Nessas
brincadeiras diletantes de criar listas sobre os mais diferentes
temas musicais nas redes sociais (10 melhores show assistido no
Teatro da Ospa, 10 melhores discos de jazz da ECM, 10 melhores
músicas contra a ditadura militar, 10
músicas chatas do Chico Buarque, 10 melhores discos de soul
music, e por aí
vai)fui
instigado a montar uma que, num primeiro momento, titubeei. “Será
que eu saberia compor uma com esse tema?”, pensei. Tratava-se
do “Melhor Disco Instrumental de Música Brasileira”. Mesmo com
meu conhecimento musical, que não é pouco, teria eu embasamento
suficiente para criar uma lista interessante e, além disso,
suficientemente informada a esse respeito? Pois, para minha própria
surpresa, a lista saiu, e bem simpática, diga-se de passagem. Além
de não se prender a um estilo musical específico (o que se chamaria
burramente de “música instrumental brasileira” pura), típico de
minha forma de enxergar a música e a arte, acredito que minha
listagem não ficou pra trás em comparação a de outros que se
empolgaram e publicaram as suas também.
Claro
que tem muita coisa que não consta na minha lista que vi na de
outros, pois certamente ainda tem muito o que se conhecer dentro do
mar de maravilhas sonoras que existe. Raul de Souza, Barrosinho, Os
Cobras, Victor Assis Brasil, Djalma Correa e Edison Machado, por
exemplo, nem cito, pois não tive o prazer ainda de conhecer seus
trabalhos a fundo ou ponto de saber selecionar-lhes um disco
representativo. Mas acho que, afora o gostoso dessa prática quase
infantil de elencar preferências, tais lacunas são justamente o
papel dessas listas: abrir novos paradigmas para que novas revelações
se deem e se passe a conhecer aquele artista ou banda que, quando se
ouve pela primeira vez, se pensa com surpresa e excitação: “Cara,
como que eu nunca tinha ouvido isso?!” Se algum dos títulos
que enumero causar essa sensação nos leitores, já cumpri meu
papel.
Aí
vão, então os meus 15 discos preferidos da música brasileira
instrumental, mais ou menos em ordem:
1 –
“Maria Fumaça”, da Banda Black Rio (1977)
2 –
“Coisas“, do Moacir Santos (1965)
3 –
“A Bed Donato”, do João Donato (1970)
4 –
“Wave”, do Tom Jobim (1967)
5 –
“Em Som Maior”, da Sambrasa Trio (1965)
6 –
“Revivendo”, do Pixinguinha e os Oito Batutas (1919-1923 –
coletânea de 1895)
7 –
“O Som”, da Meirelles e os Copa 5 (1964)
8 –
“Donato/Deodato”, do João Donato e Eumir Deodato (1973)
Tem dias que a chuva parece precipitar além do normal. E o último 14 de julho foi assim – pelo menos em Porto Alegre. Choveu 48 horas sem parar. E não era qualquer chuvinha. Era “chuva que Deus mandava”, incessante, bastante. Mas tanta água vinda do céu foi, para os mais atentos, o prenúncio de algo transcendental que aconteceria na noite deste fatídico e molhado dia. Numa homenagem ao maestro pernambucano Moarcir Santos, um dos maiores gênios da música universal dos últimos tempos, o Trio 3-63, dentro do Projeto UniMúsica 30 anos – tempomúsicapensamento, fez um inesquecível show para cerca de 400 destemidos – e abençoados – espectadores no Salão de Atos da UFRGS.
Trio 3-63: apresentação curta porém marcante
Formado pela flautista Andrea Englert, pelo pianista Paulo Braga e pelo percussionista Marcos Suzano, três feras, o Trio 3-63 destilou um show curto mas emocionante do início ao fim, onde predominou a execução perfeita, unindo técnica e alma, e, claro, a reverência a Moacir Santos, instrumentista, arranjador e compositor, autor de obras-primas da MPB, como o célebre álbum “Coisas”, de 1960, e “Opus 3 nº 1”, de 1979. Moacir, que viveu grande parte de sua vida artística nos Estados Unidos, onde é venerado, foi, ao lado de Tom Jobim e Hermeto Paschoal, o grande mestre da revolução harmônica da música brasileira moderna. Sua estética tem, com um hibridismo impressionante, toques de jazz e erudito misturados aos ritmos essencialmente brasileiros, bebendo no vasto folclore do nordeste (maracatu, coco, roda, xaxado, cantos religiosos), na tradição dos ritmos afro-brasileiros (lundu, jongo, candomblé, samba, marcha, choro, maxixe) e até caribenhos (rumba, habanera, cuban jazz). Tudo sempre com muito bom gosto e perfeição.
Marcos Suzano, fera da percussão
No show, o Trio 3-63 destilou clássicos como “Coisa nº 1”, “Paraíso” e “Outra Coisa”. Porém, fizeram mais do que isso. A começar pela inteligente incursão a obras de outros compositores influenciados e/ou influenciadores de Moacir Santos, como os “Motivos Nordestinos”, do percussionista e compositor Luiz D’Anunciação, e “A Inúbia do Cabocolinho”, do maestro e pesquisador musical Guerra-Peixe, ex-professor de Moacir nos seus primórdios tempos em Pernambuco. Nesta seara, ainda apresentaram a gostosa “Radamés y Pelé”, de Tom Jobim (homenageado que, por sua vez, homenageava, além do craque da bola, outro craque, este dos sons, Radamés Gnatali, grande influenciador da bossa nova e de Moacir), além de uma composição do próprio Paulo Braga, “Farol”, onde claramente o pianista conjuga todas essas referências.
Mas o trio guardaria ainda outras duas surpresas. Primeiro que, a certa altura, o trio passou a quinteto. Primeiramente, com a entrada no palco do multi-instrumentista Lui Coimbra, que tocou violão e cantou a suave e brejeira “A Santinha lá da Serra”, parceria de Moarcir com o poeta Vinícius de Moraes. Depois, ao cello, Lui acompanhou a banda em outra novidade do show: “The beautiful life” e “Love Go Down”, canções inéditas no Brasil resgatadas por Andrea no acervo de Moacir nos EUA.
Ao final do show, junta-se aos integrantes o cantor e percussionista Carlos Negreiros, negro alto, tipo etíope, todo de branco como que uma entidade da umbanda. Com seu bongô e sua bela voz grave, mas de refinado alcance dos agudos, cantou com os quatro “Coisa nº 8 - Navegação”, de charmosa melodia e letra poética (“Depois de tanto palmilhar/ Desvios e bifurcações/ Da proa desta embarcação/ Consigo interpretar, enfim/ A carta de navegação/ Que o mar traçou dentro de mim”), proporcionando o momento mais emocionante do show. Foi também Negreiros quem creditou a Olorum, senhor da criação e dos céus, o milagre de estarmos ali, mesmo com o toró que o próprio orixá fazia cair lá fora. Só podia ser uma mensagem divina, pois fomos, de fato, abençoados nesta noite. Por Olorum e por Moacir Santos, cuja poderosa alma estava lá também, encharcando-se de alegria e beleza como nós todos.
“Meu
som não deixa nada a desejar para o que houve,
há e haverá no
mercado musical.
Digo, repito, atesto e assino embaixo,
sem medo de
errar e sem falsa modéstia.
É muito swing, balanço, molho,
charme e malemolência,
pois nem Santo Antonio com gancho consegue
segurar,
nem o boato ou disse-me-disse de que
eu havia morrido de
desastre de moto.
Se esqueceram de uma coisa: que eu sou imorrível!”
Di Melo
Assim
como não seria exagero dizer que tudo em Seu Jorge que não é João
Nogueira é Carlos Dafé, a mesma comparação dialética serve muito
bem para outro ídolo da música brasileira da atualidade: tudo que
não é Sabotage em Criolo é Di Melo. A constatação, embora
um tanto capciosa, denota o quanto a arte musical de hoje no Brasil
anda a reboque daquilo que já foi produzido e, principalmente, o
quanto artistas do passado foram, de fato, precursores. No caso de Di
Melo, este é pioneiro de muito do que se considera “inovação”
na música brasileira de hoje e, novamente em comparação a Criolo,
a poética afiada e o ecletismo que se percebem neste último chegam
a quase parecer uma cópia.
Todo o
pioneirismo de Di Melo está, curiosamente, em apenas um disco, o
álbum homônimo produzido por ele em 1975, um marco na história da
música pop brasileira. Idolatrado por artistas como Otto, Nação Zumbi, Leo Maia, Simoninha, Max de Castro e Charles Gavin (que, como
produtor, o verteu para CD em 2004), “Di Melo” é tomado
de lendas para os apreciadores e colecionadores, assim como a própria
figura do simpático e bonachão músico pernambucano. Saído de sua
Recife natal nos anos 60 para São Paulo, onde gravou este álbum em
alto estilo, Roberto de Melo Santos é daqueles músicos cheios de
talento e criador de uma única grande obra que, com o passar do
tempo, caíram no ostracismo. Porém, como muitas vezes acontece com
artistas brasileiros esquecidos no seu próprio país, o retorno de
Di Melo à mídia tem a ver com a apreciação que veio de fora. Nos
anos 90, seu LP tornou-se sucesso entre DJ’s europeus e teve uma de
suas faixas incluída numa coletânea da gravadora norte-americana de
jazz Blue Note. O suficiente para a galera tupiniquim voltar correndo
para conhecer aquilo que desprezava. Logo “Di Melo” passou a ser
valorizado nas lojas de bolachões paulistanas até esgotar e virar
raridade no mercado negro, chegando a custar 300 Reais em média um
vinil.
Os
músicos que participaram de sua gravação dão ao disco uma aura
ainda mais épica: contou com uma cozinha com Cláudio Bertrame
(baixo), Bolão (sax), Luiz Melo (teclado), Geraldo Vespar (maestro,
arranjos e violão), José Briamonte (maestro), Waldemar Marchette
(arregimentação) e ainda participações de gente do calibre de Hermeto Paschoal nos arranjos (!) mais Heraldo Dumont, Capitão,
Ubirajara (pai do Taiguara) e até de um músico da banda de Astor
Piazzola.
Já
para com Di Melo, a falácia chegou ao nível de este ser considerado
morto após um hipotético acidente de moto. Tudo boato: Di Melo mora
no subúrbio de Recife com filha e esposa, vive da venda dos quadros
que pinta e, segundo o próprio, tem mais de 400 canções prontinhas
para serem gravadas (inclusive parcerias com Geraldo Vandré).
Dessas, as que conseguiu pôr no acetato no famoso disco de 1975 são
verdadeiras joias da música brasileira moderna, onde demonstra uma
versatilidade e um groove de deixar muito medalhão da MPB com
inveja.
“Di
Melo” começa com a gostosa “Kilariô”, um arrasador jazz-funk
com uma pitada caribenha e cuja melodia de voz é daquelas que pegam
no ouvido de cara: “Kilariô, raiou o dia/ Eu fiz chover em
minha horta/ Ai ai meu Deus do céu, como eu sofri ao ver a natureza
morta”. A voz de timbre abençoado de Di Melo, algo entre o tom
metálico de Moraes Moreira e a pronúncia aberta de Wilson Simonal,
é ainda mais realçada pelo belo sotaque pernambucano (com suas
pronúncias “holandesas” do “T” como “Tí” e do “D”
como “Dí”). Além disso, Di Melo canta ao estilo dos mestres da
soul music norte-americana, mas também referenciando-se em
artistas nordestinos como ele, desde o swing de Jackson do
Pandeiro até o vocal rasgado de Genival Lacerda.
Em
seguida, outra que vem ratificar definitivamente a veia soul:
“A vida em seus métodos diz calma“, seu maior sucesso tanto na
época quanto na sua “retomada”, visto que foi esta a faixa que
os gringos escolheram para a coletânea de “novidades” da Blue
Note. A letra, igualmente pegajosa, é um destaque, tanto pela
mensagem quanto pela melodia de voz que lhe é empregada: “A
vida em seus métodos diz calma/ Vai com calma, você vai chegar/ Se
existe desespero é contra a calma, é/ E sem ter calma nada você
vai encontrar”. Nesta fica evidente a afinação da banda e a
qualidade da produção de Zilmar R. de Araújo. Tudo certo, tudo no
lugar: o groove da batida, os timbres, a levada da guitarra, o
arranjo dos sopros.
Na
sequência, vêm três maravilhas altamente críticas à sociedade
moderna e à condição do homem oprimido pela cidade grande, algo
que a percepção de nordestino na gigantesca São Paulo ajuda a
enxergar com mais clareza. Primeiro, “Aceito tudo”, de poética
letra que remete ao modernismo e ao fraseado de um estilo musical que
ainda nem existia, o rap, visto seu jeito de cantar e organizar os
versos na melodia. Música que lembra muito a maneira de escrever e
cantar de Chico Science (até por causa do sotaque) e que
provavelmente é tudo o que Criolo sempre quis fazer: espécie de
repente moderno marcado na guitarra com letra sacaca e de sinapses
ligeiras (Aí eu pensei que ia indo caminhando mas não fui/ para
um sonho diferente que se realiza e reproduz/ E pensando fui seguindo
num caminho estreito cheio de toco/ Esqueci de lembrar de pensar que
todo penso é torto...”). No fim, desemboca em um funk
irrepreensível comandado pelos vocais espertos de Di Melo.
A
outra é mais uma pérola: "Conformopolis". Mas, peraí: essa
melodia é uma... milonga?! Sim, uma milonga, ritmo hispano-ibérico
típico do Rio Grande do Sul e dos vizinhos portenhos Uruguai e
Argentina. Esta gravação é algo sem precedente dentro da MPB fora
dos pagos gaúchos. Não eram os irmãos Ramil, não era Hartlieb,
não eram os Almôndegas nem Ellwanger. É um pernambucano em terras
paulistanas totalmente sintonizado com a arte musical – pois,
afinal, música boa não tem fronteira. Pungente, realista,
melancólica: “A cidade acorda e sai pra trabalhar/ Na mesma
rotina no mesmo lugar/ Ela então concorda que tem que parar/ Ela não
discorda que tem que mudar...”. Das grandes do disco, que já
foi motivo de Cotidianas aqui no ClyBlog.
Mais
um apelo crítico à vida maquinal e desumanizadora da sociedade
moderna, desta vez na balada marcial “Má-lida”. Os versos,
confessionais, traduzem através da repetição fonética e de
sentenças curtas o deslocamento existencial de um homem no mundo:
“Ah! tenho de pouco surrados miúdos malditos/ Fui entrelaçado
e já fui casado/ Um tanto inibido/ E pra muita gente sou um
depravado.” E completa: “Ah! julgo não ser enxerido nem
intrometido/ Tampouco ousado/ É que estou saturado de tanta má-lida/
Mesmo trabalhando como um condenado”. E os arranjos de cordas
são preciosos.
E se
pensa que as surpresas param por aí, é porque não se tem noção
do que vem a seguir. Depois de três exemplos de soul, de uma
canção mais contemplativa e de uma surpreendente milonga, Di Melo
manda ver um tango! Sim, “Sementes” é um tango, ainda mais
platino que “Conformópolis”. É nesta em que toca um dos músicos
da banda de Piazzola que Di Melo em entrevista diz não lembrar do
nome, mas que, afora esse detalhe importante, dá um show de
acordeom. Os versos acompanham a elegância dramática deste estilo
musical: “Vai, flor que se mata a espera do amanhã/ Vai,
desembaraça teu sorriso a uma irmã/ Vai, que quando passas tu
perfumas chão ardente/ Vai, que o tempo atrai de ti sua semente...”.
“Pernalonga”
retoma o swing num balanço irresistível, o mesmo com outra
ótima do disco: “Minha Estrela”, de letra romântica mas no
ritmo chacoalhante da soul. De novo, a voz variante de Di
Melo, que vai do som aberto ao aveludado, bem como a pronúncia
pernambucana, se sobressai: “Minha estrela/ Girai na noite até
o raiar do dia/ Se tiver fossa vem que eu canto a melodia/ Não quero
ver o teu sorriso magoado”. O samba-rock “Se o mundo acabasse
em mel” pode ser considerado uma "Construção" pop, porém não
narra a morte repentina de um trabalhador pobre como no clássico de Chico Buarque, mas sim de um milionário do mundo do business
publicitário. “Deu pane no nervo do cérebro/ Taquicardia e
reverbério/ Momentos trágicos, instantes sórdidos/ Tombou perplexo
em pleno orbe”. Que versos!
Bucólica,
“Alma gêmea” começa com um dedilhado de violão a la
Bach que marca sua base, acompanhado de acordes de flauta que
explicitam a tocante canção. É outra que faz lembrar bastante Moraes e Chico Science, mas também da MPB rural da época. Em
“João”, a força melódica e letrística de Di Melo volta com
tudo para uma nova análise existencial do homem, um “João”
qualquer que vive submerso nas exigências sociais (trabalho,
casamento, amigos, lazer) e naquilo que ele deve ou não ser mas que,
justamente por isso, faz com que se perca de si como indivíduo. Na
alta variedade de ritmos do disco, ele finaliza com um xote.
“Indecisão” ainda termina com versos quase proféticos vindos de
um artista que conheceria o estrelato e o ostracismo, mas que nunca
deixaria de seguir pelo caminho da música: “Tem gente que nasce
pra ter e tem gente que vem pra cantar”.
Pode-se
tranquilamente colocar “Di Melo” junto a outros grandes álbuns
da soul music brasileira como os “Tim Maia Racional”, “Pra
que vou recordar o que chorei”, de Dafé, ou “Saci Pererê”, da Black Rio. Esse sentimento é compartilhado por vários apreciadores
desta obra, o que pode ser visto no bom curta documentário “Di
Melo, O imorrível”, de Alan Oliveira e Rubens Pássaro, realizado
em 2011 e que retrata a vida do compositor hoje, relembrando
histórias, coletando depoimentos de fãs e amigos e mostrando sua
ainda tímida volta aos palcos. Oxalá Di Melo possa tornar a gravar
e, quem sabe, fazer o sucesso que lhe é cabido. Para quem já foi
dado como morto e que, de certa forma realmente “reviveu”, nada é
tão improvável assim. Certo é que sua obra, mesmo passados tantos
anos (40 anos), segue sendo cada vez mais admirada. E, afinal, como Di Melo diz
de si próprio: “Para o imorrível nada é impodível”.
“Musicalmente
falando, eu acho que o que estou fazendo é, basicamente, a
continuação de uma estética de linguagem musical que existe no
Brasil desde os anos 60 e 70, mas que de repente ficou meio esquecida
por aqui.”
Lucas Arruda
”Esse
cara é um gênio. Para mim, ele salva esse cenário supermedíocre
de hoje”.
Ed Motta
Ano
passado publiquei aqui no Clyblog uma lista dos meus melhores discos instrumentais brasileiros de todos os tempos. Salvo a minha
ignorância de não listado a obra-prima de Robson Jorge e Lincoln
Olivetti, de 1982 (menção esta aqui com a qual me sinto agora livre
do justo espancamento), um que não incluí, pois ainda não o
conhecia nem o entendia suficientemente devido à sua recência, é
“Sambadi”, de Lucas Arruda, de 2013. Considero, no
entanto, que desfaço agora duplamente a injustiça ao sagrá-lo como
um ÁLBUNS FUNDAMENTAIS, tanto por destacá-lo assim, exclusivamente,
como pelo fato de ser o álbum mais recente sobre o qual já escrevi
entre os meus mais de 40 para esta seção.
O
certo é que esse destaque não se sustenta por um sentimento de
culpa. “Sambadi” é que é muito bom. Primeiro disco deste
talentoso jovem capixaba multi-instrumentista radicado no Rio de
Janeiro, é ao mesmo tempo um trabalho autoral e raro na música
brasileira dos últimos 20 anos como também uma homenagem aos ídolos
da soul music e do samba-jazz brasileiro, forte nos anos 60 e
70 mas gradativamente desvalorizado a partir dos 80. O resultado é
um disco semi-instrumental altamente sofisticado pela habilidade de
Lucas, responsável por praticamente todos os instrumentos (a
bateria, único que ele não toca, é de seu irmão, Thiago Arruda).
As referências vão dos mestres norte-americanos Stevie Wonder,
Curtis Mayfield e George Duke aos brasileiros Tamba Trio, Azimuth,
Marcos Valle, Black Rio, Sambrasa Trio, Ed Motta, os próprios Robson
Jorge, Olivetti, entre outros dentre os que dominam o legado da MPB e
o manancial estético oferecido pelo jazz e o R&B.
“Physis”
dá a cara da abertura com uma linha de sintetizador marcando acordes
que vão e voltam, acompanhados por vocalises de Lucas. Ao fundo, um
clima muito brasileiro se forma com sons da natureza de nossa flora e
fauna. Prenúncio da brasilidade que se sentirá fortemente a partir
dali. Sem dar tempo de respirar, a primeira faixa emenda com “Tamba”,
um samba-funk gostoso e sofisticado no qual Lucas manda ver em
lindos improvisos de seus teclados (piano, Fender Rhodes e
sintetizador). Nos tons médios, a guitarra, numa levada de mexer o
esqueleto, sustenta a base junto com o Rhodes e a batida sincopada da
caixa, enquanto o baixo e o bumbo mantém a seção grave. Afora a
visível homenagem ao famoso trio de bossa-jazz dos anos 60 comandado
pelo pianista Luiz Eça, a sonoridade remete mesmo durante todo o
disco fortemente à Azimuth, outra grande banda da mistura de jazz e
MPB, porém esta, já setentista, com o espírito fusion de
então.
Aliás,
a arquitetura timbrística de “Sambadi” respira o tempo todo a
Rio de Janeiro e a essa atmosfera da Azimuth, e isso por dois
motivos. Primeiro, pelo arranjo e produção serem do próprio Lucas
Arruda, que encerra todas as músicas do disco dentro do mesmo
conceito sonoro: bateria e/ou percussão e/ou programação de ritmo
(uma ou duas juntas no máximo), guitarra, baixo, piano elétrico e
sintetizador ou Fender Rhodes. Fora um ou outro instrumento ocasional
(cavaquinho, violão) ou voz, as texturas do disco são
permanentemente essas, o que lhe dá bastante coesão. E essa
sonoridade é muito Azimith, principalmente no mitológico "Light as a Feather", de 1979, porém adicionando a isso a limpidez dos estúdios digitais de hoje. Segundo: quem executa tudo é apenas um
músico: o próprio autor – fora a bateria, que também vêm de
alguém do sangue Arruda. E com tamanho talento, tudo funciona
redondinho. “Batuque” (outra referência a seus mestres, nesse
caso, o clássico “Batucada Surgiu”, dos irmãos Valle, de 1967)
acelera o ritmo mas mantém a mesma malemolência e elegância. Na
percussão, além da bateria, um agogô joga o ouvinte pra dentro de
um terreiro de samba. Nesta, Lucas investe em solos não só de seus
teclados, mas também da guitarra, tudo sob uma linha de baixo 4/4
maravilhosa a laRon Carter que lembra as realizadas pelo
baixista norte-americano nas memoráveis gravações com os
brasileiros Airto Moreira, Tom Jobim e Hermeto Paschoal.
A
black music ganha um preito especial em “Who’s that Lady”,
de autoria de O'Kelly Isley, do grupo soul norte-americano
Isley Brothers, das poucas cantadas do disco. Clima sensual e
charmoso nesse AOR que podia rodar em qualquer rádio retrô tipo
Continental que os desavisados achariam que foi gravada nos anos 70.
Sem percussão, apenas no piano elétrico e sintetizador, “Rio
Afternoon”, na sequência, é quase uma vinheta atmosférica como a
inicial “Physis”, demarcando agora o começo de uma nova seção
do disco, como se o CD tivesse o lado B do vinil. Essa segunda parte
começa com a também curta “Na Feira”, um baião hi-tech,
provando o quanto Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira são sofisticados.
Tudo
isso faz cama para a excepcional faixa-título em seus cerca de cinco
minutos de puro desenvolvimento de solos e perícia nas linhas de
base. O espírito nordestino se mantém na marcação metálica de um
triângulo, que vem com os keyboards espaciais do Rhodes e uma
rica linha de guitarra ao estilo Nile Rodgers. Uma programação
eletrônica, associada à bateria e a percussões, aponta o ritmo. O
baixo, entretanto, é um destaque à parte, denotando o quanto Lucas
é ouvinte atento de suas fontes. Com uma letra quase incidental, ele
canta versos que mais fazem dar sentido melódico à ideia de “samba
de” (“Sambadi balada/sambadi quebrada/ sambadi embolada/
sambadi linha do mar...") do que para inventar poesia. A
melodia, swingada e requintada, algo entre o samba e o funk, dá
espaço tanto para os solos quanto para floreios dos instrumentos,
principalmente da guitarra e do Rhodes.
Outra
aberta lembrança à Azimuth, “Carnival” (alusão à “Jazz
Carnival”, sucesso da banda de José Roberto Bertrami) põe ainda
mais groove no samba. Já “Alma Nova” faz cair novamente o
ritmo para aclimatar uma bela bossa-nova romântica, a última com
letra de verdade. Lucas canta com leveza e afinação sobre uma
batida de violão sincopada, característica do estilo, somada a um
acompanhamento na bateria do irmão Thiago digno de um Milton Banana
ou um João Palma. O piano e o Rhodes estão ali funcionando no
arranjo como integradores da faixa ao restante do repertório mesmo
com a estética distinta que a bossa-nova impõe. Para arrematar, uma
nova sequência de “Tamba”, finalizando o álbum novamente com um
instrumental de alto virtuosismo.
Festejado
por gente do calibre de Ed Motta, por quem a admiração é
recíproca, o surgimento de Lucas Arruda vem como um raiar de
esperança na música brasileira contemporânea tão infestada pelo
medíocre, conformada com o mediano e, quando melhor que isso, ainda
ditada por artistas de gerações (bem) anteriores. Ironicamente, o
que acontece com Lucas Arruda é a repetição do que muitas vezes já
se viu em terras tupiniquins: seu trabalho foi apreciado antes no
exterior (no caso dele, Europa e Japão) para depois receber atenção
aqui. Pouca, diga-se de passagem. E se a galera da MPB pós-bossa-bova
está toda na faixa dos 70 anos, o aparecimento de um guri de apenas
32 de idade (30 quando gravou “Sambadi”) é no mínimo alentador.
Com uma estreia luminosa como essa isso se torna ainda mais
promissor. Neste sentido, não parece coincidência que seu novo CD,
lançado em março desse ano (novamente primeiro no exterior) traga
um título consideravelmente simbólico: “Solar”.
Lucas Arruda - Sambadi(Radio Edit)
**************
FAIXAS:
1.
Physis - 1:15
2.
Tamba, Pt. 1 - 7:10
3.
Batuque - 5:38
4. Who's That Lady (O'Kelly Isley) - 3:40
5. Rio
Afternoon - 1:37
6. Na
Feira - 1:29
7.
Sambadi - 5:18
8.
Carnival - 3:30
9.
Alma Nova (Arruda/Fabricio Di Monaco) - 5:33
10.
Tamba, Pt. 2 - 4:41
todas
as composições de autoria de Lucas Arruda, exceto indicadas.