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terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Zupi - Art Magazine, Ed. #Pixel Show SP











Dia desses li uma  matéria  escrita por meu amigo fotógrafo  Nilton Santolin  onde este destacava, com seu olho artístico e perspicaz, belos grafites produzidos em algumas ruas de Porto Alegre. Pois que veio cair em minha mão, trazido de Recife por minha antenada amiga pernambucana Valéria Luna, este exemplar da revista Zupi – Art Magazine #Pixel Show SP, a qual não conhecia e me fascinei.
A publicação destaca artistas plásticos urbanos da melhor qualidade e de várias nacionalidades, como Filipinas, Colômbia, Estados Unidos, Holanda, Taiwan e Brasil, de onde se veem alguns dos trabalhos que mais me agradaram. Um deles é do gaúcho de Santiago Indio San, dono de uma arte expressionista e surrealista a qual salta aos olhos por tamanha pungência e expressividade.
O grafite do paulista Akeni, que ilustra a capa da edição, perpassa no seu pichado de alma pueril, típico do grafite urbano, forte influência do cubismo. Também grafiteiro, o paranaense Anjo mostra uma arte, assim como a maioria desses artistas, inspirada nos quadrinhos, porém adicionando sensualidade e cores muito pessoais.
Mas se se falar em grafite, não há como não referenciar o paulistano Rafael Ferrari. Formado em música e conhecedor da pintura, Ferrari é capaz de produzir um grafite quase pictórico dado o hiper-realismo do seu traço. O que dizer de sua séria baseada em closes de jazzistas, como Charles Mingus, Dizzie Gillespie e  John Coltrane? Impressionante.
 Destaque também para as criativas intervenções do holandês Florentijn Hofman e as ótimas fotografias de Márcio Scavone, que coloca ícones da cultura pop em situações ao mesmo tempo curiosas e plásticas, extraindo arte justamente da captação precisa destes momentos sui generis. É o que faz com personalidades como Renato Aragão, João Ubaldo Ribeiro, João Gordo, Pelé, entre outros. "Eu só consigo ver através das lentes, por isso sou fotógrafo, para ver como as coisas são", explica o fotógrafo.
Vale dar uma conferida também no site da revista, onde, além de conhecer mais a Zupi ou adquirir este ou números anteriores, se podem encontrar outras maravilhosas produções artísticas: www.zupi.com.br.

O surrealismo nas imagens
de Santiago  Indio San

O grafite cheio de  sensualidade
do paranaense Anjo

As bochechas infladas de Dizzie Gillespie
pela mão de Rafael Ferrari

Florentijn Hoffman e imagens do cotidiano
captadas com olho artístico

João Ubaldo Ribeiro...

... e Renato Aragão

descontraidamente  na lente de Márcio Scavone


por Daniel Rodrigues

segunda-feira, 18 de julho de 2022

Lee Morgan - "Lee-Way" (1961)

 

"Todos ficavam espantados: tinha um garoto que tocava como um veterano e tinha grandes ideias. Ninguém restava dúvida 
de que ele seria uma estrela." 
Charli Persip, baterista da orquestra de Dizzie Gillespie

Mais de uma vez já falamos aqui sobre a trágica morte de Lee Morgan, dada a narrativa novelesca que envolve o crime (foi alvejado pela própria esposa, Helen) como, principalmente, pela prematuridade da perda deste grande talento da história do jazz. Contudo, não há o que lamentar. Nos pouco menos de 34 anos que viveu e dos 15 em que produziu, desde seu surgimento através da orquestra de Dizzie Gillespie e da banda Art Blakey, na segunda metade dos anos 50, até sua partida, que completa 50 anos em 2022, o trompetista edificou uma das mais notáveis obras da discografia jazz moderna. Com o aval e a qualidade técnica do selo Blue Note, Morgan deu a largada na carreira solo em 1956 e só parou no fatídico 19 de fevereiro de 1971. 

Embalado, ele começava os anos 60, seus mais produtivos, com mais de 10 discos entre próprios e em participações protagonistas. Tanto que, no primeiro ano daquela década, não tardou a vir primeira obra-prima: “Lee-Way”, gravado em 1960 e lançado um ano depois. Acompanhado de um supertime que contava com Jackie McLean, no sax alto; Bobby Timmons, ao piano; Paul Chambers, baixo; e o professor Blakey na bateria, Morgan explora todas as vertentes que o influenciaram e compunham o cenário do jazz da época. Hard bop, cool, modal e be-bop e até uma passadinha pela vanguarda: tudo com absoluta fluidez e, às vezes, simultaneamente. É o que se vê na brilhante faixa de abertura, "These Are Soulful Days". Obra de um front man maduro, apesar dos apenas 22 de idade à época, seu arranjo não apenas se constitui desses vários estilos como, principalmente, é possível vê-los hibridizando-se naturalmente. O ouvinte começa escutando um blues elegante, suingado, mas sem perceber, dentro do próprio riff, já está submerso num clima melancólico de cool jazz, quase sensual. Repete-se o chorus e, ao invés de seguir na mesma linha, o compasso cai para um ritmo marchado, dando uma pitada de avant-garde.

E quem começa solando? Morgan? Não: Chambers. Craque do baixo, o homem que já havia entrado para os anais do jazz ao tocar em “Kind of Blue”, de Miles Davis, um ano antes, desfila um estiloso solo. O qual, aliás, grosso modo ele não termina, visto que mantém seu suingue por debaixo do improviso seguinte. De Morgan agora? Não: de Timmons. Mais um lindo solo carregado de alma blueser aproveitando as escalas de Lá e Si. Quem pensa que agora será a vez do band leader, está enganado. Parceiro generoso, Morgan concede a McLean o espaço para uma contribuição carregada de sentimento para, finalmente, entrar em campo. Que improviso com desenvoltura e graça!

"These...” mostra que Morgam sempre soube muito bem abrir um disco, pegando pelo ouvido quem escuta já de pronto. O que se veria em “The Sidewinder” e “Serach for the New Land”, iniciadas com suas memoráveis faixas-título, ou em “The Gigolo”, com outra célebre, “Yes I Can, No You Can't”. Depois, em tese, o trajeto é mais facilitado, certo? Não é esta a escolha do “caminho de Lee”. Em clima de trilha de filme policial, "The Lion and the Wolff" tem no piano um martelado em notas graves extremamente soul e na bateria sincopada de Blakey a base para outro tema excepcional de “Lee-Way”. Morgan, se se conteve na abertura para dar evidência a seus companheiros de banda, aqui é ele quem domina, solando com avidez por 2 min 30’. Mas todos têm espaço. E quando se diz “todos”, é o grupo inteiro, mesmo. Depois de TImmons, Chambers ensaia seu solo e passa a bola para o mestre Blakey dar um show com as baquetas em seu estilo de tocar carregado de africanidade. Mais um hard-bop exemplar.

Mais longo número do disco, com pouco mais de 12 min, a animada "Midtown Blues" traz novamente o blues, literalmente, para o centro das atenções. Outro riff contagiante, outro show de interpretações, outra mostra de sinergia de toda a banda. De autoria de McLean, é Morgan, no entanto, quem dá o sopro inicial em um improviso que joga luz sobre os velhos mestres do Mississipi. O saxofonista é quem entra em seguida com a autoridade de criador que conhece os atalhos. Com justiça, aliás, McLean é o que mais se demora performando, preenchendo quase 5 min da música, que traduz em sons a dinâmica agitada da região central nova-iorquina. Timmons também não deixa por menos ao piano, entregando notas ligeiras e agudas. Fica a Chambers a incumbência de fazer a última parte antes do chorus finalizar com a energia lá em cima.

Se a elegância sempre foi uma marca de Morgan, já o era assim nesta fase inicial de carreira, a se ver por "Nakatini Suite". O riff talvez engane, pois o desenrolar da música revela um ritmo intenso, exigindo habilidade e ligeireza dos músicos. Depois de Morgan e Timmons, é Blakey novamente quem “apavora” em inebriantes rolos na caixa, surdo e tom-tom tomados de técnica e habilidade, em que dá para perceber sua desenvoltura no chimbal e a forma como segura a baqueta, movimentada pelo pulso e não pelo bíceps como fazem clássicos bateristas igual a ele.

Neste ano em que se completam cinco décadas sem o enfant terrible do jazz, nada melhor do que, ao invés de lembrar de sua morte, fazer o raciocínio contrário: lembrar da aurora de Lee Morgan. “Lee-Way” é para muitos a mais bem-acabada de suas obras do começo da carreira e, quiçá, de toda a marcante discografia do músico. O álbum que deu o caminho que ele seguiria marcando com seus passos firmes e intrépidos enquanto esteve sobre o planeta blue.

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FAIXAS:
1. "These Are Soulful Days" (Calvin Massey) - 9:25
2. "The Lion and the Wolff" (Morgan) - 9:40
3. "Midtown Blues" (McLean) - 12:09
4. "Nakatini Suite" (Massey) - 8:09

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Daniel Rodrigues

quarta-feira, 1 de abril de 2015

John Coltrane - “A Love Supreme” (1965)




"Vi a Deus.”
Genesis 32:30





Alice Coltrane viu seu marido descer as escadas vindo da sala onde costumava trabalhar na casa em que viviam em Long Island, Nova York. Fazia cinco dias que mal saía de lá. Musicista e compositora como ele, Alice entendia muito bem a situação. Ele parecia cansado das obsessivas horas de trabalho, mas “inusitadamente sereno”, relatou Alice. “Parecia Moisés descendo a montanha. Foi lindo. Ele me disse: ‘Esta é a primeira em vez que me veio toda a música que quero gravar, como uma suíte. Pela primeira vez, tenho tudo, tudo pronto.’” O ano era 1964. Visivelmente, não se tratava de uma situação comum. O desgaste dele era justificável, visto que também altamente recompensador. Naquele dia de setembro, começo do outono nos Estados Unidos, John William Coltrane, depois de horas de concentração (e, ao que tudo indica, também contrição), havia composto integralmente todas as músicas daquela que se tornaria sua obra-prima e um marco da música em todos os tempos: “A Love Supreme”.

Gravado em apenas uma sessão, em 9 de dezembro de 1964, e lançado em fevereiro do ano seguinte, “A Love Supreme” logo se tornaria uma referência essencial não só para toda a geração posterior do jazz como Archie Sheep, Pharoah Sanders, Grant Green, Wynton e Brandford Marsalis, John McLaughlin e o próprio filho Ravi Coltrane, mas para músicos de outros estilos: a turma do rock clássico (Greatful Dead,Joni Mitchell, Santana, Jimi Hendrix), punks (Patti Smith, Tom Verlaine, Bono Vox), roqueiros mais atuais (Bob GillespieMobyPeter Buck), músicos da soul (Gil Scott-Heron, Marvin Gaye, Stevie Wonder) e da vanguarda (Steve Reich, Carla Bley, Lester Bowie, Frank Lowie). Porém, mais do que somente um espelho musical, “A Love Supreme” passou a dar também inspiração tanto política, visto que, na época, seu sucesso ajudou a inflamar o discurso racial de um grupo em formação chamado Black Panthers, quanto espiritual, como um manuscrito sagrado a ser decifrado. “Você entenderá a mensagem [de ‘A Love Supreme’] quando estiver pronto, como nos ensina a filosofia hindu. Se não estiver pronto, terá de recuar, se preparar e caminhar tudo de novo”, sentencia o baixista Reggie Workman, que tocara na banda de Coltrane em 1961, no livro “A Love Supreme: a criação do álbum clássico de John Coltrane”, do jornalista e pesquisador norte-americano Ashley Kuhn.

O livro do jornalista Ashley Kuhn
que disseca o grande álbum de Coltrane
De fato, para muitos Coltrane é um anjo que pousou por aqui com saxofone e asas e que, por apenas 41 anos, promoveu prodígios, deixando um lastro de beleza e amor. Nascido na Carolina do Norte em 1926 e criado na Filadélfia, o habilidoso instrumentista começou tocando clarinete, mas logo passou para o sax alto. Nos anos 40, integrou a bjg-band de Dizzie Gillespie, escola para a maioria dos jazzistas de alto nível, e a King Kolax Band ao lado de Charlie Parker, quando trocou o sax alto pelo tenor tendo em vista que o Bird já dominava o alto como ninguém. Nos anos 50, dado o seu reconhecível talento e estilo, é chamado para integrar o mágico quinteto de Miles Davis ao lado de Red Garland, Paul Chambers e Philly Joe Jones. Também com Miles, no final daquela década, compõe a banda que gravaria o mítico "Kind of Blue", considerado por muitos o melhor disco da história do jazz. O vício em heroína (comum aos músicos de jazz da época), no entanto, quase o faz abandonar a carreira. Mas após uma tortuosa recuperação, por volta de 1957, limpa-se das drogas e volta à ativa em alto nível e decidido a cumprir uma “missão musical”.

É justamente a trajetória de Coltrane como band leader que o impulsionaria ao status de um dos maiores músicos de sua época, formando a mística em torno de si e de sua obra. Se todas as experiências anteriores ajudaram a forjar o solista sui generis e o compositor criativo cunhado no be-bop, hard-bop, jazz modal e free-jazz, foi o contato com o pianista Thelonious Monk, no final dos anos 50, a chave para o encontro interior de Coltrane. Era a liga que faltava a este neto de bispo protestante com fortes raízes religiosas que tencionava transmitir em música algo transcendente e pessoal, numa concepção que incorporasse o hinduísmo, a astrologia, a filosofia ocidental, a cabala, a herança africana e, obviamente, um autorreconhecimento da presença de Deus.

Nas breves semanas que esteve com o didático e transgressor Monk, jazzista de fortes influências em Messiaen e Bártok que não se furtava em criar estranhas transições melódicas e mudanças rítmicas, Coltrane achou seu caminho. Foi quando vieram, por exemplo, obras autorais como “Blue Train”, "My Favourite Things", “Giant Steps”, “Africa/Brass” e “Olé”, todos essenciais a qualquer discoteca. É nesta época, também, que ele forma a banda que o acompanharia em várias gravações e shows e que comporia o time de “A Love...”: McCoy Tiner (piano), Elvin Jones (bateria) e Jimmy Garrison (baixo). Há três anos apoiado por esta formação, Coltrane caminhava firmemente para a música de vanguarda, espelhando-se nos trabalhos Charles Mingus, Ornette Coleman e Cecyl Taylor. Após o bem recebido “Crescent”, de 1963, “A Love...” era o sucessor aguardado pela crítica e público. “O que John Coltrane trará dessa vez?” “Em que ponto ele evoluirá com sua música?”, indagavam.

A resposta a essas perguntas não foi difícil de ser respondida. “A Love...” trazia o ápice da genialidade composicional, de arranjo e improvisação de John Coltrane. Além disso, carregava, do primeiro ao último acorde, todo um misticismo e espiritualidade que de pronto foram captados pelos fãs. E, ao invés de ser taxado como algo “menor” ou meramente “religioso”, este fator engrandeceu a obra. Não por acaso: “A Love...” consegue, em sua musicalidade vanguardista mas universal referenciar todo seu legado precedente, do jazz clássico de Count Basie e Dexter Gordon, o jazz moderno de Miles e Monk, passando pelo erudito de Messiaen e Stravinsky e pelos contemporâneos dele (Coleman, Herbie Hancock, Lee Morgan, Sonny Rollins, Wayne Shorter) sem suprimir sua subjetividade como indivíduo, como ser espiritual.

As quarto faixas de “A Love...” compõem uma “oferenda a Deus”, ideia que o próprio Coltrane deixaria clara no poema da contracapa original. “Vamos cantar todas as canções a Deus”, diz em um dos versos. E é isso que se sente na música. “Acknowledgement” acende os caminhos. Numa das mais marcantes aberturas de álbum da discografia jazz, um gongo rufa, como se soltasse cristais sonoros pelo ar. Surge a imagem de uma portada celeste abrindo-se sob uma radiante luz branca. É a elevação do espírito materializada em sons. No que o ressono oriental começa a apagar-se, vem o sax alto junto aos pratos, o piano e o baixo, que entram para manter de forma suave a seriedade da introdução. Um fraseado de sax é vigorosamente tocado, numa benção de boas-vindas. A invocação dura aproximadamente 35 segundos e, antes que a sensação de levitação se dissipe, Garrison entra com um acorde de quatro notas, que é o verdadeiro riff da canção, pois transforma em som as cadências do nome do álbum – afinal, como não intuir que naquele dedilhado está sendo dito: “A Love Supreme”? Tanto o é que, no final da faixa, depois de um verdadeiro show multitonal de Trane, de uma explosão polirrítmica de Jones e de um passeio pelos acordes de Tyner, Coltrane larga o bocal do instrumento e, com humildade e devoção, entoa com sua própria voz ao microfone: “a love supreme/ a love supreme...”, repetidas vezes.

Antes, no entanto, “Acknowledgement” nos dá uma sensação de intensidade e paixão. Coltrane inicia seu solo com acordes suaves e firmes, tal um orador de igreja. À medida que a emoção toma conta, sua “fala” vai se tornando insistente, adicionando ao lirismo inicial altas cargas de solenidade, graça e pesar. Vêm, então, ondas de alegria, acompanhadas com sabedoria pela mão esquerda de sensibilidade astral de Tyner e pela batida 6/8 de Jones, a qual remete aos ritmos latinos e afro-caribenhos. O baterista ainda sustenta a condução rítmica nos pratos, como lhe é característico. Coltrane pula de tom para tom repetidamente, numa desconstrução melódica que normalmente soaria desconfortável aos ouvidos, mas que, no contexto, demonstra sua “profunda ressonância espiritual”, como diz o escritor e biógrafo Lewis Porter. No ápice, o saxofonista dá uma guinada que joga o tom lá para cima, elevando a emotividade. Até que a intensidade cai e, depois das impressionantemente simétricas 37 repetições do riff pelo sax, a voz entra para entoar o mantra. No final, a banda desce um tom inteiro, preparando a cama para a parte 2 da suíte.

Rudy Van Gelder, o técnico de som com mãos de cirurgião, faz a colagem perfeita para a entrada do outro take: “Resolution” – minha preferida do disco. Talvez a mais “tradicional” do álbum, visto que, a priori, trata-se de um hard-bop bluesy como os que todos ali eram profundamente conhecedores. Porém, parece que, mais uma vez, a carga incorpórea dada à música por Coltrane e a banda eleva o “material” a outro patamar. O baixo abre sozinho, engenhosamente quieto, num preâmbulo lento e carregado de blues. Isso antecipa uma virada ruidosa, quando a banda entra explodindo e Coltrane, principalmente, detonando o riff. Ele novamente exercita saltos de modulação, subindo e descendo as escalas e imputando drama com seu saxofone. Tyner, invariavelmente inteligente, providencia um acompanhamento de ambivalência harmônica, dando liberdade ao solista. Em seguida, o líder empurra todo o quarteto para uma série de clímaces marcados por gritos ríspidos de seu sax, instigados pelos rolos da bateria e os pratos nervosos de Jones. Garrison, por sua vez, destaca-se pela combinação de notas curtas e precisas com outras longas e ressonantes.

Cabe a Jones fechar “Resolution” com uma virada na caixa e uma batida no prato de condução, pois é o baterista quem, num solo exuberante – que celebra os mestres do instrumento do jazz (Jo Jones, Art Blakey, Max Roach) e os influenciados do rock (Ginger Baker, Keith Moon, Mitch Mitchell) –, inicia a terceira sequência de “A Love...”: “Pursuance”. Usando baquetas de madeira, retoma a polirritmia africana e o toque caribenho, estabelecendo um ritmo saltitante e gingado que se incorpora ao seu estilo democrático da bateria, o qual se vale dos timbres de todo o aparato: caixa, tan-tan, pratos, tambor e bumbo.

A “procura” pela iluminação de Coltrane atinge limites épicos nesta faixa – gravada de primeira num irrepreensível take. Na primeira parte, sobre o ainda improviso da bateria (Jones, na verdade, não para de solar até o fim de sua participação na faixa), apenas apresenta o tema, dando a deixa para a rica e engenhosa improvisação de Tyner. O pianista sai ordenando uma sucessão de frases livres de pura inventividade melódica, criando quase uma nova estrutura à música. Aparecem com clareza seus característicos voicings, saltos de três intervalos acima da tônica da melodia que fazem o ouvinte saltar do sofá. Pura energia, pura música.

Detalhe para ouvidos atentos: a “deixa” de Tyner para Coltrane acontece segundos antes do esperado, forçando o atento e novamente cirúrgico Van Gelder a aumentar o volume do microfone do sax (detalhe perceptível na amplitude do som dos pratos de Jones). É quando Coltrane entra para serpentear em vários motivos surgidos ali, no calor do momento, conduzindo frases frenéticas até as alturas. Erupções, dissonâncias, ruídos roucos, ideias cíclicas do tema original, citações do riff de “Acknowledgement”. Tudo isso condensado em apenas 2 minutos e meio. É o momento de maior expressividade de improviso de Trane, quando a minissinfonia que é “A Love...” atinge o que seria seu allegro vivace. Como diz Kahn: esta parte é “o coração do álbum”.

Mas não para por aí: Coltrane chama Jones para a prece. Extremamente cúmplices, o sax e a bateria de um e de outro, velhos parceiros, atingem um nível de diálogo telepático. Jones dispara uma fuzilaria de rolos, estrondos e batidas nos pratos. Coltrane responde com grunhidos tumultuosos do seu arco. Ambos se homogeneízam, sem definir quem comanda e quem acompanha. Para finalizar, Jones metralha viradas na caixa e Garrison, já em pleno improviso, tem sua vez de realce com um solo de três minutos. Idas e vindas, menções ao tema do primeiro número e, claro, da própria “Pursuance”, são ouvidas num improviso hábil e “intrigante” do contrabaixo, como classificou outro craque do instrumento, Ron Carter.

Depois da fúria de “Pursuance” e do balanço de “Resolution”, o clima meditativo do início do disco vem com força total para finalizá-lo na tocante “Psalm”. Tão distinta que parece isolar-se do restante, como um recolhimento ao altar para a oração. Sequência de “Pursuance” (foi gravada no mesmo histórico take), é nada mais nada menos do que a declamação quieta e etérea de Coltrane do seu poema da contracapa. Frase por frase, sem melodia cantarolável, sem centro tonal. Apenas acompanhado dos acordes atmosféricos do piano de Tyner e do baixo de Garrison, além dos pratos de Jones, que ainda surpreende ao operar inusitados tímpanos de orquestra, os quais dão um ar ao mesmo tempo introspectivo, solene e raveliano. E quem “declama” é o sax, e não a voz. Num movimento inverso ao de “Acknowledgement”, quando começa o disco indo da melodia para a palavra, aqui, no final dele, Coltrane vai da palavra para a melodia. Lê-se num dos versos a citação de um trecho dos salmos bíblicos do livro do Gênesis: “Vi a Deus face a face, e a minha alma foi salva”. Ninguém duvida que John Coltrane de fato tenha tocado o divino.

Em vida, ainda deu tempo de o músico gravar mais um trabalho fundamental do jazz, “Ascension”, de 1966, ponte determinante entre o free-jazz e a avant-garde. Se é coincidência que seus últimos dois discos se chamam “um amor supremo” e “ascensão”, não se tem certeza. O fato é que, acometido de um câncer (o qual se desconfia que ele já soubesse da existência antes de compor “A Love Supreme”) foi, um ano depois, levado por seus colegas alados para habitar, definitivamente, nos céus. E ao que tudo indica, em paz. Pelo menos é o que o seu testamento musical nos diz. A morte prematura; a aura espiritual de “A Love...”; a única apresentação ao vivo do repertório do disco (em Antibes, na França, show que compõe a edição especial do CD); a dimensão de sua influência ao longo dos tempos; tudo isso dá corpo à mitologia em torno de Coltrane e sua obra.

No entanto, mais do que qualquer atributo, o fato é que “A Love...” foi concebido com a alma, e é isso que emana do sulco toda vez que se põe o disco para tocar mesmo hoje em 2015, 50 anos depois de seu lançamento. Elvin Jones, talvez o músico que melhor tenha se entendido com Coltrane entre os diversos que tocaram com ele nos 28 anos de carreira do saxofonista, parece compreender com profundidade o porquê da passagem do colega e amigo por essas bandas terrenas e o legado de “A Love...”: “Quem quiser saber o que foi John Coltrane tem de conhecer ‘A Love Supreme’. É como o apogeu da vida de um homem, a história completa de uma vida inteira. Quando alguém quer se tornar um cidadão americano, deve fazer o juramento de fidelidade diante de Deus. ‘A Love Supreme’ é o juramento de John.”

Não tenho dúvida que a alma de John Coltrane foi salva.
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FAIXAS:
1. A Love Supreme, Pt. 1: “Acknowledgement” - 7:47
2. A Love Supreme, Pt. 2: “Resolution” - 7:25
3. A Love Supreme, Pt. 3: “Pursuance” – 10:43
5. A Love Supreme, Pt. 4: “Psalm” – 7:40

todas as composições de John Coltrane









quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Lee Morgan - “Search for the New Land” (1964)



"A única hora que você realmente 
é você mesmo é quando está tocando." 
Helen Moore

Lee Morgan é um dos jazzistas mais admirados de todos os tempos e sobre o qual pairam várias lendas. A principal delas está, tragicamente, ligada à sua precoce morte, aos 34 anos. Motivada pelas mãos da própria esposa. A história nunca ficou totalmente esclarecida, tanto que, Helen Moore, a senhora Morgan, nunca cumpriu a devida pena judicial, apenas a moral ante a opinião pública enquanto viveu, até 1996 – fatos que estão expostos no documentário “I Called Him Morgan”, de Kasper Collin (2016). O que se tem certeza é que o trompetista foi um dos maiores talentos do jazz moderno. Após brilhantes passagens pela banda de Dizzie Gillespie e Art Blakey, construiu carreira solo a partir do final dos anos 50, a qual é, certamente, das mais brilhantes do pós-bop. Encarreirou discos irrepreensíveis, sendo um deles o que traduz em seu título a irônica metáfora de sua vida: “Search for the New Land”, de 1964.

A música de Lee Morgan era impetuosa e atrevida como ele. Altamente técnica mas sabiamente maliciosa, refletia a tumultuada vida de excessos e transgressões do músico. Ou seja: ao mesmo tempo que lhe ajudara a tornar-se esta lenda, também se encurtara. Viciado em heroína, foi resgatado pela fã Helen, mulher mais velha que o tirou das ruas em meados dos anos 60 quando ele havia penhorado quase tudo que tinha – até o próprio instrumento de trabalho, o trompete. Ela virou sua esposa, empresária e cuidadora. Morgan, irrefreável, agradeceu drogando-se novamente e ficando com outra. Suficiente para, em uma noite de fevereiro de 1972, num clube de jazz de Nova York onde ele estava tocando, ela dirigir-se até lá para alvejá-lo no coração com a arma que ganhou do próprio marido. Morria o homem, nascia a lenda.

“Seach for the New Land”, faixa-título que abre o disco, é a materialização de toda a carga emocional e musical que Morgan atingiu. Poucas vezes no jazz moderno uma música se fez tão naturalmente completa e conceitual. À época, Morgan, com apenas 26 anos, já havia absorvido em seu hard bop afiado as estruturas modais que John Coltrane popularizara com seu clássico quarteto e os ritmos do novo R&B. “Search...”, desse modo, sintetiza essas tendências, numa estrutura harmônica cheia de altos e baixos, que põe a faixa ora na linha bop, ora num saboroso blues suingado, ora namorando com a avant-garde. Para tanto, o trompetista conta com a estelar ajuda de outros igualmente lendários como ele: Herbie Hancock, ao piano; Wayne Shorter, no saxofone; Grant Green, na guitarra; Billy Higgins; na bateria; e Reggie Workman, no baixo. A melodia é cíclica e onírica, com suas passagens melancólicas e sensuais em tom menor e suas viradas antecedidas de finais falsos reavivados pelo maravilhoso dedilhado de Workman. A construção melódica favorece que o time talentoso de músicos dê um verdadeiro espetáculo nos solos individuais. Pouco mais de 15 minutos de absoluto deleite. Tranquilamente, um tema do nível dos maiores clássicos do jazz moderno, como uma “All Blues” (Miles Davis), “Giant Steps” (Coltrane), “Maiden Voyage” (Hancock) ou "Well, You Needn't" (Thelonius Monk).

Lee e Helen: um caso de amor e ódio que resultou numa das
maiores lendas do jazz
A animada “The Joker”, na sequência, serve para trazer novamente o ouvinte para o mundo real depois da hipnose da faixa inicial. Aqui, é o clima boêmio das ruas e da noite nova-iorquina que prevalece. Shorter tem a primazia do primeiro solo, precedido do jovem band-leader, que faz o ambiente esquentar e passa a vez para os também moços Hancock (24 anos) e Green (29) que, num momento memorável, fazem piano e guitarra conversarem, repetindo o encontro de dois anos antes nos discos “Feelin' The Spirit” e “Goin’ West”, de Green. "Mr. Kenyatta", mais circunspecta, mostra Morgan exercitando aquilo que melhor sabia: notas despojadas e abusadas, mas dono de um pensamento musical capaz de arquitetar solos como se fossem histórias. Shorter, sagaz, segue na mesma linha arrojada, enquanto Hancock, Higgins e Workman seguram todas por detrás. Cabe ao dedilhado ágil de Green a continuidade dos solos, que passa a bola para Hancock demonstrar a mais pura habilidade com a mão esquerda. Para fechar, Morgan estufa os pulmões e retoma, elevando a tonalidade e intensificando o “despojamento controlado” que lhe era peculiar.

O título da faixa seguinte já indica o clima que virá: "Melancholee". No entanto, na linha de “Search...”, um misto de tristeza e sensualidade. Logo em seguida, Green, no melhor exercício modal, improvisa sobre os acordes em escala do piano, enquanto o chorus é dito pelos sopros. Lindeza pura até aí. Mas tem mais! Morgan, Hancock e Shorter, nesta ordem, experimentam um pouquinho cada um a dor sentida do tema. Bebem um bourbon sem gelo para afogar as mágoas e soltam acordes lânguidos, chorosos. Como falou Helen Morgan em uma entrevista pouco antes de morrer referendo-se ao sentimento que percebia no som da maioria dos jazzistas negros explorados pelos empresários brancos àquela época, anos 50/60: “Era um som tão triste. Você podia ouvir a melancolia na música se ouvisse com bastante atenção”.

Para encerrar num ânimo menos down, a bluesy "Morgan the Pirate" faz jus ao título brincalhão. Novamente, show de Morgan empunhando o seu instrumento. União entre alma e técnica num solo extenso tomado de fluidez e lirismo. É Green o responsável por estabelecer a ligação entre os dois sopros, visto que, depois dele, o sax de Shorter entra rasgando. Higgins inclui na combinação da levada o aro da caixa para a participação de Hancock, que, igualmente, emana maravilhas dos teclados para finalizar o número.

A perfeição estética e formal de “Search...” o coloca entre os mais célebres álbuns do gênero, seja da década de 60, seja da geração do hard bop, entre os discos do selo Blue Note ou mesmo da história do jazz. Se a vida errante de seu autor o impediu de levar mais tempo adiante sua genialidade, obras como esta dignificam sua trajetória. E se Morgan, com sua mente inventiva e instintiva, buscava desvairadamente por uma nova lenda, talvez não se apercebesse que esta se encontrava mais perto do que ele imaginava. Dento dele próprio.


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FAIXAS
1. "Search for the New Land" – 15:45
2. "The Joker" – 5:04
3. "Mr. Kenyatta" – 8:43
4. "Melancholee" – 6:14
5. "Morgan the Pirate" – 6:30
Todas as músicas compostas por Lee Morgan

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quinta-feira, 18 de junho de 2015

Ornette Coleman – “The Shape of Jazz to Come” (1959)



"Ornette é um dos meus astronautas favoritos"
Wayne Shorter


“’Kind of Blue’ era um álbum bonito, delicado,
mas não lembro de ele ter realmente
virado minha cabeça na época.
 Então, quando Ornette surgiu,
 ele de fato soava como se
 pertencesse a uma outra era, 
a um outro planeta.
A novidade estava ali”.
Joe Zawinul



Chego ao meu 50° ÁLBUM FUNDAMENTAL por um motivo especial. Embora todos os discos sobre os quais escrevi sejam caros a mim, quando percebi que chegava a essa marca não queria que fosse apenas mais um texto. Tinha que ser por um motivo especial. Escreveria sobre os artistas brasileiros a quem ainda não resenhei: Chico BuarqueEdu LoboMilton NascimentoPaulinho da Viola? Ou das minhas queridas bandas britânicas, como The CureThe SmithsCocteau Twins, Echo and The Bunnymen? De algum dos gênios da soul, Gil Scott-Heron, Otis Reding, Curtis Mayfield, que tanto admiro? Do para mim formativo punk rock (Stranglers, Ratos de Porão, New York Dolls)? Obras consagradas de um Stravinsky ou alguma sinfonia de Beethoven? Outro de John Coltrane ou Miles Davis? Nenhum desses, no entanto, me pegava em cheio. A resposta me veio no último dia 11 de junho, quando o saxofonista norte-americano Ornette Coleman deu adeus a esse planeta. Aos 85 anos, Coleman morreu deixando não apenas o mérito da criação do free-jazz como uma das mais revolucionárias obras do jazz. A cristalização da proposta de inovação musical – e espiritual – de Coleman veio pronta já em seu primeiro disco, o memorável “The Shape of Jazz to Come”.

Gravado no mesmo ano de 1959 que pelo menos outros dois colossos do jazz moderno – "Kind of Blue", de Miles, arcabouço do jazz modal (agosto), e “Giant Steps”, de Coltrane, a cria mais madura do hard-bop (dezembro) –, “The Shape...”, vindo ao mundo a 22 de maio, não aponta para o lado de nenhum deles. Pelo contrário: engendra uma nova direção para a linha evolutiva do estilo. Nascido no Texas, em 1930, Coleman era daquelas mentes geniais que não conseguiam pensar “dentro da caixa”. No início dos anos 50, já em Nova York, nas contribuições que tivera na banda de seu mestre, o pistonista Don Cherry, ele, saudavelmente incapaz de seguir as progressões harmônicas do be-bop, já demonstrava um estilo livre de improvisar não sobre uma base em sequências de acordes, mas em fragmentos melódicos, tirando do seu sopro microtons e notas dissonantes, arremessadas contra às dos outros instrumentos, contra si próprias. Fúria e espírito. Carne e alma.

Seu processo era tão complexo que, exorcizando clichês, atinge um patamar até psicanalítico de livre associação e reconstrução do inconsciente coletivo, o que levou um dos pioneiros do cool jazz, John Lewis, a dizer: “Percebi que Coleman cunhou um novo tipo de música, mais semelhante ao ‘fluxo de consciência’ de James Joyce do que o entretenimento operado por Louis Armstrong com sua variação sobre uma melodia familiar”. Se na literatura este é seu melhor comparativo, faz sentido colocá-lo em igualdade também a um Pollock nas artes plásticas ou um Luis Buñuel no cinema. Na música, remete, claro, a Charlie Parker e Dizzie Gillespie, mas tanto quanto a compositores atonais da avant-garde como John Cage e György Ligeti.

Em “The Shape...”, a desconstrução conceitual já se dá na formação da banda. Traz o desconcertante sax alto de Coleman, a bateria ensandecida de Billy Higgins, o duplo baixo de outro craque, Charlie Haden (de apenas 22 anos à época), e o privilégio de se ter o próprio Cherry, com sua mágica e não menos desafiadora corneta. Nada de piano! Tal proposta, tão subversiva da timbrística natural do jazz a que Coleman convida o ouvinte a apreciar, assombra de pronto. “Lonely Woman”, faixa que abre o disco, é uma balada fúnebre e intempestiva. O free jazz, consolidado por Coleman um ano depois no LP que trazia o nome do novo estilo, dá seus primeiros acordes nesse brilhante tema. Dissonâncias na própria estrutura melódica, compasso discordante da bateria e um baixo inebriado que parece buscar um plano etéreo, longe dali. Algo já estava fora da ordem, anunciava-se. Coleman e Cherry, pupilo e mestre, equiparados e expondo uma nova construção composicional aberta, incerta, em que a música se cria no momento, numa exploração dramática conjunta.

Na revolução do free jazz, cada membro é tão solista quanto o outro. “Eventually”, um blues vanguardista em alta velocidade, e “Peace”, com seus 9 minutos de puro improviso solto, sem as amarras do encadeamento tradicional, são mostras disso. Cada músico está ligado ao outro primeiramente pelo estado de espírito, não apenas pela habilidade técnica. E eles perdem o apelo momentâneo? Jamais, apenas o centro melódico é outro. Os riffs e o tom estão lá como os do be-bop; a elegância do blues trazida do swing também. Mas o conceito e a dinâmica aplicados por Coleman e seu grupo fazem com que se desviem das formas tradicionais a as diluam, direcionando a uma tonalidade expandida como praticaram Debussy, Messiaen e Stravinsky.

Nessa linha, "Focus on Sanity" se lança no ar inquieta, mas logo freia para entrar o maravilhoso baixo de Haden, suingando, serenando-a. Não por muito tempo: por volta dos 2 minutos e meio, Coleman irrompe e o grupo retorna em ritmo acelerado para seu novo solo da mais alta habilidade de fúria lírica. O mesmo faz Cherry, que entra raspando com o pistão e forçando que o compasso reduza-se novamente. “Foco” e “sanidade”, literalmente. A inconstância desse número dá lugar ao blues ligeiro "Congeniality". Mais “comportada” das faixas, traz, entretanto, a fluência do quarteto dentro de um arranjo em que se prescinde da referência harmônica das cordas – o piano. Pode parecer um be-bop comum, mas, ditado pela intuição e não pelo arranjo pré-estabelecido (tom, escala, variação), definitivamente não é. Fechando o álbum, “Chronology” mais uma vez ataca na desconstrução da progressão acorde/escala. As explosões emocionais súbitas de Coleman e seu modo atritado e carregado de tocar estão inteiros neste tema.

Wayne Shorter, Anthony Braxton, Eric Dolphy, Albert Ayler, Pharoah Sanders e o próprio Coltrane, mesmo anterior a Coleman, não seriam os mesmos depois de “The Shape...”. O fusion e o pós-jazz nem existiriam. Coleman influenciou não apenas jazzistas posteriores como, para além disso, roqueiros do naipe de Jimi Hendrix, Don Van VlietFrank Zappa e Roky Erickson. Ele seguiu aprofundando esse alcance em vários momentos de sua trajetória. No ano seguinte ao de sua estreia, emenda uma trinca de discos, começando pelo já referido “Free Jazz” (dezembro) mais “Change of the Century” (outubro) e “This Is Our Music” (agosto). Em 1971, surpreende novamente com a sinfonia cageana “Skies of America”, para orquestra e saxofone. No meio da década de 70, ainda, adere ao fusion, quando lança o funk-rock “Body Meta” (1976), recriando-se com uma música dançante e suingada.

Além disso, Coleman teve a coragem de legar ao jazz um sobgênero, o que, juntamente com o contemporâneo “Kind of Blue”, referência inicial do jazz modal, ajudou a desafiar conceitos e padrões estabelecidos. O jornalista e escritor Ashley Kuhn, em “Kind of Blue: a história da obra de Miles Davis”, recorda a receptividade de “The Shape...” à época entre músicos e críticos, os quais vários deles (como um dos pioneiros do fusion, o pianista Joe Zawinul), colocavam os dois discos em polos opostos: free jazz versus modal. No entanto, como ressalta Kuhn: “No fim das contas, Coleman e Davis parecem mais filosoficamente compatíveis do que musicalmente opostos: ambos dedicaram suas carreiras a reescrever as regras do jazz”.

Desde que meu amigo Daniel Deiro, que mora em Nova York, disse-me anos atrás tê-lo assistido em um bar da Greenwich Village, fiquei esperançoso de também vê-lo no palco um dia. Não deu. O astronauta do jazz, capaz de fazer quem o ouve também flutuar sem gravidade, deixa como suficiente consolo uma obra gigantesca e densa a ser decifrada, sorvida, descoberta. Como a de um Joyce, Pollock ou Buñuel. Se a função do astronauta é desbravar o espaço, Ornette Coleman cumpriu o mesmo papel através da arte musical, que ele tão bem soube explorar em sua dinâmica atômica e imaterial através da propagação dos sons no ar, na atmosfera. E o fez de forma livre, como bem merece um free jazz. Agora, então, foi ele que se libertou para poder voar sobre outros planetas igual à sua própria música.

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FAIXAS:
1. "Lonely Woman" - 4:59
2. "Eventually" - 4:20
3. "Peace" - 9:04
5. "Focus on Sanity" - 6:50
5. "Congeniality" -  6:41
6. "Chronology" - 6:05

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OUÇA O DISCO:






segunda-feira, 5 de setembro de 2022

V.S.O.P. - “Five Stars” (1979)


"Eu pensei que seria impossível colocar pessoas como Tony Williams ou Ron Carter ou Wayne Shorter ou Freddie Hubbard na mesma sala ao mesmo tempo, porque muitos deles são líderes de bandas."
 
"A ideia era atualizar o passado. Eu não tinha a intenção de tentar tocar como toquei, mas pegar a música que tocamos no início e meados dos anos 70 e deixar a música acontecer a partir de nossos estados de espírito do momento."
Herbie Hancock 

É compreensível o folclore em torno dos chamados “times dos sonhos”. Seja no esporte ou nas artes, os “dream teams” criam uma verdadeira aura de fascínio. Na música, embora algumas bandas sejam consideradas excelentes, elencar uma seleção dos melhores entre os melhores é quase um sonho para os fãs. Imagine-se, por exemplo, se o rock tivesse conseguido promover o encontro de Jimi Hendrix, na guitarra; John Bonham, na bateria; Keith Emerson, nos teclados; e John Entwistle, no baixo? Impossível. 

No jazz? Tão improvável quanto. Para formar um timaço de melhores, só se fosse no Japão! E não é que este milagre aconteceu? E, pasme-se: não foi nos Estados Unidos, berço do jazz, mas, sim, na Terra do Sol Nascente. O feito raro tem um responsável: Herbie Hancock. Além de ser um dos integrantes deste “dream team”, foi ele quem catalisou as intenções e teve a ideia de, junto com o empresário David Rubinson, formar a “The Quintet”. Mas uma reunião tão especial não poderia chamar-se de outro jeito que não de algo que transmitisse bem essa ideia. A criativa solução foi dar o nome ao grupo de V.S.O.P., sigla que significa, na linguagem etilista, "Very Special One Time Performance", ou seja, a classificação dada à bebida conhaque envelhecida de alta qualidade.

Para isso, Hancock chamou, claro, só os melhores. Amigos músicos tão brilhantes quanto ele: Ron Carter, para o baixo; Tony Williams, para a bateria; Wayne Shorter, no sax; e Freddie Hubbard, ao trompete. Todos “all stars”, todos band leaders, todos lendas do jazz, que tocaram com outras lendas como Charlie Parker, Dizzie Gillespie, Miles Davis, Tom Jobim e Art Blakey. Todos senhores de obras que revolucionaram o jazz e a música moderna. Estavam todos ali, milagrosamente juntos. Seja por currículo ou por talento, a V.S.O.P. era o verdadeiro “dream team” do jazz.

Para materializar essa conjugação tão estelar, Rubinson promoveu um histórico show em San Diego, em 1977, que foi registrado no álbum “The Quintet”. O projeto deu tão certo, que deu vontade de também produzirem algo em estúdio. Foi aí que a turma foi parar no Japão, onde já eram individualmente aclamados. Foi a conexão que faltava: além de realizarem um novo disco ao vivo naquele mesmo ano, “Tempest in the Colosseum”, que encerrava a turnê, a turma, principalmente Hancock, acabou ficando lá pelo outro lado do mundo. Somente em 1979, dos seis discos que o pianista lança naquele ano, entre projetos solo ou acompanhados, quatro são gravados em Tóquio e lançados pelo selo Sony Japan. Um deles é justamente o colossal “Five Stars”, da V.S.O.P., único trabalho de estúdio da banda e cujo título não poderia ser mais adequado.

Coube ao engenheiro japonês Tomoo Suzuki comandar as mágicas gravações de 29 de julho daquele ano, nos estúdios CBS/Sony, em Tóquio. Mesmo experiente e calejado, por incrível que pareça o que o quinteto traz é de um frescor surpreendente e até tocante, não fosse, principalmente e acima de tudo, empolgante. Donos dos melhores currículos do jazz, eles tocam com a graça de jovens iniciantes. É surpreendente e comovente o misto coração e habilidade que estes cinco amigos, senhores do mais alto nível da música internacional, entregam na exuberante faixa de abertura, “Skagly”. São 10 minutos que é fácil duvidar que qualquer criatura que goste de música queira que em algum momento acabe. 

Sob a energia funk que todos conhecem e dominam, a faixa é um verdadeiro show de cada um dos participantes. Trata-se de um tema tão rico, que merece uma apreciação pormenorizada. A começar pelo autor, Hubbard. É ele quem dá as costuras altamente sofisticadas de fusion e hard bop do chorus. É ele quem estica as notas para os tons agudos, bem a seu estilo. É ele quem, com mérito, começa solando com a técnica invejável de quem tem seu nome gravado em álbuns como “Empyrean Isles”, de Hancock, “Free Jazz”, de Ornette Coleman, ou “Out to Lunch”, de Eric Dolphy. Carter: o único que não “sola”. Mas para quê? Afinal, o que o maior baixista da história do jazz faz é milagre. Quem conseguiria extrair tanta sonoridade, tanta personalidade do baixo acústico? Carter, que dispensara o baixo elétrico fazia tempo, prova por A mais B o porquê de sua escolha. Em “Skagly”, suas deliciosas ondulações e sua timbrística característica, aquela do quinteto mágico de Miles Davis e da sonoridade de Gil Scott-Heron, estão mais do que palpáveis: são uma caixa de ritmo. Só podia vir de quem já fez samba-jazz com Tom, Hermeto Pascoal e Airto Moreira.

Hancock: sabem aquelas notas que saltitam do piano em “Cantaloupe Island” e “Blid Man, Blind Man”? E a noção de ritmo repleta de groove e blues de quem contribuiu para a construção da sonoridade de gente como Miles, Shorter, Milton Nascimento, Lee Morgan e Joni Mitchell? De quem faz a improvável ligação entre Gershwin a hip hop? Pois é: Hancock em “Skagly” é tudo isso. Falemos, então, de Shorter. Bem, o que dizer de Shorter? A genialidade em forma de saxofone, a estirpe de Coltrane, a mente fusion da Weather Report, o buda do jazz, o solista incansavelmente criativo e hábil, o autor das obras-primas “Juju”, “Night Dreamer”, “Speak no Evil”? Pouco tem a se dizer e muito a aplaudir. Por fim, Williams. Este não ficou por último à toa, pois sua performance na faixa de abertura (nossa, isso, ainda é “apenas” a abertura do disco!) é, mesmo para os que sabem se tratar do, provavelmente, mais influente baterista da história do jazz, assombrosa. O que é I-S-S-O? Williams dá, literalmente, um show do início ao fim do tema, sem que isso, porém, se torne maçante ou confuso. Pelo contrário! É ele quem segura no punho o ritmo funk de cabo a rabo, mas não deixa de esmerilhar nas quebras e descidas. Quantas variações de rolos, polirritmia, mudanças de timbres! Conhecido por sua categoria nas baquetas, como as que executa em clássicos como “Maiden Voyage”, de Hancock, “Refuge”, de Andrew Hill, ou “Shhh”, de Miles, e inúmeros outros, aqui ele não economiza na explosão.

Bastaria falar apenas sobre a faixa de abertura, mas esses cinco jovens tarimbados não deixariam o ânimo cair jamais. Tanto que, na sequência, vem o sofisticado jazz bluesy “Finger Painting”, com lances modais e bopers fluindo naturalmente entre si, coisa de quem toca jazz de olhos fechados. O baixo de Carter escalona sons ondulados enquanto Shorter e Hubbard se encarregam de lançar frases em colorações medianas, Williams privilegia o tintilar dos pratos e chipô e Hancock mantém o clima onírico em notas claras e prolongadas. Em “Mutants On The Beach”, a terceira, hard-bop mais clássico e não menos gracioso, Carter novamente “carrega” no baixo, dando agora aos sopros maior amplitude para voaram com apoio do ritmo embalado marcado por Williams e Hancock. O pianista, aliás, confere dissonâncias perfeitas em seu improviso, ligando o anterior, de Hubbard, com o seguinte, de Shorter. Mas Williams estava chispando fogo como um dragão japonês, e manda ver num magnífico solo para terminar a música.

Sabe o gol de Carlos Aberto para a Seleção Brasileira sobre a Itália na final da Copa de 70? Ou a trinca “Golden Slumbers/Carry That Weight/The End” para encerrar o último disco dos Beatles, “Abbey Road”? É esta sensação que deixa “Circle”, a que finaliza o disco do “dream team” V.S.O.P. Quanta perfeição! Enigmática, é um misto de “In a Silent Way”, de Miles, com “Maiden Voyage”, com “Psalm”, de Coltrane, e mantra oriental. A melodia espiral, cadenciada pelo baixo já tradicionalmente assim de Carter, dá literalmente uma sensação de circularidade, absorvendo quem escuta numa atmosfera de vertigem. Ainda bem que se trata da menor faixa das quatro, pois se não os ouvintes entrariam em transe – se é que não entram.

Depois deste álbum japonês, a V.S.O.P. lançaria ainda apenas mais um disco também ao vivo como os dois primeiros antes de se dissolver ou transformar-se em outros projetos, visto que os integrantes seguiram contribuindo uns para os outros em vários momentos. Porém, embora a formação do grupo tenha se dado ainda nos Estados Unidos para um show quase comemorativo de músicos “envelhecidos de alta qualidade”, foi no Japão que este prosseguiu e onde se concretizou o histórico registro do quinteto em estúdio – feito que, infelizmente, nunca mais se repetirá uma vez que Hubbard faleceu em 2008. Contudo, é normal que “times dos sonhos” não permaneçam por muito tempo mesmo. A conjunção de fatores para que esse milagre ocorra é tão improvável que os deuses podem resolver que ela ocorra quando e onde menos se espera. No Japão, por exemplo. 

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FAIXAS:
1. "Skagly" (Hubbard) - 9:56
2. "Finger Painting" (Hancock) - 6:44
3. "Mutants On The Beach" (Williams) - 11:04
4. "Circe" (Shorter) - 4:30

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues


domingo, 27 de outubro de 2013

Grant Green - "Matador" (1964)


Acima, a capa original de 1964,
seguida da capa da reedição em CD
“Grant Green merece uma medalha por gravar o hit
‘My Favourite Things’ de [John Col]Trane
com o mesmo conjunto.
Mas embora o grupo se aproxime da canção
com o mesmo estilo 6/8
e da forma como Coltrane a sentia,
não a reduzem aos essenciais acordes básicos”.
Michael Cuscuna


O jornalista e crítico musical Márcio Pinheiro uma vez afirmou, com toda propriedade, que tudo o que os grandes nomes da MPB (Maria Bethânia, Caetano VelosoGilberto GilChico BuarqueGal Costa, João Donato, entre outros) produziram nos anos 70 é de ótima qualidade. É só pegar qualquer disco daquela época e ouvir que não tem erro. Infalível. Tudo favorecia para que tanta coisa boa acontecesse ao mesmo tempo e com um nível altíssimo de qualidade, o que ocorre de tempos em tempos conforme o cenário cultural, político, histórico e social de determinado local. Isso se aplica à produção de jazz norte-americana dos anos 40 a 60. Na época, gênios estavam a pleno (Miles Davis, Dizzie Gillespie, Charles Mingus, Duke Ellington), outros se estabeleciam rumo ao Olimpo (John Coltrane, Wayne Shorter, Herbie Hancock, Ornette Coleman) e, além destes, igualmente talentosos e sintonizados com aquela onda (Kenny Dorham, Joe Henderson, Lee Morgan, Freddie Hubbard, Sonny Rollins e mais centenas e centenas), não ficavam para trás em maestria e qualidade. Tudo conspirava a favor: retomada da sociedade civil no pós-Guerra; surgimento de uma nova classe afrodescendente e latina em fase de transformação sociopolítica; produções de várias lugares que se complementavam e se somavam; centros urbanos (Chicago, Nova York, Filadélfia, Los Angeles) suportando técnica e economicamente este contingente; encorpo da indústria cultural; e, o mais importante: o resultado de toda uma tradição musical, artística e antropológica trazida pelos negros da África e ressignificada na América que, agora, confluía de diversas formas e em quantidades amazônicas.

As gravadoras de jazz mantinham em seus portfólios artistas de primeira linha, mas, em especial, o Blue Note, principalmente no final dos 50 aos 60, era, esta sim, infalível. Tudo muito bom, sem exceção. A este selo pertenciam vários dos melhores jazzistas da época, e um deles era o guitarrista Grant Green. Com forte base no rhythm'n blues e com extremo domínio do bebop, além de ser também um espetacular solista em baladas, ele se junta, por força do destino, a McCoy Tyner, ao piano, Elvin Jones, bateria, e Bob Cranshaw, baixo – ou seja, trocando-se Chanshaw por Jimmy Garrison, dá a “cozinha” que gravou com Coltrane o antológico “A Love Supreme”, a segunda melhor banda de jazz de todos os tempos depois do quinteto de Miles dos anos 50, que tinha o próprio Coltrane na formação.  Com eles, lança, em 1964, um disco cuja alcunha fala por si: “Matador”. Em apenas duas sessões (uma em maio e outra e junho, apenas cinco meses antes da gravação de “A Love Supreme”), conta, além da maestria desses músicos, com a mão apurada de Rudy Van Gelder na técnica, o alemão responsável pela operação de estúdio de 90% das históricas gravações de jazz da época, que afina a mesa de som de “Matador”. Igualmente, na arte da capa – mais uma particularidade dos selos de jazz, inclusive o Blue Note, que a valorizavam tanto quanto o conteúdo –, quem empresta seus traços em um desenho a nanquim de um esboço de Green empunhando a guitarra é ninguém menos que Andy Warhol.

Se fosse só isso, já seria legal. Mas aí vem o que interessa: música. Na faixa-título, Green abre o disco fazendo soar seu tom característico de dedilhado muito limpo ao ouvido, em que desliga os graves e agudos do amplificador e dá ganho nos alto-falantes. Ele exercita seu estilo técnico e habilidoso do R&B, porém colocando sempre a expressividade acima da perícia. Isso fica claro na linda escalada progressiva dedilhada com a suavidade do blues e em todo o enredo, desenvolvido com segurança e alma pelo quarteto. Aqui já se nota a predileção pelas quartas de Tyner, que dá saltos de três intervalos maiores acima da tônica da melodia, o que surpreende e mexe com o ouvinte. Também, tem a marcação balanceada e cheia de groove de Jones. Todos cobertos pelo baixo competente de Cranshaw. Soul-jazz da melhor qualidade.

Aí, preparem-se, leitores-ouvintes, pois vem uma das peças mais lindas que o abençoado jazz já cunhou. E a ligação de Green com Coltrane aqui se faz inequívoca. Não é apenas pela parceria com seus músicos de fé nem só pela contemporaneidade de ambos (naquele início de anos 60, o saxofonista era já uma lenda e talvez o maior astro de jazz vivo então), mas também de repertório e espírito. Tanto é que Green pinçou justamente o maior sucesso comercial de
Coltrane para uma gravação baseada não na original canção popular natalina de Hammerstein II e Rodgers, mas na versão marcadamente modal e particular criada por Coltrane: a obra-prima "My Favourite Things". Retomando a estrutura e o clima da faixa que Trane gravara quatro anos antes, Green simplesmente arrasa. Tyner e Jones, que compunham a banda de Coltrane na histórica sessão de 1960 (junto com Steve Davis, no baixo), aqui, sabem exatamente o que fazer. O piano, elegante e preciso no seu jogo modal em três tempos (meio tom acima que na versão clássica e em compasso ligeiramente mais acelerado); a bateria, puro ritmo em ataques sincopados da baqueta na caixa, rolos engenhosos e combinação constantemente diferenciada de pratos/bumbo/caixa. E Green... Ah! Este exala inspiração das cordas de sua Gibson em construções ágeis e luminosas não de modo a imitar Coltrane, mas, sim, de homenageá-lo. Os três, junto com Cranshaw, alternam lances de liberdade dissonante e politonalismo que atinge por vezes um epicismo quase sinfônico tamanha a sintonia. Não é exagero dizer que esta “My Favourite Things” só não é melhor que a de Coltrane – o que, convenhamos, é quase impossível, uma vez que se está falando de algo comparável ao "Bolero", a “For no One”, à Cavalgada d’"As Valquírias” e obras desse porte.

Green, por mais apurado que seja, é muito coração, pois sua técnica está sempre a serviço de uma música o mais pura possível, como um bom blues ou gospel. Tal qual Coltrane, ele evita os clichês, flutuando com expressividade dentro das escalas. “Green Jeans” é assim. Neste hard bop modal, a ágil e criativa mão esquerda de Tyner impressiona por seu lirismo, enquanto a direita modula e mantém a tônica. Jones faz a “cama”, dando ênfase na consistência do ritmo e na continuidade através dos pratos. Mas é Green quem brilha. Apreciador de jazzistas não apenas do seu instrumento, como Charlie Christian e Jimmy Raney, mas, principalmente, dos de sopro como Coltrane, refletia diretamente em seu fraseado o estilo reed style de tocar como os mestres Miles e Charlie Parker, a quem admirava especialmente. “Green Jeans” mostra bem isso, pois há momentos em que até parece que o solo está saindo de um sax alto ágil e suingado e não de uma guitarra. Mas é. Ao invés do stacatto (quando cada nota aparece destacada da seguinte), muito usado pelos guitarristas, usa o legato, ligando as notas de suas frases à maneira de um saxofonista.

“Badouin”, repleta de enlevos, traz as influências folclóricas que faziam a cabeça dos jazzistas da época. Seu riff carrega toques orientais, árabes e africanos num uníssono agudo de guitarra e piano, enquanto a bateria marca um ritmo tribal. Era o show de Elvin Jones só começando... A manutenção Tyner com o baterista é impecável, na medida certa, jogando a luz sobre o solista, mas sem se ausentarem do foco. Green, assim, improvisa acordes circulares e, às vezes, até repetitivos e hipnóticos, como os de um encantador de serpentes. O solo de Tyner é cheio de expressividade e classe. Já a marcação pontuada de Jones nos pratos e nos ataques de baqueta à caixa, ora fortes, ora suaves, antecipam seu único solo no disco. Mas que solo! Imponente, Jones vale-se de todo seu arsenal polirrítmico, dobrando compassos, variando volumes e extensões, combinando as texturas, salpicando sonoridades africanas e latinas. Um espetáculo. Depois, só restava mesmo voltar ao chorus e encerrar a faixa.

Finalizando o disco, num compasso um pouco mais ligeiro que uma balada tradicional, “Wives and Lovers”, clássico de Burt Bacharach, que ganha a sua talvez mais radiosa e definitiva versão no jazz. Longe do standart pop cantado por Frank Sinatra (lindamente, diga-se de passagem), “Wives...” recebe aqui outra roupagem, o que lhe dá uma nova vida. É um prazer inenarrável ouvir Grant Green executando o riff com toda aquela singeleza, movimento e sensualidade, num controle total de tempos e durações. Seu improviso traz lances de redemoinhos sonoros que enredam o ouvinte e que, logo, se resolvem numa nova e engenhosa solução, fazendo a música evoluir para um hard bop não menos romântico. Tyner, impecável como sempre; Chanshaw, escalonando com elegância; e Jones, mais uma vez inteligente e fluido, segura o ritmo no chipô e na vassourinha arrastando no couro da caixa, adensando o clima sensual e etéreo.

Apenas quatro faixas (considerando que “Wives...” foi incluída na edição em CD), mas que carregam todos os predicados do alto nível do jazz que a Blue Note produziu naquela fase de ouro. E mais do que isso: um disco coirmão da obra-prima “A Love Supreme”, quase que, junto a “Crescent”, do próprio Coltrane e também daquele mesmo ano, um ensaio de luxo para o que o gênio do saxofone iria revelar meses depois e com praticamente o mesmo time na retaguarda. O que dizer, então, deste disco de Grant Green? Numa palavra: “Matador.

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FAIXAS:
1. "Matador" (Green) – 10:51
2. "My Favorite Things" (Oscar Hammerstein II, Richard Rodgers) – 10:23
3. "Green Jeans" (Green) – 9:10
4. "Bedouin" (Pearson) – 11:41
5. "Wives and Lovers" (Bacharach, David) – 9:01


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Ouça:
Grant Green Matador