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segunda-feira, 24 de julho de 2017

The Miles Davis Quintet - "Cookin'" (1957)



“Eu estava tocando o meu trompete e liderando a melhor banda do mercado, uma banda criativa, imaginativa, sobretudo coesa e artística”. Miles Davis, em 1956

“A tremenda coesão, o suingue impetuoso, a absoluta exaltação e a emoção controlada, presentes nos melhores momentos do quinteto de Davis, foram captados nesta gravação. [Philly Joe] Jones disse que essas sessões são as melhores já realizadas por Davis. Estou inclinado a concordar.” Revista Down Beat, em 1957

Há o mito de que o artista precisa de compenetração e tempo para que a inspiração venha. Pelo menos para Miles Davis, essa lógica não era uma máxima. Na metade dos anos 50, já gozando da aura de lenda que havia se tornado – aquele que tocou com Charlie Parker, que formava bandas invejáveis, que descobrira talentos e revolucionara o estilo ao legar-lhe o cool jazz no início daquela década –, Miles tocava muitos projetos ao mesmo tempo. Além das temporadas nos bares noturnos e da participação em festivais, ele gravara, entre 1955 e 1957, nada menos que 17 álbuns. Muito disso se deve ao fato de que ele atendia a duas gravadoras ao mesmo tempo. Contratado a preço de ouro pela Columbia em 1955, ele bem que poderia dispensar sua então gravadora, a Prestige Records. Mas preferiu encarar. Foi daí que, para dar tempo de cumprir o acordado, surgiram os quatro dos seis históricos álbuns pelo selo de Bob Weinstock, todos registrados numa maratona de apenas duas sessões de gravação nos estúdios Van Gelder, em Nova York, em 11 de março e 26 de outubro de 1956: “Relaxin’”, “Workin’”, “Steamin’” e o irrepreensível “Cookin’”.

Trabalhar a “toque de caixa” para Miles e sua banda não era um problema. Pelo contrário: acostumados com a simultaneidade de projetos e ao ritmo corrido da indústria do jazz, isso os estimulava a por para fora a liberdade criativa e a encontrar soluções rápidas em meio à pressão pelo resultado. Afinal, não se tratava de qualquer conjunto. A The Miles Davis Quintet era, simplesmente, a melhor banda daqueles efervescentes anos do jazz. Formava-se por Paul Chambers, no baixo; Red Garland, ao piano; Philly Joe Jones; nas baquetas; e John Coltrane, soprando seu genial sax tenor. Esse time, comandados pelo trompete sofisticado e pela liderança nata de Miles, é o responsável pela feitura de “Cookin’”, que, assim como os outros três da Prestige, completa 60 anos de lançamento.
Elegância. É o que melhor define a versão de “My Funny Valentine”, que abre o disco. Um solo sensualíssimo de Miles serpenteia sobre a melodia de ritmo cadenciado oferecido pelas vassourinhas na caixa de Joe Jones e pela condução compassada de Chambers. Ao final do improviso, nota-se a melodia tomando um feitio suingado e suavemente alegre. Prenúncio do apurado solo que Garland despeja sobre o piano, salpicando notas ligeiras e saltitantes nas teclas brancas, uma de suas características. Miles volta a assumir a frente, o que faz com que o ritmo envolvente e harmonioso retorne para, numa total sintonia de todos, finalizarem o tema brilhantemente. Se “My Funny Valentine” com Frank Sinatra é talvez a maior referência pop desta canção, a da Miles Davis Quintet ganha o título de “a mais cool” certamente.

É Garland quem puxa "Blues by Five", composição sua. Um jazz bluesy irresistível como os que Miles tinha grata preferência. Depois de o trompete entoar inteligentemente sequências espaçadas mas firmes, é a vez de Coltrane dar as caras pela primeira vez. Um solo em séries lógicas e com certo suingue, mas demarcando seu estilo intenso, com notas arremessadas, sobreposições e leves dissonâncias. Garland, aqui com total propriedade dada a autoria, novamente esbanja suingue e delicadeza. Chambers não deixa por menos, escalonando no baixo um gostoso solo. Ao final, antes da conclusão, é Joe Jones quem mostra as armas, improvisando rolos e combinações tomadas de balanço na conjunção caixa/bumbo/tom-tom/chipô/pratos.

"Airegin", diferentemente das anteriores, dá uma guinada mais desafiadora à obra, haja vista sua composição intrincada que prenuncia o jazz modal aperfeiçoado por Miles dois anos dali no célebre “Kind of Blue”, o mesmo que Coltrane faria já como front band em “My Favourite Things”. Isso se nota quando Miles, que dá a largada nas improvisações, articula, de tempo em tempo, o solo sobre uma escala modulada, a qual se mantém paralelamente enquanto o trompete flutua naquele espaço/tempo. Isso tudo encapsulado por um jazz ágil, que exige a habilidade dos músicos aprendida nos night clubs nova-iorquinos. E, claro, todos se saem impecavelmente bem. O que dizer de Coltrane, particularmente afeiçoado a esse tipo de estrutura harmônica complexa? Ele parece passear com o som de seu sax pela atmosfera, num toque de extrema destreza, sensibilidade e potência. Miles, no seu jeito peculiar de elogiar, disse certa vez que não adiantava dar orientações ao saxofonista, pois ele era mesmo um “filho da puta irrefreável”.

"Tune Up", única composição de Miles, é incendiada pelo fogo do hard bop, mas, igualmente pela elegância e simetria dos sopros quando nos chorus. Joe Jones sustenta um compasso aligeirado na combinação entre caixa e pratos, enquanto o band leader desvela um solo entre o cool e a tradição do be bop. Coltrane, por sua vez, entra logo em seguida e não deixa por menos, num toque encadeado e elevando a tonalidade. Garland pede passagem com seu piano, intervindo lindamente enquanto Trane ainda improvisa. Até que sua vez chega, e ele parece celebrar os mestres Nat King Cole, Bud Powell e Ahmad Jamal. Joe Jones, endiabrado, entra na roda de solos para fazer uma rápida – mas de tirar o fôlego – dobradinha com Miles.

O engenheiro de som Rudy Van Gelder não corta o take e eles engatam em "Tune Up" outro standart do jazz assim como “My Funny...”: "When Lights are Low", de Benny Carter e Spencer Williams, de 1936. Num clima contemplativo parecido com a da faixa de abertura, eles mudam a rotação anteriormente intensa para um jazz cheeck to cheeck. Um solo deslumbrante de Miles, longo e expressivo, é prosseguido pelo de Coltrane, o qual também executa suas combinações por um bom tempo. Carregado, áspero, impetuoso, como é particular do saxofonista. Com suavidade e precisão, Garland encaminha o desfecho do número, que o líder Miles se encarrega de concluir.

O feito do “quinteto clássico” é ainda hoje, seis décadas transcorridas, praticamente inigualável. Se sim, foi conseguido bem dizer somente pelo próprio Miles quando este formara o “segundo grande quinteto”, entre 1964 e 1968 com Herbie Hancock (piano), Ron Carter (contrabaixo), Tony Williams (bateria) e Wayne Shorter (sax). “Na minha opinião, a intricada complexidade de ligação entre as mentes daqueles músicos jamais foi igualada por qualquer outro grupo”, escreveu o crítico musical Ralph Gleason anos 17 depois do lançamento da tetralogia da Prestige, da qual “Cookin’” é, se não o melhor, um dos mais celebrados por crítica e público. Hoje, 60 anos depois, o disco continua soando cristalino e atemporal. Agora, imagine se Miles Davis tivesse se concentrado! Nem dá pra pensar no que sairia.

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FAIXAS
1. My Funny Valentine (Lorenz Hart/Richard Rodgers) - 6:04
2. Blues by Five (Red Garland) - 10:23
3. Airegin (Sonny Rollins) - 4:26
4. Tune Up (Miles Davis)/When the Lights Are Low (Benny Carter/Spencer Williams) - 13:09

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OUÇA

Daniel Rodrigues

sexta-feira, 21 de julho de 2017

"Okja", de Bong Joon-ho (2017)


Criança, porco gigante, amor, fábula, dor, tristeza e uma cruel realidade, isso é um resumo de “Okja”, e obrigado Bong Joon-ho, por esse belo filme.
Mija (Ahn Seo-Hyun), uma jovem garota que deve arriscar tudo para evitar que uma poderosa empresa multinacional de sequestre sua melhor amiga: um animal enorme chamado Okja.
Apesar do seu início fenomenal, “Okja” acaba perdendo um pouco o folego ali pela metade. E o que pode ser algo positivo (eu achei) para alguns, pode não ser para outros, e aí me refiro às diversas mudanças de gênero que o filme apresenta, fazendo que o seu ritmo oscile bastante. Seu começo fofo que passa a ter ares de ação, indo até o drama, podem confundir alguns. Os personagens caricatos demais, que mais uma vez eu gostei pelo fato de ser quase uma “fantasia”, pode incomodar o espectador, pois em alguns momentos essa caracterização soa um tanto forçada, especialmente Jake Gyllenhaal como Johnny Wilcox.
Jake Gyllenhaal, Tilda Swinton se juntam à jovem
Ahn Seo-Hyun, para dar aquele peso a esse fabuloso filme
Mas nada apaga ou sequer diminui o brilho desta obra. O longa tem um início de fábula que parece que vai nos guiar para uma história bem "amorzinho", já que a construção do relacionamento entre Okja e Mija é muito bem feita e nós, espectadores, também ficamos apaixonados pelas duas. Após esse início ao melhor estilo “Totoro”, o filme parte para uma ação/comedia com uma ótima cena de perseguição com um divertido grupo de terroristas, integrantes de uma tal de “Frente de Libertação dos Animais”. E na parte final do longa vem o drama, a parte mais forte do filme que é quando nos mostra de vez (se você não tinha entendido ainda), seu objetivo de denunciar uma triste realidade.
Se você e um fã de churrasco prepare-se para o que vai assistir em “Okja”. O filme vem para denunciar a triste realidade de dor e sofrimento que os animais passam nos abatedouros e ele não mede esforços para nos chocar. Já vou avisando que o longa pega pesado nessa parte e não precisa segurar as lágrimas.
O diretor Bong Joon-ho nos dá um presente. Seu filme, vai da de uma pureza Disney ou de uma fábula Ghibli, chegando até um drama de denúncia, sendo praticamente perfeito em sua execução. Seus enquadramentos tornam a fotografia do longa uma obra de arte. Você carnívoro inveterado, pode ficar tranquilo: o filme é forte mas sua crítica, seu alvo é a indústria dos alimentos, o sistema em si, e não diretamente as pessoas (tanto que até temos um momento cômico em que se critica as pessoas que “exageram” nas suas dietas). Os verdadeiros alvos são o capitalismo o consumo e a manipulação de informações e mentiras patrocinada pela indústria alimentícia. Não deixe de assistir “Okja”, o CGI é fabuloso! Okja é real, o amor é real e a dor também. Duvido que você não seja tocado e saia pelo menos um pouco mudado após o final deste longa. "Okja" é um filme daqueles impossíveis de se ficar indiferente.
Okja e Mija, uma amizade ao melhor estilo Ghibli
(Coisa linda de meu Deus!)


Vagner Rodrigues

quarta-feira, 19 de julho de 2017

cotidianas #519 - Uma História Brilhante


Uma história brilhante. Um tanto confusa, é verdade, mas muito inegavelmente brilhante. Algo sobre um cara que coexistia consigo próprio no mesmo espaço de tempo e matava seu outro. Era engenhoso, criativo e saborosamente inusitado. Ninguém jamais diria que um romance tão bem escrito e original poderia vir daquele mendigo maltrapilho e fedegoso que habitava aquela marquise, próxima à padaria do bairro. Mas aquele insólito enredo era o que estava contido no caderno de espiral amassado e gorduroso do qual o vagabundo não se desgrudava em momento algum e no qual passava os dias inteiros rabiscando. Na verdade, ninguém nunca se interessou em saber o que tanto escrevia naquele amontoado de papel sebento. Devia ser alguma loucura qualquer até porque o que comentava-se que era doido varrido. Dizia-se que teria ficado assim, desnorteado, sem razão, depois que matara a própria mulher no sótão de casa. Seria mesmo verdade? Se fora um assassino não parecia e de qualquer forma não importava agora para os moradores do bairro. Não incomodava ninguém e ninguém o incomodava. Só o abordavam muito de vez em quando para dar um pão, uma marmita, um cigarro, uma cachaça até. A meninada do colégio ali perto é que de vez em quando zombavam do pobre coitado, mas mesmo assim, o caderno, seu companheiro inseparável, devia a um daqueles garotos que todos os dias passando por ali e vendo-o tentando escrever no chão com um pedaço cascalho ou tijolo, resolveu presenteá-lo com um espiral pouco usado. Desde então nunca parara de escrever no caderno. Escrevia, escrevia. Talvez só escrevesse por escrever, talvez só escrevesse a mesma palavra o tempo inteiro e quem sabe até, sequer fossem palavras. Vai lá saber. Dizia-se que havia sido escritor e por isso não parava de rabiscar. Constava até que havia escrito um grande livro, não me recordo do nome agora. O fato é que ninguém nunca havia se interessado verdadeiramente pelo que estava escrito lá, com exceção daquele sujeito que permaneceu parado debaixo daquela marquise naquele dia chuvoso folheando avidamente as páginas sujas daquele manuscrito enquanto o mendigo dormia nocauteado pela cachaça.
Por conta dessa indiferença que fazia para a vizinhança por seu comportamento pacífico foi que todos estranharam e ficaram extremamente chocados ao saberem que, num dia daqueles, o vagabundo amanhecera com o corpo completamente carbonizado. Uma barbárie!
A polícia investigou pouco, fez poucas perguntas. Afinal, quem se importa com um sem-teto morto? Poucas informações, nenhum parente, nenhum inimigo, nenhum suspeito e só uma pequena nota na seção policial do jornal mais sensacionalista.
Mais um desses atos cruéis que infelizmente vemos nos dias de hoje. De certo devia ter sido obra de um algum playboyzinho cheirado, desocupados ou revoltadinho, algum filhinho-de-papai bêbado, rebelde sem causa.
Ninguém fez qualquer ligação entre o cruel assassinato do mendigo com o sujeito que estivera parado ao lado do pobre-diabo debaixo daquela marquise dias antes, tampouco deram falta do caderno que, não sem razão, qualquer um imaginaria ter sido obviamente consumido pelas chamas. Talvez devessem pois curiosamente dias após o assassinato o homem que lera o caderno com tanto interesse, entregava a seu editor seu primeiro trabalho em muito tempo, o que arrancara do editor a exclamação entusiástica, "Isso é simplesmente genial!".
Naquele final de tarde, ao sair do prédio da editora, com um gordo adiantamento pela exclusividade de publicação do livro, o homem, aquele que estivera ao lado do indigente naquela tarde chuvosa, recebia uma ligação de sua mulher. Ela que, naquele momento limpava o sótão livrando-se de tralhas e inutilidades, dera com um caderno imundo e estropiado, queria saber o que deveria fazer com "aquela porcaria", segundo ela. O marido apenas disse para que ela esperasse onde estava, que não saísse dali e não comentasse com ninguém sobre o alfarrábio. Desligou e apressou-se para casa. Ia pegar um táxi mas achou melhor não ser visto por ninguém. Resolveu ir a pé. Conhecia um caminho rápido. Esgueirou-se para entrar em sua própria residência de modo que não fosse visto pelos vizinhos e subiu para o sótão. 
Sua esposa nunca mais foi vista depois daquele dia. Ele mesmo deu queixa do desaparecimento. Chegou a ser ouvido, interrogado mas nunca chegou a ser suspeito. Sua mente de escritor, conhecedor de romances policiais, encontrara um meio de ocultar o corpo e isentá-lo de qualquer crime. Saía completamente impune de mais um crime.
Mas se escapara da justiça dos homens das garras de sua mente, torturada pelo assassínio da própria esposa, não  conseguiria fugir. Desde que a mulher "desaparecera" começara a dar sinais de insanidade, nem sequer conseguira desfrutar do sucesso de seu livro. Não saía mais de casa, esquecera a higiene, a comida, os compromissos, subia ao sótão e começava a gritar coisas incompreensíveis, a casa agora era uma verdadeira pocilga.
Depois de consumida toda a pouca comida que tinha em casa, meses depois, deitado no meio do lixo dentro da sala percebeu que tinha fome. Foi ao bolso do casaco que usava quando saíra da editora naquele dia há quase três meses atrás e pegou um envelope cheio de dinheiro. Rasgou, pegou uma ou duas notas e deixou cair o envelope ali mesmo pelo chão.
Saiu. Fez o caminho que tantas vezes percorrera cada vez que a esposa pedia que fosse à padaria. Sujo, esfarrapado, malcheiroso, foi barrado na entrada do estabelecimento. Não o reconheceram. Com fome e sem motivos para voltar para casa, parou debaixo de uma marquise ali perto, deitou-se e ali ficou. Dali a pouco já era conhecido dos moradores da região que iam à padaria. Volta e meia um apiedava-se de sua situação e dava-lhe um pão, uma marmita, um cigarro, até uma cachaça de vez em quando. Houve até um garoto, da escola da rua de trás, que vendo-o insistentemente tentar escrever no chão com um cascalho, deu-lhe um caderno espiral com umas poucas folhas usadas. Desde então nunca parara de escrever naquele caderno. O que escrevia? Por certo alguma loucura. Diziam que era louco. Diziam também que havia sido escritor.


Cly Reis

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