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terça-feira, 9 de julho de 2019

É só isso, meu João (ou O Brado e o Silêncio ou A Rara Beleza)


Falar sobre João Gilberto é falar sobre o nada. O que equivale – rebuscando na filosofia clássica, oriental ou nagô – a falar sobre tudo. Pois impossível de se abarcar João em toda sua completude. Seu tamanho é gigante, por isso, incomensurável. Próximo ao nada. Afinal, não tem como medir a importância do legado que João nos deixa, como músico, como artista, como referência, como ícone.

Do tudo, denota-se o que nenhum artista foi capaz na música brasileira, nem Pixinguinha, nem Noel, nem Ary, nem Villa-Lobos, nem Chiquinha e nem o próprio companheiro de revolução bossa novística Tom. Sua importância é a de um sacerdote. Uma geração inteira de séquitos o seguiu, de Edu a Gal, de Chico a Macalé, de Donato a Paulinho, de Nara a Moraes. O seguiram e só existiram por causa dele. Além disso, em João há a força sintética de seu violão, que integra a modinha, o batuque, o terreiro, o jazz, o jongo, a valsa, o breque, o malandro, a África, o barroco, o sertão. O samba. O samba desde que é ele mesmo. Articulou chamar-se de João Gilberto o samba.

Ao mesmo tempo em que João é o tudo, também simboliza o nada. João é a ode ao silêncio. Como poucos, soube representar essencialmente o vazio. Como na pintura Rothko, no cinema de Antonioni, na pedagogia de Steiner, na arquitetura de Niemeyer. Sua ideia de silêncio difere em conceito da de Cage, cuja assimilação do nada é parte essencial para a desconstrução das mitologias. Em João, não. O silêncio, mais do que o “ma” oriental, que o yin do I Ching, é a oposição indissociável da matéria som. O silêncio (e o “não silêncio”, a nota, a cor) é o mito. Seu violão, assim, materializa a história da tradição arábica e grega, dos bardos medievais, dos trovadores galegos, dos cantadores lusos.

O calar e a fala do sambista do morro, do mar, do asfalto.

Limpa, baixa, sem sotaque, afinada nas minúcias e dona do tempo e do espaço a voz de João. Enganam-se sempre os que a ele atribuem “voz pequena”. Não entendem. A voz de João é um trovão domesticado de quem encerra o bel canto de Orlando Silva, a pronúncia miúda de Mário Reis, o sussurro cool de Chet Baker, a afinação Elizeth Cardoso, as orquestras da Rádio Nacional. O gogó de João vale por uma escola de samba. E por um suspiro.

A bossa nova salvou o Brasil nos anos 50. O Brasil de terceiro mundo substancialmente exportador de matéria-prima; o Brasil reconhecido pela habilidade com as pernas de um esporte popular mas “não nobre”; o Brasil de uma então recente e duradora escravatura; o Brasil continental isolado nas Américas pelo idioma. A bossa nova salvou o Brasil, e o salvou com aquilo que há de mais alto e expressivo na criação humana desde as cavernas: a arte. Depois dos acordes dissonantes de João, catalisadora das harmonias de Tom e da poesia de Vinícius, entramos, definitivamente, no mapa. Essa tal de bossa nova é foda, mesmo, Caetano!

Pouco se comparará em música à equação a que João chegou com a unidade voz-violão/violão-voz. Um bruxo – de Juazeiro. “Chega de Saudade” tem três ou quatro similares em importância e transformação na segunda metade do século XX – uma “Gesang der Junglinge”, de Stockhausen, uma “A Day in the Life”, dos Beatles; um “A Love Supreme”, de Coltrane. Poucos.

A rara beleza. Como um falsete de Milton, um acorde de Hendrix, uma pronúncia de Ella, uma harmonia de Stravisnky, um gracejo de Gil. Pouco, pouco mesmo se compara, talvez nem esses. De novo, enxergar o nada, como uma miragem às avessas, nos prejudica as avaliações. João é tudo isso, e é só isso. E não tem mais nada, não. E melhor do que isso, só mesmo o silêncio.


JOÃO GILBERTO PRADO PEREIRA DE OLIVEIRA
(1931-2019)



Daniel Rodriggues

sábado, 12 de novembro de 2016

Paulinho da Viola - “Memórias Chorando” (1976)


“’Chorando’ é um disco sonhado
por mim há muito tempo [...] 
Este trabalho não é propriamente
um disco de minhas memórias,
mas uma primeira experiência
com o gênero musical que mais me comove
dentro da nossa música popular.”
Paulinho da Viola



Paulinho da Viola é daqueles artistas que têm em sua base elementos da identidade brasileira. Filho de músico, Cesar Faria, cresceu num ambiente naturalmente musical. Na sua infância em Botafogo, bairro tradicional da zona sul do Rio de Janeiro, teve contado constante com a música através do pai, violonista integrante do conjunto Época de Ouro. Nos ensaios familiares do grupo, Paulinho conheceu os ídolos Jacob do Bandolim e Pixinguinha, entre muitos outros músicos que se reuniam para fazer choro e eventualmente cantar valsas e sambas de diferentes épocas. Mais tarde, antes mesmo de se tornar o cantor e compositor conhecido por clássicos como “Foi um rio que passou em minha vida” e “Para ver as meninas”, Paulinho, na segunda metade dos anos 60, já encabeçava um retorno triunfante do mesmo Época de Ouro, então relegado pela indústria fonográfica diante das nascentes música pop e MPB. Pois ele sempre soube valorizar a verdadeira arte, independentemente do seu período. Afinal, não lhe existe essa fronteira entre antigo e novo.

Assim, em 1976, dentro do mesmo projeto em que buscava retrazer a si sentidos do passado, deu-se a ideia de um disco inteiro de temas instrumentais de choro, um dos estilos formadores de Paulinho da Viola, tanto no modo de compor quanto de tocar violão ou cavaquinho. “Memórias Chorando”, um velho sonho do compositor, traz esse lado “chorão” de Paulinho, que regrava clássicos, redescobre preciosidades e, claro, cria as suas próprias. Além de temas seus, Paulinho vai aos grandes mestres, não se limitando aos baluartes Pixinguinha e Benedito Lacerda, mas apresentando a face desconhecida para muitos de Ary Barroso ao regravar-lhe “Chorando”, uma obra praticamente inédita.

Ele começa com o seu preferido, o genial Pixinguinha, em “Cinco Companheiros”, em que destaca o “equilíbrio formal” da melodia, “poucas vezes alcançado por um compositor num choro”, comenta. Paulinho, ao cavaquinho, tem o apoio de um grande time de músicos, aliás, um fator importante para a riqueza tanto de “Chorando” quanto de “Cantando”. Chiquinho, irmão mais novo de Paulinho, excelente no bandolim; Cristóvão Bastos, um dos maiores pianistas populares do Brasil e exímio arranjador ainda antes da Black Rio; o pai César Faria, incomparável acompanhador, perfeito nas harmonizações; Dininho, filho do histórico Dino Sete Cordas e responsável pelo baixo elétrico; Jorginho, excepcional pandeirista, irmão de Dino e tio do Dininho; Hércules Pereira, na bateria; e Chaplin, na percussão. Isso sem contar com o maestro Copinha na flauta e saxofone, e do parceiro inseparável Elton Medeiros manuseando diversos instrumentos de percussão.

A faixa-título, assim como no primeiro volume, é o segundo número do disco. Porém, desta vez não se trata de uma composição própria, mas sim do raro choro de Ary Barroso resgatado da memória afetiva de Paulinho. Trata-se de um tema gravado nos anos 50 em que seu pai, Cesar, fora o arranjador. Nela, Cristóvão abre solando por quase 2 minutos, aproximando-se do valseado que o próprio Ary forjara ao piano na versão original. Já na segunda metade, entra o restante da banda, e aí é o cavaquinho de Paulinho que domina. Excelente violonista que é, Paulinho mostra igualmente seu domínio do limitado mas formoso cavaquinho, instrumento dificílimo para o trabalho de “centro” e muito mais ainda para o de solo. “O cavaquinho ‘solado’ não é muito fácil devido aos poucos recursos que oferece”, relata Paulinho no detalhado texto do encarte. “A palhetada, tanto para solar quanto para centrar, é de muita importância, e seu completo desenvolvimento requer, às vezes, anos de experiência”.
Arte do encarte no desenho de Elifas Andreato.

A flauta de Copinha passeia pelos acordes animados de outra de Pixinguinha, “Cuidado, Colega”, compositor que também se faz presente no álbum na elegante “Cochichando”, em que o cavaquinho faz duo com a flauta, e a maxixada “Segura Ele”, outra, assim como “Cuidado...”, parceria com Benedito Lacerda. Todas canções de grande familiaridade aos ouvidos brasileiros, pois ouvi-las é dar-se conta do quanto seus acordes são parte do acervo imaterial da cultura do país.

Paulinho, entretanto, não deixa por menos quando se trata de chorar. Sabedor do desafio que se impôs, ele cria temas e recupera outros de seu repertório igualmente dignos de parearem com tais clássicos. ”Romanceando” é uma delas. Dedicado a seu pai, é um choro cadenciado de mais de 10 anos que Paulinho resgatava àquela altura. Ele e seu Cesar executam um dos mais lindos duos de violões da música brasileira de todos os tempos, em uma harmonia musical apenas explicável pelo inquestionável laço de afeto. Cristóvão e Copinha, este último ao sax agora, não ficam para trás quando, na segunda metade, exercitam solos igualmente lúcidos e sentimentais. Em clima parecido, a suplicante “Oração de Outono” é daquelas cujo arranjo faz a ponte entre chorinho e música erudita, ainda mais pelo som solene do fagote de Airton Barbosa.

Em homenagem à grande “violeira” Rosinha de Valença, com quem Paulinho tocara tal tema em parceria, “Rosinha, Essa Menina” traz ao choro um ar da guitarra nordestina, em que o solo se vale das notas mais agudas. Também em ritmo alegre, “Beliscando” retraz a atmosfera dos velhos chorões alegres e espevitados como os de Ernesto Nazareth e Chiquinha Gonzaga.

“Choro de Memórias”, de estrutura formal rigorosa, é um verdadeiro exercício da modulação própria que tem o gênero, que vai da tonalidade maior à menor e vice-versa, passeando por entre ambas em seu decorrer. O encerramento do disco é romântico e intenso, como se Chopin se visse um chorista, cabendo a Cristóvão dedilhar-lhe inteira com carinho e sensibilidade. Com esta, escrita em homenagem a Jacob do Bandolim e não coincidentemente intitulada “Inesquecível”, Paulinho dá a mensagem de que jamais o choro se perderá da memória nesse vasto cancioneiro que a música do Brasil carrega como poucas nações culturais. Não se depender dele.
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FAIXAS:
1. Cinco Companheiros (Pixinguinha) - 3:16
2. Chorando (Ary Barroso) - 4:16
3. Cuidado, Colega (Benedito Lacerda, Pixinguinha) - 2:55
4. Romanceando - 4:37
5. Cochichando (Alberto Ribeiro, João De Barro, Pixinguinha) - 3:36
6. Rosinha, Essa Menina - 2:47
7. Oração de Outono - 3:55
8. Beliscando - 3:05
9. Segura Ele (Benedito Lacerda, Pixinguinha) - 2:02
10. Choro de Memórias - 2:12
11. Inesquecível - 4:10

todas composições de Paulinho da Viola, exceto indicadas.

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Ouça: 
Paulinho da Viola Memórias Chorando



por Daniel Rodrigues



sexta-feira, 11 de março de 2016

Coluna dEle #40



Salve, salve!
Tamo chegando.
E aí como é que tão as coisa? Tudo tranquilo e favorável?
Então tá bom.
De Minha parte, Eu tô nas nuvens.

***

Mas a propósito de tranquilo, favorável, desse MC aí, daquela outra lá da metralhadora, Eu coloco aí Tom Jobim, Pixinguinha, Villa-Lobos, tem vivos Gil, Caetano, Chico, Jorge Ben e vocês ficam ouvindo essas porcarias?
Eu dou biscoito pra quem não tem dente, mesmo.
Depois Eu é que não vou salvar ninguém do Inferno, hein.

***

Eu sei, Eu sei, dou muitos caras foda aí pra vocês mas tiro também. Eu sei. Mas é da vida, uma hora eles vão ter que vir. Naná, por exemplo, que acabou de subir: se é pra vocês ficaram ouvindo Bin Laden e tratratrá, é sinal que não tá fazendo falta nenhuma aí embaixo. 
Aqui, assim que chegou, já saiu batucando nas Tábuas Sagradas, batendo os sinos celestiais e usando as auréolas dos anjinhos como se fossem triângulos.
Gênio!

***

Mal chegou e já foi relembrando as parcerias
Por falar em gênio, outro que Eu chamei pro andar de cima  que sei que vocês não engoliram bem até agora foi o Bowie.
Sei que não tem NINGUÉM aí embaixo pra fazer o que ele fazia, sei que essa posição fica vaga mas, pensa bem, o cara já fez tudo que era possível pra um mortal fazer em matéria de arte, já deixou o bastante pra vocês, não? Queriam mais? 
Deixem o cara sair de cena. Além do mais aqui ele fica mais perto das estrelas que ele gosta tanto e com as quais é tão acostumado.
Foi outro que mal chegou e já foi fazendo um som. Encontrou o Freddie e já puxaram um "Under Pressure" e com o John saiu cantando "Fame". Pelo jeito até já encaminhou outras parcerias interessantes por aqui. O vi combinando alguma coisa com o Ian Curtis, com a Amy, com o Jimi, com o Kurt, com o Lou com quem ele já tinha feito uns lances, e até com o Lemmy que também chegou há pouco.
Mas talvez as parcerias aqui de cima não se confirmem. A gente tá revendo a estratégia de marketing e não é de se descartar que ele volte. Como um Lázaro.

***

Ainda falando em deuses, e os show dos Stones por aí , hein?
Que que foi aquilo, véi???
Os velhinhos sabem das coisas, não?
Tenho que admitir que já chamei o Keith umas trocentas vezes pra vir pra cá pra cima mas que ele ainda tá mandando ver, tá! Até vou dar mais uns anos pra ele depois dessa turnê. 
Podia ter visto de graça aqui de cima mas a visão era muito longe do palco, aí tive que morrer numa nota preta mas vi de pertinho, ali do gargarejo. Teve uma hora que um cara até falou "Deus está entre nós", Eu pensei que ele tinha Me reconhecido mas ele tava se referindo ao Richards. Ufa!
O show todo foi afudê mas Eu fiquei arrepiado mesmo foi com "Sympathy for the Devil". "Pleased to meet you/ hope you gessed my name".

***

Mas ainda sobre o mundo do entretenimento, nunca recebi tanta oração pra alguém ganhar um prêmio quanto pra esse tal de DiCaprio. Não vejo porque tanta ansiedade pra isso. Tanta gente tão boa ou melhor no cinema passou a vida inteira fazendo coisas incríveis e só foi "ganhar" a sua estatuazinha dourada depois que já tinha vindo pra cá. Mas se era importante pra ele... pras fãs... Taí. Faça bom proveito.

***

Sobre o filme, esse que ele participa e que ganhou prêmio de direção também, o que tenho dizer é que... Não vi. Não posso opinar.

***

Tive que dar explicações sobre o meu patrimônio
ter aumentado em apenas sete dias
Mas agora, mudando de saco pra mala, a situação política aí no Nosso... digo, no país de vocês, de tranquila e favorável não tem nada, hein. E o pior é que é o sujo falando do mal lavado. Não tem um que se escape. Eu não queria estar na pele de vocês quando tiver eleições. 
A propósito, Eu nunca tinha visto uma cassação prévia como estão tentando fazer por aí.

***

E não me venha com essa de que Ele é de direita, Ele é de esquerda. Eu não sou de lado nenhum. eu sou de cima.

***

Uma vez Me vieram uns agentes da Polícia Celestial aqui em casa querendo Me levar para dar explicações de como é que que tinha construído todo Meu patrimônio em sete dias. Me vieram com um papo de condução, como é que é, coercitiva, eu acho. Eu disse que não ia, que tinha meus direitos, que aquilo era uma violência contra o cidadão, que não iam encontrar ninguém mais honesto do que Eu, que aquilo ia contra o Decálogo,  e se eles sabiam com QUEM tavam falando. O cara da Celestial só Me disse, "Mesmo que tu fosse Deus. Se até o Lula foi, tu vai também". E tive que ir.

***

Fui lá dei Meu depoimento, blablablá, biriri e bororó  e Me liberaram. Eles perceberam, na verdade, que não tinha jeito porque se Me prendessem, Eu virava herói, se Me matassem, como Nietzsche tentou, Eu virava mártir, e se Me deixassem, solto Eu seria um Deus.

***

Tenho que ir, Minhas crias.
Vocês não fazem ideia do quanto cuidar de vocês Me dá trabalho.

Qualquer coisa, orações pra astros de cinema, pra queda de presidente, pra queda de presidente da câmara, pra queda de candidato à presidência, pra eliminação de participante do BBB, pra eliminação do programa BBB, pra baixar o dólar, contra a dengue, o chycungunya, a zica, a urucubaca ou qualquer outro assunto,
enviar para o e-mail:
god@voxdei.gov


Fiquem Comigo e que Eu os abençoe.

Ralei peito, meti o pé, deitei o cabelo, fui!


por Ele

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Cartola - "Cartola" (1976)



"A delicadeza visceral de Angenor de Oliveira é patente quer na composição, quer na execução. (...) Trata-se de um distinto senhor emoldurado pelo Morro da Mangueira. A imagem do malandro não coincide com a sua. A dura experiência de viver como pedreiro, tipógrafo e lavador de carros, desconhecido e trazendo consigo o dom musical, a centelha, não o afetou, não fez dele um homem ácido e revoltado. A fama chegou até sua porta sem ser procurada. O discreto Cartola recebeu-a com cortesia. Os dois conviveram civilizadamente. Ele tem a elegância moral de Pixinguinha, outro a quem a natureza privilegiou com a sensibilidade criativa, e que também soube ser mestre de delicadeza".
Carlos Drummond de Andrade



O escritor Ariano Suassuna, numa hilária passagem de uma palestra que proferira em 2012, comenta sobre a desqualificação da cultura no Brasil e cita como exemplo uma matéria do jornalista Carlos Eduardo Miranda, a qual dizia ser o guitarrista da banda pop-brega Calipso, Chimbinha, um “gênio”. Suassuna, do alto de sua sabedoria, ironiza indagando que, se for usar o termo “gênio” para alguém como o famigerado Chimbinha, o que lhe resta para qualificar Mozart? De fato, o adjetivo é forte e sofre de constante vulgarização nos tempos atuais, a ponto de chegar a uma total inadequação como esta. Porém, há casos em que chamar algo ou alguém de genial é mais do que cabível: é a única forma de classificar. É o caso de Angenor de Oliveira, um dos maiores compositores que a música (popular? Brasileira? Mundial?) já viu. De vida oscilante entre a fama e a dureza, foi nesta segunda que se consagrou. Os anos de lida difícil como pedreiro serviram se não por outro motivo pelo menos de uma coisa: por conta do justificável cuidado que tinha com a preciosa cabeça – de onde saíam as tais genialidades –, protegia-a dos dejetos de obra usando um chapéu coco. O suficiente para os colegas de broxa e argamassa lhe darem o apelido que viraria a alcunha artística definitiva deste Mozart do morro: Cartola.

Completando 40 anos de seu lançamento, o segundo disco do sambista é a consolidação de uma era iniciada na virada do século XIX para o XX quando negros ex-escravos e filhos deles migraram do Nordeste para o Rio de Janeiro, a capital brasileira que veria o nascimento do gênero musical essencialmente nacional: o samba urbano. Após gravar o também fundamental álbum de estreia, em 1974, igualmente homônimo e recheado de clássicos da MPB, Cartola viu-se, aos 67 anos de idade, finalmente alçar ao estrelato. Mas, como dito, antes de chegar a isso travou muitas batalhas com o destino. Sua vida cheia alegrias e tristezas foi o verdadeiro reflexo do negro pobre brasileiro: mesmo com tamanho talento, a discriminação e as dificuldades raciais e socioeconômicas muitas vezes se sobrepuseram. Aos 8 anos, nos anos 10, já tocava cavaquinho e acompanhava os blocos carnavalescos. Mas a fome atingia a ele e a sua família, tendo de dividir-se entre o pinho e o trabalho desde cedo. Na adolescência, em 1928, fundou a primeira agremiação de samba do Rio, a famosa Estação Primeira de Mangueira, época em que já compunha vários sambas, muitos deles sucessos na voz de Carmen Miranda, Francisco Alves e Mário Reis (mesmo que não recebesse crédito às vezes, ou seja, não fosse pago pela autoria). Pouco depois, tem de abandonar os estudos, pois a mãe morre e passa a se sustentar sozinho. Até que contrai meningite e, em seguida, fica viúvo, afastando-se por uma década do violão pelo desgosto. Volta à cena por acaso num café de Ipanema quando Sérgio Porto o descobre lavando carros num prédio do bairro. O ano era 1956, e corria pelos botecos a lenda de que mito Cartola havia morrido. Não: a vida não havia conseguido derrubá-lo. Pouco tempo dali, com ajuda de amigos e admiradores, monta com a segunda e derradeira esposa, D. Zica, o bar Zicartola, página importante na história da música popular brasileira que viu, por exemplo, jovens como Paulinho da Viola nasceram para a música. Claro, sob a bênção de Cartola, a partir dali fadado finalmente só aos aplausos.

Chegados os anos 70, o qual não se imaginava ser a última década da vida de Cartola (podia-se pelo menos suspeitar, dada a idade avançada e o organismo judiado), um de seus admiradores, o produtor musical João Carlos Bozelli, o Pelão, deu-se conta de uma coisa importantíssima: mesmo com o tardio mas devido reconhecimento, Cartola não tinha ainda um disco solo! Vários o gravaram dos anos 20 até então, tendo suas composições já imortalizadas na música brasileira mais do que o próprio autor. Mas ele mesmo, cantando e protagonizando, havia apenas uns poucos e esparsos registros. Diversas das joias compostas por ele ao longo de 60 anos e cantadas por outros intérpretes – “Não posso viver sem ela” (Ataulfo Alves, 1941), “O Sol Nascerá” (Isaura Garcia, 1964), “Sim” (Elizeth Cardoso, 1965), "Festa da vinda" (Elza Soares, 1973) – juntaram-se, então, a canções novas que, tal o poder operado pelos gênios, tornaram-se clássicos atemporais imediatamente. É o caso de “O Mundo É Um Moinho”, samba-canção que abre o segundo disco e que traz um dos mais belos poemas da língua portuguesa, algo do nível de Camões ou Vinícius. A exatidão formal dos versos sobre o requinte harmônico é aquilo que um Chico Buarque sempre buscou. “Preste atenção querida/ De cada amor tu herdarás só o cinismo/ Quando notares estás a beira do abismo/ Abismo que cavastes com teus pés.”. A melodia é primorosa, como se o amigo (e admirador) Heitor Villa-Lobos tivesse posto em partitura um samba. No luxuoso arranjo, assinado por Dino 7 Cordas, a flauta do virtuose Altamiro Carrilho e o violão solo de um então jovem chamado Guinga. Perfeição é pouco.

Na mesma linha temática de perda da amada, “Minha” (“Minha/ Ela não foi um só instante/ Como mentiam as cartomantes/ Como eram falsas as bolas de cristal”) traz a tradicional elegância poética e composicional de Cartola, a qual o poeta Drummond chamou de “delicadeza visceral”. É isso que se sente noutra de suas imortais canções, esta, um dos hinos da Mangueira: “Sala de Recepção”. “Habitada por gente simples e tão pobre/ Que só tem o sol que a todos cobre/ Como podes, Mangueira, cantar?”. Com esse questionamento, que percorre todo um paradigma sociocultural dos povos marginalizados e sua bravia cultura – a qual prescinde de estudo formal, haja vista que um poeta e compositor de fina estampa como Cartola tinha apenas o primário –, tem a ajuda do registro agudo da cantora Creusa, equilibrando o tom moderado e elegante do canto de Cartola. E com que beleza são cantados os versos! “Pois então saiba que não desejamos mais nada/ A noite e a lua prateada/ Silenciosa, ouve as nossas canções”.

Outra das antigas, sucesso já nos anos 40, “Não Posso Viver sem Ela” vem num arranjo redondo de partido-alto, favorecendo a voz declamativa de Cartola – esta, acompanhada, na segunda parte, por um coro feminino. O trombone inicia anunciando os acordes-base. Segue desenhando frases do sopro a faixa inteira com a majestosa “cozinha” que traz Elton Medeiros no ganzá e caixa de fósforos; Gilson de Freitas, no surdo; Jorginho do Pandeiro no seu instrumento originário; Nenê, na cuíca; mais Meira ao violão; Canhoto no cavaquinho e Dino 7 Cordas tangendo as próprias. Mais um samba romântico, cujo refrão é uma aula de uso poético do idioma lusófono: “Pode ser que ela ouvindo os meus ais/ Volte ao lar pra viver em paz”. Isso se chama “rima rica”, meus senhores. Paulinho da Viola, valorizador de Cartola desde sempre, a gravaria numa versão de igual qualidade em 1983.

Mais uma gloriosa é “Preciso me Encontrar”, única do disco não composta por Cartola junto com “Senhora Tentação” (de Silas de Oliveira, originalmente gravada por Elizeth Cardoso em 1967 com o título “Meu Drama”). Esta é de outro mestre do samba: o portelense Candeia. Abertura mais do que marcante ao som de um fagote e o dedilhado aberto do violão, erudita e melancólica. A versão choro de Marisa Monte, de 1989, é muito legal, mas inesquecível mesmo é a cena de “Cidade de Deus” em que esta, a original, faz trilha para a fuga frustrada do personagem Cabeleira: “Deixe-me ir/ Preciso andar/ Vou por aí a procurar/ Rir pra não chorar.” Simplicidade dos versos e uma síntese narrativa impressionante que caíram como uma luva ao filme.

“Peito Vazio”, outra das recentes à época da gravação, é mais uma de tirar o fôlego tamanha sua riqueza melódica, seja na estrutura harmônica airosa, seja na poética romântico-parnasiana. Chico Buarque, no documentário “Palavra (En)Cantada“, disse-se impressionado com tal capacidade inata de Cartola e desses sambistas do morro, uma vez que provavelmente jamais tiveram acesso à literatura parnasiana ou romântica. O belo samba “Aconteceu” (“Aconteceu/ Eu não esperava, mas aconteceu/ Todo o bem que fiz, se fiz, ela esqueceu”), também nesta linha, antecede outra prova da criatividade superior do Mozart da Mangueira: “As Rosas não Falam”. Assim como “O Mundo é um Moinho” (e outras composições sui-generis como “Acontece”, do álbum anterior, e “Nós Dois”, de 1977), pode-se classificar como uma obra-prima – é tida como a 13ª maior música da MPB em votação da revista Rolling Stone Brasil.

Ouvindo-se “As Rosas não falam”, a comparação com um músico erudito não parece exagerada, o que ratifica em carta medida a percepção manifestada por Chico. Quem conhece o "Vocalise, Op.34,Nº14", do compositor, maestro e pianista russo Sergei Rachmaninoff talvez nunca tenha percebido a semelhança da melodia desta com a música de Cartola. Não que o sambista não pudesse admirar algo deste tipo – pelo contrário, tinha sensibilidade musical suficiente para tal. Mas é bastante improvável que tenha se inspirado em Rachmaninoff ou mesmo escutado a peça – repetindo-a inconscientemente ou “chupando-a” conscientemente – antes de inventar os acordes deste samba. Proposital ou não, é-lhe elogiável. O arranjo, o qual conta novamente com a flauta de Carrilho, favorece o brilhantismo cristalino da melodia e da harmonia. E o que dizer da riqueza literária desses versos: “Queixo-me às rosas, que bobagem/ As rosas não falam/ Simplesmente as rosas exalam/ O perfume que roubam de ti, ai”?

“Sei Chorar”, de ritmo animado mas de letra igualmente sobre um amor desiludido, abre caminho para mais uma genial: “Ensaboa”. Lundu em dueto novamente com Creusa, se situa entre a reverência à linguagem ancestral africana, repetindo os cantos de trabalho das lavadeiras rurais, e a poesia modernista, no emprego fonético da sintaxe, no ritmo interno das palavras e na abordagem social do tema central. Marisa Monte também gravaria essa nos anos 90 numa linda versão em que lhe intensifica o aspecto rítmico. Finalizando o disco mais um clássico: “Cordas de aço”. Metalinguística, é a simbiose entre emoção e técnica, entre artista e sua arte. “Ai, essas cordas de aço/ Este minúsculo braço/ Do violão que os dedos meus acariciam/ Ai, esse bojo perfeito/ Que trago junto ao meu peito/ Só você, violão, compreende porque/ Perdi toda alegria”.

O historiador e pesquisador musical brasileiro José Ramos Tinhorão conta, em seu “História Social da Música Popular Brasileira”, que, na Rio de Janeiro do final do século XIX e início do XX, “as camadas populares urbanas viviam um dinâmico processo de grande riqueza cultural”.  Foi nesta época que surgiram os primeiros blocos carnavalescos e os primeiros nomes do samba, tanto na Zona Portuária e arredores quanto no Estácio de Sá e nas periferias e morros, como o da Mangueira, o que deu a luz à Cartola. Tardios, os dois primeiros discos dele, além de conterem a mais alta qualidade musical, formam um arquivo de importância documental e antropológica incomensuráveis dentro da cultura brasileira e dos processos sociais da América negra. Por razões socioculturais e econômicas nefastas e vergonhosas, demorou meio século para que o óbvio acontecesse, processo idêntico ao ocorrido com outros bambas como Clementina de Jesus, Nelson Sargento, Nelson Cavaquinho, Ismael Silva e Adoniran Barbosa. Todos só gravariam trabalhos solo na terceira idade e na última década de suas vidas. Se isso é um resultado das tais desvalorização e vulgarização da cultura a qual Suassuna diz ainda acometer o Brasil, ao menos, em algum momento, os moinhos do mundo sopraram a favor da genuína genialidade. E se a fama chegou até a porta de Cartola sem ser procurada, como frisou Drummond, o fez com o devido respeito e deferência, enquanto que o discreto Cartola recebeu-a com a cortesia de um verdadeiro nobre.


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FAIXAS:
1. O Mundo é um Moinho
2. Minha
3. Sala de Recepção
4. Não Posso Viver sem Ela (Cartola/Bide)
5. Preciso me Encontrar (Candeia)
6. Peito Vazio (Cartola/Elton Medeiros)
7. Aconteceu
8. As Rosas não Falam
9. Sei Chorar
10. Ensaboa
11. Senhora de Tentação (Meu Drama) (Silas de Oliveira)
12. Cordas de aço

todas as faixas compostas por Cartola, exceto indicadas.

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OUÇA O DISCO:



terça-feira, 22 de abril de 2014

Os 15 Melhores Discos Brasileiros de Música Instrumental

Hermeto Paschoal, presente em 3 discos da lista,
"Em Som Maior", "tide" e o seu, "Hermeto".
Nessas brincadeiras diletantes de criar listas sobre os mais diferentes temas musicais nas redes sociais (10 melhores show assistido no Teatro da Ospa, 10 melhores discos de jazz da ECM, 10 melhores músicas contra a ditadura militar, 10 músicas chatas do Chico Buarque, 10 melhores discos de soul music, e por aí vai) fui instigado a montar uma que, num primeiro momento, titubeei. “Será que eu saberia compor uma com esse tema?”, pensei. Tratava-se do “Melhor Disco Instrumental de Música Brasileira”. Mesmo com meu conhecimento musical, que não é pouco, teria eu embasamento suficiente para criar uma lista interessante e, além disso, suficientemente informada a esse respeito? Pois, para minha própria surpresa, a lista saiu, e bem simpática, diga-se de passagem. Além de não se prender a um estilo musical específico (o que se chamaria burramente de “música instrumental brasileira” pura), típico de minha forma de enxergar a música e a arte, acredito que minha listagem não ficou pra trás em comparação a de outros que se empolgaram e publicaram as suas também.
Claro que tem muita coisa que não consta na minha lista que vi na de outros, pois certamente ainda tem muito o que se conhecer dentro do mar de maravilhas sonoras que existe. Raul de Souza, Barrosinho, Os Cobras, Victor Assis Brasil, Djalma Correa e Edison Machado, por exemplo, nem cito, pois não tive o prazer ainda de conhecer seus trabalhos a fundo ou ponto de saber selecionar-lhes um disco representativo. Mas acho que, afora o gostoso dessa prática quase infantil de elencar preferências, tais lacunas são justamente o papel dessas listas: abrir novos paradigmas para que novas revelações se deem e se passe a conhecer aquele artista ou banda que, quando se ouve pela primeira vez, se pensa com surpresa e excitação: “Cara, como que eu nunca tinha ouvido isso?!” Se algum dos títulos que enumero causar essa sensação nos leitores, já cumpri meu papel.

Aí vão, então os meus 15 discos preferidos da música brasileira instrumental, mais ou menos em ordem:


1 – “Maria Fumaça”, da Banda Black Rio (1977)


2 – “Coisas“, do Moacir Santos (1965)
3 – “A Bed Donato”, do João Donato (1970)
4 – “Wave”, do Tom Jobim (1967)
5 – “Em Som Maior”, da Sambrasa Trio (1965)


6 – “Revivendo”, do Pixinguinha e os Oito Batutas (1919-1923 – coletânea de 1895)
7 – “O Som”, da Meirelles e os Copa 5 (1964)
8 – “Donato/Deodato”, do João Donato e Eumir Deodato (1973)
9 – “Sanfona”, do Egberto Gismonti (1981)
10 – “Light as a Feather”, da Azymuth (1979)
11 – “Jogos de Dança”, do Edu Lobo (1982)
12 – “Opus 3 No. 1”, do Moacir Santos (1968)
14 – “Tide”, do Tom Jobim (1970)


15 – “Hermeto”, de Hermeto Paschoal (1971)






quarta-feira, 23 de maio de 2012

Dorival Caymmi - "Canções Praieiras" (1954)



“Dorival é um Buda nagô,
filho da casa real da inspiração.“ 
Gilberto Gil



Antes de mais nada, um aviso aos navegantes das águas de Iemanjá: Dorival Caymmi não é música. Para o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, a verdadeira arte manifesta algo que não está somente naquilo que se percebe na epiderme da obra, mas, sim, na sua estrutura, no seu significado mais profundo. Assim como uma “Guernica” de Picasso é mais do que uma pintura ou “Tempos Modernos” de Chaplin mais do que um filme, pois são marcos históricos divisores-de-águas da sociedade, o que Caymmi produziu tem uma amplitude antropológica que vai além dos limites da música. Caymmi conseguiu traduzir através de sons os costumes de um povo, os jeitos de um povo, o pensar de um povo. “Canções Praieiras”, de 1954, é isso: extrapola o sentido de uma simples gravação. É um documento fonográfico de suma importância para tudo o que se possa classificar como cultura no século XX, seja popular, folclórico ou erudito, pois ele foi um criador de linguagem. Como disse  Gilberto Gil , Caymmi é o início da “nova idade de ouro da canção”.
A universalidade da música deste baiano abençoado pelos orixás está em cada som, em cada dedilhado graúdo mas delicado na viola, em cada entoar do seu barítono, em cada rebolado sensual do seu canto. Nos temas, os conflitos, sentimentos e a luta diária pela sobrevivência daquele que vive em contato com o que há de mais primitivo e puro na natureza: o pescador. E os elementos dessa poética são os mais essenciais da vida: o mar, a água, a terra, o vento, a noite, a morte. De uma coesão conceitual impressionante, as oito faixas que compõem o disco trazem tudo isso do primeiro ao último segundo. Terra, mar e céu, assim como as dimensões do homem, da natureza e do místico, são trazidos em sua poesia em plena simbiose, equiparados, indistinguíveis. Tudo voz e violão, executados com tanta naturalidade que passa a sensação de que ele gravou na beira da praia, com os pés sobre a areia e olhando pro mar, apenas deixando os sons virem.
“Canções Praieiras” é uma escritura de clássicos absolutos, todos irreparáveis. O que dizer de “É Doce Morrer no Mar”, “O Mar” ou “A Jangada Voltou Só”? Operísticas, as três trazem o tema da morte, mas abordado sob a ótica mística e singela do pescador. Deslumbrante, mágico e de uma dramaticidade teatral espantosa. De tão visuais, é possível enxergar um filme em cada música. Misturando um pouco das histórias de cada uma, olhem só no que dá:

CENA 1 - EXTERNA – FIM DE TARDE – Várias tomadas do mar agitado.

CENA 2 - INTERNA – FIM DE TARDE - Pescador Pedro se despede com pesar de sua amada, Rosinha de Chica, pois não sabe se vai voltar da pescaria.

CENA 3 - INTERNA – FIM DE TARDE – Já sozinha, Rosinha, intuindo o pior, reza chorando.

CENA 4 – INTERNA/EXTERNA – NOITE - Pedro e seus companheiros, Chico, Ferreira e Bento, encontram-se na praia para iniciar o trabalho. Pegam a jangada e ganham o mar bravio na noite ventosa.

CENA 5 - EXTERNA – NOITE – Já em alto-mar, as águas se revoltam. Os pescadores acreditam ser por vontade de Iemanjá. Eles lutam para sobreviver, mas não resistem e caem no mar.

CENA 6 - EXTERNA – MANHÃ - A jangada aparece na beira da praia toda quebrada e sem os pescadores. Juntam várias pessoas da comunidade de Jaguaripe. As moças choram de fazer dó. Comoção geral.

CENA 7 - EXTERNA – MANHÃ – O corpo de Pedro aparece em outra ponta da praia próximo às pedras, todo roído dos peixes.

CENA 8 – EXTERNA – TARDE – FLASHBACK – Os pescadores felizes na festa da aldeia. Chico vestido de boi adornado na procissão de Natal. Bento, cantando modinhas e dançando, diverte a todos. Pedro e Rosinha trocam olhares de amor.

CENA 9 – EXTERNA – FIM DE TARDE - Rosinha, traumatizada, enlouquece. Passa a zanzar pela praia catatônica e com os olhos marejados dizendo baixinho: “Morreu. Morreu”.

CENA 10 – EXTERNA – FIM DE TARDE – Sob o sol vespertino, a onda do mar quebra lindamente na areia da praia.

FIM

Um roteiro de cinema perfeito! Caymmi é capaz de criar imagens, verdadeiros quadros da realidade de uma cultura, semelhante ao que fizeram, cada um em sua área, Jorge Amado, Caribé e Pierre Verger da mesma Bahia de Todos os Santos. Neste sentido, a música de Caymmi é extremamente figurativa, pois consegue ser literária ao mesmo passo que é cênica e imagética. “Canoeiro”, das que mais me assombro, reproduz em sons e versos o movimento sincronizado e o canto de um grande grupo de pescadores no ato da pesca, com aquela rede gigante sendo tirada do mar lotada de peixes. Sempre que ouço lembro sempre de cenas de “Barravento”, do também baiano Glauber Rocha.


O fantástico (sereias, lendas, cultos, santos, Batucajé) está constantemente presente. Assim é a incrível “Lenda do Abaeté”, com seus acordes de violão graves parecendo berimbau e clima introspectivo (até assustador) que arrepia ao se escutar, pois dá a impressão que faz suscitar sensações muito viscerais do ser humano. O disco fecha com a brejeira “Saudade de Itapoã”. Em águas calmas.
É de Caymmi que nasce toda a construção melódica da MPB moderna – esta uma das mais modernas e criativas expressões musicais de todo o mundo no último século. Carmen Miranda conquistou o planeta mostrando, com música dele, o que é que a baiana tem. Os grandes intérpretes, de Nelson Gonçalves a  Gal Costa, de Elizeth Cardoso Nara Leão, sempre reverenciaram sua obra. A bossa nova herdou-lhe as inusitadas dissonâncias, o ritmo e o gingado nordestino do samba, além da engenhosidade timbrística e harmônica e, largamente, o estilo sintético. Voz e violão. Foi o exemplo que bastou para  João Gilberto ajudar a criar uma música universal como a bossa nova.
Tudo isso porque, mais do que um músico que transpõe a realidade para sua arte, Caymmi é, justamente, ator e personagem dessa própria realidade. Ele é sua própria arte. Morto em 2008, deixou uma obra relativamente pequena se comparado com outros contemporâneos seus (Cole Porter, Noel Rosa, Carlos Gardel, Pixinguinha, Ernesto Lecuonda). Mas sua música vai além das fronteiras da própria música; é arte em sua mais pura essência. Simplesmente, Dorival Caymmi é como o mar quando quebra na praia: é bonito. É bonito.
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FAIXAS:
01 - Quem Vem Pra Beira do Mar
02 - O "Bem" do Mar
03 - O Mar
04 - Pescaria (Canoeiro)
05 - É Doce Morrer no Mar
06 - A Jangada Voltou Só
07 - Lenda do Abaeté
08 - Saudade de Itapoã

(Todas de autoria de Dorival Caymmi)

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