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segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Sergei Prokofiev - "Pedro e o Lobo" (1936)



Duas capas de "Pedro e o Lobo":
acima, a primeira gravação, com a 
Boston Symphony Orchestra, de
1939, e abaixo, versão em português
narrada por Rita Lee, de 1989
”Na Rússia, há um grande esforço para a educação musical das crianças. Uma das minhas peças orquestrais, ‘Pedro e o Lobo’, foi uma experimentação. As crianças recebem impressões de diversos instrumentos da orquestra apenas ouvindo a peça sendo apresentada”. 
Sergei Prokofiev

“[O estilo de Prokofiev é uma] combinação do simples com o intrincado, da complexidade do conjunto com a simplificação do particular”. 
V. Karatygin, crítico musical

“Todo o instável, transitório, acidental ou caprichoso foi excluído de sua obra (...) Nada efêmero, nada acidental. Tudo é distinto, exato, perfeito. Por isso, Prokofiev é um dos maiores compositores do nosso tempo”. 
Sergei Eisenstein

O compositor russo Sergei Prokofiev pode ser considerado um artista moderno em vários aspectos. Não apenas por ter contribuído para a construção da música contemporânea uma vez que pertencente à geração modernista, mas por ter sentido na pele o maior dos dilemas de um artista dos tempos atuais: ser pop ou não ser pop. Eis a questão. Para quem vivia de arte na Rússia de Stálin, o estrelato até era possível, mas não sem preço. O instituído conceito de Realismo Socialista exigia dos artistas maior comunicação com o publico. Trocando em miúdos: que suas criações servissem, como em qualquer ditadura, de propaganda política. Entre os grandes músicos de sua geração, todos, sem exceção, tiveram problemas para exercer justamente aquilo que os fazia importantes inclusive para o governo bolchevique, que se aproveitava de seus talentos para potencializar o discurso comunista. Stravisnky, Rachmaninoff e Shostakovitch, por exemplo, sofreram ora com a apropriação do Estado, ora com a ferrenha vigília do mesmo. Se não obedeciam, eram postos numa geladeira mais fria do que a Sibéria: aquela destinada aos traidores da nação. Fosse numa prisão domiciliar ou mesmo no autoexílio, não raro o resultado era uma depressão pela falta de liberdade ou, pior, pelo nacionalismo ferido. Não havia o que lhes salvasse.

Com Prokofiev ocorreu tudo isso também: talento descoberto cedo, alçamento à estrela, tentativa de doutrinação, contrariedade a esta condição, longo período sabático no exterior, amadurecimento artístico e... retorno para a Rússia. Nessa ordem. O bom filho, ainda mais um nacionalista como todos da sua geração, à casa tornaria hora ou outra, mesmo que o cenário não fosse dos mais favoráveis como aquele de 1933, 16 anos após a Revolução Socialista. Produzir? Podia, só que dentro dos ditames que o estado determinava. Passar a compor marchas diatônicas, corais para amadores e cantatas meramente comemorativas era o que lhe restava se quisesse trabalhar. Neste processo de simplificação linguística e aproximação com o lirismo tradicional russo escreveu trilhas para cinema em contribuições memoráveis nos filmes “Alexandre Nevsky” e “Ivan, o Terrível”, ambos de Sergei Eisenstein. Mas longe daquilo que gostava: dissonâncias, polifonia, riqueza harmônica e exageros aqui e ali. 

Só que, diferentemente dos seus pares, Prokofiev tinha dentro de si um anjo para lhe salvar. Compositor desde os 5 anos de idade, quando surgiu como pianista prodígio, Prokofiev resgata da memória as tenras melodias folclóricas que ouvia dos camponeses quando criança em Sontsovka, na Ucrânia, onde nascera, e do incentivo dos pais para a vida musical para se inspirar e pincelar com cores vivas a sua inevitavelmente intrometida obra. É neste contexto que nasce aquela que, além de ser sua obra mais conhecida, é também uma das mais revolucionárias da música erudita de todos os tempos: o conto sinfônico infantil “Pedro e o Lobo”, de 1936, para narrador e orquestra, Opus 67.

Capa do livro original 
em russo, de 1936
Na história, Pedro é um jovem pastor de ovelhas que vive com o seu avô no campo. Um dia, farto de algo mais divertido, decide gozar com as pessoas da aldeia, mentindo que estava sendo atacado por um lobo. Desmascarado, ele não é acudido pelos camponeses irritados com sua atitude mentirosa quando, de fato, o perigoso animal espreita. O lobo engole o pato, que havia fugido por descuido do menino, e só não o faz o mesmo com o gato porque este, ágil, sobe à árvore. 

O sucesso universal que “Pedro...” obteria século XX adiante faz com que seja difícil imaginar o quanto foi penoso para Prokofiev compô-la. Autor acostumado às construções intrincadas de melodia e harmonia, subvertidas com perícia e austeridade, o que geralmente lhe dificultava o entendimento, Prokofiev via-se agora diante da encomenda de Natalya Sats, diretora de um teatro infantil de Moscou, em um projeto no qual era necessário ser compreendido por todos os públicos, principalmente o infantil. Desta forma, o compositor usa toda sua inteligência musical para, num processo cartesiano, limpar as complexidades desnecessárias e edificar uma peça que, devido à sua beleza lúdica e clareza conceitual, passou a servir de referência a obras voltadas para crianças. Na Rússia e no mundo! Sendo forçosamente pop, Prokofiev inferiu de maneira inapagável na cultura pop.

Ledo engano, no entanto, supor que o compositor russo apenas despiu de experimentalismo sua música para criar um mero número fácil e vulgar. O grande mérito dele está em, sabendo valer-se de toda sua sensibilidade musical e extenso cabedal técnico – adquirido desde a infância com mestres como Glière, Rimsky-Korsakov e Stravisnky, e mais tarde, no convívio com figuras como Picasso, Cézanne, Diaguilev e Maiakowsky –, não desfazer a inteligência do público a quem se dirigia: as crianças. Situando-se entre a música absoluta, a realização de uma paisagem sonora ideal desvinculada do ambiente externo, e a música programática, gênero instrumental criado no período romântico que transforma o espaço natural em sala de concerto, “Pedro...” tem o objetivo pedagógico de ensinar música às crianças.

Prokofiev: um revolucionário
entre o erudito e o popular
Prokofiev deu a cada personagem da história a representação por um instrumento: Pedro, o quarteto de cordas; passarinho, a flauta transversal; pata, oboé; gato, clarinete; vovô, fagote; lobo, três trompas; e os sons dos caçadores, tímpanos e bombo. Através da linguagem musical plástica e literária, faz-se entender e entreter. No espaço simbólico entre a elite e o povo, Prolofiev optava pelos dois. Como Richard Wagner, o russo vale-se da aliteração poética para fazer com que a música participe do enredo, evocando sugestões e harmonias. Uma das ferramentas usados é outra técnica largamente usada pela ópera: o leitmotiv. Elemento recorrente na composição de “Pedro...”, ajuda Prokofiev a desenvolver temas que constituem, cada um, um “motivo”, isto é, uma reiteração ao longo da composição, que apela com frequência ao resgate de trechos e sons anteriores.

Ao suavizar sua estética geralmente arrojada por uma simplificação estilística, Prokofiev marca uma viragem que, talvez sem perceber, provocaria uma revolução na música mundial. Quantos artistas posteriores a ele oriundos do meio alternativo, da vanguarda ou do erudito também se depararam com a dicotomia entre popular e alta cultura? Manterem-se fiéis aos preceitos e restringir sua comunicação a poucos ou mudar de paradigma e expandir o alcance de suas obras? E quantos, sem saber lidar, se perderam nisso? Beatles, Salvador Dalí e Federico Fellini, cada um em sua área, sabem bem do que se trata. 

O fato é que é certo dizer, por exemplo, que “Fantasia”, realizado três anos após o lançamento de “Pedro...”, jamais sairia do raff de Walt Disney não fosse o conceito linguístico cunhado por Prokofiev, que foi aos Estados Unidos em 1938 apresentar-lhe a peça ao piano especialmente. Tanto que o próprio Disney produziu, em 1946, sua versão para a obra, introjetando seus ensinamentos. “Pedro...” influenciou as cabeças de Hollywood, que perceberam naquela “fórmula” de casamento música-imagem um poderoso elemento narrativo de comunicação com o público espectador, e não só o infantil. Filmes, animações, publicidade, televisão e tudo que se imagine da relação som/personagem bebem até hoje nesta inaugural sinfonia para crianças – e adultos, claro. Não precisa ir muito mais longe para notar essa influência. Os acordes de cordas que designam Pedro são exaustivamente copiados em praticamente todas as trilhas sonoras cinematográficas de filmes minimamente voltados ao público infanto-juvenil, visto que o principal reinventor do conceito musical do cinema moderno, John Williams, é claramente um adepto de Prokofiev.

"Pedro e O Lobo", de Walt Disney (1946)

Além disso, é possível ouvir versões de “Pedro...” nas mais diversas línguas e culturas, que se identificam com a história independentemente do local e tempo dada sua universalidade. David Bowie, Sean Connery, Bono Vox, Boris Karloff (inglês), Gérard Philipe, Pierre Bertin (francês), Antonio Banderas (espanhol), Sophia Loren (italiano), Paul de Leeuw (holandês), Rita Lee e até Roberto Carlos (português) já narraram a peça em seus respectivos idiomas em mais de uma centena de gravações.

O feito de Prokofiev, mesmo que a duras penas, foi o de contribuir sobremaneira para a cultura pedagógica da música na sociedade e para a popularização da música erudita, taxada de difícil e chata (muitas vezes, não sem razão) pelo grande público. Em “Pedro...”, sem abrir mão da tradição clássica e da veia vanguardista, Prokofiev, salvo pela própria alma infantil, ajudou a democratizar a música de alta qualidade, tornando-a popular no melhor sentido da palavra. Fez o que talvez camarada Stálin nem suspeitasse ser possível sem rigidez: uma obra literalmente “comuna”.

**********************************

FAIXAS:

1. "Parte 1" - 00:56
2. "Parte 2" - 01:25
3. "Parte 3" - 02:17
4. "Parte 4" - 01:49
5. "Parte 5" - 01:47
6. "Parte 6" - 01:04
7. "Parte 7" - 01:43
8. "Parte 8" - 01:25
9. "Parte 9" - 02:31
10. "Parte 10" - 01:31
11. "Parte 11" - 01:11
12. "Parte 12" - 00:33
13. "Parte 13" - 01:55
14. "Parte 14" - 00:19
15. "Parte 15" - 01:50

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OUÇA O DISCO:
Sergei Prokofiev - "Pedro e o Lobo"*

*Versão com a New Philharmonia Orchestra, narrada por Richard Baker com dondução de Raymond Leppard, de 1971, considerada pela revista de música clássica Gramophone como a melhor gravação de "Pedro e o Lobo"


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

Dossiê ÁLBUNS FUNDAMENTAIS 2020

 


Corre pro abraçaço, Caetano!
Você tá na liderança.

Como de costume, todo início de ano, organizamos os dados, ordenamos as informações e conferimos como vai indo a contagem dos nossos  ÁLBUNS FUNDAMENTAIS, quem tem mais discos indicados, que país se destaca e tudo mais. Se 2020 não foi lá um grande ano, nós do Clyblog não podemos reclamar no que diz repsito a grandes discos que apareceram por aqui, ótimos textos e colaborações importantes. O mês do nosso aniversário por exemplo, agosto, teve um convidado para cada semana, destacando um disco diferente, fechando as comemorações com a primeira participação internacional no nosso blog, da escritora angolana Marta Santos, que nos apresentou o excelente disco de Elias Dya Kymuezu, "Elia", de 1969
A propósito de país estreante nos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS, no ano que passou tivemos também a inclusão de belgas (Front 242) e russos (Sergei Prokofiev) na nossa seleta lista que, por sinal, continua com a inabalável liderança dos norte-americanos, seguidos por brasileiros e ingleses. 
Também não há mudanças nas décadas, em que os anos 70 continuam mandando no pedaço; nem no que diz respeito aos anos, onde o de 1986 continua na frente mesmo sem ter marcado nenhum disco nessa última temporada, embora haja alguma movimentação na segunda colocação.
A principal modificação que se dá é na ponta da lista de discos nacionais, onde, pela primeira vez em muito tempo, Jorge Ben é desbancado da primeira posição por Caetano Veloso. Jorge até tem o mesmo número de álbuns que o baiano, mas leva a desvantagem de um deles ser em parceria com Gil e todos os de Caetano, serem "solo". Sinto, muito, Babulina. São as regras.
Na lista internacional, a liderança continua nas mãos dos Beatles, mas temos novidade na vice-liderança onde Pink Floyd se junta a David Bowie, Kraftwerk e Rolling Stones no segundo degrau do pódio. Mas é bom a galera da frente começar a ficar esperta porque Wayne Shorter vem correndo por fora e se aproxima perigosamente.
Destaques, de um modo geral, para Milton Nascimento que, até este ano não tinha nenhum disco na nossa lista e que, de uma hora para outra já tem dois, embora ambos sejam de parcerias, e falando em parcerias, destaque também para John Cale, que com dois solos, uma parceria aqui, outra ali, também já chega a quatro discos indicados nos nossos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS.

Dá uma olhada , então, na nossa atualização de discos pra fechar o ano de 2020:



PLACAR POR ARTISTA INTERNACIONAL (GERAL)

  • The Beatles: 6 álbuns
  • David Bowie, Kraftwerk, Rolling Sones e Pink Floyd: 5 álbuns cada
  • Miles Davis, Talking Heads, The Who, Smiths, Led Zeppelin, Wayne Shorter e John Cale*  **: 4 álbuns cada
  • Stevie Wonder, Cure, John Coltrane, Van Morrison, Sonic Youth, Kinks, Iron Maiden, Bob Dylan e Lou Reed**: 3 álbuns cada
  • Björk, The Beach Boys, Cocteau Twins, Cream, Deep Purple, The Doors, Echo and The Bunnymen, Elvis Presley, Elton John, Queen, Creedence Clarwater Revival, Herbie Hancock, Janis Joplin, Johnny Cash, Joy Division, Lee Morgan, Madonna, Massive Attack, Morrissey, Muddy Waters, Neil Young and The Crazy Horse, New Order, Nivana, Nine Inch Nails, PIL, Prince, Prodigy, Public Enemy, R.E.M., Ramones, Siouxsie and The Banshees, The Stooges, U2, Pixies, Dead Kennedy's, Velvet Underground, Metallica, Grant Green e Brian Eno* : todos com 2 álbuns
*contando com o álbum  Brian Eno e John Cale , ¨Wrong Way Out"
**contando com o álbum Lou Reed e John Cale,  "Songs for Drella"



PLACAR POR ARTISTA (NACIONAL)

  • Caetano Veloso: 5 álbuns
  • Jorge Ben: 5 álbuns *
  • Gilberto Gil*, Tim Maia e Chico Buarque: 4 álbuns
  • Gal Costa, Legião Urbana, Titãs e Engenheiros do Hawaii: 3 álbuns cada
  • Baden Powell**,, João Bosco, João Gilberto***, Lobão, Novos Baianos, Paralamas do Sucesso, Paulinho da Viola, Ratos de Porão, Sepultura e Milton Nascimento**** : todos com 2 álbuns 
*contando o álbum Gilberto Gil e Jorge Ben, "Gil e Jorge"
** contando o álbum Baden Powell e Vinícius de Moraes, "Afro-sambas"
*** contando o álbum Stan Getz e João Gilberto, "Getz/Gilberto" ****
contando com os álbuns Milton Nascimento e Criolo, "Existe Amor" e Milton Nascimento e Lô Borges, "Clube da Esquina"



PLACAR POR DÉCADA

  • anos 20: 2
  • anos 30: 3
  • anos 40: -
  • anos 50: 15
  • anos 60: 90
  • anos 70: 132
  • anos 80: 110
  • anos 90: 86
  • anos 2000: 13
  • anos 2010: 13
  • anos 2020: 1


*séc. XIX: 2
*séc. XVIII: 1


PLACAR POR ANO

  • 1986: 21 álbuns
  • 1985, 1969 e 1977: 17 álbuns
  • 1967, 1973 e 1976: 16 álbuns cada
  • 1968 e 1972: 15 álbuns cada
  • 1970, 1971, 1979 e 1991: 14 álbuns
  • 1975, e 1980: 13 álbuns
  • 1965 e 1992: 12 álbuns cada
  • 1964, 1987,1989 e 1994: 11 álbuns cada
  • 1966, 1978 e 1990: 10 álbuns cada



PLACAR POR NACIONALIDADE*

  • Estados Unidos: 171 obras de artistas*
  • Brasil: 131 obras
  • Inglaterra: 114 obras
  • Alemanha: 9 obras
  • Irlanda: 6 obras
  • Canadá: 4 obras
  • Escócia: 4 obras
  • México, Austrália, Jamaica, Islândia, País de Gales: 2 cada
  • País de Gales, Itália, Hungria, Suíça, França, Bélgica, Rússia, Angola e São Cristóvão e Névis: 1 cada

*artista oriundo daquele país
(em caso de parcerias de artistas de páises diferentes, conta um para cada)

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Luciano Berio - "Folk Songs" (1964)




"Até Cathy Barberian sabe/
Não há uma volata que
 ela não possa cantar"
da música "Your Gold Teeth"
do Steely Dan


Por séculos a música erudita pautou a música popular, ditando com autoritarismo estético e formal o que seria aproveitado ou não na música de acesso geral – já que, historicamente, a música clássica nunca foi acessível. O contrário mal acontecia, ou seja, da música pop ou folclórica influenciar a clássica (quando ocorria, prevalecia o lado “clássico”). Até que, na senda aberta pelos modernistas da primeira metade do século XX, Shoenberg, Berg, StravinskiOrff, entre outros, a turma de compositores da vanguarda erudita que veio logo em seguida entrou para derrubar todas as barreiras. Um deles foi o italiano Luciano Berio (1925-2003), prolífero autor que, em 1964, compôs o que para muitos é (e para mim também) sua obra-prima: as “Folk Songs”, marco da fusão entre pop, folclore e erudito.Concisão, precisão e requinte em pouco mais de 20 minutos. Resultado de um trabalho de pesquisa de Berio a cantigas folclóricas de diversas partes do mundo, "Folk Songs" é perfeito em tudo: sonoridade, melodia, harmonia, métrica. As sonoridades típicas do lugar de onde se originaram ganham uma síntese, um corpo, como que uma nova linguagem sonora. O arranjo se resume a sete grupos de instrumentos: flauta, clarinete, cello, violino, viola, percussão e harpa. Ah! Claro, tem um oitavo instrumento fundamental e sem o qual a obra não existiria: a voz da mezzo-soprano norte-americana Cathy Barberian. À época casada com Berio, Cathy ganhou do marido esse ciclo de músicas, feitas especialmente para seu vocal apurado e expressivo. Altamente influente em trabalhos para voz na música como um todo, as "Folk Songs" se tornaram uma referência tanto para compositores desta linha, como Meredith Monk e Phillip Glass  quanto para cantoras pop como Elizabeth Frazer (Cocteau Twins), Sinéad O'Connor, Joni Mitchell, entre várias outras.
 E as faixas? Todas impecáveis. Abrindo, "Black Is the Colour (Of My True Love's Hair)" e "I Wonder as I Wander" – minha preferida, com um lindo conjunto harmônico de viola, cello e harpa que forma um som de sanfona “caipira” –, são adaptações livres de canções do compositor folk norte-americano John Jacob Niles. A valsa “Loosin Yelav”, da Armênia, país dos antepassados Cathy, descreve de forma fantástica a trajetória da lua, transmitindo para os sons a impressão deste movimento onírico. “Rosssignolet Du Bois” vem suave e assim se mantém, límpida, contrastando com a intensidade dramática siciliana da seguinte, “A La Femminisca”.
 "La Donna Ideale" e "Ballo" não provêm de bardos populares anônimos; porém, são composições de Berio sobre temas folclórico-amorosos de sua terra natal. A primeira vem de um poema no velho dialeto genovês, "A Mulher Ideal", o qual diz que, se um homem encontrar uma mulher educada, bem formada e com um bom dote, não pode deixá-la escapar. Já a outra, intensa em seus arpejos de violino e cuja letra também é extraída de um antigo poema, diz que o mais sábio dos homens perde a cabeça por amor, mas, em contrapartida, resiste a tudo por causa desse sentimento. Ainda na Itália, a melancólica e dissonante “Motettu de Tristura” baixa o tom lindamente.
 A França retorna nas duas seguintes, inspiradas em peças resgatadas pelo musicólogo Joseph Canteloube no idioma occitano. "Malurous qu'o uno Fenno", bastante medieval com sua flauta doce acompanhando o canto, fala sobre os desencontros conjugais entre homens e mulheres. Já "Lo Fïolairé", em que uma menina em sua roda de fiar canta uma imaginária troca de beijos com um pastor, é uma das mais belas do círculo. Com uma maravilhosa performance de Cathy, que executa uma impressionante progressão harmônica, abre com um violoncelo grave e introspectivo do desejo reprimido da moça, mas progride e termina em acordes cristalinos e deleitosos de harpa. Um gozo.
 A alegre “Azerbaijan Love Song” termina a obra em dança típica russa e uma interpretação bem mais solta da solista, fechando este trabalho que é, do início ao fim e através de várias lógicas, uma declaração de amor do autor à sua amada.
 Um disco pop com ares clássicos ou vice-versa, onde as faixas têm, inclusive, como que feito para tocar nas rádios, o mesmo tempo médio de 2 min e 30 seg de duração. Enquanto, nos anos 50 e 60, vários outros compositores modernos como Berio, ao tentar exprimir os horrores do pós-guerra e as tensões de um mundo dividido faziam de tudo para combater a tonalidade da música, ele não só acolheu a escala cromática como, ainda, a reelaborou, criando uma obra única e agradável a todos os ouvidos, do mais rebuscado ao mais desavisado. Afinal, quando a música é boa, tudo acaba sendo, saudavelmente, a mesma coisa.
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O CD original traz ainda o “Recital I for Cathy” (para voz feminina e 17 instrumentos), considerada uma das mais importantes releituras musicais da segunda metade do século passado. Luciano Berio escreveu esta debochada peça de 35 minutos de teatro em que inclui numerosas citações de história musical (Bach, Monteverdi, Ravel, Wagner, Prokofiev, Bizet e vários outros, inclusive ele mesmo) em estilo tragicômico.
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FAIXAS:
1. Black Is The Colour (Of My True Love's Hair) (EUA) - 3:01
2. I Wonder As I Wander (EUA) - 1:42
3. Loosin Yelav (Armênia) - 2:34
4. Rosssignolet Du Bois (França) - 1:17
5. A La Femminisca (Sicília, Itália) - 1:38
6. La Donna Ideale (Itália) - 1:02
7. Ballo (Itália) - 1:20
8. Motettu De Tristura (Sardenha, Itália) - 2:16
9. Malorous Qu'o Uno Fenno (Auvergne, França) - 0:55
10. Lo Fiolaire (Auvergne , França) - 2:50
11. Azerbaijan Love Song (Azerbaijão) - 2:09

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Ouça:



domingo, 12 de outubro de 2025

Chick Corea - "Children's Songs" (1984)


"Adoro estar perto de crianças, porque elas são livres e brilhantes e te fazem acordar. Então, pensar sobre esse conceito do brilho das crianças foi o que serviu de modelo para eu escrever essas canções infantis".
Chick Corea

É interessante perceber como músicos acostumados a se experimentarem uma hora chegam à música infantil. Foi assim com Woody Guthrie, Carole King e Esquivel, assim como com os brasileiros Chico Buarque, Adriana Calcanhoto (sob o pseudônimo Partimpim), Paulo Leminski e Vinicius de Moraes. Até mesmo na música clássica, a se ver por Prokofiev, Debussy e Mozart. Há exemplos no jazz também, de Sammy Davis Jr., com seu “Sings the Complete ‘Dr. Dolittle’”, a Vince Guaraldi, que um dia foi escalado para compor as trilhas da série infantil televisiva Peanuts e ficou mundialmente conhecido justamente por esse trabalho.

Não é uma regra, mas quando esses músicos se tornam mães ou pais, há um motivo a mais para dedicarem canções aos pequenos. Chick Corea é um desses casos. No início dos anos 70, já uma lenda do jazz mundial, ele estava recém divorciado da mãe de seus filhos, Thaddeus e Liana, e casava-se pela segunda vez, agora com a também pianista Gayle Moran, esposa que o acompanhou até o final da vida, em 2021. Porém, os filhos ainda eram pequenos àquela altura. Como, então, afagá-los neste novo momento de suas vidas pessoais? Como mantê-los próximos a si? Não há confirmação sobre esta motivação, mas a resposta parece ter vindo, nada estranhamente, em formato de música. A coincidência dos períodos entre a nova configuração familiar, as primeiras composições com a temática da criança e o começo das improvisações solo ao piano dão a “Children’s Songs”, de 1984, este caráter.

Virtuose do piano, mas também um visionário da música contemporânea, Corea ajudou a moldar o curso do jazz moderno, influenciando gerações de músicos com sua habilidade técnica, ousadia harmônica e busca incessante pela inovação. Sua obra passa pelo hard bop, jazz fusion, latin jazz, eletrônico, vanguarda e música clássica. Escritas entre 1971 e 1983, as “Children’s Songs” captam, num grande poder de síntese e sensibilidade, vários aspectos de toda essa musicalidade em 20 peças e mais um “adendo” final.

A onipresença dos filhos na vida de Corea fez com que ele, inspirado na série “Mikrokosmos”, de 1940, do compositor húngaro Béla Bartók (uma de suas grandes influências), passasse a escrever, dentre outros diversos formatos, breves miniaturas de música infantil. Ele cria suas versões em composições ao mesmo tempo líricas e ricas em estrutura melódica e harmônica, que passeiam pelo romântico, pelo jazz, pelo folk e pelo pop. Na simplicidade lúdica das “Children’s Songs” há um trabalho complexo. Há paralelos estilísticos e estruturais com o ciclo de Bartók, como o uso das escalas pentatônicas, o emprego de compassos e de ritmos cruzados incomuns, a variedade de atmosferas sonoras em um tempo relativamente curto de cada peça e o aumento gradativo de dificuldade e complexidade ao longo da sequência.

A lúdica capa com os Smurfs de
"Friends", de 1978, onde já tinham
duas das "Children's Songs"
Traços desse repertório aparecem, a partir de então, em vários momentos de sua vasta produção musical, seja em carreira solo, em bandas ou parcerias. Uma versão mais lenta de "Nº 1" aparece pela primeira vez no álbum “Crystal Silence”, duo com Gary Burton, de 1972, e um ano depois junto da Return to Forever em “Light as a Feather”. A célebre banda de jazz fusion de Corea, entretanto, já havia prenunciado as “canções infantis” dentro da faixa "Space Circus Part I", constante no primeiro disco deles, “Hymn of the Seventh Galaxy”. Já os temas "Nº 5" e "Nº 15" surgem em “Friends”, de 1978, quando acompanhado dos músicos Steve Gadd, Eddie Gomez e Joe Farrell.

A ebulição elétrica da Return to Forever foi usada mais uma vez por Corea para trazer esses conceitos musicais dentro da extensa "Songs of the Pharoah Kings", que encerra epicamente o álbum “Where Have I Known You Before”, de 1974, a qual escondia, na verdade, a fuga “Nº 6”. Até mesmo o travesso tema "Nº 9" fez sua primeira aparição no álbum solo “The Leprechaun”, de 1976, como "Pixieland Rag".

Somente nos anos 80, agora desnudadas de qualquer arranjo ou grandes instrumentalizações, as “Children’s Songs” são reunidas e gravadas ao piano solo em julho de 1983, no Tonstudio Bauer, em Ludwigsburg, Alemanha, pelo selo ECM. A exceção é a última faixa, em que o Corea forma um trio de câmara com Ida Kavafian, ao violino, e Fred Sherry, no violoncelo. O alegremente elegante "Addendum", que fecha “Children's Songss”, demonstra a excelência contrapontística do pianista e a capacidade de compor para cordas, uma habilidade que surgiu em “The Leprechaun” e foi aprimorada ainda mais por ele no clássico “Mad Hatter”, de 1978.

Corea, que pretendia "transmitir simplicidade como beleza, representada no espírito de uma criança", como escreveu no encarte original do disco, não apenas conseguiu seu objetivo como entendeu ser importante não se eximir (e nem isentar a criança) de experimentar densidades musicais não tão comuns de serem dirigidas a esse público. Lances lúdicos, coloridos e graciosos se juntam à dramaticidade, melancolia e introspecção. E não necessariamente nessa ordem, como na impermanência da vida, algo essencial que um ser humano aprenda desde pequeno. E o objetivo principal foi atingido: os filhos Thaddeus e Liana sentiram-se devidamente afagados. E os fãs também.

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Chick Corea apresentando ao vivo na 
Alemanha as "Children's Songs", em 1982


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FAIXAS:
1. “Nº 1” - 1:47
2. “Nº 2” - 0:53
3. “Nº 3” - 1:23
4. “Nº 4” - 2:14
5. “Nº 5” - 1:07
6. “Nº 6” - 2:38
7. “Nº 7” - 1:38
8. “Nº 8” - 1:39
9. “Nº 9” - 1:11
10. “Nº 10” - 1:29
11. “Nº 11” - 0:38
12. “Nº 12” - 2:33
13. “Nº 13” - 1:21
14. “Nº 14” - 1:58
15. “Nº 15” - 1:08
16. “Nº 16” & Nº 17” - 1:55
17. “Nº 18” - 1:47
18. “Nº 19” - 2:26
19. “Nº 20” - 1:20
20. “Addendum” - 5:10
Todas as composições de autoria de Chick Corea

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OUÇA O DISCO:
Chick Corea - "Children's Songs" 

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Daniel Rodrigues