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segunda-feira, 16 de agosto de 2021

"Mês de Cães Danados", de Moacyr Scliar - L&PM Editores (1977)


"Queres saber da ema fugaz?
Queres? 
Então é muito pouco. 
Queres saber dos bois empalhados? Da tia de Pelotas? 
Da Carta de Punta Del Este? Da queda do cruzeiro? 
Do Banco da Província? 
Do Simca Chambord? Das Cestas de Natal Amaral? 
Do considerável número de populares bradando viva Jânio? 
Queres saber de tudo? 
Queres? 
Então paga."
parágrafo inicial de 
"Mês de Cães Danados"




"Viajante chega a Porto Alegre procedente de São Paulo. Procura na Rua da Ladeira um homem que conta histórias (falarias em mendigo, paulista? Eu não falaria). Mediante (atenção!) pagamento, viajante paulista terá visão, sucinta e não desprovida de interesse, do agosto de 1961 - mês, na expressão do narrador, de cães danados. Paralelamente narrador contará algo de sua vida - interessante infância, batalhas na cidade de Pelotas, aventuras na capital. Mediante pagamento adicional poderá descrever cenas de sexo (sublinha esta palavra, paulista, no original; se for impresso, quero-a em itálico. Ah, ris. Teu nome é Sátiro?). Narrador mencionará ema fugaz, Simca Chambord, Cestas de Natal Amaral, considerável número de populares bradando viva Jânio, muro de Berlim, machine-gun, Bois Empalhados, Letras da Legalidade, Fayacal Khautz (...)"
Este resumo que o próprio narrador do livro repassa com seu interlocutor, já alguns dias após a primeira visita, é exatamente o que precisamos para introduzir o excelente "Mês de Cães Danados", de Moacyr Scliar., livro em que os eventos que antecederam e culminaram na renúncia de Jânio Quadros e na posse de João Goulart, naquele agosto de 1961,  eu que são narrados, mediante uma substancial contribuição em sua lata de doce de Pelotas, por um mendigo tagarela, instalado na ladeira da Rua General Câmara, em Porto Alegre.
Numa confusão de informações, entre lembranças de infância, personagens reais e fantásticos, relatos dispensáveis, slogans publicitários, manchetes de jornais da época, o tresloucado morador de rua vai contando a um curioso, provavelmente paulista pelo sotaque, que chega todos os dias para ouvir dele toda a história de como saiu da condição de um promissor estudante de direito, filho de um latifundiário do Sul do Estado, à situação de miséria, abandonado e esquecido, com uma perna deformada, numa calçada no Centro da cidade, ali pertinho do Palácio do governo do Estado.
Num espaço de duas semanas, desde o início das visitas do paulista, todos os dias, em sua narração atropelada, confusa, o miserável, que se identifica como Mário Picucha, intercalando fatos de sua história pessoal com o contexto político e social daquele momento, vai revelando um pouco mais sobre aqueles dias de 1961, até chegar à data em que, com muito esforço do então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, foi garantida a posse de seu genro, o então vice-presidente da República, João Goulart, mesmo diante de uma enorme resistência das elites, de empresários e latifundiários, que temiam por uma ameaça 'comunista'.
Aparentemente a história toda do indigente soa sem pé nem cabeça mas, em meio a todo aquele desvario em que menciona ema fugaz, tordilho doido, machine-gun, bois empalhados, Cavaleiro Rolando, talvez haja algo mais. A cada dia surge um elemento novo, algo mais relevante e, parece que seu assíduo visitante espera exatamente por algo mais consistente na história. Por isso continua indo, por isso vai todos os dias, por isso coloca um dinheiro na lata. O que aquele mendigo tem a contar de tão importante daquele agosto de 1961?
Moacyr Scliar, um dos maiores escritores gaúchos e um dos grandes nomes da literatura nacional, num formato muito livre e despojado, conduz a história com total domínio e precisão mesmo quando, eventualmente, achamos que aquela conversa de maluco não está levando a lugar nenhum ou que há muita informação inútil no que sai da boca de seu personagem narrador. "Mês de Cães Danados" é uma leitura agradabilíssima, contagiante, atraente. O relato do protagonista em primeira pessoa, é ágil, inquietante, e a disposição dos capítulos, em formato diário, no período das idas do misterioso visitante à Rua da Ladeira, garantem uma dinâmica estimulante e um constante interesse do leitor. Um relato de um histórico agosto em uma leitura que dá gosto.



Cly Reis

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

“Zoravia Bettiol – o lírico e o onírico”, de Zoravia Bettiol - Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli (Margs) – Porto Alegre/RS











O belo e moderno autorretrato de 2002
“Zoravia faz arte como vive.”
Moacyr Scliar




Mais de um motivo levou Leocádia e eu a irmos a vernissage da exposição de Zoravia Bettiol no Margs. O primeiro e mais óbvio é a importância de sua obra para as artes visuais no Rio Grande do Sul e no Brasil nos últimos 60 anos, tempo o qual está sendo comemorado juntamente aos 80 de vida da artista admirada por gente como Jorge Amado, Moacyr Scliar, Erico Verissimo, Mário Quintana, Mário Schemberg e o próprio Vasco Prado, marido por quase três décadas e com quem compartilhara, inclusive, admiração. Só isso, já justificaria a ida. Mas tem mais. Filha de Iemanjá assim como Leocádia, a quem conhece e nutre amizade há pelo menos uma década, Zoravia dedica, entre as 150 obras selecionadas de diversas fases, técnicas e produções, algumas aos orixás e, obviamente, à Rainha dos Mares. Mas não para por aí. Justamente uma das obras mais representativas e impactantes da mostra, uma escultura em ferro fundido de cerca de 1 metro e meio chamada exatamente de “Iemanjá”, de 1973, é do acervo pessoal de Leocádia, que a cedeu para a rica exposição “Zoravia Bettiol – o lírico e o onírico”. Claro que estaríamos lá.

Tal foi nossa surpresa que a referida escultura encontra-se logo na entrada das quatro salas que compõem a diversa e numerosa seleção feita pelos curadores Paula Ramos e Paulo Gomes, a qual vasculha as variadas fases criativas de Zoravia. Há desenhos, pinturas, gravuras, arte têxtil, objetos, ornatos e joias, além de registros de performances. Disso, resulta uma impressionante diversidade de técnicas e estilos, as quais Zoravia domina com naturalidade, sem excetuar seu rigor de perscrutadora voraz e quase obsessiva. Além da visível liberdade criativa e da utilização das cores, nota-se um exercício permanente para encontrar a trama certa dos fios, a pincelada mais expressiva, a textura ideal da impressão. Tudo intenso, em permanente ebulição.

Esse cuidado e labor extremos se notam muito nas xilogravuras, das especialidades de Zoravia. O detalhismo do desenho se expressa lúdico na Série “Circo”, de 1967, cujos traços refazem de os cordéis nordestinos, principalmente na forma das figuras humanas. Na série que versa sobre os pecados capitais, é possível identificar a textura do tramado da corda, vista em trabalhos têxteis feitos à base desse material. O lúdico, igualmente, está presente de maneira incisiva, caso das séries Namorados (1965) e as dedicadas aos deuses gregos (1965-66/76), onde se nota, aliás, parecença com as imagens do candomblé – o maravilhoso “Netuno”, tal um preto velho, não deixa dúvida dessa universalidade. Desta cultura tão brasileira quanto universal, Zoravia extrai outros trabalhos e séries, como a própria série “Iemanjá” (1973). Sobre isso, Jorge Amado tem um depoimento sobre Zoravia destacado na mostra: “Como ninguém, Zoravia canta e transmite a atmosfera desse universo infantil onde o maravilhoso é o cotidiano e onde o insólito é a terra”.

Há também lindas obras como “Criança Adormecida” (xilo, 1961), em que o traço do desenho mostra-se rigorosamente estudado na criação final, e “Meias Amarelas”, da série Romeu e Julieta (1970) A temática sociopolítica, igualmente forte em toda sua carreira, tem uma das longas paredes da mostra praticamente dedicadas com exclusividade. “Só o povo pode fazer o novo” (acrílica sobre madeira, 1984), carrega o espírito do período do clamor pelas Diretas a qual o Brasil passava naquele então. Visto com o olhar de hoje, em que aquele grito democrático parece ter perdido significado, lembrei-me dos realistas versos de Nei Lisboa: “cada povo tem o novo que merece”.

Adentrando a sala mais ao fundo, depara-se com o que talvez tenha mais impressionado a mim e até a Leocádia, acredito: o conjunto completo de xilogravuras para a lenda “A Salamanca do Jarau”, publicada por Simões Lopes Neto em seu célebre “Lendas do Sul” (1913). Zoravia ilustrou o texto em 1959, produzindo 27 imagens que estão sendo expostas pela primeira vez em sua totalidade, acompanhadas por vários – e belos – estudos preparatórios. Cada imagem é de uma riqueza impressionante. Para mim, que já vi algumas séries baseadas em obras literárias, como as que Dalí fez para a "Divina Comédia" ou “Alice no País das Maravilhas”, esta não fica a dever em nada.

Uma exposição de absoluta diversidade, que instiga justamente por isso. Como bem descreve o texto curatorial: “O fato é que Zoravia Bettiol, ao contrário de muitos artistas de sua geração, preocupados com a unidade estilística e fiéis a determinado meio expressivo, buscou na diversidade parcelas dela mesma. Porém, em cada manifestação, em cada trabalho, é sempre ela, Zoravia.”

*********

“Zoravia Bettiol – o lírico e o onírico”
onde: Margs -  Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli
(Praça da Alfândega, s/n° Centro – Porto Alegre/RS)
quando: até 11 de dezembro, de terça a domingo, das 10h às 19h
entrada: gratuita
curadoria: Paula Ramos e Paulo Gomes

 
Da série Circo, dos anos 60.

Obra da série Namorados.

Os Deuses Gregos em traços que remetem ao candomblé.


Netuno imponente sobre as águas

Estandarte de Oxóssi, da série Iemanjá.

A belíssima criança adormecida, dos anos 60.

Sensualidade na obra da série dedicada a Romeu e Julieta.

Política e causa social em acrílica sobre madeira.

Uma das mais belas séries, inspirada nos 7 Pecados Capitais, de 1987.

Zoravia desenhada pelo marido Vasco Prado
a traços próximos aos de Picasso.

Uma das obras de 2005 em que a artista
interage com diversas técnicas.

Capa da impressionante série dedicada à obra
de Simões Lopes Neto.

Mais uma das xilos de A Salamanca do Jarau.

Outra das gravuras da série inspirada em Simões Lopes Neto.


As duas filhas de Iemanjá com a escultura em homenagem à orixá.



por Daniel Rodrigues

sábado, 28 de abril de 2012

Coleção Folha Literatura Ibero-Americana



Mais uma coleção bem legal do jornal Folha de São Paulo. Agora é de autores de línguas portuguesa e espanhola. São 25 números que saem nas bancas todos os finais de semana.
As vendas iniciaram-se na verdade há duas semanas quando saiu o primeiro número, de Jorge Luís Borges ("O Livro de Areia") com o segundo volume de brinde, os "Sonetos do Amor Obscuro e Divã do Tamart" de García Lorca, mas a partir do 3° número, é individual custando R$16,90 cada. Mas certamente ainda é fácil encontrar os 3 primeiros volumes.
Hoje, por exemplo, está nas bancas o quarto título, "Memória de Elefante" de Antônio Lobo Antunes mas a lista é boa e conta com nomes consagrados como Neruda, Saramago, Ernesto Sabato e o brazuca Moacyr Scliar. Aparecem também o bom Javier Cercas, espanhol que eu descobri há pouco  no interessante romance "O Motivo" e uma das revelações da literatura contemporânea dos últimos anos, o português Miguel de Sousa Tavares, autor do badalado "Ecuador".
Não vou comprar todos. Alguns não interessam, outros eu já tenho, outros, honestamente, eu nem conheço, mas vale a pena ficar de olho nos títulos a seguir nas bancas e ver o que há de interessante.


Cly Reis

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Live "Hertha Spier - A Sobrevivente A21646", com Tailor Diniz, Mário Spier, Lúcio Spier, Luiz Gustavo Guilhermano e Cíntia Moscovitch - Ed. BesouroBox - 66ª Feira do Livro de Porto Alegre

Anne, Olga e Hertha


Anne Frank 
(Assassinada em fevereiro de 1945 em Bergen Belsen/Al)

Olga Benário 
(Assassinada em 23 de abril de 1942 no Campo de extermínio de Bernburg/Al)

Hertha Spier
(Faleceu em 09 de fevereiro de 2020, aos 101 anos, em Porto Alegre-RS) 

A história da 2ª Guerra Mundial chegou a minha vida, muito cedo. Minha mãe Anita nasceu em 1941 e cresceu escutando a história de Olga Benário e sua filha Anita Leocádia. Sempre me contou que muito pequena folheava as revistas da época, onde fotos da pequena Anita Leocadia ilustravam reportagens sobre a tragédia que ela, sua mãe e Luiz Carlos Prestes vivenciaram. Contemporânea de Anita Leocadia, minha mãe solidária a história dela, dizia que quando tivesse uma filha colocaria o nome de Leocadia, e assim eu nasci e recebi meu nome. Além do nome, tenho uma descendência judaica nunca muito bem esclarecida, mas que veio da França e foi acolhida em Satolep na geração dos bisavós maternos, Lhullier. Na escola, quando pré-adolescente tive a oportunidade de ler "O Diário de Anne Frank" e, anos mais tarde, "Olga", que ampliaram meu conhecimento em relação ao cenário dos campos de concentração e as atrocidades ocorridas na 2ª Guerra, dirigidas ao extermínio principalmente da comunidade judaica. 

Recentemente quando iniciou a pandemia no Brasil senti uma atmosfera que me lembrou muito os relatos das Guerras, dos exílios e dos cárceres onde sempre a bestialidade, a violência, o medo, a vulnerabilidade física e mental, o genocídio estão presentes. Lembrei de Anne e Olga mas no verão de 2020 me deparei com Hertha Spier, uma sobrevivente do Holocausto recém-falecida, aos 101 anos de idade. 

A história de Dona Hertha passa pelo Gueto de Cracóvia no campo de Plaszow, que é o cenário do filme "A Lista de Schindler", para o qual concedeu uma entrevista à equipe de Steven Spielberg, depoimento inclusive que integra o Acervo da Fundação Survivors of the Shoah: “A sua entrevista será preservada cuidadosamente como parte importante da mais completa videoteca de testemunhos até hoje coletada. Em um futuro longínquo, as pessoas terão a possibilidade de ver o seu rosto, ouvir sua voz e conhecer sua vida, a fim de aprender para sempre lembrar”. No dia 15 de abril de 1945, as tropas de libertação encontraram Dona Hertha inconsciente e muito enfraquecida no campo de Bergen Belsen, na Alemanha, mesmo campo onde poucos dias antes morrera a holandesa Anne Frank.

Convidado a transformar essa história em livro, o escritor e biógrafo Tailor Diniz entrevistou ela por inúmeras vezes e nos traz as lembranças e o aprendizado profundo de quem emergiu em meio a tanta dor, adversidade e conflito. Para mim a história de Dona Hertha poderia ser uma história sobre irmãs onde a presença e o espelhamento entre Gisi e Hertha foi um fator determinante de vida, de continuidade. Além disso, há inúmeras particularidades que nos fazem acolher com muita admiração Dona Hertha: a forma inteligente em adaptar-se e o amor que carregava consigo, todas resultantes da personalidade de uma mulher que sobreviveu à perda de toda a família e, sem casa e sem futuro numa Europa devastada, veio para o Brasil. Aqui, numa pátria diferente da sua de origem, sem nenhum familiar lida com todos esses traumas, abrindo espaço para a arte e a dedicação à família, sendo uma administradora dos negócios, em função da sua precoce viuvez. 

Ao ler a biografia de Tailor Diniz, com prefácio de Moacyr Scliar sobre a diferença entre memória e história e posfácio com o ensaio sobre a resiliência pelo psiquiatra Dr. Luiz Gustavo Guilhermano, posso dizer que Dona Hertha une-se a Anne e a Olga, fechando a trilogia de histórias sobre mulheres que estiveram frente a frente com a morte, sobreviveram cada qual da sua forma, mas permanecem em meu  coração por serem um exemplo do quanto o amor pode vencer e ressignificar tudo o que existe, principalmente o mal.

A LIVE com Tailor Diniz receberá os convidados, a escritora e Patrona da 62ª FLPOA Cintia Moscovich; os filhos de Hertha, Dr. Mario Spier e Lucio Spier, o médico psiquiatra, Dr. Luiz Gustavo Guilhermano e a mediação dessa que aqui escreve para vocês. 

Agenda aí: dia 13 de novembro (sexta), às 19h30, no canal do YouTube: BesouroBox Editora Oficial.

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o que: Live "Hertha Spier - A Sobrevivente A21646"
quando: 13 de novembro, 19h30
apresentação: Leocádia Costa
mediação e participação: Tailor Diniz, Mário Spier, Lúcio Spier, Luiz Gustavo Guilhermano e Cíntia Moscovitch
evento: Feira do Livro de Porto Alegre

Leocádia Costa

sexta-feira, 11 de outubro de 2019

cotidianas #651 - ESPECIAL DIA DAS CRIANÇAS - Nossa senhora



Era meu pai quem exigia de mim e de meus irmãos que, desde pequenos, chamássemos os mais velhos de “senhor” e“senhora”, o que era, naturalmente, praticado dentro de casa. Pelo menos a mim nunca foi um problema, pois a relação entre obediência e liberdade em minha infância e adolescência não passavam somente pela forma de se dirigir a palavra aos outros. Até estranhava ver os coleguinhas chamarem seus pais pelo primeiro nome. Mas para a minha mãe, Iara, talvez mais do que ao meu próprio falecido pai, por algum motivo que apenas intuía este pronome de tratamento combinava-lhe muito.  

Já disse mais de uma vez que minha mãe é uma das grandes responsáveis por ter me tornado um homem das letras, né? Não por ser advogada, mas por um jeito de ser mais sensível. Ela, assim como foram minha madrinha, sua irmã Lurdes, e minha avó paterna, dona Edith, é uma excelente contadora de histórias, o que certamente me inspirou para a vida. Mais do que a boa memória para relembrar fatos remotos, a fineza da construção narrativa e o tino de observar que determinado recorte temporal rende um destaque, um tratamento diferenciado para além do restante da vida cotidiana, por mais banal que este possa parecer, é coisa de gente abençoada com um dom. 

Caso não meu, mas dela, minha mãe. Desde a infância tomada de dificuldades de toda ordem, do financeiro ao machismo, da saúde ao preconceito, da exclusão social à violência doméstica, soube, com uma capacidade divina, transformar fatos melancólicos e tristes em episódios engraçados, graciosos e até fantásticos. Dignos da mais alta literatura de um Tchékov, um Erico, um Joyce. Ou não seria exatamente isso as histórias do cachorro Mac, da visão que teve do Coelho da Páscoa ou do Bob, o cão herói, devidamente recuperadas aqui no blog por meu irmão?

E essa graça especial não aparece só quando ela conta histórias, mas também quando as reconta. Sempre adorei essas repetições, pois não raro surgem elementos novos àquele enredo que realçam ainda mais a oralidade. Pois ocorreu justo isso recentemente, numa dessas recontações dela. O ano era 1966 e a cidade, Porto Alegre. Mas a Porto Alegre dos moradores da periferia – no caso, a vila Cefer, na zona leste da cidade, uma das resistentes áfricas negras da capital gaúcha. Minha mãe, aos 17 anos, frágil de saúde e de condições de vida na casa em que (sobre)vivia com os pais e os vários irmãos, adoeceu. Acometeu-lhe a tuberculose, doença infecciosa estigma de pobreza no Brasil.

A jovem Iara, precisando de tratamento, foi buscar atendimento onde lhe era possível no serviço público: na Unidade Sanitária São José do Murialdo, o Sanatório Partenon. Este Centro Social foi o precursor no Rio Grande do Sul da medicina comunitária para atendimento a pessoas com tuberculose. Ainda hoje em funcionamento na Av. Bento Gonçalves, no bairro Partenon, distancia-se aproximadamente 4 quilômetros da Cefer, Nada tão longe assim, não fosse essa distância ter de ser empreendida a pé pela debilitada jovem. Em plena noite. 

Horas depois, chegou. Já na recepção, a primeira assessoria de Deus. Enquanto aguardava atendimento, os próprios atendentes do Sanatório, sem constrangimento e nem escrúpulos diante de uma mulher jovem, negra e pobre, descaradamente apontavam o dedo em sua direção e cochichavam entre si, soltando olhares de pretensa consternação. Minha mãe estava desenganada pelos médicos e ainda não havia sido informada disso. Porém, a jovem Iara, misto de pureza e da tal assistência divina, não se incomodou com aquela atitude desrespeitosa. Mas não por segurança em si, a qual ainda precisaria muito para erigir, mas porque achou que não era com ela. Naquela sala de espera quase vazia, o destino pôs-lhe às costas, a alguns bancos atrás, um rapaz embriagado, caindo pelas tabelas, todo roto e sujo. Um pobre diabo. Assim, ela safou-se da humilhação, pois, não sabendo de tamanha gravidade de seu próprio caso, entendeu que eram ao infeliz bêbado que se dirigiam os comentários insensíveis dos atendentes. Vejam só.

Mas o pior (ou o melhor) estava por vir. O que era para ser uma consulta virou, dada a gravidade do seu problema pulmonar, em uma internação imediata. Ela precisaria baixar por tempo indeterminado. Acontece que aquela seria a primeira vez que passaria uma noite longe de casa e, ainda, sem poder avisar ninguém, afinal, se ricos já não tinham telefone àquela época, imagina a família da minha mãe. Ficaria ali, por imposição, sozinha e longe da mãe, a minha avó Isaura, seu porto-seguro, pessoa que viveu mais de 70 anos sem acreditar em religião, mas que nem por isso deixou de transmitir aos filhos – e a ela, em especial – um imenso sentido de fé. Mas nem a maior crença do mundo faria com que vó Isaura não ficasse preocupada, se não, desesperada, com a ida sem retorno da filha. Não havia o que fazer, apenas rezar.

Se aquila situação inesperada já seria motivo de aflição para uma menina hoje, imagine para uma adolescente daquela época, doente e despreparada, como a inocente Iara. Sentia-se como uma criança solta no mundo. Medo: foi o que sentiu quando foi posta sozinha num dos espaçosos quartos do andar térreo, cujas amplas janelas envidraçadas expunham apenas um assombroso matagal fechado vizinho ao sanatório. Dava a impressão de ser uma grande tela onde, na cabeça assustada de Iara, podiam surgir de dentro da noite figuras aterrorizantes a qualquer momento. Um filme de terror onde ela era a protagonista.

A sensação era de total desamparo. Total solidão. “O que fazer!”, pensava? Somente com os olhos para fora do lençol, minha mãe pôs-se a fazer outra coisa que sempre soube muito bem além de contar histórias: rezar. Precisava que algo a ajudasse a sair daquela aflita e crítica situação. Foi então que, do tal janelão à sua frente, formou-se uma enorme imagem de Nossa Senhora. Nítida, cândida e iluminada por uma luz até aquele exato momento inexistente. A santa, com olhar firme e tranquilizador, tomava a janela inteira e olhava para ela, Iara, em resposta àquele genuíno pedido de socorro. Minha mãe, como que por um milagre, adormeceu sem perceber. No dia seguinte, um médico sanitarista chamado Moacyr Scliar a atendeu e, contrariando o diagnóstico fatal dado por colegas anteriormente, afirmou-lhe que a ajudaria a recuperar-se. E foi o que fez na prática médica e não só com palavras, embora fosse muito afeito a elas como a própria paciente.

Até aqui, é onde minha mãe sempre nos contou. Qualquer um diria que, dada a maravilha dos fatos, já seria suficiente para encerrar a história. Mas tem mais. Sabe aquela pitada de novo elemento narrativo adicionado por minha mãe às próprias contações a que me referi anteriormente? Pois, então: entra agora. Porém – como também lhe é de costume –, este novo item dialoga, quase sempre, com outra história. 

Desta vez, o ano é 2017, Rio de Janeiro, bairro da Tijuca, mês de fevereiro. Meu irmão havia se acidentado andando de bicicleta na rua, o que o levou a passar por duas sérias cirurgias no cotovelo direito. A horas de receber alta, meu irmão inventou de nos dar um susto tremendo tendo uma embolia. Todos nós recorremos àquilo que aprendemos com dona Iara: a reza. A contrição dela, no entanto, envolveu novamente uma figura abençoada. Da janela do quarto do hospital em que meu irmão estava, minha mãe enxergava a estátua de uma santa (real esta, aliás), a qual ela nem sabia qual era. Prática, pensou: “é tu mesma!”  Vai que tivesse amizade com Nossa Senhora, fosse vizinha de porta ou frequentassem o mesmo clube! E deu certo: foi a esta que minha mãe rogou pela recuperação de meu irmão, mostrando que a sua linha de comunicação com a galera lá do alto continuava em dia mesmo tantos anos depois.

Pois que, a pouco tempo, em suas orações, um raciocínio aparentemente óbvio veio-lhe explicar a graça obtida no passado e na ocasião mais recente. Relembrando-se da inesquecível imagem de Nossa Senhora que lhe salvou quando mais se sentiu desprotegida, minha mãe observou, atrás da santa, uma outra imagem: a de minha avó Isaura em posição de reza. Com as pequenas mãos unidas em gesto de súplica pela filha que, naquele episódio do Sanatório de Porto Alegre, não sabia onde estava. Só pedia, com fé, que Nossa Senhora zelasse.

Foi aí que minha mãe ligou os pontos: a mesma energia que ela enviou a meu irmão para que se recuperasse, foi a que minha avó, sem nenhuma outra alternativa a fazer, emanou a quilômetros de distância para que ela, minha mãe, ficasse bem naquele remota noite de 1966. E em ambos os casos mediado pela mãe de todos, Nossa Senhora, cujo coração abarca e simboliza o maior amor do mundo: o amor de mãe. Nossa Senhora, que é homenageada neste dia 12 de outubro, também celebrado como Dia das Crianças.

No entanto, não é coincidência tanta proximidade no calendário: pouquinho antes da data da santa, comemoramos outra data – pelo menos, na minha família. O dia 11, na véspera, é quando Iara Terezinha Reis Rodrigues completa anos de vida. Hoje, em 2019, especialmente, 70 deles. Setentinha. Após gerar três filhos e cuidar de outros tantos, superar um problema de saúde grave, nutrir um casamento de décadas, ser a primeira a fazer faculdade na família, ganhar uma merecida aposentadoria por anos de serviços prestados ao sistema público e contar e recontar diversas histórias deliciosas de se ouvir, minha mãe chega a este marco da jornada de uma pessoa neste plano. Viva, cheia de gás, sorrisos e coisas a ensinar. A mim, ela deu de presente não só a vida como parte do seu dom da narrativa. Aos meus irmãos, de quem tenho certeza da permissão de falar por eles, sei que também devem tudo a ela. A nossa senhora, assim, no diminutivo, pra não assustar suas colegas lá de cima.


por Daniel Rodrigues
foto: Leocádia Costa
(Parque Lage, set/2019)
(a Iara, Antonio, Clayton e Karine)