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quinta-feira, 29 de junho de 2017

Morrissey - "Your Arsenal" (1992)





"['I Know It's Gonna Happen Someday' é]
Morrissey imitando Bowie."
David Bowie



Não, aquele topete não é por acaso. Fã de nomes como Elvis e James Dean, e apreciador da cultura dos anos 50 e 60, Morrissey sempre deixou transparecer essa predileção, desde a época dos Smiths com capas de discos como a de "The World Won't Listen" na qual um grupo de jovens ao estilo rockabilly aparece meio de costas na capa, nas de singles como o de "Bigmouth Strikes Again" na qual James Dean aparece montado em uma lambreta, ou do single "Shoplifters of the World Unite"  com Elvis Presley, e em músicas  como "Rusholme Ruffians", pra citar um bom exemplo, uma vez que esta , diretamente inspirada no Rei do Rock, ganhou inclusive na versão ao vivo do disco "Rank", um medley de introdução com "(Marie's the Name) His Latest Fame", tal a semelhança entre as duas. 
Embora seus discos solo tivessem trabalhos de produção bem variados, de certa forma o espírito rock'roll sessentista sempre esteve intrínsecamente presente nos trabalhos, fosse em seus astros decadentes, nas brigas de gangues ou nos garotos rebeldes. Era o universo, os personagens, "o mundo de Morrissey".
E essa veia rock'roll aparece com força mesmo é no terceiro disco do cantor. Em "Your Arsenal", Moz convocava uma gangue de jovens topetudos e carregando no rockabilly revitalizava seu som e reoxigenava sua trajetória naquele momento.
Pra não deixar dúvida das intenções, já sai chamando de cara com a espetacular  "You're Gonna Need Someone on Your Side" um rockabilly invocado, distorcido e acelerado de riff minimalista que destila todo o habitual rancor de Morrissey, "Day or night/ There's no diference/ You're gonna need  someone on your side" ("Dia ou noite, não faz diferença/ Você vai precisar de alguém a seu lado").
"Glamorous Glue" é  um típico glam-rock em uma das tantas referências, diretas ou indiretas a David Bowie no disco. Não  por acaso, uma vez que "Your Arsenal" fora produzido por Mick Ronson, guitarrista do Camaleão na época  do clássico ht"Ziggy Stardust". "We Let You Know" surge como uma balada acústica e, entre ruídos  de multidão, vai crescendo até explodir num final grandioso, numa das grandes interpretações  de Morrissey no disco.
A polêmica "The National Front of Disco", salvo sua, talvez, infeliz referência à Frente Nacional, que custou a Morrissey acusações  de racismo e xenofobia, é  uma baita duma música! Um pop rock tão delicioso e empolgante que faz perdoar qualquer equívoco involuntário deste grande letrista.
Não  menos deliciosa é  "Certain People I Know", outro rock com cara de anos 60, desta vez com uma pegada um pouco mais country.
"We Hate When Our Friends Become Successfull", o grande hit do disco e um dos maiores da carreira do cantor, talvez tenha um dos melhores refrões que eu já  tenha escutado na vida, apenas com a risada de Morrissey soando mais sarcástica  do que nunca, no que muitos dizem ser um deboche ao, até então, fracasso da carreira solo do ex-parceiro de Smiths, Johnny Marr.
Moz banca um Roberto Carlos e homenageia os gordinhos na adorável "You're The One For Me, Fatty", que, brincadeiras à  parte só  faz repetir a atenção que o artista sempre  dedicou aos menos lembrados.
As duas baladas que se seguem, "Seasick, Yet Still  Docked" e "I Know It's Gonna Happen Someday" são bastante parecidas embora esta última seja bastante superior com uma carga emotiva impressionante numa interpretação extremamente intensa de Morrissey, assumidamente  muito inspirada nas baladas de David Bowie, terminando inclusive aos acordes de "Rock'n Roll Suicide".
Mais uma peça  carregada de rock, "Tomorrow", se encarrega de botar ponto final em tudo com destaque para o baixo de Boz Boorer, de certa forma, grande impulsionador da tendência roqueira daquele momento da carreira de Morrissey.
Morrissey com "Your Arsenal" honrava o topete e fazia a alegria dos fãs mais afeitos ao seu lado rock. Com uma discografia  idolatrada, embora nem sempre muito inspirada, "Your Arsenal" era e continua sendo um dos trabalhos  mais coesos de sua carreia e para muitos, o melhor disco de sua história sem o parceiro Johnny Marr. Morrissey abria seu arsenal e mostrava armas que não vinham sendo usadas com a devida ênfase. O resultado foi um balaço.

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FAIXAS:
  1. "You're Gonna Need Someone on Your Side"
  2. "Glamorous Glue"
  3. "We'll Let You Know"
  4. "The National Front Disco"
  5. "Certain People I Know"
  6. "We Hate It When Our Friends Become Successful"
  7. "You're the One for Me, Fatty"
  8. "Seasick, Yet Still Docked"
  9. "I Know It's Gonna Happen Someday"
  10. "Tomorrow"

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Ouça:
Morrissey - Your Arsenal



Cly Reis

terça-feira, 5 de março de 2013

Dossiê ÁLBUNS FUNDAMENTAIS


E chegamos ao ducentésimo Álbum Fundamental aqui no clyblog .

Quem diria, não?

Quando comecei com isso ficava, exatamente, me perguntando até quantas publicações iria e hoje, pelo que eu vejo, pelos grandes discos que ainda há por destacar, acredito que essa brincadeira ainda possa ir um tanto longe.

Nesse intervalo do A.F. 100 até aqui, além, é claro, de todas as obras que foram incluídas na seção, tivemos o acréscimo de novos colaboradores que só fizeram enriquecer e abrilhantar nosso blog. Somando-se ao Daniel Rodrigues, Edu Wollf , Lucio Agacê e José Júnior, figurinhas carimbadas por essas bandas, passaram a nos brindar com seus conhecimentos e opiniões meu amigo Christian Ordoque e a querida Michele Santos, isso sem falar nas participações especiais de Guilherme Liedke, no número de Natal e de Roberto Freitas, nosso Morrissey cover no último post, o de número 200.

Fazendo uma pequena retrospectiva, desde a primeira publicação na seção, os ‘campeões’ de ÁLBUNS FUNDAMENTAIS agora são 5, todos eles com 3 discos destacados: os Beatles, os Rolling Stones, Miles Davis , Pink Floyd e David Bowie , já com 2 resenhas agora aparecem muitos, mas no caso dos brasileiros especificamente vale destacar que os únicos que tem um bicampeonato são Legião Urbana, Titãs, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Jorge Ben, Engenheiros do Hawaii e João Gilberto, sendo um deles com o músico americano Stan Getz. A propósito de parcerias como esta de Getz/Gilberto, no que diz respeito à nacionalidade, fica às vezes um pouco difícil estabelecer a origem do disco ou da banda. Não só por essa questão de parceiros mas muitas vezes também pelo fato do líder da banda ser de um lugar e o resto do time de outro, de cada um dos integrantes ser de um canto do mundo ou coisas do tipo. Neste ínterim, nem sempre adotei o mesmo critério para identificar o país de um disco/artista, como no caso do Jimmi Hendrix Experience, banda inglesa do guitarrista norte-americano, em que preferi escolher a importância do membro principal que dá inclusive nome ao projeto; ou do Talking Heads, banda americana com vocalista escocês, David Byrne, que por mais que fosse a cabeça pensante do grupo, não se sobrepunha ao fato da banda ser uma das mais importantes do cenário nova-iorquino. Assim, analisando desta forma e fazendo o levantamento, artistas (bandas/cantores) norte-americanos apareceram por 73 vezes nos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS, os ingleses vem em segundo com 53 aparições e os brasileiros em, 3º pintaram 36 vezes por aqui.
Como curiosidade, embora aqueles cinco destacados anteriormente sejam os que têm mais álbuns apontados na lista, o artista que mais apareceu em álbuns diferentes foi, incrivelmente, Robert Smith do The Cure, por 4 vezes, pintando nos dois da própria banda ("Disintegration"  e "Pornography"), em um tocando com Siouxsie and the Banshees  e outra vez no seu projeto paralelo do início dos anos ‘80, o The Glove. Também aparece pipocando por aqui e por ali John Lydon, duas vezes com o PIL  e uma com os Pistols; Morrissey, duas vezes com os Smiths e uma solo; Lou Reed uma vez com o Velvet e outras duas solo; seu parceiro de Velvet underground, John Cale uma com a banda e outra solo; Neil Young , uma vez solo e uma com Crosby, Stills e Nash; a turma do New Order em seu "Brotherhood" e com o 'Unknown Pleasures" do Joy Division; e Iggy Pop 'solito' com seu "The Idiot" e com os ruidosos Stooges. E é claro, como não poderia deixar de ser, um dos maiores andarilhos do rock: Eric Clapton, por enquanto aparecendo em 3 oportunidades, duas com o Cream e uma com Derek and the Dominos, mas certamente o encontraremos mais vezes. E outra pequena particularidade, apenas para constar, é que vários artistas tem 2 álbuns fundamentais na lista (Massive Attack, Elvis, Stevie Wonder, Kraftwerk) mas apenas Bob Dylan e Johnny Cash colocaram dois seguidos, na colada.

No tocante à época, os anos ‘70 mandam nos A.F. com 53 álbuns; seguidos dos discos dos anos ‘80 indicados 49 vezes; dos anos ‘90 com 43 aparições; 40 álbuns dos anos ‘60; 11 dos anos ‘50; 6 já do século XXI; 2 discos destacados dos anos ‘30; e unzinho apenas dos anos ‘20. Destes, os anos campeões, por assim dizer são os de 1986, ano do ápice do rock nacional e 1991, ano do "Nevermind" do Nirvana, ambos com 10 discos cada; seguidos de 1972, ano do clássico "Ziggy Stardust" de David Bowie, com 9 aparições incluindo este do Camaleão; e dos anos do final da década de ‘60 (1968 e 1969) cada um apresentando 8 grandes álbuns. Chama a atenção a ausência de obras dos anos ‘40, mas o que pode ser, em parte, explicado por alguns fatores: o período de Segunda Guerra Mundial, o fato de se destacarem muitos líderes de orquestra e nomes efêmeros, era a época dos espetáculos musicais que não necessariamente tinham registro fonográfico, o fato do formato long-play ainda não ter sido lançado na época, e mesmo a transição de estilos e linguagens que se deu mais fortemente a partir dos anos 50. Mas todos esses motivos não impedem que a qualquer momento algum artista dos anos ‘40 (Louis Armstrong, Ella Fitzgerald, Cole Porter) apareça por aqui mesmo em coletânea, como foi o caso, por exemplo, das remasterizações de Robert Johnson dos anos ‘30 lançadas apenas no início dos anos 90. Por que não?

Também pode causar a indignação aos mais 'tradicionais', por assim chamar, o fato de uma época tida como pobre como os anos ‘90 terem supremacia numérica sobre os dourados anos 60, por exemplo. Não explico, mas posso compreender isso por uma frase que li recentemente de Bob Dylan dizendo que o melhor de uma década normalmente aparece mesmo, com maior qualidade, no início para a metade da outra, que é quando o artista está mais maduro, arrisca mais, já sabe os caminhos e tudo mais. Em ambos os casos, não deixa de ser verdade, uma vez que vemos a década de 70 com tamanha vantagem numérica aqui no blog por provável reflexo da qualidade de sessentistas como os Troggs ou os  Zombies, por exemplo, ousadia de SonicsIron Butterfly, ou maturação no início da década seguinte ao surgimento como nos caso de Who e Kinks. Na outra ponta, percebemos o quanto a geração new-wave/sintetizadores do início-metade dos anos ‘80 amadureceu e conseguiu fazer grandes discos alguns anos depois de seu surgimento como no caso do Depeche Mode, isso sem falar nos ‘filhotes’ daquela geração que souberam assimilar e filtrar o que havia de melhor e produzir trabalhos interessantíssimos e originais no início da década seguinte (veja-se Björk, Beck, Nine Inch Nails , só para citar alguns).

Bom, o que sei é que não dá pra agradar a todos nem para atender a todas as expectativas. Nem é essa a intenção. A idéia é ser o mais diversificado possível, sim, mas sem fugir das convicções musicais que me norteiam e, tenho certeza que posso falar pelos meus parceiros, que o mesmo vale para eles. Fazemos esta seção da maneira mais honesta e sincera possível, indicando os álbuns que gostamos muito, que somos apaixonados, que recomendaríamos a um amigo, não fazendo concessões meramente para ter mais visitas ao site ou atrair mais público leitor. Orgulho-me, pessoalmente, de até hoje, no blog, em 200 publicações, de ter falado sempre de discos que tenho e que gosto, à exceção de 2 ou 3 que não tenho em casa mas que tenho coletâneas que abrangem todas as faixas daquele álbum original, e de 2 que sinceramente nem gostava tanto mas postei por consideração histórica ao artista. Fora isso, a gente aqui só faz o que gosta. Mas não se preocupe, meu leitor eventual que tropeçou neste blog e deu de cara com esta postagem, pois o time é qualificado e nossos gostos musicais são tão abrangentes que tenho certeza que atenderemos sempre, de alguma maneira, o maior número de estilos que possa-se imaginar. Afinal, tudo é música e, acima de tudo, nós adoramos música.
Cly Reis

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PLACAR POR ARTISTA:
  • The Beatles: 3 álbuns
  • The Rolling Stones: 3 álbuns
  • David Bowie: 3 álbuns
  • Miles Davis: 3 álbuns
  • Pink Floyd: 3 álbuns

  • Led Zeppelin; Massive Attack, Elvis Presley, Siouxsie and the Banshees; Nine Inch Nails, The Who; The Kinks; U2; Nirvana; Lou Reed; The Doors; Echo and the Bunnymen; Cream; Muddy Waters; Johnny Cash; Stevie Wonder; Van Morrison; Deep Purple; PIL; Bob Dylan; The Cure; The Smiths; Jorge Ben; Engenheiros do Hawaii; Caetano Veloso; Gilberto Gil; Legião Urbana; Titãs e João Gilberto: 2 álbuns

PLACAR POR DÉCADA:
  • Anos 20: 1 álbum ("Bolero", Maurice Ravel)
  • Anos 30: 2 álbuns ("The Complete Recordings", Robert Johnson e "Carmina Burana", de carl Orff)
  • Anos 50: 11 álbuns
  • Anos 60: 40 álbuns
  • Anos 70: 53 álbuns
  • Anos 80: 49 álbuns
  • Anos 90: 43 álbuns
  • Anos 00:  6 álbuns

PLACAR POR ANO:
  • 1986 e 1991: 10 álbuns
  • 1972: 9 álbuns
  • 1968 e 1969: 8 álbuns
  • 1987 e 1969: 7 álbuns

PLACAR POR NACIONALIDADE (ARTISTAS):
  • EUA: 73
  • Inglaterra: 53
  • Brasil: 36
  • Irlanda: 4
  • Escócia: 3
  • Alemanha: 2
  • Canadá: 2
  • Suiça; Jamaica; Islândia; França; País de Gales; Itália e Austrállia: 1 cada



sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

“BOULEZBOWIE”: Esse (esquizo)frênico mundo que une (ou separa) a vanguarda do pop

Tá sempre morrendo gente pública por aí, sei. Mas nem sempre tenho o que lamentar. Morre gente conhecida toda semana, o que não quer dizer, necessariamente, que embora conhecidas de um relativo número de pessoas (às vezes, milhares delas), sejam de fato importantes. Essa dialética é típica desses tempos descriterizados e esquizofrênicos que vivemos. Lágrimas demais ou de menos sem se saber o porquê. Mas não deixa de ser, no mínimo, questionável, ainda mais quando, em menos de uma semana, morrem duas pessoas de extrema importância e ocupantes cada um de uma dessas esferas: o quase ignoto e o altamente popular. O quase ignoto por conta do mesmo descritério e esquizofrenia que empurra as massas a rechaçarem qualquer profundidade; o outro, altamente popular e cuja comoção pela morte foi gigantesca, é às vezes reduzido a um percentual mínimo daquilo que ele mesmo representa.
De minha parte como jornalista, crítico e diletante, lamento de verdade ambas as perdas. Falo de Pierre Boulez e David Bowie.


O rocker de batuta
Boulez, o compositor, maestro, professor e ensaísta francês, desconhecido totalmente de um relativo número de pessoas, era o último representante dos compositores da vanguarda erudita da primeira metade do século XX. Junto com os contemporâneos John Cage, Kerlheinz StockhausenLuciano Berio, Edgard Varèse, Benjamim Britten e Luigi Nono, ele, seguindo a sina aberta pela tríade de Viena nos anos 10 (Schöenberg, Berg e Webern), pôs de ponta-cabeça toda a tradição musical, subvertendo todos os conceitos: tom, harmonia, métrica, instrumentalização, timbrística. Raivoso e aferrado, Boulez foi um roqueiro punk com 40 anos de antecedência ao movimento. De modos elegantes e clássicos, por dentro era um punk total, combativo até no seu meio. A mesma agressividade expressiva, a violência como método e estilo. À imbecilidade ele respondia com doses desmedidas de cerebralismo. Era sua adaga perfurante. “Acredito que a música deve ser uma histeria coletiva de palavras violentas sobre o tempo presente”, disse em 1948.
Anos atrás, quando de seu aniversário de 80 anos (morreu dia 5 de janeiro, aos 90), li um artigo que, pertinente e conscientemente, colocava “Pli selon Pli”, uma de suas mais concisas e importantes obras, ao lado de outras duas significativas revoluções na música do século XX: o nascimento da bossa-nova com “Chega de Saudade”, com João Gilberto (1958), e a não menos vanguardista “Gesang der Junglinge” (1956), obra referencial do alemão Stockhausen.
Dessa vez, Boulez foi notícia novamente, mas muita gente que passou por esta não deu bola, o que é normal. Um compositor e maestro ligado a antipopulares termos como dodecafonia, atonalismo, eletroacústica, serialismo ou música aleatória só pode mesmo não ser popular. Ser desconhecido de um grande número de pessoas era, certamente, um elogio para Boulez. O desconhecido, afinal, nunca o assustou. Pelo contrário: era-lhe combustível. De língua afiada e criatividade idem, o jovem que estudara com Messiaen, logo o mandou às favas e o confrontou ideologicamente. Fez o mesmo com outro professor, Leibowitz, sem resquício de culpa. Jamais lhe existiam mestres. Não são poucos seus manifestos ferinos e altamente intelectualizados escritos ao longo da vida onde expunha suas ideias, o que o colocaram como um importante ensaísta da arte do seu tempo.
Boulez é responsável, na longa carreira que teve, por promover pelo menos três revoluções na música mundial.  Afora as marcantes obras da juventude, as cantatas "Le visage nuptial" (revista por ele quase quatro décadas depois), "Le soleil des eaux", onde explorava os ensinamentos do dodecafonismo aprendidos com Messiaen, e da primeira obra totalmente serializada, “Polyphonie X”, para 18 instrumentos, é entre 1953 e 1957 que lança a que é considerada sua primeira obra-prima: “Le marteau sans maître” para conjunto e voz, de relativo sucesso e uma síntese surpreendente das várias correntes na música moderna, englobando os mundos sonoros do jazz be-bop, o gamelão balinês, músicas tradicionais africanas e melodias tradicionais japonesas. Até o por ele satanizado Igor Stravinsky deixou de fora as críticas que recebia e aplaudiu de pé.
Outra radical criação: a já mencionada “Pli selon Pli”, cuja “original” data do final dos anos 50. Trata-se de um concerto inspirado em poemas do poeta francês Mallarmé onde passa a explorar com veemência a ideia de “obra em movimento”. Revisto em sua estrutura e métodos nas décadas seguintes, foi ganhando novas versões à medida que o irrequieto compositor reavaliava sua linguagem, fazendo com que, por conceito, sua concepção final estivesse sempre por vir. Tal como o já mencionado João Gilberto, que reelabora incessantemente os clássicos sambas da música brasileira em seu filarmônico violão, cunhando ao longo do tempo sempre versões únicas da mesma melodia, “Pli selon Pli” “nunca” acaba. Entendimento que só poderia brotar de alguém que representou tão firmemente a geração pós-Guerra, cujas marcas ainda são sentidas mais de 100 anos de eclodida a primeira delas.
Na maturidade, quando poucos compositores eruditos de sua geração não mais se arriscavam depois de tanto inovarem nas décadas anteriores, Boulez manteve-se na ponta da vanguarda, propondo novas experimentações. Se a música eletrônica o havia decepcionado nos anos 50 por sentir-se insatisfeito com o resultado das fitas magnéticas e seu processo “inorgânico” de realização, nos 70 volta à carga para dar-lhe nova identidade. Os meticulosos resultados dessa “velha descoberta” seriam sentidos em 1980, quando compõe “Répons” (para dois pianos, harpa, vibrafone, sinos, címbalo, orquestra e eletrônica). Ali, dá luz a uma obra em que a ressonância e a espacialização dos sons criados pelo conjunto se processam todos em tempo real, inclusive os elementos eletrônicos, normalmente criada penosamente em situações controladas. Nova síntese, nova profusão de ideias.
O fato é que, como um punk, amoral e dono da sua razão, Boulez jogou-se no labirinto do desconhecido e dali tirou o magma que brotaria dos vulcões de sua criatividade pronto para queimar todas as concepções preestabelecidas. Da tensão secular, criou uma linguagem densa e lírica. Sua partida deixa uma lacuna insubstituível. Um pilar que cede. O planeta Terra não tem mais nenhum representante da original vanguarda do século XX, a geração pós-Wagner, que passa por Strauss, Mahler e Debussy. A geração que aprendeu com – ou aprendeu a contrariar – Stravinsky, Eric Satie, Bela Bártok e Maurice Ravel. O longevo Boulez ainda resistia, e agora leva consigo uma herança que, a ver por esses tempos de descritério e esquizofrenia (e desmemoriados, consequentemente), um dia possa se apagar da memória do homem. Quiçá, cheguemos ao triste dia em que serão desmentidas oficialmente as barbaridades do Holocausto que Boulez presenciou e da sua forma combateu. Quem sabe, foi bom mesmo ele não viver tanto mais para ter de presenciar isso.

vídeo "Pli Selon Pli", Pierre Boulez



A batuta do rocker
Assim como para Pierre Boulez, o desconhecido também sempre foi combustível a David Bowie. Se o maestro buscava esse estado incessantemente, de modo a não repetir-se e recriar sua obra ao longo dos tempos, Bowie, no meio do mainstream, não só fazia isso como transformava essa busca em produto “vendável”. Ninguém como ele se valeu do universo de referências estilísticas da sociedade moderna e os reelaborou como Bowie, forjando um trabalho próximo do público mas sem deixar de infundir-lhe “dificultações”. Boulez, inventor de muitas dessas complexidades formais quase sempre desconhecidas do grande público, até por isso era quase um completo desconhecido do próprio. Bowie, na outra ponta, era popular mas impunha-se uma tarefa provocativa e rara: a de propor essas “dificultações desconhecidas” e torná-las, se não conhecidas, pop e assimiláveis.
Poderia falar longamente sobre vários dos períodos que Bowie orquestrou. De Ziggy Stardust ao vilão mutante Nathan Adler de “Outside”, passando pelo “Pin Up” à fase “limpa” de artifícios de Berlim. Mas em meio à enxurrada de coisas a seu respeito escritas e ditas nos últimos dias creio que o melhor recorte para esse momento é essa contribuição da desacomodação que o artista britânico sempre trouxera. “Sou uma prateleira de frascos vazios”, disse o poeta Fernando Pessoa em seu “Livro do Desassossego”. Bowie foi esse frasco vazio, onde fazia caberem todas as possíveis referências e mitos.
Escrevi sobre Bowie em meu livro, "Anarquia na Passarela", algo que se baseia bastante na questão da moda e comportamento dos punks, mas que vale tranquilamente para tal argumentação. Reproduzo dois:
“Vindo da cultura mod londrina dos anos 60, logo foi formando um estilo próprio de dândi ultrasofisticado e exagerado que desembocaria no seu ‘cameleônico’ individualismo cênico. Bowie era uma estrela do rock que nunca é ele próprio como pessoa: ele ‘interpreta’ papéis num enorme ‘palco’ chamado show-business. Por causa deste distanciamento bretchniano que tem da cultura de massa logrou influências vitais à cena [punk].”
“Tudo em Bowie era estilo, o que se percebia na sua indumentária ultradandi, barroca e ‘camp’. Seu passado mod, os anos 50, o cinema expressionista, a Berlim ‘decadente’ e suburbana, os anos pré-nazismo, o dandismo de Brummell, a androginia, a estética dos cabarés. Tudo lhe era alimento para a formação de um estilo pessimistamente decadente, cerebral e imaginário. Criava uma mitologia na qual nada era em vão; em cada ‘máscara’ sua vinha um efeito estético e fantasioso.“
Por tudo isso, Bowie mostrou facilmente que fazer música pop simplesmente é simplório e vago. Há de se adicionar personalidade e conceito para que se produza algo significativo. Bowie entendeu isso cedo, catalisando música, estilo, comportamento e equilibrando “alta” e “baixa” cultura – ou melhor, quebrando as barreiras entre uma e outra. Entendeu que a vanguarda das artes não existe apenas para impor a “alta cultura” de modo estanque e autobajulador. É, sim, célula orgânica, viva, que, compreendida em seus símbolos e elementos, podem e devem ser assimiladas, reelaboradas e deglutidas em outros e diferentes níveis de cultura e conhecimento.
A carreira de Bowie, muito mais profunda do que apenas os (ótimos) sucessos, é sabiamente contaminada pela vanguarda. "V-2 Schneider" contém claros traços de Boulez, Stockhausen e Varèse; o solo atonal de piano de "Aladdin Sane" contém Cage e Ligeti; a trilogia berlinense (inclua-se "The Idiot", de Iggy Pop, da mesma leva), contém em sua sonoridade pós-industrial os experimentos eletroacústicos fruto de ceticismo racional do pós-Guerra; o recente “Blackstar” contém a sonoridade pós-jazz assimilada tanto por maestros quanto músicos sem formação teórica como DJ’s, roqueiros e rappers"Low" e “Heroes”, com Brian Eno, são tão estruturalmente minimalistas que o próprio “pai” do estilo, Philip Glass, homenageou a Bowie e Eno com o duo “Symphony” sobre ambos os álbuns. O jornalista e crítico musical norte-americano Alex Ross, para quem Bowie foi um roqueiro refinado, observa que, “em meados dos anos 70, Bowie abandonou a forma ternária da estrutura pop em favor de formas semiminimalistas, caracterizadas por ataques secos e pulsações rápidas”.
É por isso que se torna tão penosa e simbólica a perda de Bowie: quem mais fará isso? É alarmante, se não desolador, que este papel nunca mais seja cumprido. Quem assumirá (compreenderá ou dará a devida importância) ao papel de unir e mimetizar essa ponte vanguarda-pop? Numa época em que streamings e mp3 circulam descontextualizados de suas obras de origem (quando esta, de fato, existe, se é que já não fora criada sem contexto algum), é salutar que um artista de quase 70 anos e 50 de carreira assombre o universo do entretenimento com o lançamento de um disco, uma obra que se constitui em si própria. Uma obra.
Walter Benjamin provavelmente ficaria instigado com esse episódio emblemático da morte de Bowie, e mais possivelmente ainda o ligaria com a já historicamente simultânea perda do pilar oposto a ele, a de Pierre Boulez. A vanguarda e o pop perderam seus calços, deixando um questionamento de dupla interpretação: a obra-de-arte na música morreu também junto com os dois? Findaram-se duas eras basais para a história da música através dos tempos? Todas as releituras de “Pli selon Pli” e o obscuro “Blackstar” darão ainda muito a se desvelar se se quiser, a depender do grau de (des)critério dos tempos (esquizo)frênicos que vierem adiante neste século XXI recém iniciado. O que se sucedeu, com a morte dos dois, talvez tenha sido um lampejo de que a arte musical esteja mais viva do que nunca. Ou, se não, é porque se enterrou de vez junto com Bowie e Boulez. Aí, será quando o desconhecido se tornará definitivamente desimportante.

video de "Blackstar", David Bowie