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quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Chico Science & Nação Zumbi - "Afrociberdelia" (1996)




"Afrociberdelia de África,
o ponto de fusão do maracatu,
da cibernética e da psicodelia.
Afrociberdelia é um comportamento,
é um estado de espírito, é uma ficção,
é a continuação de 'Da Lama Ao Casos'.
Afrociberdelia é tudo isso. Que mais?
É o nosso novo disco."
Chico Science





"Da Lama ao Caos"  de 1994 já havia sido uma sensação, algo impressionante, incrível, notável, "Afrociberdelia" (1996), seu sucessor era a lapidação perfeita da ideia do anterior.
Então com mais tranquilidade,maturidade, liberdade e autonomia a Nação Zumbi liderada por sua cabeça pensante Chico Science ia adiante nos conceitos e princípios de sua música. Balanço, funk, peso, regionalismo, tecnologia eram levados um passo adiante no novo álbum. A banda desta vez mais livre e com crédito da gravadora abusava dos samples e dos recursos de estúdio mas de uma maneira muito sóbria e inteligente, sem fazer com que seu som se tornasse meramente um monte de colagens sem personalidade. "Afrociberdelia" como o nome, em cada um de seus radicais, tenta sugerir une a africanidade musical, a cibernética, o espaço, o futuro e as sensações sonoras possíveis de mexer com a mente.
E nesse emaranhado de música, folclore, tradição e tecnologia, o computador da Nação Zumbi dá o 'Enter' e "Afrociberdelia" se inicializa com Mateus, personagem do maracatu que apresenta o disco: Uma breve vinheta de introdução que parece já vir disposta a derrubar tudo com uma guitarra ruidosa e pesada, disparada à ordem do verso "Eu vim com a Nação Zumbi/ ao seu ouvido falar" chamada "Mateus Enter" começa a dar o recado encaminhar um grande disco.
Quase sem pausa, praticamente emendada, "Cidadão do Mundo" quebra a violência sonora com um funk cadenciado, de ritmo gostoso extremamente bem produzido, cheio de variações rítmicas e alternativas sonoras.
A ótima "Etnia", numa das principais características da banda mescla peso com a brasilidade de forma brilhante, entremeada por samples espertíssimos e bem sacados.
"Macô", com participação de Gilberto Gil, uma das tradicionais crônicas urbanas da turma de Chico Science, foi na verdade, minha primeira mostra do então futuro trabalho numa apresentação no Vídeo Music Awards da MTV Brasil com a presença de Gil no palco, á deixando-me ótima impressão e expectativa desde então. Uma daquelas tradicionais crônicas urbanas e de costumes das áreas pobres de Recife que Chico Science e sua turma tornaram tão características em pouco tempo, embalada por um ritmo extremamente convidativo e com um toque valioso da musicalidade de Gilberto Gil. Uma das melhores do álbum.
Por mais qualidades que tenha a original de Jorge Mautner, "Maracatu Atômico" ganhava sua versão definitiva nas mãos da Nação Zumbi, nume releitura inteligentíssima de alta sensibilidade musical, que transformava, por exemplo, o violino de Mautner num refrão pop altamente sonoro e contagiante, isso sem falar que o título parece ter sido feito sob encomenda para uma grupo musical que funde ritmos regionais com tecnologia. A gravadora enfiou no disco e goela abaixo da banda três remixes de gosto duvidoso e que, mais do que isso, comprometiam um pouco a ideia de álbum, o formato e o conceito, mas a gravação original, a pretendida pela banda, a do disco mesmo é um primor e uma das melhores coisas que fizeram, ouso dizer até, respeitosamente, que, de tão perfeita "Maracatu Atômico" passou a ser mais de Chico Science do que de Jorge Mautner.
Outra das melhores do disco e da banda e que igualmente obteve boa resposta comercial e de execução pública é a embalada "Manguetown", composição brilhante de cabo a rabo, desde o conceito, a letra sobre os catadores de caranguejo nos mangues imundos, a base de baixo, a percussão mais requintada, a guitarra discreta mas eficiente, os samples, o refrão, tudo! Sonzaço!
A segue "Um Satélite na Cabeça" com sua guitarra repetida e agressiva; "Baião Ambiental', mesmo guardando características do ritmo que lhe dá nome, é mais um ponto de umbanda pontuado por um baixo distorcido. Genial!
Provavelmente a mais violenta do disco, em todos os sentidos, "Sangue de Bairro" é um metal impiedoso em que visceralmente Chico enumera os integrantes do grupo de Lampião e descreve de forma cinematográfica sua decapitação ("Quando degolaram minha cabeça passei mais de dois minutos vendo meu corpo tremendo")
Depois da porradaria, a vinheta "Interlude Zumbi" com sua profusão de berimbaus, tocados e sampleados encaminha um momento mais lento do disco com a agradável "Amor de Muito" e a boa "Crianças de Domingo" do ex-Fellini, Cadão Volapato, que faz menção ao belíssimo filme do mesmo nome, dirigido pelo filho de Ingmar Bergman;
"Samidarish" que seria o final do álbum segundo a banda, traz um instrumental psicodélico de tons orientais com uma guitarra viajante e no final um curto segmento onde Chico declama versos sobre uma batida tímida.
Tirando as versões de "Maracatu Atômico" que vinham depois, ali acabava um dos álbuns mais importantes da música brasileira. Uma das últimas vezes que se fez algo realmente relevante, criativo e original no Brasil. Nós brasileiros temos na maioria das vezes a tendência de subestimar o que se produz aqui e nessa síndrome de vira-lata não conseguimos enxergar muitas vezes a extensão de uma obra como esta. O que Chico Science e a Nação Zumbi faziam naquele momento era talvez o que de mais criativo e inovador houvesse na música mundial mas o ranço tupiniquim não permite que se veja e se reconheça algo assim.
Infelizmente a trajetória da banda com Chico Science que era inegavelmente o cérebro eletrônico do projeto foi abreviada com um acidente automobilístico e, com ele, a banda produziu apenas dois álbuns. Mesmo com os demais integrantes tendo continuado e tendo feito bons trabalhos depois, fica evidente que a genialidade, a visão, a ousadia de Chico fazem falta e mesmo o melhor da Nação Zumbi sem ele, não chega nem perto do que eles fizeram e de onde poderiam chegar. A vantagem, se é que se pode ver pelo lado bom, é que em pouco tempo de vida Chico Science nos proporcionou nada mais nada menos do que duas das maiores obras do rock nacional... e internacional, por que não?

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FAIXAS:
1. Mateus Enter (Chico Science & Nação Zumbi)
2. O Cidadão do Mundo (Chico Science/ Nação Zumbi/ Eduardo BID)
3. Etnia (Chico Science/ Lucio Maia)
4. Quilombo Groove (instrumental)
5. Macô (Chico Science/ Jorge du Peixe/ Eduardo BID)
6. Um Passeio no Mundo Livre (Chico Science & Nação Zumbi)
7. Samba do lado (Chico Science & Nação Zumbi)
8. Maracatu Atômico (Jorge Mautner / Nelson Jacobina)
9. O Encontro de Issac Assimov com Santos Dumond no céu (Chico Science / Jorge Du Peixe/ H.D. Mabuse)
10. Corpo de Lama (Chico Science / Jorge Du Peixe/ Lucio Maia / Dengue)
11. Sobremesa (Chico Science & Nação Zumbi / Renato L.)
12. Manguetown (Chico Science / Lucio Maia / Dengue)
13. Um satélite na cabeça (Chico Science & Nação Zumbi)
14. Baião Ambiental (instrumental)
15. Sangue de Bairro (Chico Science & Nação Zumbi)
16. Enquanto o Mundo explode (Chico Science & Nação Zumbi)
17. Interlude Zumbi (Chico Science / Gilmar Bolla 8 / Gira / Toca Ogan)
18. Criança de Domingo (Cadão Volpato / Ricardo Salvagni)
19. Amor de Muito (Chico Science & Nação Zumbi)
20. Samidarish (instrumental)
21. Maracatu Atômico (Atomic Version)
22. Maracatu Atômico(Ragga Mix Version)
23. Maracatu Atômico (Trip Hop)


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Ouça:
Chico Science & Nação Zumbi Afrociberdelia



Cly Reis

sexta-feira, 12 de maio de 2023

CLAQUETE ESPECIAL 15 ANOS DO CLYBLOG - Cinema Brasileiro: 110 anos, 110 filmes (parte 2)

 

O novíssimo "Marte Um" já figurando
na lista dos melhores da história
A lista dos 110 filmes dos 110 anos de cinema brasileiro continua. Nesta segunda parte, na ordem decrescente iniciada da última posição, são mais 20 títulos, e a diversidade e criatividade típicas do cinema nacional se fazem cada vez mais presentes. Obras marcantes da retomada, como “Bicho de Sete Cabeças” e “O Invasor” convivem com clássicos combativos do cinema novo (“O Desafio”), documentários de décadas distintas (“Partido Alto”, dos anos 70, e “Jorge Mautner, O Filho do Holocausto” e “O Fim e o Princípio”, anos 2010) e longas recentíssimos. Entre estes, “Marte Um”, o mais novo de toda a lista, que precisou de menos de um ano de lançamento para carimbar seu lugar ao lado de consagradas chanchadas ou de produções inovadoras, tal o experimental "A Margem" e “A Velha a Fiar”, primeiro “videoclipe” do Brasil em que o tarimbado Humberto Mauro ilustra a canção popular de mesmo nome do Trio Irakitã.

A ausência, pelo menos neste novo recorte, são os filmes dos anos 80, que geralmente pipocam entre os escolhidos, mas que certamente virão mais adiante. Interessante perceber que cineastas mundialmente consagrados como Babenco, Karim e Coutinho se emparelham com novos realizadores como os jovens Gabriel Martins e Gustavo Pizzi. Tradição e renovação. Fiquemos, então, com mais uma parte da listagem que a gente traz como uma das celebrações pelos 15 anos do Clyblog.

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90.
“A Morte e a Morte de Quincas Berro D’Água”, Walter Avancini (1978)

Possivelmente, em algum momento o brasileiro viu uma cena em que Paulo Gracindo bebe um martelinho num boteco pensando que fosse cachaça e, indignado com a enganação, grita: “Água!”. A palavra ecoa enquanto a imagem congela e uma música brasileiríssima divina começa a tocar anunciando os créditos iniciais. Tanto quanto uma cena como a da nudez na praia de Norma Bengell em “Os Cafajestes” ou da operação do Bope no baile funk em “Tropa de Elite”, este começo do “teledrama” baseado no conto de Jorge Amado tem ainda a primazia de ser uma obra feita para a televisão, o que a coloca em tese em inferioridade diante do comum 35mm do cinema. Mas a questão instrumental não interfere neste média absolutamente brilhante dirigido por Avancini. Atuações e diálogos memoráveis, arte primorosa, ritmo perfeito, figurino geniais de Carybé, trilha magnífica de Dori Caymmi. Não à toa deu um dos Emmy conquistados pela TV Globo.


89. “O Invasor”, de Beto Brant (2001) 
88. “O Desafio”, Paulo César Saraceni (1965) 
87. “Jorge Mautner, O Filho do Holocausto”, Pedro Bial e Heitor d'Alincourt (2013)
86. “Dzi Croquetes”, Tatiana Issa, Raphael Alvarez (2005)
85. “Dois Filhos de Francisco”, Breno Silveira (2005)


84, “Partido Alto”, Leon Hirszman (1976-82)
83. “Eu, Tu, Eles”, de Andrucha Waddington (2000)
82. “O Xangô de Baker Street”, de Miguel Faria Jr. (2001) 
81. “O Homem do Sputnik”, Carlos Manga (1959)

80.
“Bicho de Sete Cabeças”, Laís Bodanzky (2000)

Da leva do início dos 2000, que sinalizam o começo do fim da retomada. Símbolo desta fase, “Bicho...” é um dos filmes que denotaram que o cinema brasileiro saíra da pior fase e entrava numa outra nova e inédita. Além de lançar a cineasta e o hoje astro internacional Rodrigo Santoro, conta com uma estética e edição arrojadas, com sua câmera nervosa e atuações marcantes, tanto a do jovem protagonista quanto dos tarimbados Othon Bastos e Cássia Kiss. Vários prêmios: Qualidade Brasil, Grande Prêmio Cinema Brasil, Troféu APCA de "Melhor Filme", além de ser o filme mais premiado dos festivais de Brasília e do Recife. Ainda, está nos 100 da Abracine. Trilha de André Abujamra e com músicas de Arnaldo Antunes.


79. “Marte Um”, Gabriel Martins (2022)
78. “Madame Satã”, de Karim Ainouz (2002) 
77. “Babilônia 2000”, Eduardo Coutinho (2001)
76. “Benzinho”, Gustavo Pizzi (2018)
75. “A Margem”, Ozualdo Candeias (1967)


74. “Estômago”, de Marcos Jorge (2007) 
73. “Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia”, Hector Babenco (1976) 
72. “O Fim e o Princípio”, Eduardo Coutinho (2006)
71. “A Velha a Fiar”, Humberto Mauro (1964)


Daniel Rodrigues

sexta-feira, 23 de março de 2012

Gilberto Gil - "Refazenda" (1975)


"Renda tecida com fios do milho, milho ouro, milho sol, (...) Esperança transmutada em verde de verdade, verdes notas mágicas, o encanto da fazenda nova. Reencantação. A árvore da trindade: abacate, tomate, mamão. Árvore milagrosa: um fruto diferente a cada estação. (...) Refazenda segue sendo a vontade de Deus para cada estação."
Gilberto Gil,
explicando o conceito do disco
em 1975


Demorou pra aparecer um Gil por aqui. já teve A.F. do Caetano, do Chico, do Jorge, do João, dos Tons (o o Jobim) e nada do ex-ministro. E não foi porque merecesse menos que qualquer um desses outros. Pelo contrário. É exatamente por ter uma obra tão qualificada, com tantos discos interessantes que foi difícil apontar um pra ser seu primeiro Fundamental aqui do blog.
Depois de muito avaliar, ouvir, reouvir, trocar uma ideia com o meu irmão e parceiro de blog, o Daniel Rodrigues, cheguei à conclusão que o grande disco de Gilberto Gil é mesmo o seu "Refazenda" de 1975, parte integrante da trilogia (de quatro discos) completada por "Refavela", "Realce" e "Refestança".
Em "Refazenda", Gil penetra no coração do Brasil para compor uma obra cheia de sensibilidade, inspiração e riqueza sonora. Com composições que remetem ao homem do campo, à natureza, ao sertenejo, a temas rurais, ritmos regionais e paisagens naturais, o baiano entrega-nos algumas de suas canções mais marcantes.
Já na faixa que dá nome ao disco, a primorosa "Refazenda", de belíssimos arranjos de cordas e flauta, se utiliza da figura dos frutos, das árvores, do verde para falar sobre simplicidade, sobre o tempo das coisas, sua natureza e o amadurecimento que tudo requer.
Os temas naturais aparecem também na singela "Tenho Sede" de Dominguinhos, canção belíssima que chove, brota, escurece e emociona. Gil trata do homem simples na divertida "Jeca Total", uma canção aparentemente primária, com uma tuba minimalista, onde provoca sobre quem é verdadeiramente caipira, com alguns pontos que nos fazem pensar sobre o fato de um homem como Tiririca estar no Congresso Nacional; e vai no fundo da alma de um homem do campo deslocado na cidade grande, na emocionante "Lamento Sertanejo", minha preferida do disco, uma canção acústica chorosa de interpretação comovente. Ainda funde fauna brasileira, com rock e cultura oriental em "O Rouxinol", parceria com Jorge Mautner e visita novamente o oriente, outro de seus interesses culturais-musicais, em "Meditação", canção breve, curta com sonoridade que alude à música japonesa.
Tem ainda o chorinho "Pai e Mãe; a exaltação do povo e da alegria na ótima "Ê, Povo, ê"; a introspectiva "Retiros Espirituais" com referência a "Banho-de-Lua" consagrada no Brasil na voz de Celly Campelo ( "luar tão cândido" ); e "Essa é Pra Tocar no Rádio", um jazz experimental e acelerado, que embora interessante, perde para a versão definitiva registrada em seu disco em parceria com Jorge Ben.
Num disco tão interiorizado, nada mais correto que o artista olhar para dentro de si mesmo e é o que acontece em "Ela", faixa que abre o disco onde Gilberto Gil examina a própria alma, abre o coração e declara seu amor por sua maior musa, a música, num samba-rock embalado absolutamente saboroso
E temos enfim um Gilberto Gil nos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS. Agora, como eu disse, com uma obra tão tão significativa  e interessante, é certo que outros aparecerão por aqui. Este foi só para abrir a porteira.
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FAIXAS:
1.Ela (Gilberto Gil)
2.Tenho Sede (Dominguinhos/Anastácia)
3.Refazenda (Gilberto Gil)
4.Pai e Mãe (Gilberto Gil)
5.Jeca Total (Gilberto Gil)
6.Esse é Pra Tocar no Rádio (Gilberto Gil)
7.Ê, povo, ê (Gilberto Gil)
8.Retiros Espirituais (Gilberto Gil)
9.O Rouxinol (Gilberto Gil/Jorge Mautner)
10.Lamento Sertanejo (Gilberto Gil/Dominguinhos)
11.Meditação (Gilberto Gil)

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Ouça:
Gilberto Gil Refazenda


Cly Reis

segunda-feira, 15 de julho de 2024

Gilberto Gil - "Gilberto Gil ao Vivo" ou "Ao Vivo no Tuca" (1974)

 

“A experiência do exílio universaliza o caráter da música de Gil, mas também serve para reabrasileirá-la”
Marcelo Fróes, pesquisador musical

O forçado período de exílio, no final dos anos 60/início dos 70, em razão da perseguição do Governo Militar brasileiro, fez bem a Gilberto Gil. A afirmação soa cruel humanisticamente falando, mas, em contrapartida, é impossível dissociar a música do compositor e cantor baiano daquilo que ele produziu em sua fase pós-tropicalista, justamente a que coincide com aquele momento. Sondar, hoje, a música de Gil sem esta intervenção temporal, num continuum que ligue “Batmakumba” diretamente a “Realce”, é impensável. Londres, com seu frio e neblina, mas também com seus “lindos verdes campos” que o oportunizaram a Swinging London e a lisergia, marcou-se de vez na alma de Gil. E isso por um simples motivo: a cosmopolita Londres em muito combinava com a visão holística deste artista.

Os sinais do Velho Mundo ficam evidentes já em “Expresso 2222”, de 1972, seja na influência beatle, seja, por outro lado, no re-enraizamento, espécie de contramovimento em direção às origens de quem tanto tempo ficou distante de sua terra. Mas outras sensibilidades também puderam ser extraídas daquela inevitável influência europeia, que é o próprio cosmopolitismo. E Gil, hábil, traduziu isso em sonoridade. Jards Macalé já havia dado os primeiros passos desde seu compacto "Só Morto", de 1970, e, posteriormente, ao instaurá-la em “Transa”, que Caetano Veloso, companheiro de Tropicália e de exílio de Gil, gravaria na mesma Londres antes de voltar ao Brasil. Era uma sonoridade elétrica (ainda sem teclados), mas sem peso e distorções, que mesclava o rock aos sons brasileiros numa medida que, hegemonizada, soava como um novo jazz fusion. Um fusion essencialmente brasileiro. Não o que Airto Moreira, Hermeto Pascoal ou Eumir Deodato vinham praticando nos Estados Unidos. Era um jazz brasileiro, mas tão brasileiro, que é fácil se esquivar de chamar de jazz, ao passo que é difícil classificar somente de MPB.

O sumo desta sonoridade universalista está no disco ao vivo que Gil gravava há 50 anos com uma afiada banda num único e histórico final de semana de outubro de 1974 no Teatro da Universidade Católica de São Paulo, o conhecido Tuca – palco de diversas combativas apresentações no período da Ditadura. Gil estava num momento transitório entre o disco “Expresso 2222”, que marcou sua volta ao Brasil, e um grande projeto, a trilogia “Re” (“Refazenda”/"Refavela”/”Realce”) a qual tomaria seus próximos três anos a partir de 1975. Além disso, Gil engavetara um disco de estúdio previsto para aquela época e para o qual havia composto várias canções, renomeado “Cidade do Salvador” quando lançado posteriormente na caixa “Ensaio Geral”, de 1998, produzida pelo pesquisador musical Marcelo Froés. Nem por isso, o artista se desconectara de suas próprias buscas sonoras. Pelo contrário. Absorvido pelos estímulos da música pop e com o que captara no período internacional, Gil realiza este show onde exercita o que havia de mais arrojado em termos de arranjo, melodia, harmonia e performance de sua época. Era o Gil tropicalista, novamente, dando as cartas da “novidade que veio dar na praia” na música brasileira. 

“João Sabino”, faixa inicial, é exemplar. Inédita, assim como todas as outras cinco que compõem o disco. Ou seja: embora se trate da gravação de uma apresentação, sua estrutura é de um álbum totalmente novo, com faixas inéditas ou nunca tocadas por Gil, e não de versões ao vivo de temas conhecidos e/ou consagrados - tal como o próprio realizaria em diversos outros momentos da carreira, como os ao vivo "Refestança" (com Rita Lee, de 1980), e "Quanta Gente Veio Ver" (1998). Soma-se a isso a exímia execução, que dá a impressão de uma gravação tecnicamente perfeita como que engendrada num estúdio, da fantástica banda formada por: Gil, na voz, violão e arranjos; Aloísio Milanês, nos teclados; o "Som Imaginário” Frederiko, guitarra; Rubão Sabino, baixo elétrico; e Tutty Moreno, bateria. 

Afora isso, “João Sabino” – homenagem ao pai do baixista da banda, que está excelente na faixa – é um samba de mais de 11 min, repleto da variações e uma melodia com lances experimentais, que exige domínio dos músicos. Na letra, metalinguística, Gil equipara as “localidades” da cidade natal dos Sabino, a capixaba Cachoeiro do Itapemirim (“Pai do filho do Espirito Santo”) com religiosidade e das notas musicais (“Nessa localidade de lá/ Uma abertura de si/ Uma embocadura pra dó/ Sustenindo uma passagem pra ré/ Mi bemol/ (...) De mi pra fá/ Sustenindo, suspendendo/ Sustentando, ajudando o sol/ Nascer"”). E Gil o faz com muita improvisação no canto, incidentando passagens e brincando com as palavras e os vocalises, o que antecipa, até pela extensão do número, a grande jam que gravaria com Jorge Ben no ano seguinte no clássico “Gil & Jorge/Xangô Ogum”. Som eletrificado com alto poder de improvisação dos músicos, que sintetiza a sina bossa-novista, a tradição do samba e a influência nordestina às novas sonoridades pós-“Bitches Brew” e “A Bad Donato”. Um show.

É a vez da psicodélica “Abre o Olho”, espécie de diálogo consigo mesmo no espelho, em que Gil reflete algumas maluquices saborosas enquanto põe colírio nos olhos sob efeito da maconha. “Ele disse: ‘Abra o olho’/ Eu disse ‘aberto’, aí vi tudo longe/ Ele disse: ‘Perto’/ Eu disse: ‘Está certo’/ Ele disse: ‘Está tudinho errado’/ Eu falei: ‘Tá direito’”. Essa divagação toda para chegar na catártica (e sábia) frase do refrão: “Viva Pelé do pé preto/ Viva Zagalo da cabeça branca”. Seu violão e canto são tão intensos, sua performance é tão completa, que nem dá pra perceber que o resto da banda não está tocando.

Gravada originalmente pelo seu coautor, o amigo João Donato, no disco homônimo, “Lugar Comum” ganha aqui a única versão cantada pelo próprio Gil. Delicada e num arranjo redondo, tem a segurança dos músicos na retaguarda, entre eles Tutty, baterista dos revolucionários “Transa”, “Expresso 2222” e dos discos iniciais de Jards, entre outros. Destaque do repertório, talvez a mais sintética de todas da atmosfera empregada nesta apresentação, é “Menina Goiaba”, que bem poderia receber o subtítulo de “Pequena Sinfonia de São João”. São mais de 6 min em que Gil e banda conduzem o ouvinte em uma viagem ao Nordeste festivo e brejeiro, iniciando numa moda de viola, avançando para uma marchinha e finalizando com uma quadrilha num misto de rock e sertanejo com a formosa guitarra de Fredera. Linha melódica intrincada, mas deliciosa como uma guloseima junina, cheia de idas e vindas, transições, variações rítmicas e adornos. E que execução da banda! Jazz fusion brasileiríssimo. E para quem desistiu de lançar um álbum novo àquela época, Gil resolveu muito bem consigo mesmo a dicotomia quando diz na letra da música: “Andei também muito goiaba/ E o disco que eu prometi/ Não foi gravado, não”.

Como já havia feito (e voltaria a fazer inúmeras vezes na carreira), Gil versa Caetano com a magia que somente um irmão espiritual conseguiria. Assim como “Beira-Mar”, do seu trabalho de estreia, em 1967, agora é outra balada caetaneana trazida por Gil: “Sim, Foi Você”. Igualmente, cantada e tocada somente a voz e violão e numa sensibilidade elevada. Para fechar, outro número extenso e uma explosão de talento da banda em “Herói Das Estrelas”. Originalmente gravado pelo seu autor, Jorge Mautner – que o assina junto com o parceiro Nelson Jacobina – naquele mesmo ano num disco produzido por Gil, agora o tema recebe uma roupagem jazzística de dar inveja a qualquer compositor (ainda bem que Gil e Mautner são tão amigos). Rubão está simplesmente sensacional no baixo, assim como Tutty, com sua bateria permanentemente inventiva. Aloísio Milanês, igualmente, improvisa brilhantemente de cabo a rabo (de cometa). E o que falar do violão de Gil? Uma batuta tomada de suingue, de brasilidade, de africanidade. Perfeita para finalizar um show/disco impecável.

Quem escuta algumas das obras posteriores de Gil, talvez nem perceba o quanto este disco ao vivo teve influência. Nas duas versões de “Essa é pra Tocar no Rádio” (“Gil e Jorge” e “Refazenda”), é evidente o trato jazz que recebem, assim como “Ela”, “Lamento Sertanejo” (“Refazenda”, 1875), “Babá Alapalá”, “Samba do Avião” (“Refavela”, 1977) e “Minha Nega Na Janela” (“Antologia do Samba-Choro”, 1978), além da clara semelhança do conceito sonoro de todo “Gil e Jorge”. Gil só viraria a chave desta habilidosa condensação sonora quando fecha a trilogia "Re" no pop “Realce”, de 1978. Porém, não sem, meses antes, encerrar aquele ciclo com outro disco ao vivo, gravado no 12º Festival de Jazz de Montreux, na Suíça. A mídia internacional entendia, enfim, que aquilo era, sim, jazz. Gil, assim, voltava à Europa de onde, no início daquela década, mesmo que forçadamente, precisou se refugiar e aprendeu a ser mais universal do que já era. Igual diz a sua “Back in Bahia”: “Como se ter ido fosse necessário para voltar”.

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A caixa “Ensaio Geral”, lançada em 1998, trouxe em “Ao Vivo no Tuca”, além das faixas do vinil oficial, outras cinco inéditas garimpadas em gravações das másters originais do mesmo show e outras de estúdio da época, somente voz e violão. “Dos Pés à Cabeça”, escrita para a voz de Maria Bethânia, foi registrada por ela no espetáculo “A Cena Muda”, de 1974. Já “O Compositor me Disse” foi para a voz de Elis Regina e gravada pela Pimentinha em “Elis”, também de 1974. Proibido pela Censura de apresentar músicas novas de sua própria autoria, Chico Buarque gravaria músicas de outros compositores, entre elas, “Copo Vazio”, de Gil, em “Sinal Fechado”, do mesmo ano. No espírito do álbum original, todas as extras são cantadas pela primeira vez na voz de Gil.

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FAIXAS:
1. “João Sabino” - 11:33
2. “Abra o Olho” - 4:50
3. “Lugar Comum” (Gilberto Gil, João Donato) - 4:50
4. “Menina Goiaba” - 6:50
5. “Sim, Foi Você” (Caetano Veloso) - 5:47
6. “Herói das Estrelas” (Jorge Mautner, Nelson Jacobina) - 6:01
Faixas bônus da versão em CD:
7. “Cibernética” - 7:45
8. “Dos Pés à Cabeça” - 4:27
9. “O Compositor me Disse” - 4:01
10. “Copo Vazio” - 6:39
11. “Dia de Festa” (Rubão Sabino) - 5:05
Todas as composições de autoria de Gilberto Gil, exceto indicadas

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Daniel Rodrigues

sexta-feira, 24 de março de 2017

Os meus 20 melhores documentários brasileiros (e os 20 da Abracine também)



Coutinho e seu "Cabra Marcado para Morrer", 1º lugar
absoluto entre os docs brasileiros
Venho pensando há meses (quiçá, anos) em fazer alguma lista para o blog sobre documentários brasileiros. Além de gostar muito do que é produzido no gênero no Brasil, principalmente a partir da década de 60, chama-me a atenção não apenas a variedade de temas, estéticas, narrativas e estilos – coisa que um país como o Brasil é capaz de fornecer mais do que muitos outros – como também a riqueza de recortes possíveis de serem feitos. Eu fiquei naquelas de montar uma lista dos “meus melhores documentários dos anos 2000”, “melhores documentários brasileiros sobre música”, “melhores cinebiografias”, melhor isso, melhor aquilo e... nunca pus no papel de fato.

Tanto posterguei que, com toda a sumidade que lhe é conferida, a Abracine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, enfim, listou os 100 melhores documentários brasileiros de todos os tempos. A mesma comporá um livro que a entidade lançará ainda este ano a exemplo do já referencial “100 Melhores Filmes Brasileiros”, editado em 2016. Fim de papo.

Nem tão "fim" assim para um cinéfilo que adora criar as suas próprias listas como eu. Muito bem escolhida, a seleção da Abracine acerta praticamente em tudo. Vários eu, confesso, não assisti, e sei que são lacunas importantes. Mas posso assegurar, igualmente, de que com aqueles que vi consigo satisfatoriamente montar também uma lista representativa. Por que, agora, claro, o desafio ficou óbvio: expor os meus melhores de todos os tempos. Tomei vergonha na cara, trocando em miúdos. Entretanto, para não encompridar demasiadamente, faço aqui uma lista dos meus 20 preferidos e não da centena cheia embora o pudesse, destacando, a título de comparação e informação, os 20 primeiros da listagem da associação.

Hirszman aparece com 3 títulos
Interessante vislumbrar que há vários títulos de 2000 em diante (50% dos meus), mostrando o quanto o gênero documentário evoluiu no Brasil, tornando-se, aliás, uma das principais fontes do cinema brasileiro pós-Retomada. A temática social e política, não raro pela via da corajosa denúncia, é massiva, norte para 18 dos 34 títulos citados ao todo. Outro ponto legal de se constatar é a presença de grandes cineastas, como Eduardo Coutinho, documentarista por natureza e dono do 1º lugar em ambas, mas também de Glauber RochaLeon Hirzsman, Joaquim Pedro de Andrade e João Batista de Andrade, diretores que sempre se impuseram, além dos seus filmes de ficção, o ofício quase cívico do registro documental.

Ainda, vale a menção ao gaúcho Jorge Furtado, que aparece tanto em minha lista quanto na outra com o referencial “Ilha das Flores”, curta presente em diferentes rankings em todo o mundo, como no livro “1001 Filmes para se Assistir Antes de Morrer” ou entre os próprios 100 melhores filmes brasileiros pela Abracine. Dele, ainda seleciono “Esta não É a sua Vida”, que pela associação ficou em 87º lugar.

Os meus selecionados:
1 – “Cabra Marcado para Morrer”, Eduardo Coutinho (1984)
2 – “Edifício Master”, Eduardo Coutinho (2002)
3 – “Estamira”, Marcos Prado (2006)
4 – “Santiago”, João Moreira Salles (2007)
5 – “Garrincha, Alegria do Povo”, Joaquim Pedro de Andrade (1962)
6 – “Di”, Glauber Rocha (1977)


7 – “Ilha das Flores”, Jorge Furtado (1989)
8 – “Aruanda”, Linduarte Moreira (1960)
9 - “O Fim e o Princípio”, Eduardo Coutinho (2005)
10 – “Janelas da Alma”, João Jardim e Walter Carvalho (2001)
11 – “Partido Alto”, Leon Hirszman (1982)
12 – “Vlado – 30 Anos Depois”, Joaquim Batista de Andrade (2005)
13 – “O Mistério do Samba”, Carolina Jabor e Lula Buarque (2008)

Filme sobre a Velha Guarda
da Portela: preferência minha


















14 - “Iracema – Uma Transa Amazônica”, Jorge Bodanzky e Orlando Senna (1976)
15 - “Esta não é a Sua Vida”, Jorge Furtado (1991)
16 - “O Prisioneiro da Grade de Ferro”, Paulo Sacramento (2002)
17 – “Jorge Mautner – O Filho do Holocausto”, Pedro Bial e Heitor D´Alincourt (2013)
18 - “Dzi Croquetes”, Tatiana Issa e Raphael Alvarez (2010)
19 – “Greve!”, João Batista de Andrade (1979)
20 – “Cidadão Boilensen”, Chaim Litewski (2009) e “Ônibus 174”, José Padilha (2002)

Os selecionados da Abracine:
1. “Cabra Marcado para Morrer”
2. “Jogo de Cena”, Eduardo Coutinho (2007)
3. “Santiago”
4. “Edifício Master”
5. “Serras da Desordem”, de Andrea Tonacci (2006)
6. “Ilha das Flores”


7. “Notícias de uma Guerra Particular”, João Moreira Salles (1999)
8. “Ônibus 174”, José Padilha (2002)
9. “Di”
10. “Aruanda”
11. “O Prisioneiro da Grade de Ferro”
12. “O País de São Saruê”, Vladmir Carvalho (1979)
13. “Viramundo”, Geraldo Sarno (1965)
14. “ABC da Greve”, Leon Hirzsman (1979-80)
15. “Jango”, Sílvio Tendler (1984)
16. “Garrincha, Alegria do Povo”

Clássico de Joaquim Pedro, presente nas duas listas















17. “Imagens do Inconsciente”, Leon Hirszman (1984)
18. Estamira
19. “Santo Forte”, Eduardo Coutinho (1999)
20. Janela da Alma

por Daniel Rodrigues

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Gal Costa - "Cantar" (1974)


Canto, Recanto

"Gal é uma das grandes
personalidades da nossa história.
As Dunas da Gal, o Vapor Barato, ‘a mulher mais elegante do Brasil’
(no dizer de Danuza Leão na época),
Baby, Divino Maravilhoso, Índia:
todo um mundo brasileiro do qual
não podemos abrir mão
se quisermos ser o que devemos ser."
Caetano Veloso



Caetano Veloso é, como todos sabem, irmão de Maria Bethânia. Mas sua ligação e sinergia musicais com Gal Costa talvez sejam até maiores do que com a cosanguínea. Baiana como ele, poucos anos mais nova mas da mesma geração, foi com Gal que o cantor e compositor gravou seu primeiro disco, “Domingo”, de 1966 – embora o elo, inclusive familiar, já viesse de antes. Além disso, no entanto, foi Gal quem, embarcada com os dois pés no Tropicalismo liderado por ele e Gilberto Gil na segunda metade dos anos 60, manteve acesa a explosão transgressora e criativa aberta pelos tropicalistas quando do exílio da dupla em Londres de 1969 a 1972. Ao contrário de Bethânia – que sempre soube seguir o seu caminho fugindo ao máximo das rotulações e estereótipos –, Gal por escolha não só segurou a barra enquanto única remanescente da formação original da Tropicália durante os anos de chumbo da Ditadura como, mais ainda, avançou a MPB em todos os sentidos, da confluência de estilos e referências (objetivo-fim tropicalista) a, obviamente, sua própria arte maior: a técnica do canto.

Não se começou a falar em Caetano Veloso num texto sobre Gal Costa à toa. Como aconteceria no espetacular "Recanto" – disco de 2012 cujo diálogo estreito com este forma um díptico de 38 anos de ínterim –, é o quase-irmão Caetano quem dá o tom do “cantar” de Gal. Produzido por ele em parceria com outro mestre da retaguarda tropicalista, Perinho Albuquerque, é um disco totalmente maduro da talentosa cantora, já deixando a extravagante e raivosa Gal do início da Tropicália um pouco para trás. Aqui, ela está dona de si, de seu conceito como artista e do posto de maior cantora de seu tempo ao lado de Elis Regina, também no auge à época. E Caetano, dirigindo um projeto para ela pela primeira vez (até então haviam exercido tal função Wally Salomão, Jards MacaléRogério Duprat e Guilherme Araújo), é um pouco responsável por esse amadurecimento.

Desfilam pelo disco músicos de primeira linha, como o genial João Donato, o mestre da raça Gil, o “Clube da Esquina” Noveli, o baterista Tuty Moreno e, claro, os próprios Perinho e Caetano. O resultado é um álbum resplandecente, florido como sugere a belíssima arte forjada pelo artista visual Rogério Duarte. A contestação de “Divino, maravilhoso”, a fúria de “Eu sou terrível”, a psicodelia de “Dê um role” ou a estridência de “Meu nome é Gal”, agora, refazem-se, remolduram-se. Estão ali, porém sob outro olhar. Um sopro de pólen colorido no negror dos anos de chumbo.

O começo não é nem um desabroche: é a flor já em pleno estado de vida. “Barato Total”, hit do álbum, é das melhores músicas de Gilberto Gil cujo presente não se encerra somente no fato de este tê-la dado especialmente para a amiga. Gil também empunha o violão durante a faixa, e Gil ao violão sabe-se como é, né? Além de sua altíssima técnica que une a batida de João Gilberto ao ritmo frenético do rock – e mais o congado, o maxixe, o jazz e o baião –, o grande compositor simplesmente arrasa nas cordas, sustentando a melodia num toque swingado e cheio. É tão intenso que, na regravação feita por Gal com a Nação Zumbi, em 2004 (também produzida por Caetano), bastou à banda traduzir para os tambores pernambucanos a batida de violão de Gil. A letra traz, já na abertura do disco, a mesma ideia de ressaltar a beleza da vida para além de toda a situação política e moral do país: “Quando a gente tá contente/ Tanto faz o quente, tanto faz o frio, tanto faz”. E finaliza, numa exclamação: “Quando a gente tá contente/ Nem pensar que está contente a gente quer/ Nem pensar a gente quer, a gente quer/ A gente quer, a gente quer é viver”.

Como todo grande disco, “Cantar” larga com uma de encher os olhos. O que virá a seguir superará ou se equiparará? Pois o lirismo da cantora estava realmente germinado. Ela arrebenta na interpretação da clássica “A Rã”. É a primeira das quatro de autoria de Caetano no disco, e justo uma em parceria com outro personagem fundamental desta obra: João Donato. Ele, além desta, assina o arranjo da canção de ninar que finaliza o disco, “Chululu” (de autoria da mãe de Gal, Mariah Costa, que costumava cantá-la para a filha na infância), e de outras duas: “Até quem Sabe”, só piano e voz, lindíssima e altamente erudita; e “Flor de Maracujá”, um soul funkeado ao estilo de “A Bed Donato” (referencial álbum gravado pelo acreano nos Estados Unidos em 1970). Esta, última do lado A do vinil, dialoga maravilhosamente com a primeira da segunda face: “Flor do Cerrado”, que, assim como “Barato Total” é das melhores composições de Gil não gravadas por si próprio, também é das mais belas de Caetano nunca registradas por ele mesmo. Letra de poesia caetaneana, vocal cristalino de Gal e uma rica incursão do autor contracantando “Garota de Ipanema”, de Tom e Vinícius. No refrão, ainda, Gal, afinadíssima, executa um portamento de notas muito bonito e técnico, subindo gradualmente até finalizar lá em cima da escala na última palavra: “Mas da próxima vez que eu for a Brasília/ Eu trago uma flor do cerrado pra você”.

Antes, entretanto, o primeiro lado ainda guarda duas ótimas faixas. Lua, lua, lua, lua”, mais uma de Caê, que, junto com outra que vem mais adiante, “Joia” (um espetacular trabalho de percussões africanas e piano monotonal que antecipa trabalhos de Caetano de 1997 e 2000, “Livro” e “Noites do Norte”, respectivamente, quando ele aproxima a vanguarda erudita às raízes da África), foram gravadas por Gal um ano antes do próprio usá-las no seu disco – por sinal, intitulado “Joia”. E diferentemente da versão barroca que gravaria para si, “Lua...” traz um elemento interessantíssimo: sob a voz dela, Caetano exercita uma espécie de beat-box, expediente que o mesmo se valera na concepção da trilha sonora do filme “São Bernardo”, dois anos antes, encomendada pelo cineasta Leon Hirszman a ele quando ainda no exílio.

A outra maravilha que completa a primeira parte de “Cantar” é “Canção que morre no ar”, clássico da bossa-nova de Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli, somente com a voz e um apaixonante e ornado arranjo de cordas de Perinho e regência de Mário Tavares. Aqui, Gal encarna Billi Holliday acompanhada da orquestra de Ray Ellis em "Lady in Satin"; Ella Fitzgerald conduzida pela batuta de Nelson Riddle em “Sings the George and Ira Gershwin Songbook”; ou Dalva de Oliveira com o conjunto sinfônico de Roberto Inglez. Gal está jazzística e lírica em seu timbre de soprano. A letra faz uma fusão entre as atmosferas lunar e flórea do disco como um todo: “O mundo é sempre amor/ O pranto que desliza/ No seio de uma flor/ É a luz lá do céu”.

Também síntese do álbum é “O Céu e o Som”, do cantor, compositor e poeta Péricles Cavalcanti. Ritmada e gostosa, contrapõe cantos entre ela e um coro masculino (que desconfio seriamente serem Os Golden Boys, embora não haja crédito disso). “Cantar, cantar/ Há uma asa na alma no ar/ Me ensina a cantar, amor”. E, lá pelas tantas, perguntam retoricamente: “Quem foi que disse que a mulher não voa?” Voa, sim.

Tanto voa que, antes de terminar o disco, Gal faz o ouvinte levitar no sensualíssimo jazz “Lágrimas Negras”, composição de Jorge Mautner e Nelson Jacobina. Das melhores do álbum, sua cadência suave remete (e serve muito bem para isso, diga-se de passagem) ao momento de uma transa embalada ao ritmo da guitarra-ponto dedilhada por Perinho. E quando Gal, diz, num compasso hiper sexy: “E você, baby, vai, vem, vai...”, é de arrepiar até o tal “astronauta da saudade” mencionado na letra!

“Cantar” gerou um show que não foi bem recebido pelo público por ser taxado de “muito suave”, contrastando com a imagem forte que a cantora criara a partir do movimento tropicalista. À época, bom que se lembre, artistas de sucesso como ela eram exigidos pela opinião pública burra de permanente e abertamente lutarem contra a Ditadura na concepção de suas obras. Queriam canções de protesto, não arte. Uma bobagem tamanha, uma vez que a premissa do artista é exatamente a liberdade tão desejada por estes que os retalhavam. Afora isso, visto noutro enfoque, há formas distintas de se lutar e se engajar sem necessariamente bater de frente com a força bruta – e sair perdendo, como geralmente acontece. Foi o que Gil e Caetano, enquanto tropicalistas como ela, fizeram a seu modo. E venceram. Hoje, completando 40 anos de seu lançamento, “Cantar” é um trabalho de uma riqueza descomunal que tem ainda muito a se revelar e cuja participação destes protagonistas foi fundamental. Uma flor que não morreu e ainda colore o jardim de quem entende que “o caminho do céu” está “no caminho do som”. Gal nos ensina a cantar e voar.

"Barato Total" - Gal Costa



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FAIXAS:

1. Barato Total (Gilberto Gil) - 3:48
2. A Rã (Caetano Veloso, João Donato) - 3:52
3. Lua, Lua, Lua, Lua (Veloso) - 3:02
4. Canção que Morre no Ar (Carlos Lyra, Ronaldo Bôscoli) - 1:50
5. Flor de Maracujá (Veloso/Lysias Ênio) - 2:56
6. Flor do Cerrado (Veloso – música incidental: “Garota de Ipanema”, Tom/Vinicius) - 3:13
7. Joia (Veloso) - 3:24
8. Até Quem Sabe (Ênio/Donato) - 3:39
9. O Céu e o Som (Péricles Cavalcanti) - 3:00
10. Lágrimas Negras (Jorge Mautner/Nelson Jacobina) - 3:31
11. Chululu (Mariah Costa) - 0:56
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Ouça:








segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Gilberto Gil - "Dia Dorim Noite Neon" (1985)

 


"Só quem não amar os filhos/ Vai querer dinamitar os trilhos da estrada/ Onde passou passarada/ Passa agora a garotada, destino ao futuro".
Da letra de "Roque Santeiro, O Rock"

Os anos 80 foram de instabilidade na carreira de Gilberto Gil. Assim como com seus companheiros de Tropicalismo Caetano Veloso e, ainda mais, Tom Zé – este, relegado a um ostracismo graças a Deus interrompido tempo depois – a década com a pecha de "perdida" parece ter influenciado com seu mau agouro os consagrados músicos da MPB. O BRock de Legião Urbana, Barão Vermelho, Blitz, Titãs, Lobão, RPM e outras bandas da época ocupavam as rádios, o que, somado com o que vinha de fora, quase não deixava espaço para o "produto nacional". 

Gil, exímio compositor que é, até emplacou sucessos no começo da década de 80. "Andar com Fé" e "Vamos Fugir" tocaram bastante, é bem verdade. Em compensação, seus álbuns passavam longe de terem a mesma regularidade e reconhecimento de crítica e público frente a seus clássicos dos anos 60 e 70, como o disco de 1968, "Expresso 2222", de 1972, ou a revolucionária trilogia "Re" ("Refazenda"/"Refavela"/"Realce", 1975, 1977 e 1979 respectivamente). Também, o baiano tentara, por duas vezes quase sequentes, entrar no mercado norte-americano. Ao contrário de alguns de seus pares, como Djavan, Ivan Lins, Tânia Maria e Milton Nascimento, ele não obteve o êxito esperado e se recolheu ao nicho já conquistado: o Brasil. O destino, no entanto, reservaria mais um abalo ainda maior a Gil naquele final de década de 80: o filho Pedro, baterista de sua banda desde 1984, se acidentaria de carro no Rio de Janeiro e morreria em janeiro de 1990. Aos 19 anos.

Mas os tropicalistas têm uma vantagem sobre outros artistas da música brasileira, mesmo para com os da mesma estirpe: eles ditam tendência. E se nos anos 80 a tendência estava posta pela indústria, então o negócio era passar a ratificá-la. Como já vinha ocorrendo desde os Mutantes, Gil e Caetano tornaram-se totens de certificação a toda a geração mais jovem, de A Cor do Som a Chico Science & Nação Zumbi. "Dia Dorim Noite Neon", lançado por Gil em 1985 para comemorar os 20 anos de carreira e que completa 40 em 2025, além de trazer excelentes composições, estabelece essa consciência quase benta do velho artista para com os súditos. Porque, sim: o rock brasileiro deve muito a MPB, ao contrário do que já se tentou negar ou esconder. Um privilégio que só o Brasil tem, mas algo desqualificado pela imprensa por muito tempo.

A bela vinheta de abertura e encerramento, "Minha Ideologia, Minha Religião", traz o violão dedilhado de Gil e seu vocal acompanhando as vozes infantis em coro, que cantam uma prece universal de pureza aos deuses para iniciar a jornada – e, lá na última faixa, agradecer pela mesma. Logo na sequência, vem o hit do disco, o reggae "Nos Barracos da Cidade", um canto de contestação social de um Brasil recém saído da ditadura. “Barracos”, seu subtítulo, abriria também portas a outra música com características parecidas e de ainda maior sucesso, que é "Alagados", marco do pop rock brasileiro, gravada pelos Paralamas do Sucesso com Gil um ano depois no mesmo estúdio, Nas Nuvens.

Sem muito respiro, Gil emenda o rockasso "Roque Santeiro, o Rock", um hard rock enfezado de dar inveja a muita bandinha poser que esteve no Rock in Rio naquele ano. Gil que, aliás, havia feito uma apresentação histórica no festival meses antes com a mesma banda mas ainda com o repertório do disco anterior, "Raça Humana". Na música em questão, a excelente produção do mutante Liminha dá protagonismo à bateria potente de Pedro Gil e à guitarra de outro e original mutante, Sérgio Dias, sintonizado com a sonoridade que o vanguardista produtor norte-americano Bill Laswell estava se apropriando e que cristalizaria no referencial "Album", da Public Image Ltd., de um ano depois. Ou seja: era o auge do rock'n’roll na mídia dos anos 80.

Gil e o filhão Pedro, falecido anos depois, mas 
fundamental para a atmosfera rocker de "Dia Dorim..."
Captando todas essas pulsões, inclusive o sucesso popular da novela de Dias Gomes de mesmo nome que rodava à época na Globo, Gil se vale de sua experiência e visão tropicalista para escrever uma música altamente simbólica para aquele período. Ele sintoniza, com olhar sábio, generoso e até paternal aquilo que a juventude ansiava, do esporte radical a uma nova compreensão da religiosidade. ”Deixa ele tocar o rock/ Deixa o choque da guitarra tocar o santeiro/ Do barro do motocross/ Quem sabe ele molde um novo santo padroeiro", diz a letra. Tudo isso, claro, simbolizado na potência do rock. O filho Pedro, aliás, é fundamental neste processo. Rapaz cheio de vitalidade, foi ele quem motivou o pai a entrar na onda roqueira. Gil identificava nele um representante daquela geração a qual faz referência na música, como os Paralamas, Ultraje a Rigor, Titãs e Lobão. Era como se dissesse: "Meus filhos musicais, eu abri caminho pra vocês lá atrás. Agora, é com vocês, mas eu estarei aqui, sempre perto".

Atentando também à cena pop do momento de nomes como Marina, Zizi Possi e Vinícius Cantuária, Gil diminui a rotação e traz a bela 'Seu Olhar", que conta com a guitarra do "Paralama" Herbert Vianna antes deste se tornar seu parceiro em "A Novidade", o que ocorreria meses depois no celebrado "Selvagem?", terceiro disco da banda. A faixa antecede a bossa-nova introspectiva "Febril", das melhores e mais desconhecidas canções do repertório gilbertiano. Espécie de reverso de 'Palco", que exorciza os males do mundo no instante sagrado do encontro do músico com o público, "Febril", ao contrário, revela o lado solitário da existência do artista, a qual pode imperar mesmo diante de uma vasta plateia. "Tanta gente, e estava tudo vazio/Tanta gente, e o meu cantar tão sozinho". Gil e sua profundidade capaz de revelar o avesso das coisas.

A próxima faixa vem noutra sintonia, mas sem perder coerência com a atmosfera pop do álbum: o french-afoxé "Touches Pas A Mon Pote". Noutra excelente produção de Liminha, Gil, dono de um francês impecável, ressignifica, nos ritmos essencialmente afro-brasileiros, a África francófona, ou seja, Senegal, Benin, Costa do Marfim, de onde parte dos escravos vieram para o Brasil e a sua Bahia séculos antes. Esta primeira aproximação simbólico-sonora Brasil-França de Gil, vista em uma série de canções dele a partir de então, o próprio redimensionaria 23 anos depois em outra música igualmente cantada na língua de Hugo (mas também de Mbougar Sarr): "La Renaissance Africaine", originalmente do disco “Banda Larga Cordel”.

O lado B do vinil começa com mais uma agitada, mas desta vez sob a batida do funk: "Logos Versus Logo". Sob inspiração da sonoridade típica do pop soul da época de Prince, Marcus Miller, Patti LaBelle e outros artistas – bateria eletrônica, baixo em slaps, guitarra suingada e ritmo soul –, Gil aborda o papel de resistência do poeta no mundo capitalista, problematizando a questão com poesia e lucidez. Outra música que, assim como “Febril”, é de suas melhores mas também das mais esquecidas. E que bela letra: "E o bom poeta, sólido afinal/ Apossa-se da foice ou do martelo/ Para investir do aqui e agora o capital/ No produzir real de um mundo justo e belo". Só que Gil não se presta a simplesmente copiar o som da moda tocado nos Estados Unidos: ele o enriquece. Como poucos ousavam fazer naqueles idos de embate "rock x MPB", o baiano, do meio para o fim da faixa, adiciona-lhe percussões de samba, fundindo de forma empolgante o ritmo mais brasileiro de todos ao groove do funk. Pouco tempo depois, Lobão, Os Engenheiros do Hawaii e The Ambitious Lovers fariam semelhante. 

Com a autoridade de um dos pioneiros do reggae no Brasil, Gil traz um outro ainda mais raiz do que “Barracos”: “Oração Pela Libertação da África Do Sul”. Mais uma de teor espiritualista mas que, desta vez, clama por outro problema social que o mundo vivia naquele então, que era o Apartheid na África do Sul, o regime de segregação que retirou os direitos da população negra do país. Valendo-se da força de resistência e denúncia que o ritmo do ídolo Bob Marley carrega, Gil torna a atuar politicamente através da música, unindo-se, neste caso, ao movimento global de solidariedade com a luta anti-Apartheid, que aumentou a conscientização sobre a injustiça dessa política e ajudou a impulsionar a mudança 5 anos depois com a queda do regime.

Voltando ao pop, na sofisticada “Clichê Do Clichê” Gil conta com a parceria do já mencionado amazonense Vinícius Cantuária, à época estourado nas rádios com o hit “Só Você”. Ligações com “Touches...” nas diversas referências à cultura francesa, como Brigitte Bardot, Jean-Paul Belmondo e o cinema francês. Quase fechando o disco, a música que justifica a referência à personagem Diadorim do título: “Casinha Feliz”. Esse doce xote sertanejo (visivelmente uma inspiração para “Madalena”, gravada com sucesso por Gil em “Parabolicamará”, de 1992) contém os versos motivados pelo universo de Guimarães Rosa: “Onde resiste o sertão/ Toda casinha feliz/ Ainda é vizinha de um riacho/ Ainda tem seu pé de caramanchão”. E completa: “De dia, Diadorim/ De noite, estrela sem fim”.

Encerrando, outra belíssima composição, esta, do amigo Jorge Mautner. “Duas Luas” fecha com a poesia lírica e estelar própria do “maldito” num ijexá moderno, a se ver pelo elegante sax solo de Zé Luis. ”Estou adorando andar pelas ruas/ Como quem não quer nada/ Debaixo do sol/ Debaixo das luas/ Que são mais de duas”, numa referência às luzes de neon que também compõe o título deste disco precioso.

Num período em que vinha um tanto inconstante, “Dia Dorim Noite Neon” ajustou a rota e elevou novamente a régua de Gil diante da própria obra. E muito se deve ao vigor contagiante de Pedro Gil, que deixou este plano bem cedo, mas não antes de reenergizar seu próprio pai com o espírito do rock. Vieram, na sequência, “O Eterno Deus Mu Dança”, de 1989, álbum de estúdio em que aproveita algumas receitas do antecessor, a trilha do filme “Um Trem para as Estrelas”, em inédita parceria com Cazuza, e dois ótimos discos ao vivo: “Live in Tokyo” e “Gilberto Gil em Concerto”, todos os três de 1987. Mas “Dia Dorim...” pode tranquilamente ser considerado seu melhor trabalho em toda aquela década. Antenado com seu momento histórico em letras, melodias, atmosfera e sonoridade, mas sem soar datado como muita coisa dos anos 80 – a começar pelo próprio álbum anterior, “Raça Humana” –, o disco serviu, inclusive, para ajudar a quebrar preconceitos entre música popular e o então fortalecido rock, como se o primeiro fosse coisa de velho e o segundo de jovens. Sem divisar. O Rappa, Planet Hemp e Skank são fruto dessa mentalidade arejada nos anos 90. 

Gil provou que, como diz na vinheta do disco, sua forma de pensar/ser é aceitar a impermanência das coisas e conectar-se à espiritualidade. No caso, a igreja do rock. "Outrora, o reino do Pai/ Agora, o tempo do Filho com seu novo canto." Esse tal de rock'n'roll pode até ser coisa do diabo, mas também sabe muito bem ser divino.

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FAIXAS:
1. “Abertura: Minha Ideologia, Minha Religião” – 0:26
2. “Nos Barracos Da Cidade (Barracos)” (Gilberto Gil, Liminha) - 4:11
3. “Roque Santeiro, O Rock” - 4:25
4. “Seu Olhar” - 4:02
5. “Febril” - 3:41
6. “Touches Pas A Mon Pote” - 3:45
7. “Logos Versus Logo” - 3:05
8. “Oração Pela Libertação Da África Do Sul” - 3:28
9. “Clichê Do Clichê” (Gil, Vinicius Cantuária) - 4:20
10. “Casinha Feliz” - 3:14
11. “Duas Luas” (Jorge Mautner) - 3:32
12. “Final: Minha Ideologia, Minha Religião” – 0:25
Todas as composições de autoria de Gilberto Gil, exceto indicadas


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OUÇA O DISCO:
Gilberto Gil - "Dia Dorim Noite Neon" 


Daniel Rodrigues