O show, muito bem intitulado “Duplo H”, referência às letras iniciais em comum do título de cada disco, fez lotar o Teatro Renascença em duas sessões naquele dia, sendo a anterior a que assistimos extra, devido à grande procura. Tocando os dois discos inteiros e na sequência, um simpático e sempre sagaz Nei Lisboa hipnotizou o público com o repertório ao mesmo conhecido, mas capaz de emocionar ao ser reouvido – ainda mais considerando a egrégora particular da ocasião.
Com Nei e Paulinho Supekóvia no violão/guitarra e Luis Mauro Filho ao piano/teclados, a apresentação deu a largada, conscientemente, pelas 14 faixas de “Hi-Fi”, cujo formato acústico original mostrou-se ideal para “começar os trabalhos” e por caber mais a este tipo de formação do conjunto. Os standarts, hits e AOR da música pop internacional, muito bem pescados por Nei para o set-list de “Hi-Fi”, são imbatíveis, visto que muito afins com o estilo e gosto pessoal dele. Tocando e, principalmente, cantando muito bem, Nei e a banda executaram as versões já tão queridas quanto suas originais, oscilando entre o folk, o blues, o country rock e as baladas no estilo da “Mellow Mafia” dos californianos anos 60/70. Casos de “Everbody's Talking”, do norte-americano Fred Neil; a linda “Summer Breeze”, da dupla setentista Seals & Croft; a beatle “Norwegian Wood”; “Fifity Ways to Leave you Lover”, do craque Paul Simon; e a sensibilíssima releitura de “Still... You Turn Me On”, da Emerson, Lake & Palmer.
Nei, ao centro, com sua enxuta e competente banda |
Completado “Hi-Fi”, agora era partir para as desafiadoras 11 faixas de “Hein?!”. Desafio duplo: primeiro, porque a formação do grupo não contava com bateria, fator essencial para a sonoridade do disco de 1988. “Como Nei vai resolver o arranjo?”, perguntava-me enquanto curtia o primeiro “H” da noite. O segundo desafio era mais íntimo ao próprio autor, uma vez que o disco foi composto sob a aura de uma tragédia na vida de Nei: a perda da então namorada, Leila Espellet, com quem se acidentou de carro na estrada, matando-a. “Como está o coração dele hoje, passadas três décadas, depois daquele acontecimento fatal? O que guarda no peito ainda: culpa, remorso, saudade, serenidade?”, passava-me à mente.
Parte da resposta veio na conversa com a plateia antes de começarem os números. De forma muito aberta e bonita, Nei pediu uma salva de palmas à memória da ex-companheira e executou na íntegra aquela que é apenas uma vinheta de abertura no álbum, “Zen”, escrita para o filho de Leila, à época com apenas 6 anos de vida. A música, a qual não conhecia por completo, apenas os poucos versos que foram parar na edição final de “Hein?!”, são um tocante recado de conforto de um padrasto talvez tão perdido e triste quanto àquele então pequeno órfão. “A vó da gente é mãe/ Da mãe da filha/ A filha da tia/ O pai do filho/ O espírito são/ Gente do bem, do mal/ Gente gorda, gente fina/ Quando vai pro céu/ O céu se ilumina”, diz a letra. Noutra parte (que também não consta no disco), Nei mostra o quanto aquelas palavras são tanto para ele quanto para o garoto: “Não tem desculpa, não tem culpa/ A culpa é sempre minha/ A culpa é da vizinha/ É uma chatice infernal.”
Um show carregado de canções fortes e emocionais já começou assim! O coração seguiu batendo forte com “No Fundo” e a brilhante faixa-título, uma das melhores do cancioneiro do gaúcho de Caxias do Sul. Nela foi possível conferir o acerto na escolha do arranjo, visto que se trata de uma música-chave do disco e que, se não funcionasse sem a bateria (possante nas baquetas de Renato Mujeiko no disco de 1988), correria sério risco de perder intensidade e, por consequência, identidade. Não foi o que aconteceu. Harmonizando com o arranjo dado à primeira parte do show, o formato violão/guitarra/teclado se encaixou muito bem também na segunda metade da apresentação. A mesma sensação ficou em outras duas igualmente adoradas por mim e pela plateia: a sentida “Nem Por Força” (“Nem por força do diabo/ Eu volto a vegetar/ Nessas malditas esquinas/ Na pressa de te encontrar”) e “A Fábula (Dos 3 Poréns”), debochada mas igualmente ferida pela perda que a motivou ser escrita: “Quebrei uns vinte, trinta espelhos/ De perguntar/ Se tinha alguém mais bela que ela/ Noutro lugar/ Comi todas maçãs da feira/ Pra adormecer/ E em vez do príncipe encantado/ Veio um baixinho assim”.
“Faxineira”, um blues elétrico, ganhou uma sonoridade de piano-bar muito adequada, além de uma leve modernização na letra que, segundo Nei, são para a “faxineira empoderada” dos tempos atuais. Outras que sofreram adaptação para o arranjo foram a country-rock “Fim do Dia”, menos acelerada, e o sucesso “Telhados de Paris”, que, embora parecesse a mais fácil de se adaptar – haja vista que é originalmente só no violão e voz –, ganhou o acertado acompanhamento do piano de Mauro Filho e teve a linha vocal levemente modificada. Nada que comprometesse um dos hinos da Porto Alegre moderna.
Mas os questionamentos que levantei intimamente no início do show sobre o envolvimento emocional de Nei Lisboa com o marcante motivo de “Hein?!”, mesmo que não tenham sido respondidos totalmente, deram-me a entender que permanecem de alguma maneira ainda latente nele, homem amadurecido e vivido em relação àquela época da composição do disco, anos 80. O que talvez tenha me passado a impressão de que as baladas não eram de uma época, assim, tão remota foi a supressão dos últimos versos de uma das preferidas da galera: “Baladas”. Emotiva, a canção fala sobre a referida perda de Leila e a briga interna para manter-se íntegro e desvencilhado do passado. Porém, os versos de “Baladas” escritos depois do acidente, como relatou Arthur de Faria, desta vez não foram cantados: "Só, muito além do jardim/ Viajo atrás de sombras/ Não sei a quem chamar/ Mas sei que ela diria ao acordar/ ‘Tudo bem/ Você me arrasou, meu bem/ E qualquer dia desses eu como as tuas bolas/ Mas agora esqueça o drama na sacola/ Não puxe o cobertor/ Não tape o sol que resta nessa dor’/ Foi bom: não durou”.
Se Nei optou por não cantá-los por não enxergar-lhes mais sentido ou por qualquer outro motivo, os da talvez ainda mais carregada “Teletransporte nº 4” foram ditos na íntegra. Faixa que finaliza o disco num clima de balada triste, foi tocada exatamente como é originalmente: violão, guitarra, piano e muita dor. E que versos fortes! “Porém o céu parece estúdio/ Nem o silêncio não diz nada/ Mesmo essas frases vão pro lixo/ São como lenços de papel/ Ainda por cima aquelas pernas/ Algumas coisas serão eternas/ Que bela ideia acreditar/ Que o mundo te aprendeu.” Para arrebatar os corações apaixonados em pleno 12 de junho.
Depois de 25 sessões em que a carga emocional só foi aumentando, partindo das músicas de “Hi-Fi” para as de “Hein?!”, Nei Lisboa encerra com uma que não entrou no repertório do primeiro por acaso: “Live and Let Die”, de Paul McCartney, numa competentíssima versão que dispensou até a orquestra que embala as aventuras de James Bond. Show perfeito do início ao fim deste que é um dos ícones da cultura de Porto Alegre. Se já tinha assistido ao vivo Tangos & Tragédias, Replicantes, De Falla, Renato Borghetti e Orquestra da Ospa na Praça da Matriz, faltava-me um show de Nei Lisboa para completar a lista dos patrimônios culturais da minha cidade. Uma estreia de luxo.
SET-LIST:
"Hi-Fi":
1 Everbody's talking
(Fred Neil)
2 Bennie & The Jets
(Bernie Taupin, Elton John)
3 Summer breeze
(Dash Crofts, Jim Seals)
4 Norwegian wood
(John Lennon, Paul McCartney)
5 Sometimes it snows in April
(Lisa Coleman, Rogers Nelson, Prince, Wendy Melvoin)
6 Fifty ways to leave your lover
(Paul Simon)
7 I'm having a gay time
(Alberta Hunter)
8 That's why God made the movies
(Paul Simon)
9 Walking away blues
(Ry Cooder, Sonny Terry)
10 Still... you turn me on
(Lake)
11 Cool water
(Nolan)
12 Ventura highway
(Deney Bunnel)
13 I shot the sheriff
(Bob Marley)
14 Ruby Tuesday
(Mick Jagger, Keith Richards)
"Hein?!"
15 Zen [Vinheta]
16 No fundo
17 Hein!?
18 Nem por força
(Ricardo Cordeiro, Nei Lisboa)
19 A fábula [Dos três poréns]
20 Faxineira
21 Baladas
22 Rima rica / Frase feita
23 Fim do dia
24 Telhados de Paris
25 Teletransporte n 4
(Glauco Sagebin, Nei Lisboa)
Todas composições de Nei Lisboa, exceto indicadas
Bis:
26. Live and Let Die
(Paul McCartney)
texto: Daniel Rodrigues
fotos: Daniel Rodrigues e Leocádia Costa