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segunda-feira, 13 de junho de 2016

Edu Lobo e Antonio Carlos Jobim - “Edu & Tom/Tom & Edu” (1981)




“Edu sabe música, orquestra,
arranja, escreve, rege,
 canta e toca violão e piano.
O Edu é um compositor fabuloso, formidável.”
Tom Jobim, sobre Edu Lobo


“Mais do que a alegria e o prazer deste trabalho,
 fica o orgulho de dividir alguns momentos da música
com o Brasileiro Antonio das águas de março,
do matita, do porto das caixas, do amparo, das luísas,
da sinfonia de Brasília, das saudades do Brasil.
O maior compositor da música popular
de todos os países.”
Edu Lobo, sobre Tom Jobim



Há momentos em que uma obra-prima surge do acaso. Não foi assim com o sonho em comum tido por Salvador Dali e Luís Buñuel na mesma noite e que os motivou a filmar “Um Cão Andaluz”? Ou o processo intuitivo de Jackson Pollock, que formava seus quadros com tintas de pura aleatoriedade? Pois em música acasos como estes também acontecem. Em 1981, Edu Lobo, cantor, compositor e arranjador, um dos mais criativos e respeitados artistas da música brasileira pós-Bossa Nova, estava de saída de sua então gravadora, a PolyGram. Como era de praxe, haveria de realizar um disco com a participação de vários artistas, como uma despedida festiva pelos anos de casa. Em cumplicidade com o produtor Aloysio de Oliveira, o primeiro a ser convidado sem pestanejarem foi Tom Jobim.

Num clima de admiração mútua, auxiliados pela direção não menos afetuosa e sábia de Aloysio, chamaram Tom para tocar piano em “Pra dizer adeus”, faixa de um dos primeiros discos de Edu, logo após esse ser descoberto por Vinícius de Moraes, no início dos anos 60. Tom o fez, mas não sem lançar contracantos, cantar alguns versos e ainda adicionar-lhe acordes, os quais passariam a partir dali a integrar a partitura da canção. Ou seja: chegou para uma participação e mudou a música para sempre. Ao final da gravação, visto que todos estavam felizes com o resultado e com a egrégora formada no estúdio, Tom pergunta: “Era só isso?”. Aloysio propôs, então, de modo a não desapontar o maestro, que se gravasse outra de Edu, desta vez, uma parceria com aquele que representava o elo entre os dois: Vinicius. Edu, claro, gostou da ideia.

Mandaram ver, então, “Canção do Amanhecer”, esta, do primeiro álbum de Edu, de 1965, dando à precoce parceria daquele jovem músico de 22 anos com o tarimbado e mítico poetinha uma versão amadurecida. A presença de Vinicius, como ele gostava de fazer com os amigos, mesmo que imaterial nesta ocasião só vinha a reforçar a afinidade entre Edu e Tom. Como no primeiro take, o resultado foi incrível novamente: sintonia pura, descontração e musicalidade aflorando. Quando termina, Tom capciosamente solta de novo a pergunta: “Era só isso?”. Aloysio, que conhecia bem o parceiro desde os anos 50 – época em que já compunham juntos clássicos como “Dindi” e “Inútil Paisagem” –, entendeu o recado e ligou para o executivo da gravadora. Estava claro que o “canto do cisne” de Edu Lobo na PolyGram não teria vários músicos convidados, mas apenas um: Antonio Carlos Jobim. O maior deles.

Com trabalhos solo recentemente lançados, ambos tinham poucas novidades em suas pautas. Uma das inéditas, entretanto, abre o lado A do LP: a graciosa “Ai quem me dera”, composição antiga de Tom em parceria com Marino Pinto até então guardada para uma ocasião especial. A ocasião surgiu. Sente-se o sabor dos primeiros temas da Bossa Nova, aquele mais carioca e gingado, com Tom e Edu cantando em uníssono com perfeição. É nítida a afinidade entre os dois. Outra de ânimo florescente é “Chovendo na Roseira”, composição instrumental de 1970 regravada por Elis Regina quatro anos depois com a participação de Tom e já com a letra lírico-ecológica do próprio autor. Aqui, esta valsa de cores tipicamente debussyanas (“Olha, que chuva boa, prazenteira/ Que vem molhar minha roseira/ Chuva boa, criadeira/ Que molha a terra, que enche o rio, que lava o céu/ Que traz o azul!”) recebe um tratamento harmônico de alto requinte. A voz de Edu se apropria de tal forma que parece um tema coescrito por ele.

Equilibrando as autorias – ora de um ora de outro com ou sem parceiros –, escolheram-se mais duas em que Tom assina letra e melodia. Uma delas é “Ângela”, das obras-primas do compositor. Tema da segunda fase da Bossa Nova presente no clássico disco “Matita Perê” (1973), a romântica e melancólica “Ângela” guarda traços da complexidade harmônica da música de Chopin. Ivan Lins, um dos ilustres aprendizes do “maestro soberano”, contou certa vez que esta é canção que ele gostaria de ter escrito – precisa dizer mais? A outra, igualmente lírica e impressionista, é “Luíza”, a segunda e última inédita do disco, das mais queridas do cancioneiro jobiniano e que abre o lado B do vinil. Composta recentemente por Tom para o tema de uma novela da Globo, de tão vigorosa, saiu neste álbum e ainda na trilha sonora da novela, ficando meses nos ouvidos dos brasileiros todos os dias sem que jamais tenha se desgastado. E que letra! “Rua/ Espada nua/ Boia no céu imensa e amarela/ Tão redonda a lua/ Como flutua/ Vem navegando o azul do firmamento/ E no silêncio lento/ Um trovador, cheio de estrelas/ Escuta agora a canção que eu fiz/ Pra te esquecer, Luiza...”.

Os parceiros de Tom e de Edu são de extrema importância no repertório afetivo escolhido pela dupla para este projeto quase acidental. É o caso de Chico Buarque. Assim como Vinicius, o autor de “Olhos nos Olhos” é outro que os liga musical e afetuosamente. Parceiro de Tom desde os anos 60, tivera a mão de Edu nos arranjos da trilha de sua peça/disco “Calabar/ChicoCanta”, em 1973. Mas, por incrível que pareça, toda a grande obra da parceria Chico-Edu, que hoje faz parte do inconsciente coletivo da música brasileira, veio somente depois de “Moto-contínuo”, esta, sim, a primeira dos dois, escrita naquele ano e lançada praticamente junto com a versão do álbum “Almanaque”, de Chico. Já na estreia da parceria, Chico se esmerava na letra, uma de suas melhores. Ao expressar em hipérboles a admiração intrínseca do homem pela figura feminina, lança, através de anáforas e epíforas (“Um homem pode...” e “se for por você”), versos da mais alta beleza poética: “Juntar o suco dos sonhos e encher um açude/ se for por você (...) Homem constrói sete usinas usando a energia/ que vem de você”. Ainda, Tom faz-se presente categoricamente, introduzindo neste samba cadenciado e denso ricos contracantos de seu piano e a voz em uníssono com Edu – com timbres muito parecidos, aliás.

Outros dois sambas melancólicos: “É Preciso Dizer Adeus”, de Tom e Vinicius (“É inútil fingir/ Não te quero enganar/ É preciso dizer adeus/ É melhor esquecer/ Sei que devo partir/ Só nos resta dizer adeus”), representando a reverência à parceria gênese de toda a geração da qual Edu pertence; e “Canto Triste”, mais uma dele com Vinicius, esta imortalizada, assim como “Chovendo...”, por Elis (“E nada existe mais em minha vida/ Como um carinho teu/ Como um silêncio teu/ Lembro um sorriso teu/ Tão triste”), fechando o disco de forma altamente melodiosa: só ao violão e a voz de seu autor.

Não sem antes, entretanto, registrarem a talvez melhor do disco: “Vento Bravo”. Faixa do obscuro e hoje cult “Missa Breve”, gravado por Edu em 1972, trata-se de uma composição feita com outro parceiro e amigo em comum com Tom: Paulo César Pinheiro. Em entrevista para o programa O Som do Vinil, do Canal Brasil, Edu comenta que não entendera bem porque Tom, que pedira para incluí-la no set-list, gostava tanto desta música. Parece, porém, evidente. A letra, com marcas da literatura regionalista – remetendo à prosa de Guimarães Rosa de “Sagarana” e a de Monteiro Lobato de “Urupês” –, confere estilisticamente com o que o próprio Pinheiro escrevera para Tom anos antes para a música "Matita Perê". As leis dos homens e da natureza, com emboscadas e perseguições, bem como a implacável ação do tempo, são marcas de ambas as obras. “Vento virador no clarão do mar/ Vem sem raça e cor, quem viver verá/ Vindo a viração vai se anunciar/ Na sua voragem, quem vai ficar/ Quando a palma verde se avermelhar/ É o vento bravo/ O vento bravo”, diz a letra, que narra a fuga de um escravo mata adentro. O refrão, melodicamente intrincado e encantador, ainda diz: “Como um sangue novo/ Como um grito no ar/ Correnteza de rio/ Que não vai se acalmar...”. Ao contrário da sinfônica peça de Tom, porém, traz uma melodia intensa baseada no som dos violeiros folclóricos do sertão. Remete ainda, no trítono do piano que lhe faz base, às trilhas de filmes e séries policiais norte-americanas dos anos 50/60, as quais Edu sempre soube adicionar à sua música com brilhantismo.

E como conjugar tanto talento, tanta sabedoria musical e sensibilidade artística e de tão vastos cancioneiros? Por incrível que pareça, nem sempre juntar isso resulta em boa coisa, pois se pode pecar para mais ou para menos. Em “Tom & Edu”, primeiro, a opção foi por uma estética limpa, enxuta. Nada de grandes bandas ou orquestra. Pretendeu-se, já que “só tinha de ser com você”, reproduzir o clima de admiração mútua. A ausência das cordas, que chegou a ser motivo de crítica à época do lançamento na “vira-latas” imprensa brasileira – que achava um desperdício dois regentes dispensarem a orquestração – é de um acerto categórico. Basicamente, ouve-se o piano de Tom e/ou de Edu, o violão de Paulo Jobim e Luiz Cláudio Ramos, o baixo dividido por Sérgio Barroso e Luiz Alves e apenas a bateria como percussão, tocada por Paulo Braga. Quando muito, o flugehorn impecável de Marcio Motarroyos, como em “Chovendo...” e “Vento...”. E, claro, o canto dos dois experientes artistas. A essência clássica de ambos, cujas musicalidades não à toa são parecidas, retraz naturalmente harmonias ao estilo de DebussyRavel, Bach e Villa-Lobos. Menos, para quem tem conteúdo, é sempre mais.

O segundo motivo de acerto do projeto é a presença de Aloysio como produtor. Parceiro dos dois de longa data, o ex-dono do selo mítico selo Elenco (pelo qual gravara e lançara inúmeros artistas fundamentais à MPB nos anos 60, entre os quais o próprio Edu Lobo) tinha a mão apurada nas mesas de som, conhecia com profundidade harmonia e composição, compartilhava-lhes do mesmo carinho e, principalmente, tinha maturidade para saber influir apenas no que devia. Afinal, quem ousaria mandar em Edu Lobo e Tom Jobim dentro de um estúdio? Tendo recentemente coordenado dois projetos de Tom semelhantes àquele (os discos com Miúcha de 1977 e 1981), Aloysio soube dar a arquitetura sonora certa às faixas.

Já mais satisfeito ao final das 10 gravações que acabava de ajudar a deixar para a história, Tom enaltece o pupilo: “Eu vos saúdo em nome de Heitor Villa-Lobos, teu avô e meu pai”. Edu, por sua vez, contou em entrevista que tem a felicidade de ter dito em vida a Tom de que este era o maior nome da música brasileira de todos os tempos, palavras que, segundo ele, emocionaram Tom. “De todos os arquitetos da música da música que conheço, Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim é, sem dúvida, o de traço mais amplo e perfeito”, pontuou o seguidor inconteste do maestro. Tanta identificação, tanta confluência entre os artistas, que somente o próprio Aloysio de Oliveira, no alto de sua sapiência, para saber definir: “Edu e Tom, Tom e Edu. E até, se você quiser, Tu e Edom”. Definitivamente, não foi por acidente que eles se juntaram para esse encontro, pois eram almas irmãs.

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FAIXAS:
1. Ai Quem Me Dera (Tom Jobim/Marino Pinto) - 2:13
2. Prá Dizer Adeus (Edu Lobo/Torquato Neto) - 4:41
3. Chovendo Na Roseira (Tom) - 3:24
4. Moto-contínuo (Chico Buarque/Edu) - 3:30
5. Ângela (Tom) - 3:10
6. Luíza (Tom) - 2:59
7. Canção Do Amanhecer (Edu/Vinicius De Moraes) - 3:30
8. Vento Bravo (Edu/Paulo César Pinheiro) - 4:16
9. É Preciso Dizer Adeus (Tom/Vinicius) - 4:18
10. Canto Triste (Edu/Vinicius) - 3:44

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OUÇA O DISCO





segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

“Chico: Artista Brasileiro”, de Miguel Faria Jr. (2015)



Estão sempre tentando pegar Chico Buarque. Acusações por apoio ao PT, pela não-defesa das biografias não-autorizadas, por trair a ex-mulher, por ser um tiozão que “pega” meninas, pela linhagem nobre dos Buarque de Holanda, por ser “esquerda caviar”, por usar a fama como músico para vender-se como escritor. Até culpá-lo por ter olhos azuis já ouvi algo do tipo. Parece-me salutar e pertinente que, justamente no momento em que se lança o já sucesso de bilheteria “Chico: Artista Brasileiro”, de Miguel Faria Jr., aconteça mais um episódio do tipo: a tão noticiada discussão do artista com um passante cujo motivo junta às imbecilidades mencionadas acima mais uma delas: a de Chico ter um apartamento em Paris (!...).

Essa manifestação raivosa e incontida dessa direita burguesa, invejosa e preconceituosa – que, como diz Eric Nepomuceno, saiu do armário, e isso desde os protestos de 2013 –, é mais um dos casos em que se tenta enquadrar Chico e ele sai, se não ileso, íntegro. O filme passa isso: a integridade de um artista cujas bases e conceitos estão profundamente ligadas ao Brasil mais expressivo, seja em suas belezas ou moléstias. Com uma narrativa que intercala depoimentos de amigos e admiradores com as do próprio Chico de dentro de seu maravilhoso AP no Alto Leblon (mais longas que as falas dos outros), traz ricas imagens de arquivo entre fotos e vídeos, algumas surpreendentes pois muito raras, como um trecho da histórica apresentação de “Cotidiano” dele com Caetano Veloso no Teatro Castro Alves (presente no disco ao vivo da dupla de 1972). Igualmente surpresa é o depoimento de Vinícius de Moraes – ao qual eu pelo menos não conhecia – dizendo que o amigo era alguém acima da média.

Chico em um dos depoimentos do filme.
O recorte do documentário é muito bem pensado, pois delimita tanto a quantidade de entrevistados quanto a função narrativa dos mesmos. E olha que teria muita gente interessante para falar sobre Chico! A única parente a depor, por exemplo, é a irmã Miúcha. E chega por aí. Nada de filhos, sobrinhos, genros, outros irmãos. No máximo, os netos, que aparecem tocando com ele sem entrevistas. Afinal, o contexto familiar e a importância da hereditariedade já estão devidamente representados e inseridos. De Marieta Severo – provavelmente convidada e que teve a sensibilidade de não expor a ela e nem ao ex-marido, mas que autorizou que lhe referissem – os próprios registros documentais a trazem naturalmente, seja no encontro com Chico, nos anos 60 (contado pelo saudoso Hugo Carvana), seja nos vídeos e fotos antigos. Ela também é indiretamente mencionada quando Chico fala com franqueza e descomplicarão sobre a solidão dos tempos atuais, embora revele que jamais pensara viver sozinho (“Saí de um casamento de anos achando que virando a esquina ia me casar de novo”, confessa).

Os assuntos, entremeados entre si mas recorrentemente redirecionados à questão da família, são profundos, mas conduzidos pela serenidade de Chico. Ele passa a impressão de literalmente não dever nada a ninguém. Ou melhor, deve, mas a si mesmo, uma vez que o próprio diz que sempre cai na encruzilhada de não se repetir, por mais consagrado que seja aquilo que realizou até então. O negócio dele é se experimentar, aprender, inovar-se – um dos motivos pelos quais caiu tão de cabeça na literatura dos anos 90 para cá. Entra-se, igualmente, em assuntos como política, censura, fracasso, sucesso, memória, Brasil, morte, futebol e paixões. Tudo dito por ele e seus parceiros (Edu LoboTom JobimMaria BethâniaRuy Guerra, entre outros) com leveza e sinceridade, sem superdimensionar nada, porém sabendo-se da grandeza da vida e obra do autor de incontáveis clássicos do cancioneiro brasileiro como “Olhos nos Olhos”, “Cálice” e “Roda Viva”.

Outro elemento interessante do filme, característico dos documentários de Faria Jr., são as apresentações em estúdio com músicas do autor. Além de muito bem cenografadas e iluminadas, trazem duas com o próprio Chico cantando (“Sinhá”, no começo, e “Paratodos”, no fim) e outras com artistas convidados, como Milton Nascimento, Carminho, Adriana Calcanhoto e Mart’nália. Esses momentos musicais, que provocam obrigatoriamente pausas no fluxo narrativo, não o quebram, entretanto. O que para muitos foi danoso no documentário que o diretor fizera sobre o poetinha (“Vinicius”, 2005), pois incorria justamente nessa instabilidade (quando o expectador estava engrenando na história, vinha uma declamação duvidosa da Camila Morgado pra chatear), em “Chico...” funciona bem, pois os números se integram de algum modo à narrativa. É o que acontece quando Chico está falando sobre a complexidade inconsciente de alguns temas que compôs e, na sequência, vem, na voz de Mônica Salmaso, “Mar e Lua”, canção que explora temas espinhosos como homossexualismo e suicídio. Afora isso, todas as apresentações são muito boas: Milton e a portuguesa Carminho juntos (um arraso em “Sobre todas as coisas”); Calcanhoto e Mart’nália, em um dueto ótimo (“Biscate”); Ney Matogrosso (“As vitrines”), impecável como de costume; Moyseis Marques (“Mambembe”), lindo, uma revelação para mim; e até o “pagodeiro” Péricles (“Estação Derradeira”) mandando bem sobre o especial arranjo do diretor musical do filme e do próprio Chico, Luiz Cláudio Ramos.

Até Péricles se saiu bem interpretando Chico.
Porém, o que realmente conduz todo o filme – sem que o expectador perceba isso de início – é a busca pela essência a que Chico se impõe. Tendo como mote seu último romance, "O Irmão Alemão", no qual ele como protagonista vai à procura das pistas de um filho que seu pai tivera na Alemanha nos anos 30 antes de voltar ao Brasil e se casar com sua mãe, Chico se mostra, chegado à terceira idade, com a consciência daquilo que lhe pertence como indivíduo. Nisso, claro, ao longo do filme, vão se acessando questões da sua hereditariedade e, principalmente, as que se referem a seu pai, como a convivência, a distância emocional e a influência (positiva e negativa) que este exercera sobre ele como pessoa e artista.

A caça a essa “nova velha” história do irmão da Europa, uma reconstrução tão hipotética quanto passivelmente improvável (haja vista que, jogado na aventura da descoberta, poderia não achar nada significativo que lhe fornecesse nexo suficiente), dá um toque muito especial ao longa. Tal como é comum mais na ficção, Faria Jr. (um bom ficcionista) joga com os três níveis básicos do cinema: interno, externo e espectatorial, uma vez que esse elemento, a figura/ideia do irmão (o qual podemos classificar como “interno”) é desconhecido tanto do “protagonista” (Chico, no caso), quanto do espectador, configurando-se num “gancho” gerador de curiosidade e suspense a todos, dentro e fora da tela. Como o grande documentarista Eduardo Coutinho tão bem fizera no clássico “Cabra Marcado para Morrer” (1984), em que a busca aos atores de seu filme interrompido nos anos de Ditadura Militar serve de motivo para uma ressignificação metalinguística cuja aleatoriedade imputa-lhe o teor crítico almejado.

Saborosamente biográfico, “Chico...” já seria bom por vários outros fatores – as canções, as histórias engraçadas, a reverência dos colegas e amigos, as identificações que se têm com alguém tão admirável como ele –, mas o “elemento-irmão” é a cereja do bolo. Mal comparando, traz uma sensação semelhante a que tive com o desfecho que Martin Scorsese forjou em “No Direction Home”, sobre Bob Dylan (2005), naquela cena em que se esquece a câmera ligada apontando para o teto no fatídico show no Manchester Free Trade Hall, em 1966. Qualquer ser minimamente normal excluiria aquilo como sendo um erro de gravação. Scorsese, não: com atenção e sensibilidade, resgatou-a e compôs com aquilo o significado mais expressivo e simbólico do filme.

Em respeito aos que ainda não assistiram a “Chico...”, claro, não vou contar exatamente a que me refiro para não estragar a surpresa. Independente disso, contudo, só o fato de contar a história de alguém vivo e em atividade, tanto quanto o de expô-la com sensibilidade e critério, já vale a sessão. O que se confirma é a coerência da obra de Chico, sempre afinada com seu íntimo e consciência, seja na música, no teatro, no cinema ou na literatura. Uma dignidade admirável jamais abalável por um mero ataque verbal nas calçadas da vida. Chico Buarque, o grande artista brasileiro e mundial, é muito maior que essas más-resoluções do brasileiro ignorante e “vira-lata”, o que, sem precisar forçar, o filme deixa muito claro.


trailer oficial "Chico: Um Artista Brasileiro"



quinta-feira, 10 de junho de 2021

Protagonistas coadjuvantes

Michael dando um confere bem de perto no que seu
mestre Stevie Wonder faz em estúdio, nos anos 70
Não é incomum artistas da música que, mesmo sendo astros, têm por hábito participarem de projetos de outros, seja tocando em gravações, shows ou como convidados. George Harrison, por exemplo, muito tocou sua slide guitar em discos dos amigos John Lennon e Ringo Starr. Eric Clapton, igualmente, além da carreira solo e de bandas próprias como Cream e Yardbirds, também emprestou sua guitarra para Beatles, Yoko Ono, Tina Turner, Phil Collins e vários outros. Como eles, diversos: Brian Eno, Robert Wyatt, Flea, Eddie Van Halen ou brasileiros como Herbert Vianna, Gilberto Gil, Frejat e João Donato. Todos comumente contribuem com seus instrumentos e/ou voz na música que não somente a deles próprios.

Há também aqueles que dificilmente se supõe que fariam algo fora de seus trabalhos pelos quais são mais conhecidos. Mas vasculhando com atenção as fichas técnicas dos discos, acha-se. Vez ou outra se encontra um artista que geralmente é visto apenas como protagonista atuando, deliberadamente, como um coadjuvante. E não estamos nos referindo àqueles principiantes que, posteriormente, tornar-se-iam ilustres, caso de Buddy Guy em “Folk Singer”, de Muddy Waters, de 1959, na primeira gravação do jovem Guy, então com 18 anos, com o veterano bluesman, ou Jimi Hendrix nas gravações de 1964 com a Isley Brothers anos antes de transformar-se num ícone do rock.

Aqui, referimo-nos àqueles que, já consagrados, abriram mão de seu status em nome de algo que acreditavam seja para um disco, um projeto, uma música ou um show. São momentos em que se vê verdadeiros mitos descerem de seus altares para, humildemente, colaborarem com a música alheia, seja por admiração, amizade, sentimento de dívida ou o que quer que explique. O fato é que esses “protagonistas coadjuvantes”, mesmo que estejam escondidos ou somente encontráveis nas miúdas letras da ficha técnica, abrilhantam com seus talentos peculiares a obra de outros.


Robert Smith para Siouxsie & The Banshees

Os anos 80 foram de inquietude para Robert Smith, líder da The Cure. Sua banda já era uma das mais celebradas do pós-punk britânico em 1983 quando ele, que havia lançado um ano anos o disco único “Blue Sunshine”, da The Glove, projeto em parceria com Steven Severin, decide dar um tempo com o grupo. Mas para quem estava a pleno naquela época, Bob “descansou carregando pedra”, como diz o ditado. Ele decide fazer parte da Siouxsie & The Banshees, banda coirmã da The Cure, mas estritamente como integrante. Com os vocais e o palco já devidamente preenchidos por Siouxsie, Robert assume as guitarras e une-se a Severin (baixo) e Budgie (bateria) para compor a melhor formação que a Siouxsie & The Banshees já teve. Não deu outra: dois discos, duas pérolas, para muitos os melhores da banda: “Hyenna” e o ao vivo “Nocturne”




Miles Davis
para Cannonball Adderley
Mais do que na música pop, é comum no jazz grandes astros e band leaders tocarem na banda de colegas. Isso não funciona, entretanto, para Miles Davis. O talvez mais exclusivo músico do jazz havia tocado no início da carreira para Sarah Vaughan, mas depois jamais fez nada que não fosse tão-somente seu. Até que, com jeitinho, em 1958, o amigo Cannonball Adderley convida-o para participar das gravações de um disco que ele estava por lançar e no qual teria ainda Art Blakey, na bateria, Hank Jones, no piano, e Sam Jones, no baixo. Uma sessão de gravação apenas, só cinco números, algumas horinhas de estúdio com Rudy Van Gelder na mesa, engenheiro com quem Miles tanto estava acostumado a trabalhar. "Não vai custar nada. Diz, que sim, diz que sim!" Tanto foi, que Miles topou, e saiu "Somethin' Else", aquele que é o disco que antecipa a obra-prima “Kind of Blue”, em que, reassumido o posto de front man, aí é Miles que conta com o parceiro saxofonista na banda. Tudo de volta ao normal.


Paul McCartney para Foo Fighters
É conhecida a versatilidade de Paul McCartney. Multi-instrumentista, ele é capaz de tocar, em apenas um show, vários instrumentos ou gravar um disco inteirinho sozinho sem precisar de mais ninguém no estúdio. Quem também fez isso foi Dave Grohl, líder da Foo Fighters, que, no álbum de estreia da banda, em 1995, toca não apenas a bateria, que era seu instrumento na Nirvana, como todos os outros. A amizade e talvez essa semelhança tenham feito com que chamasse o eterno beatle para uma empreitada 12 anos depois. Fã de Macca, ele convidou o veterano músico para gravar para ele não a guitarra, o piano ou a voz. Isso, muita gente já havia feito. Ele pediu para Paul tocar justamente bateria. A “brincadeira” deu super certo, como se vê na canção "Sunday Rain" presente no disco "Concrete And Gold".


Michael Jackson para Stevie Wonder
É uma música apenas, mas considerando o tamanho deste “coadjuvante”, vale por um disco inteiro. A linda e melodiosa “All I Do”, que Stevie Wonder gravaria em seu “Hotter than July”, de 1980, conta com ninguém menos que Michael Jackson nos vocais. E não se trata da voz principal, e sim do backing vocals! Surpreende ainda mais que o Rei do Pop já havia lançado à época o megassucesso “Off the Wall”, de um ano antes, com o qual revolucionaria a música pop e que quebrara os paradigmas de vendas da música negra no mundo. Mas a devoção de Michael para com Stevie era tamanha, que ele nem se importou em fazer um papel secundário. Para quem era conhecido pela habilidade de canto e arranjos de voz, no entanto, o que seria uma mera participação contribui sobremaneira para a beleza melódica da canção.



David Bowie
 para Iggy Pop
Em meados dos anos 70, Iggy Pop e David Bowie estavam bastante próximos. Bowie havia chamado o amigo para uma temporada em Berlim, na Alemanha, onde desfrutariam do moderno estúdio Hansa para erigir alguns projetos, dentre estes, “The Idiot”, no qual dividem todas as autorias e gravações. O período foi tão fértil, que rendeu também uma turnê, registrada no álbum ao vivo “TV Eye Live 1977". Acontece que, no palco, não dá para apenas os dois se resolverem com os instrumentos. Foi então que chamaram os Sales Brothers para o baixo e bateria, Ricky Gardiner, para a guitarra, e... quem assumiria os teclados? Ah, chama aquele cara ali que tá de bobeira. O próprio David Bowie. Quando se escuta as versões ao vivo de “Lust for Life”, “I Wanna Be Your Dog” e “Funtime”, acreditem: os teclados que se ouvem são do Camaleão do Rock. 



Phlip Glass
 para Polyrock
O cara já tinha composto de um tudo: ópera, concerto, sinfonia, madrigal, trilha sonora, sonata, estudos. Faltava uma coisa: música pop. Próximo do músico e produtor Kurt Monkacsi, o gênio da vanguarda californiana Philip Glass “apadrinhou” junto com este a new wave art rock Polyrock. Dizem nos bastidores, que o cérebro da banda é Glass e não só os irmãos Billy e Tommy Robertson tamanha é a identificação com a música minimalista do autor de "Einsten on the Beach". Seja por grandeza, timidez ou algum problema legal, o fato é que isso não consta nos créditos. O que consta, sim, é a participação do maestro tocando piano e teclados nos dois discos do grupo, “Polyrock”, de 1980, e “Changing Hearts”, de um ano depois, no qual, inclusive, assina oficialmente o arranjo de cordas da faixa-título. Daqueles raros momentos em que a música de vanguarda se encontra com o rock.





João Gilberto para Rita Lee
Se hoje a participação de João Gilberto tocando violão para Elizeth Cardoso em duas faixas de “Canção do Amor Demais”, de 1958, é considerado o pontapé inicial para o movimento da bossa nova, àquela época o gênio baiano era apenas um músico iniciante ao qual não se havia ouvido ainda toda sua arquitetura sonora de instrumento, voz e harmonia. 24 anos depois, já um mito, João dificilmente repetia uma ação como aquela do passado. Quisessem tocar com ele, ele que convidava. Exceção feita nos anos 80 para sua então esposa, Miúcha (e somente o violão), mas especialmente para Rita Lee. Admirador confesso da Rainha do Rock Brasileiro, João topou o convite de gravar ele, seu violão e sua atmosfera única a faixa “Brasil com S”, do disco “Rita Lee & Roberto de Carvalho”, autoria dos dois. Pode-se dizer que, como todo o cancioneiro de João, é mais uma obra-prima, porém a única em que põe sua voz à serviço de um outro artista fora da sua discografia. Privilégio.


Daniel Rodrigues

terça-feira, 7 de junho de 2011

Antônio Carlos Jobim - "Urubu" (1976)



" Jereba é urubu importante como, aliás, todo urubu. Mas entre eles, urubus, observam-se prioridades. E esse um é o que chega primeiro no olho da rês. Sem privilégios. Provador de venenos, sua prioridade é o risco(...)"
Tom Jobim (trecho do texto da contracapa do disco)


Já consagrado, o maestro Antônio Carlos Jobim, embrenhava-se a partir do disco “Matita Perê” de 1973, por caminhos pouco explorados por sua obra, colorindo-a mais ainda de verde e amarelo. Não que seu trabalho, mesmo embasado no erudito e recheado de jazz não fosse legitimamente brasileiro; suas influências, suas cadências e sua levada indesmentivelemente sambista não deixam margem de dúvida, mas a partir daquele momento e especialmente com “Urubu” de 1976, Tom agregava à sua música elementos da natureza, da fauna e flora brasileiras, paisagens, tradições, cânticos regionais e instrumentos típicos. Provas disso são a gostosa “Correnteza” com seu jorro de frescor; a sutil sugestão de integração homem-natureza de “Arquitetura de Morar”; a evocação (meramente sonora) de paisagens em "Saudades do Brazil"; e sobremaneira a espetacular “O Boto” com sua introdução de berimbau que dá sequencia a um arranjo que imita natureza, incrementado por inserções de apitos e sons de pássaros, e versando sobre lendas e contos brasileiros.
Mas o disco não se resume a estas recentes brasilidades de Tom e traz canções mais tradicionais dentro de seu estilo e discografia como a romântica “Lígia”, a tristonha “Ângela”, o valseado forte de ”Valse” do filho Paulo Jobim e a intensa e dramática “O Homem” que encerra a obra.
Com arranjos de Claus Ogerman e acompanhamentos de sua orquestra, escolhidos pelo próprio Tom, “Urubu” mostra um compositor maduro e completamente senhor de si, brincando livremente com todo seu talento e técnica produzindo uma obra única e admirável.
Álbum para se ter me LP. Disco com lado A e lado B: o primeiro todo com os vocais roucos e característicos do mestre Tom, incluindo uma participação de Miúcha em "O Boto"; e o lado 2 somente com temas orquestrados instrumentais extemamente refinados e sofisticados.
Obra de arte!
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FAIXAS:

1- Bôto (Porpoise)
Antonio Carlos Jobim / Jararaca
2- Lígia
Antonio Carlos Jobim
3- Correnteza (The Stream)
Antonio Carlos Jobim / Luiz Bonfá
4- Ângela
Antonio Carlos Jobim
5- Saudade do Brazil
Antonio Carlos Jobim
6- Valse
Paulo Jobim
7- Arquitetura de morar (Architecture to live)
Antonio Carlos Jobim
8- O Homem (Man)
Antonio Carlos Jobim
 
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Ouça:
Tom Jobim Urubu




Cly Reis

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

João Gilberto - "João Gilberto" (1973)



“Melhor do que o silêncio, só João.”
Caetano Veloso



"João Gilberto", de 1973, não é tão importante quanto “Getz/Gilberto” (1964), obra-prima e definitiva difusora da bossa nova para o mundo; não sustenta a idolatria e o pioneirismo de “Chega de Saudade” (1958), precursor de todo o movimento e referência a TODOS os artistas de MPB a partir de então; nem é tão clássico quanto “Amoroso” (1977), cujo repertório escolhido a dedo traz orquestrações que se harmonizam à voz e ao violão com assombroso requinte. Mas “João Gilberto” é, certamente, o mais João Gilberto dos João Gilberto. Mínimo, detalhista, preciso, econômico, delicado. Perfeito.
De fato, é difícil apontar apenas um disco de João como fundamental. Sua obra é um verdadeiro evangelho de toda a música popular brasileira moderna. E isso se reafirma a cada esporádica gravação que faz. Seu estilo revisita toda a tradição do samba, de Nazareth ao batuque do morro. Moderno e tradicional ao mesmo tempo, o modo de cantar de João passeia com naturalidade de Orlando Silva a Chet Baker, passando por Mário Reis, Carlos Gardel, Vicente Celestino, Cartola, Bola de Nieve e Elizeth Cardoso num lance. Isso tudo aliado a uma técnica inovadora de tocar e, mais do que isso, de estruturar a melodia.
Até o advento da bossa nova, as notas dissonantes nunca haviam sido empregadas em música popular em nenhum lugar do mundo com tamanha exatidão e consciência e em sintonia perfeita (mesmo quando “fora” do compasso, coisa comum em João) como as que consegue extrair de seu violão. Toda essa gama de referências poderia muito bem virar uma salada sonora ininteligível; mas nas mãos e no gogó dele se cristalizaram no mínimo, no volume baixo e apenas audível, no controle absoluto da voz e dos silêncios. Num acorde tão bem elaborado e executado que vale por uma escola de samba inteira.
O que dizer, então, do álbum? Para começar, nada mais, nada menos, talvez a mais bela gravação da mais bela música já composta nesses pagos tupiniquins: “Águas de Março”, de  Tom Jobim .
Já está ali a tônica do disco: voz e violão perfeitamente modulados – a ponto de se escutar os trastes do violão, a respiração e a umidade da língua – acompanhados de uma econômica percussão. Nada mais (e precisa?). A harmonia feita sobre esta melodia indefectível é de uma beleza tamanha que chega a me fugir à compreensão. Faz-me lembrar o que o fã incondicional Caetano Veloso  diz sobre o ídolo: “ninguém consegue mudar tanto mudando tão pouco”. É, de fato, complexo e mínimo como um traçado de Niemeyer, como uma remoinhante de Van Gogh, como um solo de  Miles Davis .
Na sequência, “Undiú”, das raras composições do próprio João e uma de suas mais inspiradas. Trata-se de um samba-de-roda meio baião Gonzaga, meio valsa minimalista, meio canto de pescadores a la Caymmi, em que João articula, com uma afinação incrível, alguns fonemas sem sentido sintático, mas repletos de sentido melódico. Em seguida, o baiano verte outro clássico da MPB. Ou melhor: o reelabora. “Na Baixa do Sapateiro”, de Ary Barroso, vira uma peça instrumental tão bem arranjada e executada que sua partitura poderia muito bem servir como o 13º Estudo para Violão de Villa-Lobos.
Em “Avarandado” e “Eu Vim da Bahia”, dos então “novos baianos” Caetano Veloso e Gilberto Gil , respectivamente, o “velho baiano” tem a coragem de gravar os amigos conterrâneos recém retornados do exílio – ou seja, ainda sob vigília pelo governo militar. Mas João nem quis saber. E as duas músicas são lindas: “Avarandado”, brejeira e apaixonada, e “Eu vim...”, aquele samba radiante e colorido cheio de África-Brasil por todas as notas como só Gil sabe fazer.
Entre as que mais escuto estão “Falsa Baiana” e “Eu Quero um Samba”, tomadas de “requebros e maneiras”, de um swing pleno e natural. Aí vem “Valsa” ou “Bebel” ou “Como São Lindos os Youguis”, outra de autoria de João composta para a filha, a hoje mundialmente conhecida Bebel Gilberto, à época com 6 anos. É uma bela “valsa de ninar”, sem letra, só cantarolada. Imagino que os “Youguis” do subtítulo deviam fazer muito sentido para aquela criança (tanto que os considerava “lindos”). Mas que privilégio ser ninada com uma maravilha dessas, hein? Só podia virar cantora.
A triste “É Preciso Perdoar” e o divertido samba-crônica “Izaura”, a única em que divide os vocais – o que o fez muito bem com Miúcha, mãe de Bebel e então esposa –, fecham este disco inigualável dentro da música brasileira por sua simplicidade e coesão. Seria ridículo dizer que aqui João Gilberto atinge a maturidade musical, pois se trata de um artista que já nasceu maduro. Mas faz sentido pensar que, nesses idos, início dos 70, a bossa nova teve tempo de ser criada, exportada e assimilada por tropicalistas e outrem, a ponto de suas notas dissonantes se integrarem ao som dos imbecis. Tom, Vinícius e ele já haviam entrado para a história pela criação de um estilo musical tão rico que somente meia dúzia de jazzistas, roqueiros e eruditos da vanguarda conseguiram tal feito no século XX. Então, era hora de pegar o banquinho, o violão, aquele amor e 10 canções selecionadas com primor como João sempre soube fazer. Tudo isso para quê? Para ensinar ao mundo como se ouve o silêncio.

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FAIXAS:
1 - "Águas de Março" (Tom Jobim) – 5:23
2 - "Undiú" (João Gilberto) – 6:37
3 - "Na Baixa do Sapateiro" (Ary Barroso) – 4:43
4 - "Avarandado" (Caetano Veloso) – 4:29
5 - "Falsa Baiana" (Geraldo Pereira) – 3:45
6 - "Eu Quero um Samba" (Janet de Almeida, Haroldo Barbosa) – 4:46
7 - "Eu Vim da Bahia" (Gilberto Gil) – 5:52
8 - "Valsa (Como são Lindos os Youguis)" (João Gilberto) – 3:19
9 - "É Preciso Perdoar" (Alcivando Luz, Carlos Coqueijo) – 5:08
10 - "Izaura" (Roberto Roberti, Herivelto Martins) – 5:28

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Ouça:
João Gilberto 1973