Há uma série de artistas, especialmente os ligados à cena experimental, ao fusion e ao free jazz, que o SESC SP conseguiu com louvor trazer neste século, especialmente em mostras e festivais tais quais o NuBlu e o Jazz na Fábrica.
Dos que estive presente, posso citar com emoção nomes como John Zorn (recentemente, com seu New Masada, em 3 noites absurdas e históricas de 2018), Ornette Coleman, Pharoah Sanders, Peter Brötzmann, Archie Shepp, Anthony Braxton, Wadada Leo Smith, Roscoe Mitchell (do Art Ensemble Of Chicago, com seu jeito único de tocar sax), o guitarrista Fred Frith, a musa instigante do free contemporâneo Matana Roberts, o guitarrista Arto Lindsay, o baixista Avishai Cohen, o pesadíssimo The Thing de Mats Gustafsson, o fenômeno moderno Kamasi Washington, além de artistas brasileiros icônicos como Egberto Gismonti, Hermeto Pascoal (que se apresenta quase todo ano), Airto Moreira, dentre tantos.
Nesta última seara, lembro-me de um show impactante do percussionista brasileiro Cyro Baptista, que já há muitos anos mora no exterior e integrou, dentre outros, o grupo do já referido John Zorn.
Em 2012, no Jazz na Fábrica, na tradicional Choperia do Sesc Pompeia, ele trouxe o espetáculo “Beat The Donkey”, e mais uma vez estive lá sem muita informação sobre o que encontrar, movido apenas pela curiosidade.
Do time reunido, não tenho todos os nomes, mas a coreógrafa Chikako Iwahori, o baterista Tim Keiper e a maravilhosa percussionista e vocalista Lisette Santiago revezavam freneticamente os instrumentos com Cyro – um percussionista inovador, a la Pascoal.
Não apenas, mas o espetáculo tomava outros formatos, com danças e performances inusitadas, shows de sapateado, figurinos exóticos e até descambando para um típico show de rock’n roll em dado momento, com Lisette mandando uma intensa versão de “Immigrant Song” do Led Zeppelin.
Poderia comparar a teatralidade e o dinamismo ao que David Byrne fez em 2018, no show ”American Utopia” – que chegou a passar pelo Brasil no festival Lollapalooza. A versão que gerou o CD/DVD ao vivo de Byrne conta inclusive com o mesmo baterista daquela noite de 2012, Tim Keiper. A conexão parece lógica!
Tenho como uma noite inesquecível, como as demais citadas acima, e que torcemos para que voltem a ocorrer o quanto antes, quando for seguro para todos. Sonho nosso! Como se nossos atuais governantes, inimigos tanto da saúde quanto da cultura, trabalhassem para isso...
Trechos do show de Cyro Baptista (Sesc Pompeia/2012)
“Musicalmente
falando, eu acho que o que estou fazendo é, basicamente, a
continuação de uma estética de linguagem musical que existe no
Brasil desde os anos 60 e 70, mas que de repente ficou meio esquecida
por aqui.”
Lucas Arruda
”Esse
cara é um gênio. Para mim, ele salva esse cenário supermedíocre
de hoje”.
Ed Motta
Ano
passado publiquei aqui no Clyblog uma lista dos meus melhores discos instrumentais brasileiros de todos os tempos. Salvo a minha
ignorância de não listado a obra-prima de Robson Jorge e Lincoln
Olivetti, de 1982 (menção esta aqui com a qual me sinto agora livre
do justo espancamento), um que não incluí, pois ainda não o
conhecia nem o entendia suficientemente devido à sua recência, é
“Sambadi”, de Lucas Arruda, de 2013. Considero, no
entanto, que desfaço agora duplamente a injustiça ao sagrá-lo como
um ÁLBUNS FUNDAMENTAIS, tanto por destacá-lo assim, exclusivamente,
como pelo fato de ser o álbum mais recente sobre o qual já escrevi
entre os meus mais de 40 para esta seção.
O
certo é que esse destaque não se sustenta por um sentimento de
culpa. “Sambadi” é que é muito bom. Primeiro disco deste
talentoso jovem capixaba multi-instrumentista radicado no Rio de
Janeiro, é ao mesmo tempo um trabalho autoral e raro na música
brasileira dos últimos 20 anos como também uma homenagem aos ídolos
da soul music e do samba-jazz brasileiro, forte nos anos 60 e
70 mas gradativamente desvalorizado a partir dos 80. O resultado é
um disco semi-instrumental altamente sofisticado pela habilidade de
Lucas, responsável por praticamente todos os instrumentos (a
bateria, único que ele não toca, é de seu irmão, Thiago Arruda).
As referências vão dos mestres norte-americanos Stevie Wonder,
Curtis Mayfield e George Duke aos brasileiros Tamba Trio, Azimuth,
Marcos Valle, Black Rio, Sambrasa Trio, Ed Motta, os próprios Robson
Jorge, Olivetti, entre outros dentre os que dominam o legado da MPB e
o manancial estético oferecido pelo jazz e o R&B.
“Physis”
dá a cara da abertura com uma linha de sintetizador marcando acordes
que vão e voltam, acompanhados por vocalises de Lucas. Ao fundo, um
clima muito brasileiro se forma com sons da natureza de nossa flora e
fauna. Prenúncio da brasilidade que se sentirá fortemente a partir
dali. Sem dar tempo de respirar, a primeira faixa emenda com “Tamba”,
um samba-funk gostoso e sofisticado no qual Lucas manda ver em
lindos improvisos de seus teclados (piano, Fender Rhodes e
sintetizador). Nos tons médios, a guitarra, numa levada de mexer o
esqueleto, sustenta a base junto com o Rhodes e a batida sincopada da
caixa, enquanto o baixo e o bumbo mantém a seção grave. Afora a
visível homenagem ao famoso trio de bossa-jazz dos anos 60 comandado
pelo pianista Luiz Eça, a sonoridade remete mesmo durante todo o
disco fortemente à Azimuth, outra grande banda da mistura de jazz e
MPB, porém esta, já setentista, com o espírito fusion de
então.
Aliás,
a arquitetura timbrística de “Sambadi” respira o tempo todo a
Rio de Janeiro e a essa atmosfera da Azimuth, e isso por dois
motivos. Primeiro, pelo arranjo e produção serem do próprio Lucas
Arruda, que encerra todas as músicas do disco dentro do mesmo
conceito sonoro: bateria e/ou percussão e/ou programação de ritmo
(uma ou duas juntas no máximo), guitarra, baixo, piano elétrico e
sintetizador ou Fender Rhodes. Fora um ou outro instrumento ocasional
(cavaquinho, violão) ou voz, as texturas do disco são
permanentemente essas, o que lhe dá bastante coesão. E essa
sonoridade é muito Azimith, principalmente no mitológico "Light as a Feather", de 1979, porém adicionando a isso a limpidez dos estúdios digitais de hoje. Segundo: quem executa tudo é apenas um
músico: o próprio autor – fora a bateria, que também vêm de
alguém do sangue Arruda. E com tamanho talento, tudo funciona
redondinho. “Batuque” (outra referência a seus mestres, nesse
caso, o clássico “Batucada Surgiu”, dos irmãos Valle, de 1967)
acelera o ritmo mas mantém a mesma malemolência e elegância. Na
percussão, além da bateria, um agogô joga o ouvinte pra dentro de
um terreiro de samba. Nesta, Lucas investe em solos não só de seus
teclados, mas também da guitarra, tudo sob uma linha de baixo 4/4
maravilhosa a laRon Carter que lembra as realizadas pelo
baixista norte-americano nas memoráveis gravações com os
brasileiros Airto Moreira, Tom Jobim e Hermeto Paschoal.
A
black music ganha um preito especial em “Who’s that Lady”,
de autoria de O'Kelly Isley, do grupo soul norte-americano
Isley Brothers, das poucas cantadas do disco. Clima sensual e
charmoso nesse AOR que podia rodar em qualquer rádio retrô tipo
Continental que os desavisados achariam que foi gravada nos anos 70.
Sem percussão, apenas no piano elétrico e sintetizador, “Rio
Afternoon”, na sequência, é quase uma vinheta atmosférica como a
inicial “Physis”, demarcando agora o começo de uma nova seção
do disco, como se o CD tivesse o lado B do vinil. Essa segunda parte
começa com a também curta “Na Feira”, um baião hi-tech,
provando o quanto Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira são sofisticados.
Tudo
isso faz cama para a excepcional faixa-título em seus cerca de cinco
minutos de puro desenvolvimento de solos e perícia nas linhas de
base. O espírito nordestino se mantém na marcação metálica de um
triângulo, que vem com os keyboards espaciais do Rhodes e uma
rica linha de guitarra ao estilo Nile Rodgers. Uma programação
eletrônica, associada à bateria e a percussões, aponta o ritmo. O
baixo, entretanto, é um destaque à parte, denotando o quanto Lucas
é ouvinte atento de suas fontes. Com uma letra quase incidental, ele
canta versos que mais fazem dar sentido melódico à ideia de “samba
de” (“Sambadi balada/sambadi quebrada/ sambadi embolada/
sambadi linha do mar...") do que para inventar poesia. A
melodia, swingada e requintada, algo entre o samba e o funk, dá
espaço tanto para os solos quanto para floreios dos instrumentos,
principalmente da guitarra e do Rhodes.
Outra
aberta lembrança à Azimuth, “Carnival” (alusão à “Jazz
Carnival”, sucesso da banda de José Roberto Bertrami) põe ainda
mais groove no samba. Já “Alma Nova” faz cair novamente o
ritmo para aclimatar uma bela bossa-nova romântica, a última com
letra de verdade. Lucas canta com leveza e afinação sobre uma
batida de violão sincopada, característica do estilo, somada a um
acompanhamento na bateria do irmão Thiago digno de um Milton Banana
ou um João Palma. O piano e o Rhodes estão ali funcionando no
arranjo como integradores da faixa ao restante do repertório mesmo
com a estética distinta que a bossa-nova impõe. Para arrematar, uma
nova sequência de “Tamba”, finalizando o álbum novamente com um
instrumental de alto virtuosismo.
Festejado
por gente do calibre de Ed Motta, por quem a admiração é
recíproca, o surgimento de Lucas Arruda vem como um raiar de
esperança na música brasileira contemporânea tão infestada pelo
medíocre, conformada com o mediano e, quando melhor que isso, ainda
ditada por artistas de gerações (bem) anteriores. Ironicamente, o
que acontece com Lucas Arruda é a repetição do que muitas vezes já
se viu em terras tupiniquins: seu trabalho foi apreciado antes no
exterior (no caso dele, Europa e Japão) para depois receber atenção
aqui. Pouca, diga-se de passagem. E se a galera da MPB pós-bossa-bova
está toda na faixa dos 70 anos, o aparecimento de um guri de apenas
32 de idade (30 quando gravou “Sambadi”) é no mínimo alentador.
Com uma estreia luminosa como essa isso se torna ainda mais
promissor. Neste sentido, não parece coincidência que seu novo CD,
lançado em março desse ano (novamente primeiro no exterior) traga
um título consideravelmente simbólico: “Solar”.
Lucas Arruda - Sambadi(Radio Edit)
**************
FAIXAS:
1.
Physis - 1:15
2.
Tamba, Pt. 1 - 7:10
3.
Batuque - 5:38
4. Who's That Lady (O'Kelly Isley) - 3:40
5. Rio
Afternoon - 1:37
6. Na
Feira - 1:29
7.
Sambadi - 5:18
8.
Carnival - 3:30
9.
Alma Nova (Arruda/Fabricio Di Monaco) - 5:33
10.
Tamba, Pt. 2 - 4:41
todas
as composições de autoria de Lucas Arruda, exceto indicadas.
Eu
voltei da Europa na turnê que eu fiz com o Paulo Moura,
logo depois do show do
Bituca com o ‘Clube da Esquina’.
É um disco que eu compus todo na Europa,
chamado ‘Matança do Porco’.
Música que, inclusive, tem no disco ao vivo do
Milton,
o ‘Milagre dos Peixes Ao Vivo’.
Você vê que as ideias estavam ali.
Foi
a nossa época de laboratório mesmo.
Serviu para o resto das nossas vidas.”
Wagner Tiso
Milton Nascimento foi sempre o cabeça e congregador do chamado Clube da
Esquina, esse time de artistas de Minas Gerais que mudou a cara da MPB desde a
conturbada segunda metade dos anos 60 de Ditadura Militar no Brasil. Em torno
de Bituca – e muitas vezes até motivados por ele, como no caso de Fernando Brant e Lô Borges – se configurou a movimentação musical que trouxe novas
linguagem e referências à música brasileira e até mundial se se considerar seu
pioneirismo naquilo que passou a se chamar tempo depois de world music. Wayne Shorter, Sarah Vaughan, Quincy Jones, Eric Clapton, Paul Simon, Carminho entendem isso muito bem. Porém, dos diversos
talentos surgidos à época e/ou junto com Bituca, um deles é quase tão
fundamental: o maestro Wagner Tiso. Surpreendentemente autodidata (o
saxofonista e clarinetista Paulo Moura, exímio arranjador, apenas lhe deu
toques sobre teoria), é naturalmente dono de um estilo de tocar piano e de
orquestrar que bebe no colorido de Claude Debussy e na força expressiva de
Richard Wagner, além de sua veia sacra, a qual adquiriu ainda pequeno nas
igrejas do interior de Minas que frequentava. Se Milton é o símbolo do Clube da
Esquina, principal compositor e propulsor da cena, Tiso é o centro harmônico, o
homem que aperfeiçoou a ideia e lhe deu lastro.
Tiso, sempre muito ligado a Milton Nascimento (ambos são naturais de
Três Pontas), já era o principal arranjador e regente dos trabalhos deste desde
o LP “Milton”, de 1970, mesmo ano em que, juntamente com Luis Alves (baixo), Frederyko
(guitarra) e Robertinho Silva (bateria) forma uma banda de apoio para o
parceiro. Assim surgiu a Som Imaginário,
para a qual ainda foram convocados para completar o grupo nada mais, nada menos
que três craques: Tavito (violão), Zé Rodrix (voz, órgão, flautas) e Naná
Vasconcelos (percussão). Um time de primeira. Além das essenciais participações
nos trabalhos de Milton e na de gente do calibre de MPB-4, Marcos Valle, Gal Costa, Odair José, Sueli Costa, dentre outros, a banda mantinha também carreira
própria. Depois de dois discos em que Rodrix comandava os microfones (“Som
Imaginário”, de 1970, e “Nova Estrela”, de 1971) a Som Imaginário, sem este e
Naná, sintetiza sua sonoridade psicodélica e até lisérgica e compõem um álbum
totalmente instrumental: “Matança do
Porco”, de 1973. Nele, a MPB se junta com felicidade ao rock progressivo,
ao jazz e à música clássica em seis canções assinadas por Tiso em que todos os
músicos se esmeram nos instrumentos. Solos magníficos, arranjos deslumbrantes e
orquestrações idem, cujas regências tiveram ainda a fina colaboração de Moura,
maestro Gaya e Arthur Verocai. Este último trabalho de estúdio do grupo é uma
obra-prima da música instrumental no Brasil.
“Armina”, com sua melodia valseada e melancólica, não apenas abre o
disco com o piano altamente erudito de Tiso como, igualmente, recorta-o todo,
aparecendo em vinhetas/excertos entre os outros cinco temas durante todo o
decorrer, desfechando-o também, inclusive. A canção dá o clima do álbum, cujo
peso do rock, o swing do samba-jazz e a energia do fusion são ciclicamente reconduzidos à
atmosfera do tema-tronco, o qual traça uma linha entre o litúrgico e o a
herança modernista do folclórico bachiano de Villa-Lobos. Entretanto, na
alquimia natural da Som Imaginário, de cara se ouve um potente jazz-rock de baixo-guitarra-bateria-órgão,
que faz um pequeno preâmbulo para, aí sim, dar lugar ao piano de Tiso. Depois
de um lindo solo, que traz delicadeza ao número, a banda retorna vigorosa – a
melodia lembra “I Want You (She's So Heavy)”, dos Beatles, na parte do “She so heavyyyy...”, para ver o nível
de grandioculência – para um exímio e longo solo da guitarra rasgante de Frederyko,
ao estilo de John McLaughlin. Por volta de 4 minutos e meio, param todos os
instrumentos elétricos para novamente ouvir-se o dedilhado acústico do piano,
fazendo ressurgir a valsa tristonha.
Agora sob o som de um piano elétrico, “A 3”, extremamente moderna, sintoniza
com o que Hermeto Pascoal, Airto Moreira e João Donato vinham fazendo nos
Estados Unidos àquela época e embasbacando os gringos: um jazz brasileiro com
ritmo, harmonias complexas e uma habilidade musical peculiar dos trópicos. Show
de perícia de toda a banda, que, levados pelos teclados, ganham o
acompanhamento da percussão do mestre Chico Batera e da flauta de outro professor,
Danilo Caymmi. Uma curta e orquestrada “Armínia”, arregimentada por Verocai – e
na qual se notam os toques de sua sofisticação harmônica, principalmente na
predileção pelos metais ouvidos ao final –, antecipa “A nº 2”, que inicia como
um samba cadenciado conduzido por uma linha de órgão. Vão se adicionando as
melodiosas vozes dos Golden Boys, solos da guitarra e cordas, num crescendo de
emoção. Até que, pouco antes dos 5 minutos, o baixo de Luis manda um groove e a música dá uma virada para um jazz-funk estupendo. Tiso troca o órgão para
o Hammond; Luis e Fredera, mantendo a base em repetições ágeis; Robertinho;
segurando o ritmo na variação caixa/prato de ataque. Arrasador. Digno de um
“Headhunters”, de Hancock, ou “On the Corner”, de Miles Davis.
A faixa-título, que eu conheci no disco de Milton, “Milagre dos Peixes
Ao Vivo” (1974), surpreendendo-me por demais já daquela feita, não perde em
nada no estúdio. Aliás, até ganha, tendo em vista que os registros ao vivo da
época eram deficitários tecnologicamente (o caso). Além do mais, o próprio
Bituca empresta aqui a sua voz. Então: serviço completo, nada faltando.
Sugestivo, o título remete ao arcaico ritual de abate de suínos típico do
folclore português e que, obviamente, devido a seus requintes de crueldade,
exprime algo de visceral e funesto vivido à época no Brasil de Regime Militar.
Como se tratava de uma canção “sem letra”, os milicos a consideraram inofensiva
e deixaram passar pela censura. Isso faz com que “Matança do Porco”, música e disco,
alinhem-se, pela via de um “silêncio resistente”, a “Milagre dos Peixes” de
estúdio, daquele mesmo ano de 1973, que os militares censuraram praticamente
todas as letras, transformando-o, forçadamente, num álbum semi-instrumental.
Este aqui é instrumental de propósito, pois não há palavras para exprimir o
sentimento nefasto que se presenciava. Os sons, dados à imaginação, falam por
si.
Nos mais de 11 minutos da canção “Matança do Porco”, ponto alto do
disco, deságuam boa parte da musicalidade construída pela turma do Clube da
Esquina. Seguindo a atmosfera erudita que domina o álbum, trata-se de um pequeno
réquiem transgressor, entre o rock e o jazz. Traz o vigor de um rock
progressivo, que lembra o Pink Floyd psicodélico pré-"Wish You Were Here",
ainda mais pela novamente excelente performance
de Frederyko debulhando a guitarra – e não deixando nada a dever a um David
Gilmour. O primeiro “movimento” inicia lento com acordes 2/2 de Tiso ao piano,
que exercita uma breve introdução (Kyrie e
Gloria) enquanto vão entrando aos poucos
os outros instrumentos até chegar na guitarra, que, distorcida, se adona do
campo. São quase 5 minutos de um solo dividido em dois momentos (algo que se
poderia intitular como “A Preparação”, Credo,
e “A Desforra”, Sanctus) que vai num crescendo
e toma uma carga emotiva tamanha com o poder de carregar consigo os outros
integrantes, ao final igualmente em êxtase. Robertinho dá um show de rolos e
condução; Tiso, centro da peça, lança impressionantes ataques e improvisos
jazzísticos. O ritual de morte chega a seu ápice. O sangue escorre. Morte.
Valendo-se fartamente de seu conhecimento erudito, Tiso corta mais uma
vez a canção para, numa fusão para um segundo ato, arregimentar a partir dali
uma volumosa orquestra Odeon (conduzida por Gaya), a qual toca uma melodia
triste (um Benedictus), como uma
prece à ignorância humana. Entram o coro dos Golden Boys formando um cantochão
gregoriano. Junto, para realçar ainda mais a beleza melancólica do tema, a
guitarra volta a marcar a base e Milton soma ao coro o seu inconfundível
timbre, executando vocalises arrepiantes. O final, no órgão, desfecha-a num
evidente tom fúnebre de Missa dos Defuntos, até voltar ao toque quase de
cantiga de roda dos primeiros acordes. Agnus
Dei. Um desbunde. O porco e o cidadão brasileiro, perseguidos e sem voz,
foram abatidos. “Quem é animal e quem é
gente?”, fica a pergunta.
Depois de tanta magnitude, uma gostosa “Armina” com ares de bossa-nova ameniza
o astral visitando Tom Jobim e Billy Blanco. “Bolero”, na sequência, é uma
balada com riff bem rural escrita em
parceria com Luis, Robertinho e Milton, este último de quem evidentemente
partiu a ideia do violão-base tocado por Tavito, outro dos coautores. Nova
mostra de habilidade dos músicos em que Tiso, principalmente, se destaca
manipulando os dois pianos, assim como a flauta de Danilo Caymmi. O filho do
gênio baiano é quem dá os primeiros acordes de “Mar Azul”, outro samba-jazz moderníssimo feito para os
dedos de Tiso maravilharem num Hammond, tanto quanto Tavito ao violão 12
cordas. Da segunda metade para o fim, é geral o show de improvisos. Jazz
brasileiro puro.
A intensidade orquestral finaliza este histórico álbum com a quarta e
última seção de “Armina”, novamente com o toque de Verocai, que carrega nas
cordas e metais no início para, aos poucos, verter a sonoridade para as
madeiras, numa transição extremamente apurada e apenas perceptível quando a
flauta entoa a última nota, haja vista que aumenta um tom para terminar não num
registro suave, mas grave como deveria ser. Na capa da reedição em CD, de 2003,
vê-se um plano geral de uma mesa dá bem a dimensão do período de tristeza e
decadência que o País um dia se colocou: copos, garrafas de cerveja e de
uísque, todos vazios, acompanham um cinzeiro lotado de cinzas e baganas e um papel
surrado sobre um dos copos – que bem pode ser uma carta a um ente querido
impossível de ser postada por causa do cerco da ditadura ou uma confissão de
suicídio.
Naquele 1973, o enganoso “milagre brasileiro” do governo Médici
escondia ainda mais as torturas, perseguições e exílios promovidos desde o
AI-5, de cinco anos antes. As guerrilhas eram enfraquecidas e a população,
quando não ignorante, se calava à força. Sem precisar dizer quase nenhuma
palavra, “Matança do Porco” e “Milagre dos Peixes” formam um dos mais potentes
libelos contra a opressão da ditadura militar no Brasil, duas sinfonias em nome
da liberdade que todo brasileiro decente de então merecia. É o poder da música,
é a magia dos sons. Sons capazes de despertar o imaginário de quem consegue
entender o que é dito pelo coração.
"Eu pensei que seria impossível colocar pessoas como Tony Williams ou Ron Carter ou Wayne Shorter ou Freddie Hubbard na mesma sala ao mesmo tempo, porque muitos deles são líderes de bandas."
"A ideia era atualizar o passado. Eu não tinha a intenção de tentar tocar como toquei, mas pegar a música que tocamos no início e meados dos anos 70 e deixar a música acontecer a partir de nossos estados de espírito do momento."
Herbie Hancock
É compreensível o folclore em torno dos chamados “times dos sonhos”. Seja no esporte ou nas artes, os “dream teams” criam uma verdadeira aura de fascínio. Na música, embora algumas bandas sejam consideradas excelentes, elencar uma seleção dos melhores entre os melhores é quase um sonho para os fãs. Imagine-se, por exemplo, se o rock tivesse conseguido promover o encontro de Jimi Hendrix, na guitarra; John Bonham, na bateria; Keith Emerson, nos teclados; e John Entwistle, no baixo? Impossível.
No jazz? Tão improvável quanto. Para formar um timaço de melhores, só se fosse no Japão! E não é que este milagre aconteceu? E, pasme-se: não foi nos Estados Unidos, berço do jazz, mas, sim, na Terra do Sol Nascente. O feito raro tem um responsável: Herbie Hancock. Além de ser um dos integrantes deste “dream team”, foi ele quem catalisou as intenções e teve a ideia de, junto com o empresário David Rubinson, formar a “The Quintet”. Mas uma reunião tão especial não poderia chamar-se de outro jeito que não de algo que transmitisse bem essa ideia. A criativa solução foi dar o nome ao grupo de V.S.O.P., sigla que significa, na linguagem etilista, "Very Special One Time Performance", ou seja, a classificação dada à bebida conhaque envelhecida de alta qualidade.
Para isso, Hancock chamou, claro, só os melhores. Amigos músicos tão brilhantes quanto ele: Ron Carter, para o baixo; Tony Williams, para a bateria; Wayne Shorter, no sax; e Freddie Hubbard, ao trompete. Todos “all stars”, todos band leaders, todos lendas do jazz, que tocaram com outras lendas como Charlie Parker, Dizzie Gillespie, Miles Davis, Tom Jobim e Art Blakey. Todos senhores de obras que revolucionaram o jazz e a música moderna. Estavam todos ali, milagrosamente juntos. Seja por currículo ou por talento, a V.S.O.P. era o verdadeiro “dream team” do jazz.
Para materializar essa conjugação tão estelar, Rubinson promoveu um histórico show em San Diego, em 1977, que foi registrado no álbum “The Quintet”. O projeto deu tão certo, que deu vontade de também produzirem algo em estúdio. Foi aí que a turma foi parar no Japão, onde já eram individualmente aclamados. Foi a conexão que faltava: além de realizarem um novo disco ao vivo naquele mesmo ano, “Tempest in the Colosseum”, que encerrava a turnê, a turma, principalmente Hancock, acabou ficando lá pelo outro lado do mundo. Somente em 1979, dos seis discos que o pianista lança naquele ano, entre projetos solo ou acompanhados, quatro são gravados em Tóquio e lançados pelo selo Sony Japan. Um deles é justamente o colossal “Five Stars”, da V.S.O.P., único trabalho de estúdio da banda e cujo título não poderia ser mais adequado.
Coube ao engenheiro japonês Tomoo Suzuki comandar as mágicas gravações de 29 de julho daquele ano, nos estúdios CBS/Sony, em Tóquio. Mesmo experiente e calejado, por incrível que pareça o que o quinteto traz é de um frescor surpreendente e até tocante, não fosse, principalmente e acima de tudo, empolgante. Donos dos melhores currículos do jazz, eles tocam com a graça de jovens iniciantes. É surpreendente e comovente o misto coração e habilidade que estes cinco amigos, senhores do mais alto nível da música internacional, entregam na exuberante faixa de abertura, “Skagly”. São 10 minutos que é fácil duvidar que qualquer criatura que goste de música queira que em algum momento acabe.
Sob a energia funk que todos conhecem e dominam, a faixa é um verdadeiro show de cada um dos participantes. Trata-se de um tema tão rico, que merece uma apreciação pormenorizada. A começar pelo autor, Hubbard. É ele quem dá as costuras altamente sofisticadas de fusion e hard bop do chorus. É ele quem estica as notas para os tons agudos, bem a seu estilo. É ele quem, com mérito, começa solando com a técnica invejável de quem tem seu nome gravado em álbuns como “Empyrean Isles”, de Hancock, “Free Jazz”, de Ornette Coleman, ou “Out to Lunch”, de Eric Dolphy. Carter: o único que não “sola”. Mas para quê? Afinal, o que o maior baixista da história do jazz faz é milagre. Quem conseguiria extrair tanta sonoridade, tanta personalidade do baixo acústico? Carter, que dispensara o baixo elétrico fazia tempo, prova por A mais B o porquê de sua escolha. Em “Skagly”, suas deliciosas ondulações e sua timbrística característica, aquela do quinteto mágico de Miles Davis e da sonoridade de Gil Scott-Heron, estão mais do que palpáveis: são uma caixa de ritmo. Só podia vir de quem já fez samba-jazz com Tom, Hermeto Pascoal e Airto Moreira.
Hancock: sabem aquelas notas que saltitam do piano em “Cantaloupe Island” e “Blid Man, Blind Man”? E a noção de ritmo repleta de groove e blues de quem contribuiu para a construção da sonoridade de gente como Miles, Shorter, Milton Nascimento, Lee Morgan e Joni Mitchell? De quem faz a improvável ligação entre Gershwin a hip hop? Pois é: Hancock em “Skagly” é tudo isso. Falemos, então, de Shorter. Bem, o que dizer de Shorter? A genialidade em forma de saxofone, a estirpe de Coltrane, a mente fusion da Weather Report, o buda do jazz, o solista incansavelmente criativo e hábil, o autor das obras-primas “Juju”, “Night Dreamer”, “Speak no Evil”? Pouco tem a se dizer e muito a aplaudir. Por fim, Williams. Este não ficou por último à toa, pois sua performance na faixa de abertura (nossa, isso, ainda é “apenas” a abertura do disco!) é, mesmo para os que sabem se tratar do, provavelmente, mais influente baterista da história do jazz, assombrosa. O que é I-S-S-O? Williams dá, literalmente, um show do início ao fim do tema, sem que isso, porém, se torne maçante ou confuso. Pelo contrário! É ele quem segura no punho o ritmo funk de cabo a rabo, mas não deixa de esmerilhar nas quebras e descidas. Quantas variações de rolos, polirritmia, mudanças de timbres! Conhecido por sua categoria nas baquetas, como as que executa em clássicos como “Maiden Voyage”, de Hancock, “Refuge”, de Andrew Hill, ou “Shhh”, de Miles, e inúmeros outros, aqui ele não economiza na explosão.
Bastaria falar apenas sobre a faixa de abertura, mas esses cinco jovens tarimbados não deixariam o ânimo cair jamais. Tanto que, na sequência, vem o sofisticado jazz bluesy “Finger Painting”, com lances modais e bopers fluindo naturalmente entre si, coisa de quem toca jazz de olhos fechados. O baixo de Carter escalona sons ondulados enquanto Shorter e Hubbard se encarregam de lançar frases em colorações medianas, Williams privilegia o tintilar dos pratos e chipô e Hancock mantém o clima onírico em notas claras e prolongadas. Em “Mutants On The Beach”, a terceira, hard-bop mais clássico e não menos gracioso, Carter novamente “carrega” no baixo, dando agora aos sopros maior amplitude para voaram com apoio do ritmo embalado marcado por Williams e Hancock. O pianista, aliás, confere dissonâncias perfeitas em seu improviso, ligando o anterior, de Hubbard, com o seguinte, de Shorter. Mas Williams estava chispando fogo como um dragão japonês, e manda ver num magnífico solo para terminar a música.
Sabe o gol de Carlos Aberto para a Seleção Brasileira sobre a Itália na final da Copa de 70? Ou a trinca “Golden Slumbers/Carry That Weight/The End” para encerrar o último disco dos Beatles, “Abbey Road”? É esta sensação que deixa “Circle”, a que finaliza o disco do “dream team” V.S.O.P. Quanta perfeição! Enigmática, é um misto de “In a Silent Way”, de Miles, com “Maiden Voyage”, com “Psalm”, de Coltrane, e mantra oriental. A melodia espiral, cadenciada pelo baixo já tradicionalmente assim de Carter, dá literalmente uma sensação de circularidade, absorvendo quem escuta numa atmosfera de vertigem. Ainda bem que se trata da menor faixa das quatro, pois se não os ouvintes entrariam em transe – se é que não entram.
Depois deste álbum japonês, a V.S.O.P. lançaria ainda apenas mais um disco também ao vivo como os dois primeiros antes de se dissolver ou transformar-se em outros projetos, visto que os integrantes seguiram contribuindo uns para os outros em vários momentos. Porém, embora a formação do grupo tenha se dado ainda nos Estados Unidos para um show quase comemorativo de músicos “envelhecidos de alta qualidade”, foi no Japão que este prosseguiu e onde se concretizou o histórico registro do quinteto em estúdio – feito que, infelizmente, nunca mais se repetirá uma vez que Hubbard faleceu em 2008. Contudo, é normal que “times dos sonhos” não permaneçam por muito tempo mesmo. A conjunção de fatores para que esse milagre ocorra é tão improvável que os deuses podem resolver que ela ocorra quando e onde menos se espera. No Japão, por exemplo.
“A Banda Black Rio é um dos maiores acontecimentos musicais desse
planeta”. Lucas Arruda
“Coisa mais séria que tem! Um dos discos instrumentais mais
bem feitos no Brasil. Tudo absolutamente certo aqui: temas, timbres, só
acerto.” Ed Motta
O jazz no Brasil teve de caminhar alguns quilômetros em círculos para que obtivesse uma identificação real com o país do carnaval. Em termos de indústria fonográfica, até os anos 70 as apostas sempre estiveram sobre o samba e derivados ou outros gêneros comerciais, como o bolero, a canção romântica, a bossa-nova carioca, os festivais, a MPB e até o rock. Mesmo presente na sonoridade das orquestras das gafieiras ou na bossa nova, o jazz se misturava aos sons brasileiros mais pela natural influência exercida pelos Estados Unidos na cultura latina do que pelo exemplo de complexidade harmônica de um Charlie Parker ou Charles Mingus. Expressões bastante significativas nessa linha houve nos anos 50 e 60, inegável, mas jazz brasileiro mesmo, com “b” maiúsculo, esse ainda não havia nascido.
Por essas ironias que somente a Sociologia e a Antropologia podem explicar, precisou que o gênero mais norte-americano da música desse uma imensa volta para se solidificar num país tão africanizado quanto os Estados Unidos como o Brasil. Essa solidificação se deve a um simples motivo: assim como na criação do jazz, cunhado por mentes e corações de descendentes de escravos, a absorção do estilo no Brasil se deu também pelos negros. No caso, mais de meio século depois, pela via da soul music. O chamado movimento “Black Rio”, que estourava nas periferias cariocas no início da década de 70, era fruto de uma nova classe social de negros que surgia oriundos das “refavelas”, como bem definiu Gilberto Gil. Reunia milhões de jovens em torno da música de James Brown, Earth, Wind & Fire, Aretha Franklin e Sly & Family Stone. DJ’s, dançarinos, produtores, equipes de som, promoters e, claro, músicos, que começavam a despontar da Baixada e da Zona Norte, mostrando que não eram apenas Tim Maia e Cassiano que existiam. Tinha, sim, outros muitos talentos. Dentro deste turbilhão de descobertas e conquistas, um grupo de músicos originários de outras bandas captou a essência daquilo e se autodenominou como a própria cena exigia: Black Rio.
Formada da junção de alguns integrantes dos conjuntos Impacto 8, Grupo Senzala e Don Salvador & Grupo Abolição, a Black Rio compunha-se com o genial saxofonista Oberdan Magalhães, idealizador e principal cabeça da banda; o magnífico e experiente pianista Cristóvão Bastos; os sopros afiados de José Carlos Barroso (trompete) e Lúcio da Silva (trombone); o não menos incrível baixista Jamil Joanes; Cláudio Stevenson, referência da guitarra soul no Brasil; e, igualmente impecável, o baterista e percussionista Luiz Carlos. Com uma insuspeita e natural mescla de samba, baião, funk, gafieira, rock, R&B, fusion, soul e até cool, a Black Rio inaugurava de vez o verdadeiro jazz brasileiro. Um jazz dançante, gingado, sincopado, cheio de groove e de rebuscamentos harmônicos.
Banda das mais requisitadas dos bailes funk daquela época, eram todos instrumentistas de mão cheia. Se nas apresentações eles tinham a luxuosa participação vocal de dois estreantes até então pouco conhecidos chamados Carlos Dafé e Sandra de Sá, tamanhos talento e habilidade não podia se perder depois que a festa acabasse e as equipes de som guardassem os equipamentos. Precisava ser registrado. Foi isso que a gravadora WEA providenciou ao chamar o tarimbado produtor Mazola – por sua vez, muito bem assessorado por Liminha e Dom Filó, este último, um dos organizadores do movimento Black no Brasil. Eles ajudaram a dar corpo a “Maria Fumaça”, primeiro dos três discos da Black Rio, a obra-prima do jazz instrumental brasileiro e da MPB, uma joia que completa 40 anos de lançamento em 2017.
Como se pode supor, não se está falando de qualquer trem, mas sim um expresso supersônico lotado de musicalidade e animação, que transborda talento do primeiro ao último acorde. Sonoridade Motown com toques de Steely Dan e samba de teleco-teco dos anos 50/60. Tudo isso pode ser imediatamente comprovado ao se escutar a arrasadora faixa-título, certamente uma das melhores aberturas de disco de toda a discografia brasileira. O que inicia com um show de habilidade de toda a banda, num ritmo de sambalanço, logo ganha cara de um baião jazzístico, quando o triângulo dialoga os sopros, cujas frases são magistralmente escritas e executadas. A guitarra de Cláudio faz o riff com ecos que sobrevoam a melodia; Jamil dá aula de condução e improviso no baixo; Cristóvão manda ver no Fender Rhodes; Luis Carlos faz chover na bateria. Quando o samba toma conta, praticamente todos assumem percussões: cuíca, pandeiro e tamborim.
Sem perder o embalo, uma versão originalíssima de “Na Baixa Do Sapateiro”, comandada pelo sax de Oberdan, que atualiza para a soul o teor suingado da melodia, e outra igualmente impecável: “Mr. Funky Samba”. Jamil, autor do tema, está especialmente inspirado, fazendo escalamentos sobre a base funkeada e sambada como bem define o título. Mas não só ele: Luiz Carlos adiciona ritmos da disco ao jazz hard bop, e Cristóvão mais uma vez impressiona por sua versatilidade na base de Fender Rhodes e no solo de piano elétrico. Uma música que jamais data, tamanha sua força e modernidade.
O líder Oberdan assina outras duas composições, a sincopada “Caminho Da Roça” e a carioquíssima “Leblon Via Vaz Lôbo”, em que Cláudio e o próprio improvisam solos da mais alta qualidade. Outros integrantes, no entanto, não ficam para trás nas criações, caso de Cláudio e Cristóvão, que coassinam uma das melhores do disco: “Metalúrgica”. Como o título indica, são os sopros que estão afiados no chorus. O que não quer dizer que os colegas também não brilhem, caso de Luiz Carlos, criando diversas variações rítmicas, Cláudio, distorcendo as cordas, e a levada sempre inventiva de Jamil.
A versatilidade e o conceito moderno da Black Rio revisitam outros mestres da MPB, como Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira (“Baião”), onde o ritmo nordestino ganha tons disco e funk; Edu Lobo (“Casa Forte”), de quem realçam-lhe a força e a expressividade das linhas melódicas; e Braguinha, quando o lendário choro “Urubu Malandro”, de 1913, vira um suingado e vibrante samba de gafieira. Nota-se um cuidado, mesmo com a sonoridade eletrificada, de não perder a essência da canção, o que se vê na manutenção de Cristóvão nos teclados e da adaptação das frases de flauta para uma variação sax/trompete/trombone.
Outra pérola de Jamil desfecha essa impecável obra num tom de soul e jazz cool, que antevê o que se chamaria anos adiante no Brasil de “charme”. Embora a canção seja de autoria do baixista, é o trompete de Barrosinho que arrasa desenhando toda melodia do início ao fim.
Talvez seja certo exagero, uma vez que já se podia referenciar como jazz “brazuca” o som de Hermeto Pascoal, Moacir Santos, Airto Moreira, João Donato, Eumir Deodato, Flora Purim, Dom Um Romão, entre outros – embora, a maioria tenha-o feito e consolidado seus trabalhos fora do Brasil. Com a Black Rio foi diferente. Com todos pés cravados em terra brasilis, foi o misto de contexto histórico, necessidade social, proveito artístico e oportunidade de mercado que a fizeram tornar-se a referência que é ainda hoje. Uma referência do jazz com cheiro, cor e sabor latinos. Mas para além das meras classificações, a Black Rio é o legítimo retrato de uma era em que o Brasil negro e mestiço passou a mostrar a riqueza "do black jovem, do Black Rio, da nova dança no salão".
Banda Black Rio - "Maria Fumaça"
..................................
FAIXAS
1. Maria Fumaça (Luiz Carlos Santos/Oberdan) - 2:22
2. Na Baixa Do Sapateiro (Ary Barroso) - 3:02
3. Mr. Funky Samba (Jamil Joanes) - 3:36
4. Caminho Da Roça (J. Carlos Barroso/Oberdan) - 2:57
“CHAPELEIRO: Se você conhecesse o Tempo tão
bem quanto eu conheço você não falaria em gastá-lo, como uma coisa.
Ele é
alguém.
ALICE: Não sei o que você quer dizer.
CHAPELEIRO: É claro que você não sabe!
Eu
diria até mesmo que você nunca falou com o Tempo!
ALICE: Talvez não, mas sei que devo marcar
o tempo
quando aprendo música.”
trecho de “Alice no País das
Maravilhas”,
de Lewis Carroll
Depois de “Blow By Blow” do Jeff Beck, meu preferido, apresento pra
vocês mais um favoritíssimo da casa: “The Mad Hatter”, do pianista e tecladista
norte-americano Chick Corea. Como sempre, um pouquinho de história: em 1978,
aos 37 anos, Armando Anthony Corea já tinha uma longa estrada na música. Tocou
com os percussionistas Mongo Santamaria e Willie Bobo, com o flautista Herbie
Mann e com o sax tenor Stan Getz. Gravou seus primeiros discos solo na metade
dos anos 60 e mergulhou de cabeça na sonoridade free daqueles tempos.
Em 1968, foi convidado por Miles Davis a substituir Herbie Hancock em
sua banda. Participou dos seminais discos "In a Silent Way"e “Bitches Brew”.
Paralelamente, tinha os grupos Circle – com e sem o multiinstrumentista Anrhony
Braxton – e a primeira encarnação do Return to Forever, da qual participavam os
brasileiros Airto Moreira e Flora Purim, além de Joe Farrell e Stanley Clarke.
Após dois discos com esta formação, Corea foi com tudo pro fusion, trazendo para a banda, primeiro o guitarrista Bill Connors,
e depois descobrindo um jovem de 19 anos, Al Di Meola.
Neste tempo todo, Corea fazia projetos especiais para a gravadora ECM,
como discos de piano solo, duetos com o vibrafonista Gary Burton e trios com
Dave Holland e Barry Altschul. Em 1976, sentindo a necessidade de misturar a
linguagem acústica de seus discos da ECM com o fusion, muito em moda na época,
Corea fez uma trilogia de discos temáticos onde estas preocupações tomam a
forma de música: “The Leprechaun”, baseado nas histórias de duendes, e “My
Spanish Heart”, onde ele se debruça sobre a Espanha e seus sons, ambos de 76, e
“The Mad Hatter”, de 78. Na minha opinião, este terceiro é provavelmente o
trabalho em que Corea consegue mesclar as duas linguagens – e o acento erudito
com quinteto de cordas – com sucesso total, musicalmente falando.
Baseado no clássico livro de Lewis Carroll, "Alice no País das Maravilhas", a chave para entender o disco está na capa com Corea vestido de
Chapeleiro Maluco. A viagem inicia aí. Em termos musicais, "The Mad
Hatter" começa com Corea pilotando seus teclados em “The Woods”. Com moogs, mini-moogs, sintetizadores,
pianos elétricos e outros bichos, ele consegue reproduzir os sons de uma
floresta, com sapos, grilos e insetos, dando uma prévia do que virá pela
frente, a mistura de clássico com moderno. “Tweedle Dee” segue na mesma trilha,
fazendo uso das cordas e dos sopros (três trompetes e um trombone), pode-se
verificar com clareza a influência de Bela Bártok em sua música. Na música
seguinte, “The Trial”, temos a primeira aparição da exímia cantora e
tecladista, além de mulher de Corea, Gayle Moran (que havia participado da
segunda formação da Mahavishnu Orchestra, ao lado de John McLaughlin e Jean-Luc
Ponty). No julgamento do Rei de Copas, retirado diretamente do livro de
Carroll, Gayle canta com acento lírico: “Who’ll
stole the tarts / Was it the king of Hearts?”.
O principal momento jazzístico do disco acontece com “Humpty Dumpty”,
uma preferida dos músicos de Porto Alegre. Com um quarteto básico de jazz,
Corea consegue performances extraordinárias de seus colegas Joe Farrell no sax
tenor, Eddie Gomez no baixo acústico e Steve Gadd na bateria. Em meio a todos
aqueles teclados, cordas e sopros, é interessante ouvir o contraste de um grupo
acústico tocando um hard-bop
clássico. Cada músico dá seu showzinho particular, mas preste atenção no som de
baixo de Gomez. Madeira pura!
O lado 1 do LP termina com “Prelude to Falling Alice”, onde o tema é
tocado ao piano e “Falling Alice”, quando o pianista e compositor usa de todo o
arsenal sonoro para contar a queda de Alice. Gayle Moran canta o tema
principal, acompanhada pelas cordas e pelos sopros. Nesta música, temos a
primeira aparição de Herbie Hancock no piano elétrico, fazendo a harmonia para
o solo de mini-moog de Corea. Neste
período, ele e Corea começam a gravar duos de pianos. Destaque também para o
sax tenor de Farrell, um talento subestimado do jazz. Como estamos no tempo do
LP, há um fechamento musical da história pra que as coisas comecem de novo no
lado 2.
Ao virar o disco, “Tweedle Dum” reprisa o tema de “Tweedle Dee” numa
espécie de introdução da melhor faixa do disco, “Dear Alice”. Com 13 min e 7
seg, a música é uma espécie de tour de
force de todos os envolvidos. Pra começar com Eddie Gomez fazendo a melodia
no baixo acústico e Corea fazendo pequenos comentários ao piano acústico.
Durante 2min e 46seg, o baixista conduz a música com seu solo, à medida que
Gadd vai entrando aos poucos com acentos rítmicos na bateria. Moran entra para
cantar o tema principal e aí temos Farrell brilhando no solo de flauta,
secondado pelo quinteto de cordas e pelos sopros. Depois, Chick mostra toda sua
destreza e musicalidade ao piano. Tudo isso com Gadd dando seu show à parte e
mostrando porque é um dos bateristas mais cultuados do mundo. Na época, ele deu
uma entrevista dizendo que pedia as partituras de piano de Corea e estudava em
casa antes de gravar. Esta preocupação deu resultado: em algumas passagens de
"Dear Alice", os dois instrumentos parecem uma coisa só. Esta música
sozinha valeria o disco inteiro, tamanha a musicalidade que Corea e seus
músicos atingem, sem falar no arranjo perfeito que contrapõe as cordas e os
sopros.
Para encerrar o disco, "The Mad Hatter Rhapsody" com Corea no
mini-moog e Hancock em sua segunda
aparição no piano elétrico. O encontro destas duas feras é sensacional.
Enquanto Corea sola, Hancock faz harmonias diferenciadas no Fender Rhodes.
Nesta faixa, Hancock consegue tirar Gadd da bateria e coloca seu fiel escudeiro
Harvey Mason, que dá um suingue todo especial à faixa. Depois que os dois
tecladistas demonstram toda a sua qualidade, vem um interlúdio com o tema
principal tocado pela flauta e pelos sopros. Claro que a latinidade não poderia
ficar de fora e uma passagem de uma salsa estilizada com teclados e Gadd no cowbell fazem a cama para o tema final
onde volta Gayle Moran para apoteose final. Um disco maravilhoso. Quem não tem,
procure nas lojas ou na internet.
Pôca gente sabe mas Dois Morro é responsáver por grande número de gente importante e personalidade istórica.
Diz que Betovo também
seria um Doismorrense.
Mas sempre que alguém perguntava p'ele
se era ou não ele num ouvia,
entonce que persiste a dúvida.
Em Dois Morro, por ezempro, nasce o grande compositêro Chico Buraco de Dois Morro. Ééééé! Não sabio? Pois é! Tão estranhando o sobrenome? Mas o que se assucedeu-se foi o seguinte: o Chico namorô uma tar de Yolanda, alemoa bozuda lá das colônia, si enloqueceu por ela, si enrabixou com a xina e mudô o nome pra Chico Buraco d’Yolanda. O que uma potranca não faiz com a cabeça dum homi...
Marilin Mão-Rói tomém nasceu lá. Sim, senhor! Essa alemoa tinha mania de roê as unha. Roía, roía até ficá em carne viva. Por isso o pessoar da cidade chamavo ela assim: Marilin Mão-Rói. Era tão nervosa que dispois passô a tomá uns remédio e morreu-se por causa disso.
O tar de Aírto da Sirva que corria umas carrera de cancha-reta lá pelas grota e um dia ganhou na Mega-Sena e passaro a chamé ele de Airto Senna; tinha uns metido a artista: o tar do Van Grogue, um maluco que pintava uns quadro tudo esquisito e qui era chamado assim, de Grogue, porque vivia sempre tragueado. Bebia tanto, tanto qui um dia tentando fazê as barba, errô e cabô tirando um do zovido; e ôtro sujador-de-parede que nasceu pras nossas banda lá foi o tar do Miguel Ângelo. Um pintorzinho assim meio mais ou meno, que pintô o teto da igrejinha de Dois Morro. Té qui não ficô muito feio.
Ah, tem tamém o Chega-e-espirra que escreveu aquele conto sobre a goiabada com quejo chamado “Romeu e Julieta” e ganhou esse pelido porcaus'deque tava sempre pestiado e já chegava na cas dos ôtro espirrando; tem tomém o Graão Béu que invencionô o telefone celulósico; a Cleópa aquela bonitona que foi mora nos Egípcios; o Curto Cabaia que era um guri que cantava uma música barulhenta chamada "Cheira a Catinga Juvenir" e que, como era cobaia, morreu-se numa experiênça de atirar no própio quengo só pra vê o que 'contecia; O Napoleão que era um maluco que vivia dizendo que era Napoelão... Ah, muita gente buena!
Como cês pode percebê, Dois Morro tem paper fundamentar não só na ciênssa, como nas arte, como na conomia e em todos os campo da história da umanidade.
Mas o grande nome mesmo da hestória de Dois Morro e até mesmo da humanidade foi José Maria Catulino Azambuja Nepomuceno de Almeida Soares Santos Silva da Silva Zung Tsei da Silva Roosevelt Czrlyck Pereira Ferreira Macieira Pedreira Moreira Oliveira Arantes do Nascimento da Anunciação Cambraia Zuninga Xinapre Rodrigues Brasileiro Doismorrense de Orleans e Bragança.
Grande nome.
Mas nóis chamava ele só de Tico.
Mas que era um dos maior nome da estórea, isso era.