me By" (composição e voz de Ringo Starr) 3:51
15. "Why Don't We Do It in the Road?" (voz de McCartney) 1:41
16. "I Will" (voz de McCartney) 1:46
17. "Julia" (voz de Lennon) 2:54

Lado 3
18. "Birthday" (vozes de McCartney e Lennon) 2:48
19. "Yer Blues" (voz de Lennon) 4:04
20. "Mother Nature's Son" (voz de McCartney) 2:48
21. "Everybody's Got Something to Hide Except Me and My Monkey" (voz de Lennon) 2:24
22. "Sexy Sadie" (voz de Lennon) 3:15
23. "Helter Skelter" (voz de McCartney) 4:29
24. "Long, Long, Long" (composição e voz de Harrison) 3:04

Lado 4

25. "Revolution 1" (voz de Lennon) 4:15
26. "Honey Pie" (voz de McCartney) 2:41
27. "Savoy Truffle" (composição e voz de Harrison) 2:54
28. "Cry Baby Cry" (vozes de Lennon e McCartney) 3:02
29. "Revolution 9" (vocalizações de Lennon, Harrison, George Martin e Yoko Ono) 8:22
30. "Good Night" (composição de Lennon e voz de Starr) 3:11

*************************
Ouça:
The Beatles - "The Beatles" A.K.A. "White Album" (1968)





por Cly Reis

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Tedeschi Trucks Band - "Revelator" (2011)



Eu comecei a cantar quando era uma garotinha,
antes mesmo de falar.
 Minha mãe disse que eu costumava
cantar todas as manhãs no berço.” 
Susan Tedeschi


A Tedeschi Trucks Band, para quem ainda não conhece, e anteriormente conhecido como Derek Trucks e Susan Tedeschi Band, é um grupo de rock blues de Jacksonville, Florida. Formada em 2010, a banda é liderada pelo casal Derek Trucks e Susan Tedeschi, junto com os membros de seus grupos quando solos, uma banda com “apenas” 11 integrantes. Seu álbum de estreia, "Revelator" (2011), ganhou o 2012 Grammy Award de Melhor Álbum de blues.
E como não ser né? Para quem não sabe, Derek é sobrinho de Butch Trucks, baterista da “The Allman Brothers Band”, nada mais nada menos que uma das melhores bandas que já conheci até hoje, uma mistura de rock, blues e country viciante... Ok, depois eu faço um “álbuns” sobre essa baita banda, onde Derek também fez parte.  Mas, voltando ao guri, ele começou a tocar guitarra aos 9 anos e aos 13, já havia tocado ao lado de Buddy Guy, sem contar que cresceu ouvindo e aprendendo com ninguém menos que Duane Allman, guitarrista do Allman Brothers e uma das influencias de Derek quanto ao estilo de tocar com slide, que infância hein... E hoje tem sido apontado como melhor guitarrista de slide. Além de já ter tocado com Allman Brothers, Buddy Guy, Bob Dylan e John Lee Hooker, em 2006 foi convidado para fazer uma turnê mundial de Eric Clapton como solista, é muita honra!
E a Susan? Quando eu crescer, quero ser como ela!!! (rsrsrs!). Além de linda, a voz dela tem sido descrita como uma mistura de Bonnie Raitt e Janis Joplin, e ambas foram suas influências. Sem contar o estilo de tocar guitarra que é influenciado por Buddy Guy, Steve Ray Vaughan , Freddie King e Doyle Bramhall. Ela foi criada em uma família que não era musical, mas ficava escutando a coleção de vinis de blues que o pai dela tinha, onde começaram suas inspirações. Ela se juntou a um grupo gospel até se formar em composição musical aos 20 anos, ela continuou cantando gospel até ingressar na cena de blues de Boston, onde logo se estabeleceu como uma das melhores atuações ao vivo. Sua crescente reputação como corajosa e poderosa cantora e guitarrista a levou em 1998, a uma indicação ao Grammy por melhor artista novo. Ela já abriu shows de John Mellencamp, Bob Dylan e Rolling Stones, e de seus heróis pessoais como BB King, Buddy Guy e Taj Mahal. E foi abrindo shows em uma turnê para o Allman Brothers que essa dupla se encontrou.
Sobre "Revelator"... Pra quem não ouviu ainda, está perdendo tempo! Baita álbum e que começa com uma sonzeira chamada Come See About Me, duvido ouvir essa música sem ao menos se balançar ou bater o pezinho. Outro destaque nesse álbum, em minha opinião, é Midnight In Harlem, é tão doce, suave, ótima de ouvir, começa com um solinho discreto do Derek e seu slide e de Kofi Burbridge em seu keyboard que dá todo o charme para o inicio dessa baita música onde, em seguida, chega dona Susan com seus vocais fortes e suaves dando um show... É, acho que essa música é a minha preferida! Ah, isso sem falar de "Until You Remember", no mesmo embalo sutil, porém com aquela pegada R&B clássica da Susan. Tem outra também que gostaria de destacar, "Learn How To Love", onde voltamos a ouvir um bom, velho e pegado rock n’ roll soul, (rss)... Bom demais! Então, Tedeschi com seus vocais poderosos e suaves, e Trucks com sua guitarra deslumbrante em solos a base de slides maravilhosos, complementam um ao outro, formando essa baita banda que lhes apresento: Tedeschi Trucks Band!
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vídeo de "Midnight in Harlem" - Tedeschi Trucks Band

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FAIXAS:
1 "Come See About Me"                 
2 "Don't Let Me Slide"                 
3 "Midnight In Harlem"                 
4 "Bound For Glory"                 
5 "Simple Things"                 
6 "Until You Remember"                 
7 "Ball And Chain"                 
8 "These Walls"                 
9 "Learn How To Love"                 
10 "Shrimp And Grits (Interlude)"                 
11 "Love Has Something Else To Say"                 
12 "Shelter"


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Ouvir:
Tedeschi Trucks Band - Revelator


quinta-feira, 10 de junho de 2021

Protagonistas coadjuvantes

Michael dando um confere bem de perto no que seu
mestre Stevie Wonder faz em estúdio, nos anos 70
Não é incomum artistas da música que, mesmo sendo astros, têm por hábito participarem de projetos de outros, seja tocando em gravações, shows ou como convidados. George Harrison, por exemplo, muito tocou sua slide guitar em discos dos amigos John Lennon e Ringo Starr. Eric Clapton, igualmente, além da carreira solo e de bandas próprias como Cream e Yardbirds, também emprestou sua guitarra para Beatles, Yoko Ono, Tina Turner, Phil Collins e vários outros. Como eles, diversos: Brian Eno, Robert Wyatt, Flea, Eddie Van Halen ou brasileiros como Herbert Vianna, Gilberto Gil, Frejat e João Donato. Todos comumente contribuem com seus instrumentos e/ou voz na música que não somente a deles próprios.

Há também aqueles que dificilmente se supõe que fariam algo fora de seus trabalhos pelos quais são mais conhecidos. Mas vasculhando com atenção as fichas técnicas dos discos, acha-se. Vez ou outra se encontra um artista que geralmente é visto apenas como protagonista atuando, deliberadamente, como um coadjuvante. E não estamos nos referindo àqueles principiantes que, posteriormente, tornar-se-iam ilustres, caso de Buddy Guy em “Folk Singer”, de Muddy Waters, de 1959, na primeira gravação do jovem Guy, então com 18 anos, com o veterano bluesman, ou Jimi Hendrix nas gravações de 1964 com a Isley Brothers anos antes de transformar-se num ícone do rock.

Aqui, referimo-nos àqueles que, já consagrados, abriram mão de seu status em nome de algo que acreditavam seja para um disco, um projeto, uma música ou um show. São momentos em que se vê verdadeiros mitos descerem de seus altares para, humildemente, colaborarem com a música alheia, seja por admiração, amizade, sentimento de dívida ou o que quer que explique. O fato é que esses “protagonistas coadjuvantes”, mesmo que estejam escondidos ou somente encontráveis nas miúdas letras da ficha técnica, abrilhantam com seus talentos peculiares a obra de outros.


Robert Smith para Siouxsie & The Banshees

Os anos 80 foram de inquietude para Robert Smith, líder da The Cure. Sua banda já era uma das mais celebradas do pós-punk britânico em 1983 quando ele, que havia lançado um ano anos o disco único “Blue Sunshine”, da The Glove, projeto em parceria com Steven Severin, decide dar um tempo com o grupo. Mas para quem estava a pleno naquela época, Bob “descansou carregando pedra”, como diz o ditado. Ele decide fazer parte da Siouxsie & The Banshees, banda coirmã da The Cure, mas estritamente como integrante. Com os vocais e o palco já devidamente preenchidos por Siouxsie, Robert assume as guitarras e une-se a Severin (baixo) e Budgie (bateria) para compor a melhor formação que a Siouxsie & The Banshees já teve. Não deu outra: dois discos, duas pérolas, para muitos os melhores da banda: “Hyenna” e o ao vivo “Nocturne”




Miles Davis
para Cannonball Adderley
Mais do que na música pop, é comum no jazz grandes astros e band leaders tocarem na banda de colegas. Isso não funciona, entretanto, para Miles Davis. O talvez mais exclusivo músico do jazz havia tocado no início da carreira para Sarah Vaughan, mas depois jamais fez nada que não fosse tão-somente seu. Até que, com jeitinho, em 1958, o amigo Cannonball Adderley convida-o para participar das gravações de um disco que ele estava por lançar e no qual teria ainda Art Blakey, na bateria, Hank Jones, no piano, e Sam Jones, no baixo. Uma sessão de gravação apenas, só cinco números, algumas horinhas de estúdio com Rudy Van Gelder na mesa, engenheiro com quem Miles tanto estava acostumado a trabalhar. "Não vai custar nada. Diz, que sim, diz que sim!" Tanto foi, que Miles topou, e saiu "Somethin' Else", aquele que é o disco que antecipa a obra-prima “Kind of Blue”, em que, reassumido o posto de front man, aí é Miles que conta com o parceiro saxofonista na banda. Tudo de volta ao normal.


Paul McCartney para Foo Fighters
É conhecida a versatilidade de Paul McCartney. Multi-instrumentista, ele é capaz de tocar, em apenas um show, vários instrumentos ou gravar um disco inteirinho sozinho sem precisar de mais ninguém no estúdio. Quem também fez isso foi Dave Grohl, líder da Foo Fighters, que, no álbum de estreia da banda, em 1995, toca não apenas a bateria, que era seu instrumento na Nirvana, como todos os outros. A amizade e talvez essa semelhança tenham feito com que chamasse o eterno beatle para uma empreitada 12 anos depois. Fã de Macca, ele convidou o veterano músico para gravar para ele não a guitarra, o piano ou a voz. Isso, muita gente já havia feito. Ele pediu para Paul tocar justamente bateria. A “brincadeira” deu super certo, como se vê na canção "Sunday Rain" presente no disco "Concrete And Gold".


Michael Jackson para Stevie Wonder
É uma música apenas, mas considerando o tamanho deste “coadjuvante”, vale por um disco inteiro. A linda e melodiosa “All I Do”, que Stevie Wonder gravaria em seu “Hotter than July”, de 1980, conta com ninguém menos que Michael Jackson nos vocais. E não se trata da voz principal, e sim do backing vocals! Surpreende ainda mais que o Rei do Pop já havia lançado à época o megassucesso “Off the Wall”, de um ano antes, com o qual revolucionaria a música pop e que quebrara os paradigmas de vendas da música negra no mundo. Mas a devoção de Michael para com Stevie era tamanha, que ele nem se importou em fazer um papel secundário. Para quem era conhecido pela habilidade de canto e arranjos de voz, no entanto, o que seria uma mera participação contribui sobremaneira para a beleza melódica da canção.



David Bowie
 para Iggy Pop
Em meados dos anos 70, Iggy Pop e David Bowie estavam bastante próximos. Bowie havia chamado o amigo para uma temporada em Berlim, na Alemanha, onde desfrutariam do moderno estúdio Hansa para erigir alguns projetos, dentre estes, “The Idiot”, no qual dividem todas as autorias e gravações. O período foi tão fértil, que rendeu também uma turnê, registrada no álbum ao vivo “TV Eye Live 1977". Acontece que, no palco, não dá para apenas os dois se resolverem com os instrumentos. Foi então que chamaram os Sales Brothers para o baixo e bateria, Ricky Gardiner, para a guitarra, e... quem assumiria os teclados? Ah, chama aquele cara ali que tá de bobeira. O próprio David Bowie. Quando se escuta as versões ao vivo de “Lust for Life”, “I Wanna Be Your Dog” e “Funtime”, acreditem: os teclados que se ouvem são do Camaleão do Rock. 



Phlip Glass
 para Polyrock
O cara já tinha composto de um tudo: ópera, concerto, sinfonia, madrigal, trilha sonora, sonata, estudos. Faltava uma coisa: música pop. Próximo do músico e produtor Kurt Monkacsi, o gênio da vanguarda californiana Philip Glass “apadrinhou” junto com este a new wave art rock Polyrock. Dizem nos bastidores, que o cérebro da banda é Glass e não só os irmãos Billy e Tommy Robertson tamanha é a identificação com a música minimalista do autor de "Einsten on the Beach". Seja por grandeza, timidez ou algum problema legal, o fato é que isso não consta nos créditos. O que consta, sim, é a participação do maestro tocando piano e teclados nos dois discos do grupo, “Polyrock”, de 1980, e “Changing Hearts”, de um ano depois, no qual, inclusive, assina oficialmente o arranjo de cordas da faixa-título. Daqueles raros momentos em que a música de vanguarda se encontra com o rock.





João Gilberto para Rita Lee
Se hoje a participação de João Gilberto tocando violão para Elizeth Cardoso em duas faixas de “Canção do Amor Demais”, de 1958, é considerado o pontapé inicial para o movimento da bossa nova, àquela época o gênio baiano era apenas um músico iniciante ao qual não se havia ouvido ainda toda sua arquitetura sonora de instrumento, voz e harmonia. 24 anos depois, já um mito, João dificilmente repetia uma ação como aquela do passado. Quisessem tocar com ele, ele que convidava. Exceção feita nos anos 80 para sua então esposa, Miúcha (e somente o violão), mas especialmente para Rita Lee. Admirador confesso da Rainha do Rock Brasileiro, João topou o convite de gravar ele, seu violão e sua atmosfera única a faixa “Brasil com S”, do disco “Rita Lee & Roberto de Carvalho”, autoria dos dois. Pode-se dizer que, como todo o cancioneiro de João, é mais uma obra-prima, porém a única em que põe sua voz à serviço de um outro artista fora da sua discografia. Privilégio.


Daniel Rodrigues