Nico Nicolaiewsky no Açorianos 2013
por Leocádia Costa
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Vi Nico
Nicolaiewsky pessoalmente em quatro diferentes escalas de proximidade. Neste 7
de fevereiro de 2014, dia em que ele se distancia definitivamente de mim e de
todos que permanecemos na terra, no Rio Grande do Sul, em Porto Alegre e,
principalmente, na Sbórnia, percebo com pesar que nunca mais situações como
essa ocorrerão. Por isso faço questão de lembrá-las uma a uma, relatando a
partir da de maior distância dessas três para as de maior proximidade:
Tive, nas
duas primeiras e mais afastadas oportunidades, o prazer de assistir, dar muitas
risadas e, principalmente, apreciar o talento de Nico como maestro Pletskaya no
Tangos & Tragédias ao lado do Hique Gomes (que, pôxa, como deve estar sentindo
agora, né?), uma em 1999 e outra em 2004. Sempre me impressionou a capacidade
artística e lírica desse artista refinado e de vasto conhecimento harmônico e
composicional, um cara que, desde o Grupo Musical Saracura, nos anos 70, antes
de eu ter nascido, já se confundia com a história recente da música popular do
Rio Grande do Sul. Além do espetáculo Tangos & Tragédias em si, concebido
por ele junto com Hique há mais de 30 anos, é das mãos de pianista clássico e
da criatividade de artista eclético que saíram músicas tão peculiares dos
gaúchos e porto-alegrenses como o ato de passear no Bric da Redenção, de tomar
chimarrão, de assistir a um Gre-Nal. Tangos & Tragédias tem essa aura, com
certeza. Do show das clássicas temporadas no Theatro São Pedro, um deles vi do
“puleiro” da galeria lateral do quarto mezanino, bem longe e de cima. O outro,
da plateia baixa, mais perto e sem deformação, porém ainda não perto o
bastante.
Aproximando
mais o zoom, outra situação ocorrida entre mim e ele, agora fisicamente bem
mais próxima, deu-se em 2001. Estagiava na Dez Propaganda, que ficava na r.
Dona Laura equina com Goethe, e Nico, muito amigo dos sócios da empresa,
combinou com algum deles de deixar o acordeom na agência por algum motivo que
nunca soube e nem perguntei à época. O importante da história é que coube ao
estagiário Dani – eu mesmo – descer ao térreo e, na calçada, em plena luz do
dia (umas 17h da tarde, mais ou menos), recolher das mãos dele próprio, dentro
da tradicional caixa de madeira escura (provavelmente em carvalho e com certeza
original e muito antiga), o pesado instrumento. Lembro que, adolescente, me
impressionei ao vê-lo Nico, e não Pletskaya. Já o tinha visto assim no filme
“Pulso”, do José Pedro Goulart, mas, assim, ao vivo... Era conflitante com o
outro que tinha visto também ao vivo, mas de mais longe no palco do São Pedro.
Ali, naquela
hora, por acanhamento ou pura bobice, nem lhe apertei nem a mão. Não o toquei.
E a oportunidade nunca mais se montaria à minha frente. Apenas abracei aquele
bloco de madeira maciço envelhecido, o que, imediatamente, fez-me transportar
para um tempo diferente daquele de uma tarde de trabalho comum de 2001. Aquilo
é uma peça de antiquário! Tinha, além disso, a certeza aterradora de que, ali
dentro, havia um objeto valioso: a gaita, aquela que o via colar junto ao peito
e tocar lindamente no Tangos & Tragédias. Meus sentidos se alarmaram para
que não houvesse nenhum tropeço, nenhum escorregão imbecil, e meus bíceps
ganharam, milagrosamente, uma força inexistente para aqueles braços franzinos
de adolescente. Além da responsabilidade que me foi atribuída, sabia que aquele
invólucro intimidante e mágico continha uma joia, a qual, de alguma forma,
sentia que também me pertencia. Pertencia ao meu imaginário sonoro e onírico.
Precisaram-se
passar 12 anos para que o visse novamente. Quase com a mesma proximidade que
daquela vez do acordeom, quando pude até apertar sua mão não fosse a timidez do passado. Mas
tratava-se, infalivelmente, de um momento diferente e, quem sabe, estava até
mais próximo noutras esferas de percepção. Na entrega do Prêmio Açorianos de
Literatura, em 9 de dezembro de 2013, em que meu livro era um dos concorrentes,
tive a felicidade de vê-lo no palco do Teatro Renascença fazendo a trilha
musical do evento. A beleza e o lirismo que, engraçadamente, deu a músicas do
cancioneiro popular chulo como “Tô nem aí”, “Ai seu eu te pego” e “Tchu Tcha
Tcha” no seu último projeto, o elogiado pocket show “Música de Camelô”, tiraram risadas e suspiros de
encantamento da plateia, mas não conseguiram esconder um Nico cansado,
pálido, magro e aparentemente mais velho que os 56 anos que somava. Foi sua
última apresentação. Relembrando desta noite, me recordo daquela segunda
ocasião que assisti ao Tangos, em 2004. Notei que, discretamente, a cada
momento solo do Hique Gomes, aquilo representava mais do que uma pausa para
descanso: era, sim, um alívio por conta do peso do acordeom. O tal acordeom
estava forçando suas costas. Ele tirava as alças dos ombros e não conseguia
esconder a expressão de dor e a mão que levava às costelas. Fiquei com aquela
imagem gravada, que me veio novamente quando soube pela mídia, há
aproximadamente 20 dias, da leucemia que o acometeu e o vitimou rapidamente.
Subi ao palco
para receber, das mãos de Márcia do Canto, sua esposa, que apresentava a
cerimônia, meu troféu Açorianos e tive, ali, pela última vez bem perto de Nico.
A metros. Uns três passos, quase que só o piano nos separando. O que não
consegui perceber, visto minha ansiedade com a premiação, era que Nico já não
estivesse mais tão ali como meus olhos e ouvidos insistiam em achar ser
verdade. A foto que Leocádia Costa registrou com felicidade denota, no desfoque
e na iluminação artificial, justamente isso: ele já estava no ar. Hoje, enfim,
ele foi definitivamente para o ar. Longe, longe. De mim e de todos daqui da
terrinha. Talvez, no entanto, mais perto ainda dos sons. O resto fica na
memória, que rompe as escalas de proximidade ou distância.
Vá com os
sons, Nico Nicolaiewsky.
NICO NICOLAIEWSKY
1957-2014
por Daniel Rodrigues