"Verger é a pessoa que historicamente vem se dedicando mais a essas relações com a África”.
Gilberto Gil
Quando estivemos em Salvador, em 2015, uma das certezas as quais saímos levamos na mala era a de que queríamos ver a obra de Pierre Verger. Tanto quanto a casa de Jorge Amado e Zélia Gattai, o Pelourinho, o Elevador Lacerda, a Sorveteria da Ribeira, o Mercado Modelo, a praia de Itapuã e outros elementos turísticos e culturais da capital baiana, ter contato com o estrangeiro que melhor entendeu e melhor se hibridizou àquela cidade era um desejo alentado por Leocádia e por mim. Conseguimos visitar uma loja da Fundação Pierre Verger com um pequeno acervo próxima ao Pelourinho, onde ficamos hospedados. Saímos com alguns souvenires e roupas temáticas, que até hoje nos fazem lembrar de lá. Porém, considerando os menos de cinco dias que pudemos ficar, e que naquela época qualquer movimento maior numa cidade que não se conhece podia ser realizada apenas de táxi, pois não existiam ainda os aplicativos de transporte, a matriz da fundação, no longínquo bairro Engenho Velho de Brotas, infelizmente, não deu para irmos.
A frustração de não conseguirmos nos estender na obra de Verger, acalentada por um remoto retorno a Salvador, foi parcialmente superada com uma dupla exposição do icônico trabalho do fotográfico do etnólogo, antropólogo e escritor francês em Porto Alegre. “Todos iguais, todos diferentes?” e “Orixás” trazem o olhar de Pierre Fatumbi Verger sobre a diversidade cultural e a influência recíproca da religiosidade nas culturas africanas e afro-brasileiras. Fez-nos sentir ainda mais em Salvador o fato de que mostra é uma parceria com a Fundação Pierre Verger e as obras selecionadas pelo curador de Alex Baradel, especialista responsável pelo acervo fotográfico da Fundação.
“Todos iguais, todos diferentes?” traz um recorte dos retratos feitos por Verger a partir de seus encontros nas viagens que realizou pelo mundo durante mais de 40 anos. São imagens que, a partir de seu olhar, ressaltam os aspectos da diversidade cultural e do respeito ao outro. Vietnã, Espanha, Congo, Oceano Índico, Senegal, Bolívia, México, Togo, Peru, Mauritânia e, claro, Brasil, são alguns dos países e feições literalmente retratados no trabalho de Verger, que explora imagens em primeiro plano de indivíduos, que se tornam, mais do que apenas retratos de pessoas, mas uma intenção sociopolítica democrática e libertária típica da Antropologia Social da geração a qual ele pertenceu. Não errado dizer “de esquerda”.
Visão geral do primeiro salão de “Todos iguais, todos diferentes?”
Já “Orixás”... Nossa, “Orixás”! Este traz nada mais, nada menos do que uma seleção de fotografias ampliadas em grande formato que constam no livro homônimo de Pierre Verger, lançado pela primeira vez em 1981 e considerado como um dos 200 livros mais importantes para se entender o Brasil A exposição compila, de forma plástica e poética, as pesquisas de Verger sobre a história e mitologia dos orixás nas religiões afro-brasileiras, sobretudo em Salvador e Bahia, além de destacar a origem desses rituais na cultura e nos mitos iorubás africanos em países como Nigéria, Daomé (atual Benin) e Togo. Ao realizar esses estudos em suas viagens desde a Bahia e Recife e até a região do Golfo de Benin, entre os anos 1948 e 1978, Verger se tornou pioneiro na pesquisa quanto às influências culturais e religiosas recíprocas entre África e América, tal como passaram a se dar a partir do século XVI, com a diáspora africana ocorrida em função do tráfico de negros escravizados. As fotos são algo simplesmente arrebatador.
A sensação de penetrar no mundo de Verger ganha força a cada fotografia que se passa, a cada olhar de outra pessoa captada por ele, a cada detalhe enquadrado, a cada realidade dita em apenas um click de segundos. Ainda mais na exposição “Orixás”, que nos fez voltar àquela atmosfera da Bahia da qual nos despedimos com sentimento de incompletude. Adensa ainda mais esta percepção o fato de que a mostra é, justamente, resultado de uma parceria do Margs com a Fundação Pierre Verger e que as obras selecionadas pelo curador de Alex Baradel, especialista responsável pelo acervo fotográfico da Fundação. Só podíamos mesmo voltar à mágica Bahia de Todos os Santos, e isso sem precisar sair ali, na beira do Guaíba, abençoada por Yemanjá.
********
Iguais e, sim, diferentes
Senhora típica espanhola e um belo jovem vietnamita, em fotos dos anos 30
Trabalhadores do povo daqui e de lá
Mulher africana e Leon Trotsky no exílio México
Vista geral da mostra “Todos iguais, todos diferentes?”
A vitalidade de jovens do Vietnam e de Cuba
Detalhe do preciso sorriso de um pequeno mexicano
Composições semelhantes em Tarabuco, Bolívia (cima) e em Ocongate, no Peru
Detalhe no foco, que está no rosto da jovem em segundo plano
Expressivo retrato de um idoso no Brasil dos anos 50, interior de SP
Outra marcante foto desta linda cubana (1957)
Entre os vários amigos ilustres, Dorival Caymmi, Diego Rivera e Walt Disney, ao centro, de "gaucho"
Foto da impressionante exposição "Orixás" (anos 50)
Trabalho etnológico de Verger, que rendeu fotos históricas da religiosidade africana e brasileira
Divindades do candomblé representadas
A plasticidade própria dos cultos africanos
Yemanjá (Salvador, 1946)
Um 360° de "Orixás"
********
“Todos iguais, todos diferentes?” e “Orixás”
Visitaçãoaté 08 de outubro, de terça-feira a domingo, das 10h às 19h
Local:Museu de Arte do Rio Grande do Sul - MARGS - 1º andar expositivo do MARGS (Pinacotecas e sala Aldo Locatelli)
Praça da Alfândega, s/n°, no Centro Histórico de Porto Alegre - RS
Quando se pensa em destinos de férias no Nordeste logo vem à cabeça Natal e suas dunas, o mar 'caribenho' de Maceió, as belezas do vasto litoral baiano, praias de Pernambuco como Porto de Galinhas ou do Ceará como Jericoacoara, mas Aracaju, a capital do estado de Sergipe, raramente é lembrada e no entanto tem seus encantos, atrativos e é, sim, uma boa opção de férias. Se seu litoral não conta com aquele azul fascinante da vizinha Alagoas, suas praias são gostosas e aprazíveis normalmente emolduradas por tranquilizantes coqueirais embalados por uma gostosa brisa. Sua orla, remodelada a pouco mais de dez anos, é uma das melhores do Brasil, proporcionando as mais diversas alternativas de lazer e entretenimento. Restaurantes, feiras, quiosques, quadras esportivas, ciclovia, pedalinho, oceanário, mirantes, tudo isso está espalhado ao longo da bela e convidativa Orla do Atalaia ao dispor dos turistas e da população local e são equipamentos urbanos como estes associados a um bom sistema de transporte, níveis de violência "aceitáveis", boa infraestrutura urbana, fazem de Aracaju a capital com melhor qualidade de vida do país. Além das praias e da orla remodelada com todas suas opções, é interessante visitar o Museu da Gente Sergipana, o Mercado Municipal, a Ponte Aracaju-Barra dos Coqueiros, o Farol da Coroa do Meio, o Oceanário do Projeto Tamar e a Passarela do Caranguejo na própria Orla do Atalaia e ainda a belíssima e interessante Croa do Goré, uma pequena "ilha" de areia que só pode ser aproveitada pelos turistas até que a maré suba, quando então fica totalmente submersa. Fora da cidade ainda, não muito distante, pode-se conhecer ainda as cidades históricas de Laranjeiras e a quarta cidade mais antiga do Brasil, a interessante São Cristóvão, fundada em 1590; e um pouco mais distante, na divisa com a Bahia, o Mangue Seco, lugar que inspirou a obra "Tieta" de Jorge Amado e que foi uma das locações da novela de mesmo nome, exibida pela Rede Globo de Televisão. Bem mais longe, mas mesmo assim uma das atrações da região, e que pode ser negociada com qualquer agência da cidade, ficam os fascinantes Cânions do Xingó. O passeio é lindo mas exige um dia inteiro e muita disposição, uma vez que a cidade de Canindé do São Francisco, de onde parte o catamarã, fica a três horas da capital.
Então tá sem destino certo? Não decidiu ainda para onde ir? Aquelas badaladas estão caras e a grana tá meio curta? Tenta Aracaju que é uma boa opção.
Vão aí algumas imagens da cidade e dos passeios por lá.
A grande extensão de praias e seus belos coqueiros
(Praia do Refúgio)
O calçadão da Orla do Atalaia
A fachada do Museu da Gente Sergipana
No saguão central do Museu,
uma rede de pescaria cheia de cultura local.
Os elementos da cultura sergipana em destaque no Museu.
No centro histórico, o mirante Ponte do Imperador.
Saindo da área urbana, a Croa do Goré.
Lazer só até a maré encher.
o passeio de bugre pelas dunas do Mangue Seco
Os famosos coqueiros "Romeu e Julieta"
em Mangue Seco.
Os belíssimos cânions do Xingó cortados pelas águas do Rio São Francisco
As impressionantes formações rochosas e os desenhos da natureza.
A cidade histórica de São Cristóvão,
a quarta mais antiga do Brasil.
A praça São Francisco em São Cristóvão
Em Laranjeiras, uma das igrejas no alto da colina.
E o casario antigo da cidade.
Voltando à Orla, o Oceanário do Projeto Tamar
Ainda no Tamar, o tanque dos tubarões.
O caranguejo que dá as boas vindas à passarela
A plataforma que leva à praia do Atalaia,
uma larga faixa de areia
O calçadão da Orla e uma declaração de amor a Aracaju.
Antes de mais nada, um aviso aos
navegantes das águas de Iemanjá: Dorival Caymmi não é música. Para o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, a verdadeira
arte manifesta algo que não está somente naquilo que se percebe na epiderme da
obra, mas, sim, na sua estrutura, no seu significado mais profundo. Assim como
uma “Guernica” de Picasso é mais do que uma pintura ou “Tempos Modernos” de Chaplin
mais do que um filme, pois são marcos históricos divisores-de-águas da
sociedade, o que Caymmi produziu tem uma amplitude antropológica que vai além
dos limites da música. Caymmi conseguiu traduzir através de sons os costumes de
um povo, os jeitos de um povo, o pensar de um povo. “Canções Praieiras”, de 1954,
é isso: extrapola o sentido de uma simples gravação. É um documento fonográfico
de suma importância para tudo o que se possa classificar como cultura no século
XX, seja popular, folclórico ou erudito, pois ele foi um criador de linguagem.
Como disse
Gilberto Gil , Caymmi é o início da “nova idade de ouro da canção”. A universalidade da
música deste baiano abençoado pelos orixás está em cada som, em cada dedilhado
graúdo mas delicado na viola, em cada entoar do seu barítono, em cada rebolado sensual
do seu canto. Nos temas, os conflitos, sentimentos e a luta diária pela
sobrevivência daquele que vive em contato com o que há de mais primitivo e puro
na natureza: o pescador. E os elementos dessa poética são os mais essenciais da
vida: o mar, a água, a terra, o vento, a noite, a morte. De uma coesão conceitual
impressionante, as oito faixas que compõem o disco trazem tudo isso do primeiro
ao último segundo. Terra, mar e céu, assim como as dimensões do homem, da
natureza e do místico, são trazidos em sua poesia em plena simbiose,
equiparados, indistinguíveis. Tudo voz e violão, executados com tanta
naturalidade que passa a sensação de que ele gravou na beira da praia, com os
pés sobre a areia e olhando pro mar, apenas deixando os sons virem. “Canções Praieiras” é uma
escritura de clássicos absolutos, todos irreparáveis. O que dizer de “É Doce
Morrer no Mar”, “O Mar” ou “A Jangada Voltou Só”? Operísticas, as três trazem o
tema da morte, mas abordado sob a ótica mística e singela do pescador. Deslumbrante,
mágico e de uma dramaticidade teatral espantosa. De tão visuais, é possível
enxergar um filme em cada música. Misturando um pouco das histórias de cada uma,
olhem só no que dá:
CENA 1 - EXTERNA – FIM DE TARDE – Várias tomadas do mar
agitado. CENA 2 - INTERNA – FIM DE TARDE - Pescador Pedro se despede com
pesar de sua amada, Rosinha de Chica, pois não sabe se vai voltar da pescaria. CENA 3 - INTERNA – FIM DE TARDE – Já sozinha, Rosinha, intuindo o pior, reza chorando.
CENA 4 – INTERNA/EXTERNA – NOITE - Pedro e seus companheiros,
Chico, Ferreira e Bento, encontram-se na praia para iniciar o trabalho. Pegam a
jangada e ganham o mar bravio na noite ventosa. CENA 5 - EXTERNA – NOITE – Já em alto-mar, as águas se revoltam.
Os pescadores acreditam ser por vontade de Iemanjá. Eles lutam para sobreviver,
mas não resistem e caem no mar. CENA 6 - EXTERNA – MANHÃ - A jangada aparece na beira da
praia toda quebrada e sem os pescadores. Juntam várias pessoas da comunidade de
Jaguaripe. As moças choram de fazer dó. Comoção geral. CENA 7 - EXTERNA – MANHÃ – O corpo de Pedro aparece em outra
ponta da praia próximo às pedras, todo roído dos peixes. CENA 8 – EXTERNA – TARDE – FLASHBACK – Os pescadores felizes
na festa da aldeia. Chico vestido de boi adornado na procissão de Natal. Bento,
cantando modinhas e dançando, diverte a todos. Pedro e Rosinha trocam olhares
de amor. CENA 9 – EXTERNA – FIM DE TARDE - Rosinha, traumatizada,
enlouquece. Passa a zanzar pela praia catatônica e com os olhos marejados dizendo
baixinho: “Morreu. Morreu”. CENA 10 – EXTERNA – FIM DE TARDE – Sob o sol vespertino, a
onda do mar quebra lindamente na areia da praia. FIM
Um roteiro de cinema
perfeito! Caymmi é capaz de criar imagens, verdadeiros quadros da realidade de
uma cultura, semelhante ao que fizeram, cada um em sua área, Jorge Amado,
Caribé e Pierre Verger da mesma Bahia de Todos os Santos. Neste sentido, a
música de Caymmi é extremamente figurativa, pois consegue ser literária ao
mesmo passo que é cênica e imagética. “Canoeiro”, das que mais me assombro, reproduz
em sons e versos o movimento sincronizado e o canto de um grande grupo de
pescadores no ato da pesca, com aquela rede gigante sendo tirada do mar lotada
de peixes. Sempre que ouço lembro sempre de cenas de “Barravento”, do também
baiano Glauber Rocha.
O fantástico (sereias, lendas,
cultos, santos, Batucajé) está constantemente presente. Assim é a incrível “Lenda
do Abaeté”, com seus acordes de violão graves parecendo berimbau e clima
introspectivo (até assustador) que arrepia ao se escutar, pois dá a impressão
que faz suscitar sensações muito viscerais do ser humano. O disco fecha com a
brejeira “Saudade de Itapoã”.
Em águas calmas. É de Caymmi que nasce toda
a construção melódica da MPB moderna – esta uma das mais modernas e criativas
expressões musicais de todo o mundo no último século. Carmen Miranda conquistou
o planeta mostrando, com música dele, o que é que a baiana tem. Os grandes
intérpretes, de Nelson Gonçalves a
Gal Costa, de Elizeth Cardoso Nara Leão,
sempre reverenciaram sua obra. A bossa nova herdou-lhe as inusitadas
dissonâncias, o ritmo e o gingado nordestino do samba, além da engenhosidade
timbrística e harmônica e, largamente, o estilo sintético. Voz e violão. Foi o
exemplo que bastou para
João Gilbertoajudar a criar uma música universal como
a bossa nova. Tudo isso porque, mais do
que um músico que transpõe a realidade para sua arte, Caymmi é, justamente,
ator e personagem dessa própria realidade. Ele é sua própria arte. Morto em
2008, deixou uma obra relativamente pequena se comparado com outros
contemporâneos seus (Cole Porter, Noel Rosa, Carlos Gardel, Pixinguinha,
Ernesto Lecuonda). Mas sua música vai além das fronteiras da própria música; é
arte em sua mais pura essência. Simplesmente, Dorival Caymmi é como o mar
quando quebra na praia: é bonito. É bonito.
*************************************
FAIXAS:
01 - Quem Vem Pra Beira do Mar 02 - O "Bem" do Mar 03 - O Mar 04 - Pescaria (Canoeiro) 05 - É Doce Morrer no Mar 06 - A Jangada Voltou Só 07 - Lenda do Abaeté 08 - Saudade de Itapoã
(Todas de autoria de Dorival Caymmi)
********************************************
a inventar instrumentos, misto de músico e escultor,
de
filósofo e profeta,
uma das figuras mais extraordinárias da arte
brasileira."
Jorge Amado
“Sou
um descompositor contemporâneo.”
Walter Smetak
Uma
das coisas que mais queria ver quando fosse a Salvador, se esta ainda
estivesse lá, era a exposição de obras de um cara que tenho grande
admiração: Walter Smetak. O gênio da música microtonal que,
a partir de uma obra pautada pela originalidade, didática e
hermetismo, abriu caminho para toda a música moderna brasileira,
influenciando e ensinando diretamente figuras como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Rogério Duprat, Rogário Duarte, Walter Franco, Gereba, Marco Antônio Guimarães, entre outros.
Já
apreciador de sua música e trajetória (gravou dois discos:
“Smetak”, de 1973, produzido por Caetano e Roberto Santana, e
“Interregno”, com o Conjunto de Microtone, de 1980), em 2008,
conheci em São Paulo sua neta, Jessica, jornalista como eu com quem
estabeleci saudável amizade. No final do ano passado, no que
confirmei minha ida à Terra de Todos os Santos , prontamente me
comuniquei com ela para perguntar-lhe se ainda se mantinham em
exposição as obras de seu avô. Um agravável “sim” recebi como
resposta, indicando que o material se encontrava na Galeria Solar
Ferrão, em pleno Pelourinho – quadras adiante de onde Leocádia e
eu nos instalaríamos.
O
Solar em si já é uma atração: um casarão construído entre o fim
do século XVII e início do XVIII (tombado pelo IPHAN em 1938) sem
os rebuscamentos da arquitetura colonial mas exuberante em dimensões:
quatro andares com longas salas e um terraço, um subsolo e um pátio
traseiro. Este abrigava três ricas exposições: a de arte africana
(do colecionador italiano Claudio Masella), outra de arte sacra (de
acervo pertencente ao artista plástico e também colecionador baiano
Abelardo Rodrigues) e a terceira, a que eu tanto ansiava ver:
“Plásticas Sonoras”, de Smetak.
Anton
Walter Smetak, ou somente “Tak Tak” – como era apelidado por
Gil devido à sua postura séria de educador europeu, mas também
numa alusão onomatopeica à sua procedência da terra dos relógios
–, era violoncelista, compositor, inventor de instrumentos
musicais, escultor e escritor nascido em Zurique em 1913. Fugido da
2ª Guerra, veio parar no Brasil nos anos 30. Sua primeira cidade
foi, por essas coincidências da vida, a minha Porto Alegre, tendo
atuado como professor da recém-inaugurada faculdade de música da
Universidade Federal do RS. Também na capital gaúcha, formou o Trio
Schübert, juntamente com outros dois músicos de descendência
europeia como ele, grupo de câmara com o qual se apresentava na
antiga rádio Farroupilha. Trocando informações com sua neta tempo
atrás, soube que ela estava escrevendo um livro sobre o avô
(“Smetak: Som e Espírito”) e me prontifiquei a pesquisar alguma
coisa nos arquivos do Museu de Comunicação Social Hipólito da
Costa, aqui em Porto Alegre. Achei alguns anúncios
da programação da rádio em que o Trio Schübert se
apresentava em exemplares do jornal Correio do Povo de 1937. Embora
pequena, minha contribuição foi parar no livro como bem podem ver.
Porém,
como disse, minha contribuição foi pequena. Só podia, pois Smetak,
depois de uma passagem pelo Rio de Janeiro iniciada em 1941,
encontrou-se como cidadão e pessoa no destino seguinte: Salvador.
Lá, a partir de 1950, casou-se, formou família e estabeleceu
residência (até sua morte, em 1984). Profissionalmente, passou a
integrar a Orquestra Sinfônica da Universidade da Bahia, onde também
lecionava música. Em um período de forte impulso à cultura em
Salvador, artistas do teatro, cinema, dança, artes visuais e, claro,
música, surgiam de todas as partes incentivados pelos programas
públicos. E a ida de Smetak para lá, a convite do maestro alemão
Hans Joachim Koellheutter, foi de uma química inusitadamente
acertada.
Adaptado
ao clima, à cultura, ao misticismo e às gentes da Bahia, Smetak
achou na calorosa Salvador um terreno fértil para expandir sua carga
erudita a serviço de uma nova visão musical-espiritual. Volta-se
para o experimentalismo, numa pesquisa que chamava de “Iniciação
pelo Som”, sob o impacto de estudos realizados na Eubiose –
corrente teosófica dedicada à ciência da vida focada na evolução
humana, levando em conta os planos espirituais da mente. Passa a
investigar o silêncio (tal como fizera John Cage), o som (a exemplo
dos modernistas da vanguarda europeia) e as suas relações com o
homem (numa visão que trazia para reflexão a cultura milenar
oriental).
Na
sala/galpão que recebe da Universidade, já nos anos 60, monta uma
oficina de ideias e objetos. É quando, para encontrar esse “novo
som”, passa a criar instrumentos, intitulados, justamente, de
“Plásticas Sonoras”. Para construí-las, Smetak empregou
cabaças, madeira, cordas, tubos de PVC, latas e qualquer material
que estivesse a seu alcance. Particularmente, acho maravilhosas essas
composições plásticas de Smetak, uma vez que unem com muita
propriedade e conhecimento o equilíbrio físico e espiritual que o
autor buscava, com uma precisão digna de um relojoeiro suíço, a
uma brasilidade profunda pela utilização de materiais típicos da
natureza local com outros reciclados (olha aí a mentalidade
sustentável de Smetak 40 anos antes de isso virar moda).
Além
dessa fusão tão distinta e original entre velho e novo nundos, as
Plásticas Sonoras, engenhocas de utilização não apenas visual mas
prática, ainda me impressionam por outro motivo: o bom humor. Vindo
de um homem refugiado de sua terra-natal, desbravador de um país
distante do seu, tanto em quilômetros quanto em emotividade, e cuja
formação foi pautada na rigidez do ensino europeu do início do
século XIX, não seria de estranhar que essas obras transmitissem
certo grau de amargura ou secura. Pelo contrário. Smetak, eterno
subversor da arte, na Bahia, reinventou a si através da música. Ele
uniu os microtons (comuns na tradição musical de países orientais),
Stockhausen, Cage, Ives e Obuhov e seu arsenal bachiano às
sonoridades e harmonias folclóricas brasileiras, buscando nisso
produzir uma música que ampliasse as percepções humanas a caminho
de um autoconhecimento amplo da alma. Algo de um exotismo e
imparidade apenas reduzidos pela larga aplicabilidade pedagógica que
teve. As Plásticas Sonoras, assim, são uma extensão de sua música
e filosofia, o que fica evidente nos títulos das peças: “Mulher
faladora movida pelo vento”, “Mr. Play-Back”, “Caossonância”,
“Piston Cretino”. De um humor que muito tupiniquim “original”
não teria.
Se a
Tropicália mudou a música brasileira no final do século XIX,
reverenciando as dissonâncias agradáveis da bossa-nova e o legado
tonal dos sambistas antigos, foi o lado avant-garde aprendido
com Walter Smetak que deu lastro para a ligação da Tropicália com
o modernismo, concretismo, neoconstrutivismo e atonalismo. Não foi
a orquestração de George Martin nem o exemplo composicional
engenhoso de Lennon/McCartney (pelo menos, não apenas). É Smetak
que está fortemente nos arranjos de Duprat, na divisão harmônica
de Tom Zé, no ”canto-de-ruídos guturais” de Caetano (como
definiu Augusto de Campos), na ênfase minimalista do Uakati, no
atonalismo de Walter Franco, na aproximação Brasil-Japão de
“"Refazenda"-Refavela” de Gil. Este último, sabiamente como lhe é
de costume, bem definiu a amplitude da obra do mestre e irmão:
“Smetak é um mergulhador de excelente performance e
vários records de profundidade no oceano da Dúvida”. "Música dos Mendigos"- Walter Smetak
******
"Plásticas
Sonoras", de Walter Smetak
onde:Galeria Solar Ferrão (R. Gregório de Matos, 45, Pelourinho,
Salvador/BA)
quando:Sábados, domingos e feriados, das 12h às 17h