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segunda-feira, 25 de julho de 2022

cotidianas #762 - Pílula Surrealista #49


 

“Não, eu não acredito no que estou vendo! Isso só pode ser uma história surrealista! Como isso pode estar acontecendo, assim, inadvertidamente, transgredindo tudo que deveria ser lei?! Saio à rua e vejo esses disparates. Indignação é o que sinto, indignação! Afinal, como pessoas podem estar andando, caminhando, movendo as próprias pernas pelas ruas? Ou ainda respirando! Sim: res-pi-ran-do! Com ar, oxigênio e tudo. Vou um pouco mais adiante e observei sol, árvores verdes, céu azul e... água! H2O, aquela mesma! Uma criança (como ainda se permite que mulheres concebam ou, anterior a isso, que se permita casais fazerem sexo e engravidarem, é outra questão inexplicável, mas deixa-se para ver isso depois...), acompanhada de sua mãe, que parecia, ainda por cima, estar feliz, bebeu água de um bebedouro em uma praça. Desta forma que descrevo: assim, ao ar livre, sem a repressão de ninguém... Muito estranho, é só o que posso entender. O que realmente não entendo é como essas coisas todas ainda podem acontecer mesmo com todas as minhas forças para que nunca mais existissem. Uma delas que fosse. Mas não! Algo de muito errado está se sucedendo com a humanidade...”


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 25 de abril de 2022

cotidianas #752 - Pílula Surrealista #48

 

A cotação das LCIs havia despencado, deixando todos os membros do Comitê de Relações com Investidores preocupados. A reunião, que havia iniciado às 4 da manhã, foi chamada às pressas logo após, na Ásia, o anúncio da quebra de uma gigante do setor imobiliário. Eram mais de 9 da noite. O leve almoço, servido sobre aquela mesma mesa a qual rodeavam há horas, sorvera-se em intensos desgastes mentais. Gravatas afrouxadas e desabotoadas as camisas na casa da altura do pescoço: restavam todos exaustos. E sem solução para aquela situação, que fugia ao controle de quem costuma, através de estatutos, protocolos e governanças, controlar tudo que lhes rodeia. Naquele caso, não havia o que fazer, e isso podia comprometer seriamente o erário da empresa. Mesmo que não houvesse solução, no entanto, assim como era esperado, o CEO, tal como lhe é exigido pela posição e expectativas, retomou a questão que haviam discutido o dia inteiro sem encontrar uma saída. 

Ele sabia que não existia essa saída – todos sabiam –, mas cabia-lhe, pelo poder e responsabilidade, atiçar os seus comandados para promover uma encenação corporativa eficiente. Como combatentes de uma guerra, caras amassadas e feridas, estonteados pelas horas de fogo cruzado, os soldados engravatados foram pouco a pouco levantando-se de trás da mesa como de trincheiras escavadas empunhando as armas em forma de tablets digitais ao comando do esfuziante e ilógico líder. Ruiz, Diretor Jurídico, foi convocado a encabeçar a coluna, que iria retomar a investida sobre o território inimigo. Porém, ele não ouviu a voz de comando – mesmo que esta tenha sido proferida em alto e bom som. O comandante da tropa repetiu, colérico como todo militar contrariado, mas não adiantou novamente. Ruiz, olhando sorridente e vidrado para cima, na direção do ar condicionado, parecia enxergar algo excelso, alguma imagem divina, talvez uma solução, mas não aquela a que o grupo não havia tido competência de encontrar. Os graves impropérios que lhe foram ditos aos berros pelo superior, suficientes para justificarem sua baixa, nem assimilou. O pensamento já tinha voado definitivamente e nunca mais desceu de volta. Perdera-se Ruiz.

Daniel Rodrigues

quinta-feira, 14 de abril de 2022

"Capitães da Areia", de Jorge Amado - ed. Record (1981) - original de 1937





"Os atabaques ressoam
como clarins de guerra."



"Capitães da Areia" é um dos livros responsáveis por me fazer gostar de leitura. Numa época em que eu ainda não tinha hábito firme nem prazeroso, "obrigado" a ler alguma coisa para uma ficha de leitura, na escola, na 6° série, o escolhi na caixa de livros da turma escolar. Foi meu maior acerto, naquele momento. O romance de Jorge Amado me conquistou, me envolveu, me pegou de tal maneira que eu me via torcendo pelos garotos jogados na vida nas ruas de Salvador, em suas mais variadas situações, oriundos das mais diversas origens.

"Capitães da Areia" trata sobre um grupo de menores abandonados, suas aventuras, delitos e dificuldades, tendo à frente o destemido Pedro Bala, um personagem, ao mesmo tempo bruto e encantador, como aliás, de resto, é o romance. Jorge Amado não nos poupa em retratar toda a dureza do cotidiano na pobreza, no abandono, no crime, mas não deixa de nos apresentar ternura, pureza, amor, além de seu habitual bom humor, mesmo, muitas vezes, em situações sérias e dramáticas. A liderança de Pedro Bala é algo simplesmente admirável, o amor entre ele e a menina Dora é das coisas mais lindas da literatura brasileira, e a relação de lealdade, companheirismo, fidelidade do grupo é algo tocante e até exemplar.
Jorge Amado, daquele seu jeito proseiro, enrolão (no bom sentido), é daqueles casos de um poder tão magnífico da palavra que suas "cenas" ficam gravadas na memória visual de tal maneira, como se tivéssemos assistido àquilo que narra. Não vi o filme que foi feito em 2011, mas, por exemplo, tenho gravado na retina (da mente) o momento em que o Sem-Pernas, um garoto aleijado, perseguido, pula da Cidade Alta, ali do lado do Elevador Lacerda. "Não o levarão. Vêm em seus calcanhares, mas não o levarão. Pensam que ele vai parar junto ao grande elevador. Mas Sem-Pernas não para. Sobe para o pequeno muro, volve o rosto para os guardas que ainda correm, ri com toda força de seu ódio, cospe na cara de um que se aproxima estendendo os braços, se atira de costas no espaço, como se fosse um trapezista de circo.".
Igualmente emocionante é o momento em que Pedro Bala, atendendo a chamados maiores de liderança, de causas engajadas, trabalhistas, populares, se despedindo do grupo, é saudado como um grande líder como sempre fora para aquelas crianças. "Punhos fechados de crianças que se levantam. Bocas que gritam se despedindo do chefe: 'Bala!... Bala!' " Crianças como ele mas para os quais, aquele garoto bravo, comprometido e justo, fora quase como um pai.
A partir daí, o gosto por livros só foi crescendo e, de certa forma, sou grato por ter escolhido aquele livro para fazer a primeira ficha de leitura. Ali, o hábito de ler começava a deixar de ser penoso para tornar-se, sim, prazeroso. 



Cly Reis

sexta-feira, 25 de março de 2022

“50 Olhares da Crítica sobre o Cinema Gaúcho” – Manhã de autógrafos com os autores – Sala Radamés Gnatalli - Auditório Araújo Vianna - Porto Alegre/RS (20/03/2022)

 

Emoldurado por um dos cartões
postais da cidade, o Araújo Vianna,
 local onde foi lançado o livro
“Mas não é só o filme que carrega em seu corpo sinais. Sociedades e cidades também as têm, mesmo que por baixo das vestes. 'O Caso do Homem Errado', na linha do que outras realizações vêm evidenciando há aproximadamente 20 anos na produção audiovisual negra no Brasil e noutros polos cinematográficos, denuncia verdades fadadas até então ao apagamento da história, ao escurecimento – sem o perdão da redundância.”
Trecho do artigo "A Pele da Cidade", sobre o filme “O Caso do Homem Errado”

Antes de pisar sobre o chão da sala Radamés Gnatalli, no Auditório Araújo Vianna, na manhã do domingo, dia 20 de março, já tinha ideia que viveria um momento especial. A presença de my love Leocádia e de minha hermana Carolina, somadas à coincidentemente bem-vinda presença de minha mãe, Iara, chegada do Rio de Janeiro horas antes por outros motivos, mas que a deu condições de também comparecer ao evento, já garantiam a especialidade. O retorno, depois de 2 anos e alguns meses de total ausência de eventos presenciais por conta da covid-19, ao mesmo tempo em que excitava pela novidade, também assustava pela descostume. Havia também como elemento adicional as comemorações pelos 250 anos de Porto Alegre, do qual o livro faz parte através do projeto Cine Rock, momento raro na história de qualquer cidade. Tudo fazia aumentar a espera.

Mas todos os receios e expectativas foram totalmente superados ao que adentramos a sala onde “50 Olhares da Crítica sobre o Cinema Gaúcho” teve seu histórico lançamento. A felicidade de todos era visível, fosse pelo feito da materialização do primeiro livro da ACCIRS em 24 anos de associação, fosse pela alegria de poder rever as pessoas depois de tanto tempo, fosse pela satisfação de, simplesmente, dividir aquele momento com os colegas, amigos, familiares e realizadores. O livro da ACCIRS é feito em correalização com a Opinião Produtora por meio do projeto Cine Rock, aprovado pelo Pró-Cultura RS e pela Lei de Incentivo à Cultura (LIC) do RS e patrocínio da JBS.

De minha parte, mesmo sem convidar a ninguém especialmente, fui agraciado com, além destas as quais mencionei no início, ricas presenças que me fizeram ainda mais completo. Estiveram lá, representando a família Leão, meu primo Henrique, filho de Cléber, competente professor e historiador que tão essencialmente contribuiu para o artigo de minha autoria no livro. Fizeram meu coração sorrir também os amados amigos Rodrigo, Lisi, Malu e Elis, e Valéria Luna com a sua filha Dora, bem como dividir - e trocar - autógrafos com Conrado Oliveira, colega de trabalho e de cinefilia. Completou-se ainda com a satisfação de rever (e abraçar) os colegas jornalistas Paulo Moreira, membro da ACCIRS mas que não participou da edição, e Ana Mota, outra que coincidentemente, assim como minha mãe, aterrissou em Porto Alegre e também não quis perder a oportunidade de prestigiar.

Do livro em si, adianto que ainda não será possível me estender. Mal consegui folheá-lo do dia do lançamento até hoje e, para modo de não dar luz ao que mereça, prefiro deixar para uma outra postagem aqui no blog mais adiante – talvez até nem por mim mesmo. Entretanto, agora já posso comentar brevemente sobre o artigo que escrevi e o filme o qual escolhi: “O Caso do Homem Errado”, o essencial documentário da cineasta Camila de Moraes, de 2017, primeiro longa dirigido por uma mulher em então mais de 60 anos de produção cinematográfica no Rio Grande do Sul. Histórico por si só. Mas não somente isso: “O Caso...” trata-se de um grande filme, absurdamente atual diante da uma realidade social gaúcha e brasileira.

Em meu artigo, o qual considero grave por necessidade temática, discorro sobre questões que ligam o ontem e o hoje nas relações de preconceito racial e urbanicidade. Como disse anteriormente, a colaboração de meu primo Cleber é de suma importância para a abordagem proposta, uma vez que sua visão do brancocentrismo na sociedade é chave para fazer ligar essas pontas que enlaçam passado e presente. 

Fico aqui, porém, em palavras, mas os deixo com alguns dos felizes registros feitos neste dia marcante para a história da crítica de cinema no Rio Grande do Sul, para o cinema do Rio Grande do Sul, para quem faz e curte cinema no Rio Grande do Sul. Para mim, que nasci e moro no Rio Grande do Sul. Uma coisa posso lhes dizer: que momento feliz vivemos neste dia! 

*********

Um brinde com a mãe e o primo

Love, love, love: cinema, cinema, cinema

Conrado e eu: quando é que vem o próximo em conjunto?

Com hermana, que fez a manhã de autógrafos ser ainda mais iluminada


Os amigos da "visões periféricas" e da vida

Val, Dora e eu: Guaíba e Capibaribe

Autógrafos para a filha e ex-esposa de Luis Carlos Merten,
referência pra qualquer crítico de cinema

A amada presença de Henrique representando os Leão

O professor Paulinho Moreira foi prestigiar!

O exemplar autografado de d. Iara não podia faltar...

... E ela logo pegou pra ler!

Com as queridas colegas de ACCIRS
Mônica Kanitz e Fatimarlei Lunardelli

Posando para a foto conjunta com todos os autores presentes...

... E outra com a minha galera, claro!


texto: Daniel Rodrigues
fotos: Leocádia Costa e Carol Rios

quinta-feira, 3 de março de 2022

cotidianas #745 - Pílula Surrealista #47

 

Ele era um gênio da publicidade, mas intratável. Um bicho, na melhor acepção, arredio, bravo, colérico, selvagem. O caixa da agência, no entanto, dependia praticamente dele. Não fosse sua produção, sempre encantadora e jamais contrariada pelo cliente – algo inédito desde que o negócio começou –, a empresa não se sustentaria.

Os colegas mais novos estranhavam assim que começavam na agência. Afinal, era mesmo assustador e incomum aquele modus operandi com ares de tortura e trabalho escravo. Mas à medida que o tempo passava, entre peças e campanhas, cafezinhos e conversas nos corredores, iam acostumando-se com aquela porta de aço maciço permanentemente fechada na parte externa do prédio, ao fundo da garagem, onde normalmente residiria um zelador ou caseiro. Ali era reservado para mantê-lo trancafiado, em segurança, tanto para ele quanto, principalmente, para a sociedade, consumidora muitas vezes, ironicamente, de produtos que ele próprio as convencera de comprar com suas criações admiráveis. Por debaixo da porta, cadeada com ferrolhos de reforço, uma fresta de altura suficiente para deslizar-se um prato, servido invariavelmente com restos de carne e osso crus e em quantidade generosa. 

Pela mesma abertura em que lhe passavam a comida, os colegas o alimentavam com as demandas de trabalho da agência. Juntavam tudo que era necessário para a elaboração das peças, depositavam sobre o chão, empurravam para dentro da jaula e saíam de perto. Não demorava muito para que começassem a se ouvir incompreensíveis grunhidos e urros ferozes, bestiais, que se espalhavam por todo o prédio. Era o momento de deglutição das informações, já sabiam, por isso não mais se espantavam. Ao contrário, era prenúncio de que dali a uma meia-hora, mais ou menos, poderiam contar com aquilo que ninguém mais tinha capacidade de realizar com tamanha perfeição. E assim ocorria: alguém ficava já à espera em frente à porta aguardando que o trabalho finalizado voltasse pelo mesmo lugar em que foi largado. Estava pronta mais uma obra-prima da sociedade de consumo.

Daniel Rodrigues

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Música da Cabeça - Programa #254

 

Estamos salvos da III Guerra Mundial?! Enquanto o lunático acredita nas próprias mentiras, a gente vem com mais um MDC, o de nº 254, que isso sim podemos afirmar com certeza. Certíssimos também estão Rita Lee, The Police, Engenheiros do Havaí, The Cranes e Secos & Molhados, que comparecem certo. Afirmativo ainda a Semana de Arte de 22, que completou 100 anos e que estará em mais de um momento. Não tem erro: o programa de hoje vai ao ar na assertiva Rádio Elétrica, pontualmente às 21h. Produção e apresentação: Daniel Rodrigues. Pode confiar.


Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/

sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

"O Caso dos Dez Negrinhos" ou "E Não Sobrou Nenhum", de Agatha Christie - ed. Edibolso (1976) - original de 1939



"Dez negrinhos vão jantar enquanto não chove;
Um deles se engasgou e então ficaram nove.
Nove negrinhos sem dormir; não é biscoito!
Um deles cai no sono, e então ficaram oito.
Oito negrinhos vão a Devon de charrete;
Um não quis mais voltar, e então ficaram sete.
Sete negrinhos vão rachar lenha, mas eis
Que um deles se corta, e então ficaram seis.
Seis negrinhos de uma colmeia fazem brinco;
A um pica uma abelha, e então ficaram cinco.
Cinco negrinhos no fotro, a tomar ares;
Um ali foi julgado, e então ficaram dois pares.
Quatro negrinhos no mar; a um tragou de vez
O arenque defumado, e então ficaram três.
Três negrinhos passeando no Zoo. E depois?
O urso abraçou um, e então ficaram dois.
Dois negrinhos brincando ao sol, sem medo algum;
Um deles se queimou, e então ficou só um.
Um negrinho aqui está a sós, apenas um.
Ele então se enforcou,
e não ficou nenhum."
versos do poema 
"Os Dez Negrinhos"



"O Caso dos Dez Negrinhos" título atualizado para "E não sobrou nenhum", por questões antirracistas, é, por certo, um dos romances mais incomuns dentro da bibliografia da mestra da literatura de mistério, Agatha Christie. Embora sempre instigantes e muito bem escritos, a estrutura de suas novelas costumava ser, na maioria das vezes, a de uma breve apresentação de personagens e local, o posterior cometimento de um crime, a introdução de um personagem capaz de desvendar a trama, entrevistas e conversas com suspeitos, algum contratempo ou ameaça durante as investigações e, com alguns despistes, algumas evidências falsas e um certo engodo para o leitor, finalmente a apresentação da solução do crime. Aqui as coisas são diferentes: sete pessoas, aparentemente sem ligação entre si, são convidadas para uma pequena temporada na casa de um anfitrião misterioso, em uma ilha particular, a Ilha do Negro, e lá, depois de serem acusados por meio de uma gravação em um disco fonográfico, de crimes pelos quais saíram impunes, um a
um, os convidados, a secretária do homem misterioso e os dois empregados da casa, vão sendo assassinados de forma muito semelhante à subtração que ocorre nos versos de um conhecido poeminha infantil, enquanto um jogo de dez estatuetas africanas que decora a sala de jantar, vai sendo reduzido, com uma peça retirada misteriosamente, cada vez que uma morte ocorre.
Nas paredes de cada um dos quartos dos visitantes, uma moldura com a inocente quadra infantil aterroriza e os lembra que qualquer um deles pode ser o próximo a morrer.
Aqui, uma vez iniciada a série de mortes e confirmada a ligação com os versos, sabemos que haverá mais vítimas, conhecemos os motivos pelos quais cada um "merece" morrer, temos ciência que o justiceiro é o anfitrião, imaginamos até, pelo poema, como será a próxima morte, mas não sabemos qual deles será o próximo, se o matador é um deles, por quê aquela pessoa se deu ao trabalho de montar toda aquela situação, e, o principal, quem é esse assassino misterioso.
"O Caso dos Dez Negrinhos" talvez seja o mais envolvente livro da Rainha do Mistério, uma vez que não tem tempo para aqueles tradicionais meandros de investigações tradicionais com o detetive Poirot ou Miss. Marple. Tudo é  perigoso, a cada momento alguém pode morrer, qualquer drinque, sono, escada, maçaneta, pode significar um novo crime. O leitor fica grudado o tempo todo e a contagem regressiva de cadáveres e estatuetas é ao mesmo tempo angustiante e eletrizante.
O meu exemplar é velhinho, ruinzinho, rasgado em algumas páginas, tão precário que tive, na época de minha primeira leitura, dificuldade em ler as últimas páginas e saber do inusitado desfecho.
É lógico que não revelarei aqui o final mas o que posso assegurar, a que não leu, é que é bastante surpreendente. Para dar uma ideia do intrincado da questão, me inspirarei na própria quadrinha dos negrinhos que guiou a escritora: dez leitores tentaram desvendar o mistério, mas dos que adivinharam o assassino, não se soube de nenhum.


Cly Reis

quinta-feira, 3 de junho de 2021

"Cem Anos de Solidão", de Gabriel Garcia Márquez - ed. Record (1996)

 



"Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento,
o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota
em que seu pai o levou para conhecer o gelo.
Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara,
construídas à margem de um rio de águas diáfanas
que se precipitavam por um lei­to de pedras polidas, brancas e enormes
como ovos pré-históricos.
O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome
e para mencioná-las se precisava apontar com o dedo. (...)"
Frases iniciais de 
"Cem Anos de Solidão"


Me deparei há algum tempo atrás, na Internet, com duas curiosidades a respeito de "Cem Anos de Solidão" que me chamaram atenção e que, de certa forma, tem muito a ver com minha relação com esta obra. Uma delas é que uma pesquisa mostrava que "Cem Anos de Solidão" , publicado originalmente em 1967, era um livros que as pessoas mais mentem sobre terem lido, provavelmente para exibir algum status intelectual, mostrar boa bibliografia ou não sentir-se diminuído em uma discussão, dentro de determinado círculo ou diante de alguém que, eventualmente, venha a pôr à prova sua bagagem cultural.

Diante do resultado da pesquisa, já seria desconfiável se eu dissesse que li uma vez a obra-prima de Gabriel Garcia Márquez,  mas  mesmo correndo o risco de que duvidem de minha afirmação, uma vez que o número ao qual me referirei é, por muitos considerado uma quantia de mentirosos, devo dizer que, não apenas li, como o fiz sete vezes. Verdade! Juro!

Ah, não tem como resistir àquele início, àquelas primeiras frases! O que me leva à segunda curiosidade sobre a obra: outra lista, citava 10 ou 15 melhores, maiores, mais marcantes inícios de livro de todos os tempos. Estava lá o impactante começo de  "A Metamosfose" de Kafka, ("Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraça e, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas, no topo de qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha ..."); a inconfundível introdução de "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa ("Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvores no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade ..."); e, é claro, entre outros, o de "Cem Anos de Solidão". Se eu pegar esse livro e ler o primeiro parágrafo, eu, praticamente, não tenho como parar. Vou acabar lendo inteiro, de novo. Por sinal, quase aconteceu, de novo, agora, quando o folheei para refrescar a memória sobre algumas passagens e personagens. O que nos leva de volta à primeiro curiosidade.

A edição que tenho em casa, além de tudo,
tem belíssimas ilustrações do artista plástico
platino-brasileiro Carybé
Quem lê uma vez, precisa estar de novo em contato com aqueles personagens, aquele lugar, aqueles acontecimentos, reviver aquelas passagens. O colombiano, Nobel de Literatura, com muita sagacidade, concebe uma alegoria da formação da América Latina utilizando-se com criatividade e sutileza dos elementos intrínsecos aos nossos povos para montar um romance épico familiar inigualável. Estão presentes ali a valentia, a beligerância, o sangue-quente que serve para a batalha mas também para o amor, a sensualidade, a passionalidade, o respeito às tradições, o misticismo, e até a ingenuidade e uma certa inocência que, se fizeram de nós povos solícitos, receptivos,  hospitaleiros, mas também, muitas vezes facilmente engambeláveis. Simbolizada pela família Buendía, cujos nomes dos homens se assemelham, se ramificam e se repetem numa árvore-genealógica labiríntica, as características dos latino-americanos são desenhadas em cada personagem com traços mágicos e apaixonantes como a bravura irrefreável de Aureliano Buendía, persistente até o último  momento, mesmo diante de um pelotão de fuzilamento; a liderança mobilizadora de José Arcadio Segundo; a força e o apetite sexual de José Arcadio; a beleza hipnótica de Remédios, a bela, que levava os homens, literalmente, à loucura e até mesmo à morte, contrastando com sua pureza e inocência infantil; a experiência e sabedoria da anciã Úrsula, que mesmo depois de perder a visão conhecia o lugar de cada coisa na casa, dentre tantos outros pormenores que o autor desenvolve magnificamente, repletos de elementos simbólicos, ao longo da trajetória daquela casta.

Além disso, o autor nos apresenta figuras riquíssimas sobre os elementos de formação e desenvolvimento do continente com a dose certa de teor crítico e potencial reflexivo, tal como as contendas políticas e o surgimento de regimes autoritários; o galeão espanhol descoberto em expedição, muito além dos limites de Macondo, revelando-lhes, quase como uma nave extraterrestre seria para nós, que, para eles, eram os deuses navegadores; ou ainda exploração americana, simbolizada na Companhia Bananeira e na misteriosa chuva torrencial que, convenientemente, começa após a greve e ao massacre de funcionários na estação de trem, e que dura por anos impedindo investigações, persistindo até o fato ser esquecido. Isso tudo sem falar nos elementos "visuais" fascinantes, como as borboletas amarelas do apaixonado Maurício Babilônia, o tapete voador dos ciganos e outras "tecnologias" que encantavam os moradores do povoado; os peixinhos dourados do Coronel Aureliano, os bilhetes com o nome de cada coisa para que as pessoas não esquecessem os mais corriqueiros objetos e suas utilidades, na época da Peste da Insônia; a imagem do patriarca e fundador de Macondo, José Arcadio Buendía, já senil, amarrado a uma árvore atormentado pelo fantasma do homem que matara; e as altamente metafóricas formigas vermelhas que levam o último Buendía, extinguindo a extirpe e aquele povoado. Nessa parte, ainda nas últimas vezes, mesmo já conhecendo o livro de cabo a rabo, e mesmo depois de tantas releituras, não é incomum chegar à última página com os olhos cheios d'água.

Se "Cem Anos de Solidão" figura nestas duas curiosas listas, uma outra na qual é mais comum encontrá-lo, com muita justiça, por sinal, é a de melhores livros de todos os tempos. O que, nesse caso, não representa nenhuma surpresa. Quem já leu, provavelmente, não terá dúvidas em colocá-lo lá. Mas só quem já leu mesmo. Não vale mentir.


Cly Reis 

quinta-feira, 8 de abril de 2021

cotidianas #713 - Pílula Surrealista #46

 

Logo que lhe ficou clara a necessidade de isolamento social, e que não poderia (deveria) sair de casa com o mesmo direito de “ir e vir” comum em tempos normais, Samantha deu um jeito de adotar um bichinho. Uma gata. Exótica a chamou em homenagem à personagem de Cats, que Samantha assistira anos atrás em Nova York quando gozava ainda do tal direito de “ir e vir”. Pelagem escura, amendoado dos olhos e olhar penetrante como os da personagem tinha a gata para merecer-lhe ainda mais o nome. Samantha adotou-a ainda filhote, recém desmamada. Assim, estabeleceram desde o primeiro dia uma relação muito próxima, quase simbiótica. Dividiam a mesma cama, acomodavam-se com deleite sobre o mesmo travesseiro (quando não o disputavam), comiam ambas nos mesmos horários e acompanhavam o movimento da rua pela janela em longos banhos de sol. Nem TV mais Samantha assistia, para a qual, mesmo ligada, como um aquário mudo, dava as costas com desinteresse igual Exótica. Os hábitos notívagos também eram iguais: dormiam boa parte da tarde e, de madrugada, caminhavam pela casa silenciosamente. Tudo faziam juntas. A ponto de, como acontece seguidamente com donos e seus pets, passarem a ficar cada vez mais parecidas: na expressão penetrante, nos fios escuros, na cor de olhos esverdeados, até no jeito cauteloso de andar, como que pisando em pantufas.

O isolamento e as personalidades as aproximavam cada vez mais, o que, claro, se intensificou com o prosseguimento da pandemia do lado de fora do apartamento. E intensificou-se em todos os aspectos. A ponto de, a determinado momento, diferenciarem-se apenas pela estatura. Samantha, por total desestímulo, não via necessidade mais de depilar-se. Nunca mais saíra de casa. Pra que, então, rasparia os pelos? Pelo contrário, agora a embelezavam e protegiam. Os de Exótica, por exemplo, que nunca os tirava, eram tão bonitos daquele jeito natural, e tão macios... A lâmina de depilar, inclusive, há muito já havia perdido sentido e recebido a função de brinquedo desde que foi cutucada propositadamente de cima da pia do banheiro em direção ao chão.

Banheiro, aliás, que perdera sua utilidade corriqueira. Lamber uma à outra era o banho que lhes bastava. Não dependiam de fúteis vaidades para viverem em paz. Gostavam, inclusive, do cheiro que emanavam, um odor ancestral, fêmeo, felino. Além da inutilidade do chuveiro, o vaso sanitário também perdera serventia, visto que era bem mais fácil agachar-se sobre a caixa de areia, sempre destampada e disponível, para aliviarem-se.

O maior problema era a comida. Primeiro, esvaziarem os pacotes de ração. Depois, consumiram o que havia mais à vista empoleirando-se sobre a mesa e as prateleiras. O instinto perscrutador felino fez com que descobrissem a dispensa e, após muita insistência, outra qualidade dos gatos, acessassem o refrigerador. Tudo, menos ter que sair pela porta da rua! Tinham trauma do que havia lá fora, do estresse que lhes causava. Só ouvir os vizinhos ao longe já lhes era suficiente para ficarem apavoradas. Punham-se de ouvidos e olhos atentos a cada movimento externo. Ali dentro, pois, era sua ilha. Se a comida havia se acabado, não era nada tão preocupante para quem sabia amigavelmente dividir a caça aos invasores que entravam voando pelas janelas. Além disso, os restos de comida e fezes fazia com que se atraíssem bichos de toda ordem, como baratas, moscas, larvas e até suculentas ratazanas. A providência se encarregava de lhes garantir sustento.

Viveram, assim, nesta harmonia e descomplicada consciência entre cios e afagos, entre lanhadas e sonos profundos, entre lambidas e aconchegos. De inesperado, apenas encrespavam-se a cada vez que passavam pela frente do espelho, como que esquecidas de todas as outras vezes anteriores em que estranhavam a si próprias, como que fosse impossível reconhecer aquele ser refletido. Mas assim como mobilizavam-se, também se distraíam com outra coisa no segundo seguinte, fosse com uma nova caça, com a borda do sofá rasgado para afiarem as unhas ou com qualquer bobagem que a outra estivesse dando atenção. Palavras nunca mais precisaram ser ditas.


Daniel Rodrigues

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

cotidianas #706 - Pílula Surrealista #45

 

Não me lembro ao certo o que aconteceu antes de eu entrar ao quarto e me deparar com um rato cinzento-amarronzado sobre a mesa roendo alguma coisa. Nem sei se comida era. Pensei: “Como minha gata não farejou que havia um rato dentro de casa?” Era minha casa... Sim, a lembrança de que tinha uma gata comprovava que era minha casa. Imediatamente, pensei no pavor que minha esposa sentiria quando soubesse que um rato havia entrado em nossa casa – isso: era nossa casa –, subido sobre a mesa e, mais que isso, se por acaso ela chegasse de repente e encontrasse o seboso animal chafurdando nossas coisas. Não sei onde minha esposa estava àquela hora, afinal, nem eu mesmo sei onde eu próprio estava antes de abrir a porta (sim, lembro-me que abri uma porta...) e me dar de cara com um roedor fazendo o que ele melhor sabe em sua insistente e determinada existência murídea. Sabia, e aí, agora com certeza, que tinha uma gata, uma esposa e que um rato entrara em nossa casa.

Não fiquei sem ação, por óbvio. Peguei, como qualquer um procederia, uma vassoura para atacar o invasor. Lembro-me disso. Presa fácil (estranhei), daquelas que não fogem nem à evidência de um ataque, imprimi-lhe o que me havia de força nos braços para acertá-lo. Meu golpe, no entanto, não surtiu efeito. Ou melhor: atingiu-o, mas era quase como se não tivesse sido desferido. Estranhamente, meus membros superiores, por mais vigor que tentara em meu impulso, nem de longe conseguiam atingir o objetivo. Parecia que meus braços, fracos, não acompanhavam a intenção do cérebro. Mas podia ser que tivesse errado o bote. Então, nova pancada. E nova frustração. 

Foi então que, antes de teimosamente buscar o terceiro ataque, percebi que não se tratava de um rato, mas sim de uma mulher. Uma senhora de idade e cabelos grisalhos (mais para brancos), estatura baixa, bem apessoada e com vestes bastante distintas, quase anos 30. Talvez essa sensação temporal me impressionara pelo chapéu clochê que usava com um leve declínio no coco da cabeça, até charmosamente para uma mulher de sua idade, algo entre os 60 e 70. Mas isso é só suspeita, haja vista que foi muito rápida a transformação de rato para a forma humana. Aliás, essa é outra suspeita, pois, de fato, não assisti a tal transformação: quando me dei conta, travei a por certo anêmica batida seguinte ao notar não ser mais um bicho. Ou foi muito rápido ou eu estava atento demais à minha intenção assassina para não ver.

Pensei: “Talvez isso explique porque minha gata não correu atrás e, sim, escondeu-se. Deve estar debaixo da cama ou por algum canto”. De imediato, contudo, veio-me outro pensamento em decorrência: “É fácil justificar a ausência da gata, mas muito difícil à minha esposa do porquê de uma senhora ter entrado aqui em casa sem que eu visse”. Ou pior: “Ficará ainda mais inexplicável se tentar justificar-lhe que a senhora usou a tática de entrar como um rato para, depois, sabe-se lá com que finalidade, virar humana”. Certamente, é mais fácil invadir a casa dos outros, independentemente do motivo, sendo rato do que humano. Só sei que, ao que a vaga lembrança onírica me conserva, não agi mais. Deixei-a, a senhora-rato. Não mostrou ela interesse em me morder e nem eu de machucá-la. O que, convim comigo mesmo, acho, não era motivo para que lhe aplicasse a mesma pancada que impiedosamente se dedica aos que não são da nossa espécie. Deve ter sido assim...

(Ao meu sonho)
Daniel Rodrigues

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

cotidianas #704 - Pílula Surrealista #44

 

Não fazia muito que havia chegado ao trabalho. Mal engatara o ritmo dos afazeres e recebeu uma ligação. Do vizinho:

- Seu Nestor, sua casa foi embora.

- Como assim, “foi embora”?!

- Sim, seu Nestor, foi embora. Saiu voando.

- Mas como isso?

- Sim, saiu voando. Como diz naquela música, "Bateu asas e voou" - tentou soltar uma brincadeira, mas logo recompôs-se, pois percebeu nenhuma receptividade do outro lado. Então, continuou com o relato:

- Tem acontecido bastante. O senhor não tem visto no noticiário? Já teve uma porção de casa que aconteceu isso aqui na cidade, aí pelo interior, por tudo. Não vou lhe mentir, mas a casa da minha cunhada em...

- É, ouvi falar que tem acontecido, sim... Poxa, mas a minha casa? O que eu fiz pra merecer?

O silêncio do outro lado da linha por parte do Sr. Ivo, aposentado boa-praça, mas sempre pronto para fuxicar a vida dos vizinhos, dava a entender que a ligação se prestava somente para aquele aviso específico. O que Nestor deveria fazer ou o que não fez com sua própria casa era, definitivamente, problema deste. Entendendo, Nestor agradeceu e desligou o telefone.

Ficou pensativo em sua cadeira enquanto os colegas seguiam em seus ritmos de afazeres o qual ele havia se obrigado a parar por alguns instantes. Sinal dos tempos, talvez uma evolução em mil devoluções isso das casas voarem. Não mais a cansativa lógica de pessoas que cansam de um lugar e o abandonam. Agora, são os lugares que deixam para trás quem os dominava em busca de outros donos.


Daniel Rodrigues

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Live "Hertha Spier - A Sobrevivente A21646", com Tailor Diniz, Mário Spier, Lúcio Spier, Luiz Gustavo Guilhermano e Cíntia Moscovitch - Ed. BesouroBox - 66ª Feira do Livro de Porto Alegre

Anne, Olga e Hertha


Anne Frank 
(Assassinada em fevereiro de 1945 em Bergen Belsen/Al)

Olga Benário 
(Assassinada em 23 de abril de 1942 no Campo de extermínio de Bernburg/Al)

Hertha Spier
(Faleceu em 09 de fevereiro de 2020, aos 101 anos, em Porto Alegre-RS) 

A história da 2ª Guerra Mundial chegou a minha vida, muito cedo. Minha mãe Anita nasceu em 1941 e cresceu escutando a história de Olga Benário e sua filha Anita Leocádia. Sempre me contou que muito pequena folheava as revistas da época, onde fotos da pequena Anita Leocadia ilustravam reportagens sobre a tragédia que ela, sua mãe e Luiz Carlos Prestes vivenciaram. Contemporânea de Anita Leocadia, minha mãe solidária a história dela, dizia que quando tivesse uma filha colocaria o nome de Leocadia, e assim eu nasci e recebi meu nome. Além do nome, tenho uma descendência judaica nunca muito bem esclarecida, mas que veio da França e foi acolhida em Satolep na geração dos bisavós maternos, Lhullier. Na escola, quando pré-adolescente tive a oportunidade de ler "O Diário de Anne Frank" e, anos mais tarde, "Olga", que ampliaram meu conhecimento em relação ao cenário dos campos de concentração e as atrocidades ocorridas na 2ª Guerra, dirigidas ao extermínio principalmente da comunidade judaica. 

Recentemente quando iniciou a pandemia no Brasil senti uma atmosfera que me lembrou muito os relatos das Guerras, dos exílios e dos cárceres onde sempre a bestialidade, a violência, o medo, a vulnerabilidade física e mental, o genocídio estão presentes. Lembrei de Anne e Olga mas no verão de 2020 me deparei com Hertha Spier, uma sobrevivente do Holocausto recém-falecida, aos 101 anos de idade. 

A história de Dona Hertha passa pelo Gueto de Cracóvia no campo de Plaszow, que é o cenário do filme "A Lista de Schindler", para o qual concedeu uma entrevista à equipe de Steven Spielberg, depoimento inclusive que integra o Acervo da Fundação Survivors of the Shoah: “A sua entrevista será preservada cuidadosamente como parte importante da mais completa videoteca de testemunhos até hoje coletada. Em um futuro longínquo, as pessoas terão a possibilidade de ver o seu rosto, ouvir sua voz e conhecer sua vida, a fim de aprender para sempre lembrar”. No dia 15 de abril de 1945, as tropas de libertação encontraram Dona Hertha inconsciente e muito enfraquecida no campo de Bergen Belsen, na Alemanha, mesmo campo onde poucos dias antes morrera a holandesa Anne Frank.

Convidado a transformar essa história em livro, o escritor e biógrafo Tailor Diniz entrevistou ela por inúmeras vezes e nos traz as lembranças e o aprendizado profundo de quem emergiu em meio a tanta dor, adversidade e conflito. Para mim a história de Dona Hertha poderia ser uma história sobre irmãs onde a presença e o espelhamento entre Gisi e Hertha foi um fator determinante de vida, de continuidade. Além disso, há inúmeras particularidades que nos fazem acolher com muita admiração Dona Hertha: a forma inteligente em adaptar-se e o amor que carregava consigo, todas resultantes da personalidade de uma mulher que sobreviveu à perda de toda a família e, sem casa e sem futuro numa Europa devastada, veio para o Brasil. Aqui, numa pátria diferente da sua de origem, sem nenhum familiar lida com todos esses traumas, abrindo espaço para a arte e a dedicação à família, sendo uma administradora dos negócios, em função da sua precoce viuvez. 

Ao ler a biografia de Tailor Diniz, com prefácio de Moacyr Scliar sobre a diferença entre memória e história e posfácio com o ensaio sobre a resiliência pelo psiquiatra Dr. Luiz Gustavo Guilhermano, posso dizer que Dona Hertha une-se a Anne e a Olga, fechando a trilogia de histórias sobre mulheres que estiveram frente a frente com a morte, sobreviveram cada qual da sua forma, mas permanecem em meu  coração por serem um exemplo do quanto o amor pode vencer e ressignificar tudo o que existe, principalmente o mal.

A LIVE com Tailor Diniz receberá os convidados, a escritora e Patrona da 62ª FLPOA Cintia Moscovich; os filhos de Hertha, Dr. Mario Spier e Lucio Spier, o médico psiquiatra, Dr. Luiz Gustavo Guilhermano e a mediação dessa que aqui escreve para vocês. 

Agenda aí: dia 13 de novembro (sexta), às 19h30, no canal do YouTube: BesouroBox Editora Oficial.

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o que: Live "Hertha Spier - A Sobrevivente A21646"
quando: 13 de novembro, 19h30
apresentação: Leocádia Costa
mediação e participação: Tailor Diniz, Mário Spier, Lúcio Spier, Luiz Gustavo Guilhermano e Cíntia Moscovitch
evento: Feira do Livro de Porto Alegre

Leocádia Costa

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Live “Na Antessala do Fim do Mundo", com Boca Migotto, Tabajara Ruas e Roger Lerina - Ed. BesouroBox - 66ª Feira do Livro de Porto Alegre

 Qual o seu lugar no mundo?


O autor Boca Migotto: do cinema para a literatura

"À direita do carro, bem ao lado de Diego, que estava sentado no banco do carona, a Cordilheira dos Andes e suas neves eternas seguem presentes, acompanhando a viagem dos aventureiros que por ali passam. É fim de tarde, o pôr do sol avermelhado reflete sobre o cume das montanhas e pinta de dourado a neve. Esse primeiro trecho da viagem ainda é feito sobre uma Ruta 40 asfaltada, que corre por entre montanhas verdejantes, contorna lagos e, por vezes, acompanha o fluxo natural de rios e córregos originários do degelo dos Andes. 'Engraçado como a água sempre encontra o caminho mais fácil para seguir seu destino'", pensou Diego."
Trecho de “Na Antessala do fim do Mundo” 

Diego é um homem bonito, lembra pela descrição um típico latino, com a virilidade e a força do homem americano. Ele nos faz acreditar que o final do mundo deve ser no Ushuaia, um lugar construído para prisioneiros perigosos dada a sua distância, intempéries e maior dificuldade de uma convivência humana mais cotidiana como as dos grandes centros urbanos. Mas ao viajar na RUTA 40 que avança na companhia silenciosa da Cordilheira dos Andes, entre montanhas e águas, ele descobre algo muito especial. A viagem tem motivação após a morte da sua mãe. Ele que é a personagem principal e, portanto, está proibido de morrer busca por seu irmão que ganhou o mundo, para lhe contar sobre o desaparecimento da mãe, pois esse seria a única pessoa a entender o seu sofrimento. Será? 

Diego nos mostra o que a morte provoca num núcleo familiar restrito, onde mãe, pai e irmão somem lentamente. Numa rota em sentido único que o levará ao Ushuaia, ele encontra pessoas que lhe trazem reflexões sobre a forma de estarmos no mundo, aprende com eles sobre si mesmo e inicia inúmeras reflexões. Música, política, história, sexo, morte, cinema, conflitos e vida estão na história de Diego que carrega um pouco do escritor Boca Migotto e um pouco de Léo, o ator Leonardo Machado que faleceu em 2018 de câncer. Esse livro era um filme onde Léo seria Diego, num road movie pela RUTA 40 realizado entre os dois amigos. Porém a morte interrompeu a ideia, mas não o propósito de contar a história. 

Algum tempo depois, Boca que está totalmente mergulhado no cinema e realizou alguns filmes, tais como: "Pra Ficar na História", "O sal e o Açúcar", "Já Vimos esse Filme" e "Filme sobre o Bom Fim", lança seu primeiro livro a partir do argumento do filme que não aconteceu “Na Antessala do fim do Mundo”. Ele traz de uma forma sensível e com uma atmosfera muito autoral esse homem em estado de conflito que carrega fragmentos da sua vida, das suas ideias e o que ele valoriza como ser humano para dentro de uma narrativa agora literária. Diego é um pouco do Boca, um pouco do Léo e um pouco de todos nós, leitores que buscamos compreender o que a vida nos oferece. No cinema, Boca tem impresso essa questão autoral faz uns anos é só observar os temas que ele elege para transformar para as telas, todos tem ressonância nele mesmo e depois vazam para o coletivo porque encontros e desencontros fazem parte da viagem, né? 

Chegando ao final desse livro entendi porque numa entrevista recente na Rádio da UFRGS ele comentou sorrindo que teve alta da terapeuta após ela ler o livro. Boca encontrou o seu lugar no mundo. E o melhor é que cada um de nós tem o seu lugar. Mas não pense que estou falando de algum lugar externo, de uma paisagem dessas que ele visitou na viagem de Diego, do lado de fora. Falo de algo muito mais sutil e que está na contramão da morte e olha que não me refiro a vida, portanto não fique inquieto ou curioso demais. Estou falando de uma descoberta que explica toda uma existência e que é revolucionária em todos os sentidos. Ela está contida dentro de um processo maior que só você saberá identificar. Se você está buscando o seu lugar no mundo, já encontrou um livro que vai te levar até o final dele, num espaço onde tudo recomeçará pra valer! Aproveita a companhia e te lança nessa viagem, com certeza valerá muito a pena. 

A live com Boca Migotto recebe os convidados, o escritor e cineasta Tabajara Ruas, e o jornalista Roger Lerina que fará a mediação. A apresentação da LIVE é dessa que aqui escreve para vocês. Agenda aí: dia 11 de novembro (quarta) às 19h30, no canal do YouTube da BesouroBox Editora Oficial.

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o que: Live "Na Antessala do Fim do Mundo"
quando: 11 de novembro, 19h30
apresentação: Leocádia Costa
mediação e participação: Roger Lerina e Tabajara Ruas
evento: Feira do Livro de Porto Alegre

Leocádia Costa

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

"O Rei Roncador", de Martina Schreiner - Ed. 8inverso (2013)

 

“Sempre gostei, muito de ler principalmente literatura infantil.  É uma paixão desde criança.”
Caio Riter

O escritor Caio Riter e eu temos essa preferência em comum. Desde muito cedo tive contato com a literatura. Na nossa casa, nunca faltaram estórias, em forma de livro ou pela oralidade dos meus pais. Cresci e mantive o hábito de ler estórias feitas para crianças, por sentir que a minha criança grita muitas vezes por esse espaço lúdico, por essa liberdade criativa. 

Agora, em meio a pandemia, gravei alguns vídeos contando estórias ou fragmentos delas, alguns foram publicados nas redes sociais da editora e outros somente no meu canal fechado do Instagram. Uma forma de me salvar da loucura que ainda continua em andamento em nos adaptarmos a inúmeras novas rotinas.  

A autora deste livro que vou contar a vocês se chama Martina Schreiner e morava em Lajeado na ocasião do lançamento em 2013 pela 8inverso. As ilustrações  em guache, hidrocor e lápis de cor são dela também, que nos apresenta a estória de um casal real e seus desafios, mas com características mais próximas das pessoas comuns. 

Na apresentação da obra, o escritor Caio Riter explica que a história também traz aprendizagem, afinal, tanto o Rei quanto a Rainha terão que estabelecer uma nova relação para aquilo que é vital para um não se transforme  na desgraça do outro. A jornalista Marilice Daronco/Diário de Santa Maria, que entrevistou Caio e Martina por ocasião do lançamento em 2013, comenta uma das particularidades do livro: “Nem todas as pessoas são iguais e conviver com as diferenças é um aprendizado para sermos mais felizes.” 

Espero que vocês gostem da contação e quem quiser adquirir o livro “O Rei Roncador” durante a 66ª Feira do Livro de Porto Alegre está à venda neste link, de R$32,00 por R$25,60. Aproveita!

Contação de "O Rei Roncador"


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Olha só o primeiro desenho que recebi tão logo postei a contação dessa estória. A Letícia Paes, que tem 4 anos e mora em Presidente Prudente, em São Paulo,  enviou essa maravilha de desenho. Ela descreveu o que fez assim: "A rainha está na porta e o ronco do Rei sai pela janela!". Muito obrigada, Letícia! Agradecemos a tu e à sua mamãe @marcelapapa


Leocádia Costa