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quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Gal Costa - "Recanto" (2012)



Cantar, Recantar

“Quando eu subo no palco,
com esse som, os músicos, o repertório,
 com tudo que ele representa pra mim e pras pessoas,
é uma emoção muito forte.
É como uma entidade que me toma, me arrebata. É o meu momento e também
é meu encontro com Caetano,
que sempre gera alguma coisa forte, big-bang.
Gal Costa




Caetano Veloso lança seu melhor disco desde os anos 70. Ops! Ato falho. Desculpem: não foi ele, e sim a também baiana, também tropicalista, também cantora Gal Costa com o CD “Recanto”, certamente seu melhor trabalho desde “Cantar”, de 1974. Porém, meu engano não foi em vão: assim como o mencionado LP dos anos 70, marcante obra do tropicalismo a qual Caetano dirigira e dera o norte de todo o trabalho, este novo projeto repete a fórmula engendrada pela dupla: Gal pondo seu belo canto a serviço de uma ideia coesa e verdadeira e Caetano com a batuta, produzindo e concebendo.

As semelhanças vão além do formato, uma vez que, a princípio, o colorido e tropical “Cantar” – cujo repertório inclui, entre outros compositores, quatro canções de Caetano –, parece não ter nada a ver com o obscuro e ruidoso “Recanto”, totalmente construído com novas composições do “mano Caetano”. “Recanto Escuro” (assista ao vídeo abaixo), sua mais nova obra-prima – que entra para o time de “Sampa”, “Gema” e “Trilhos Urbanos” – abre o disco dando o tom soturno e introspectivo que perfará boa parte do restante do disco. Uma melodia quase invariável, bela e triste, sem refrão. Seca. Letra de reflexão, de lamento, como que ecoada de um recanto escuro de onde saem confissões vasculhadas na alma tanto dele quanto dela. Mas o que poderia ser feito só ao violão e voz, ganha, no arranjo eletrônico e texturado de Kassin, uma cara de peça da vanguarda erudita, um Stockhausen, um Xenakis, um Varèse. Absolutamente genial!

O tom de vanguarda, ora com ares de Velvet Underground, ora Brian Eno, ora Silver Apples, perpassa todo o disco, dando-lhe um caráter moderno e duro, que responde ao estilo introspectivo da maioria de suas faixas, como o rock “Cara do Mundo”, a bossa-modernista “Autotune Auterótico” e a genial eletro-monofonia “Neguinho”, um Nine Inch Nails menos pesado mas tão corrosivo quanto que remete também ao krautrock de Neu! e Faust. Clima sujo que encaixa totalmente com a letra, mordaz e ferina. Caetano solta o verbo com sentenças como: “Neguinho compra 3 TVs de plasma, um carro GPS e acha que é feliz”, ou ainda: “Neguinho quer justiça e harmonia para se possível todo mundo. mas a neurose de neguinho vem e estraga tudo”. No rim.

Belas também a bossa com pitadas eletrônicas, “Mansidão”, a mais “Gal” de todas, e “Segunda”, um xote só ao cello e prato de cozinha, totalmente acústico. Mas outra surpreendente é “Miami Maculelê”, um funk carioca estilizado na qual o ouvido apurado de Caetano consegue extrair uma das coisas que sempre me chamaram atenção neste estilo dito vulgar e pobre musicalmente, que é a intenção de abrasileirar o ritmo estrangeiro. O funk carioca não é só a batida funkeada do rap, pois contém, no repique da batida, uma pitada de samba, o que, nessa salada toda, acaba por remeter aos sons e danças africanos e indígenas da raiz brasileira, uma embolada, um coco, um batuque, um... maculelê.

As referências ao período heroico da MPB não ficam só em Gal, mas em Caetano e na Tropicália como um todo. E é aí que se dão as semelhanças entre o histórico “Cantar” e o atual “Recanto”. Se antes Rogério Duprat ou Guilherme Araújo eram os maestros que davam corpo aos arranjos, agora é o jovem Kassin (ao lado da banda escolhida por Caetano: Pedro Baby, guitarras, e Domenico, bateria e eletrônicos,) que destila seus computadores para cumprir esta função. Outra autoreferência está em “Tudo Dói”, que dialoga com "Lindoneia", do Tropicália 1 (1967) ao transmitir o mesmo sentimento de depressão de uma mulher solitária (não sem querer, “Lindoneia” também tinha sido dada a uma intérprete, Nara Leão).

À época do lançamento, notou-se certo furor quanto a este Caetano rocker e tecnológico, que, desta vez, não se concretizaram em críticas, mas em elogios. Um pouco porque, com Gal interpretando tão bem, obviamente, os méritos são muito dela. Porém, novamente parece que Caetano nada de novo contra a corrente, pois até mesmo os que elogiaram, acostumados a criticá-lo sem fundamento, não parecem saber por que o fazem, uma vez que estranham algo que não é de hoje, basta ter um pouquinho de interesse – ou coragem. A parceria com Kassin, por exemplo, vem desde o pouco comentado “Eu não peço desculpa”, dele e de Jorge Mautner (2002). A veia experimental e vanguardista, igualmente, vem desde o concretista “Araçá Azul” (1972) e está claramente em músicas como a parafraseada “Doideca” (brincadeira com o termo “dodeca-fonia”), do CD “Livro” (1997), ou no “Rap Popcreto”, do Tropicália 2 (1993).

O fato é que “Recanto” é demais. Certa vez, outro colaborador deste blog, Lúcio Agacê, ponderou algo com certa razão. Para ele, o fato de a “finada” Gal voltar dando um salto tão grande diante daquilo que vinha produzindo se deve exclusivamente a Caetano, alguém que, além de um amigo generoso, é alguém que está sempre se renovando. Se comparado com a fraca Gal que veio degringolado nos anos 80 e se instaurou na mediocridade nos 90, isso é plenamente verdade. Mas tropicalista é tropicalista. E se compará-la àqueles seus primeiros idos, “Gal” (1969), “Fa-Tal” (1971), “Índia” (1973) e, principalmente, “Cantar”, seu ápice, a musicalidade não está muito diferente. Mais avançada em certos aspectos, menos explosiva do que antes, mais high-tech em texturas; porém a Gal de “Recanto” recupera a daquela época - mesmo com quase 40 anos de atraso.

Num ano de 2012 que teve um ótimo Chico Buarque, um surpreendente Criolo e um elogiado Lenine, também houve uma nova Gal recantando-se. Antes tarde do que nunca.


"Recanto Escuro" - Gal Costa

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FAIXAS:

1. Recanto Escuro - 3:51
2. Cara do Mundo - 2:52
3. Autotune Autoerótico - 3:40
4. Tudo Dói - 2:41
5. Neguinho - 5:35
6. O Menino - 4:28
7. Madre Deus - 3:35
8. Mansidão - 3:32
9. Sexo e Dinheiro - 3:40
10. Miami Maculelê - 4:06
11. Segunda - 3:49
todas as composições de Caetano Veloso
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Baixe e ouça:



sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Gal Costa – Turnê “Estratosférica” – Auditório Araújo Vianna – Porto Alegre/RS (02/10/2015)




Divina e maravilhosa.
Sinceramente pensei que havíamos perdido Gal Costa. Por quase duas décadas, ela, uma das maiores cantoras do Brasil e do mundo havia se afundado numa fase obscura de falta de criatividade e trabalhos opacos que nem a voz cristalina conseguia impulsionar. Parcerias ruins, projetos mal elaborados, repertórios duvidosos, ações de marketing ineficientes. Tudo contribuía para pior a ponto de quase tirar o brilho da intérprete de tantas glórias e êxitos. Porém, em 2012, renascida das cinzas, Gal Costa chama o “mano” Caetano Veloso para exorcizar seus demônios e lança o “divisor de águas” "Recanto", no qual não só retoma uma série de referências que havia deixado no passado quanto, obviamente, se ergue de novo musicalmente.
Não é mesmo à toa que “Recanto” tenha esse título, pois de fato a partir dele tudo mudou para Maria da Graça Costa Penna Burgos, que completa louváveis 50 anos de carreira em 2015. E uma das mostras dessa mudança para melhor é o novo CD “Estratosférica”, cuja turnê passou por Porto Alegre numa memorável apresentação da baiana e sua banda de jovens rapazes. Aliás, a nova geração é que, sob a batuta dessa experiente cantora, dá o tom dos novos trabalho e show. A começar pela direção musical, a cargo de Pupilo (Nação Zumbi), certamente responsável em boa parte pelo tom de rock do show. Igualmente, o repertório é recheado de canções de compositores de agora, como Mallu Magalhães, Marcelo Camelo, Criolo, Zeca Veloso (sim, filho de Caetano!) e Alberto Continentino.
Maravilhosamente bem iluminado e com uma Gal em boa forma física e principalmente vocal, “Estratosférica” é uma aula de construção de repertório e conceito de espetáculo. Mesclando as novas músicas com sucessos e clássicos da carreira, Gal não faz apenas o que se espera como, assim, reassume a função que sempre foi sua desde que se tornou a revolucionária resistente do tropicalismo e a dona de hits incontestes das rádios: a de servir de canal transformador entre o novo e o tradicional na música brasileira. Afinal, foi ela uma das principais responsáveis por gravar, nos anos 60 e 70, os então jovens Caetano, Gilberto GilTom ZéJards Macalé, Luiz Melodia, Jorge Ben e vários outros. stoneano “Sem medo nem esperança”, música do novato Arthur Nogueira com poesia do veterano Antonio Cícero dando o recado pela intérprete: “Nada do que fiz/ Por mais feliz/ Está à altura/ Do que há por fazer” (assim é que nós gostamos de ver, Gal!). Esta emenda com “Mal Secreto”, de Jards e Waly Salomão, gravada por ela no histórico “Fa-Tal” ou “Gal a Todo Vapor”, de 1971. Voltando mais no tempo, Gal revive o ápice do tropicalismo com “Namorinho de Portão”, de Tom Zé, que ganha arranjo tão parecido com o de 1969 que a guitarra de Guilherme Monteiro soa até com aquele distorcido rasgado de Lanny Gordin. Grande momento.
Gal e sua excelente banda.
Nessa linha, o show começa detonando com o rockzão
Como todo bom concerto de rock, a base harmônica está na guitarra, que ganha ora peso ora groove, auxiliado pela bateria de Thomas Harres, pelo baixo de Fábio Sá e, principalmente, pelos teclados do ótimo Maurício Fleury, ora modernos ora retrô-psicodélicos, servindo como elemento climático e de textura. Soa assim a versão de outro clássico, “Não Identificado”, de Caetano, cujos efeitos do sintetizador cobrem muito bem a orquestração intensa e espacial de Rogério Duprat da original. “Pérola Negra”, de Melodia, é outra das antigas que conquista o público. As canções novas não deixam, no entanto, nada a dever para as já consagradas. É o caso de “Quando você olha pra ela”, gostoso samba-rock assinado por Mallu com cara do melhor Jorge Ben: melodia suingada, linha vocal assimétrica e a docilidade romântica de uma “Ive Brussel” e “Moça”. Aliás, Benjor é reverenciado mais de uma vez: primeiro numa embasbacante “Cabelo”, parceria com Arnaldo Antunes que ganha arranjo de funk-rock pesado, tipo Parlaiment/Funkadelic (o que é aquilo!). Lá no fim, Babulina volta em alto estilo para encerrar o show com uma improvável (mas maravilhosa) "Os Alquimistas Estão Chegando", misto de indie e samba-soul (o que é aquilo, de novo!).
Voltando às novas, ainda surpreendem a doce bossa-nova “Pelo fio”, de Camelo, com ares de Carlos Lyra ou Ronaldo Bôscoli; “Ecstasy”, joia nova de João Donato e Thalma de Freitas; a interessante faixa-título, de Maria Poças, Romário Oliveira Jr. e Barreto; e, principalmente, a genial “Por baixo”, um malicioso baião eletrônico de Tom Zé encomendado pela conterrânea: “Por baixo do vestido: a timidez/ Baixo da timidez: a seda fina/ Baixo dela: uma nuvem de calor/ Baixo de calor: um perfume da China...”. Ainda, a bela “Você me deu”, de Caetano e seu filho Zeca, revisitando o conceito de “Recanto”; “Muita Sorte", última música escrita pelo saudoso Lincoln Olivetti (morto em 2014), "Amor, Se Acalme" (de Marisa Monte, Arnaldo e Cezar Menezes); a sensorial “Anuviar”, de Moreno Veloso e Domenico; e a rica “Dez Anjos”, parceria de Criolo e Milton Nascimento, também feita especialmente para Gal. Aliás, para abrilhantar a noite no Araújo Vianna, Bituca, na cidade para um show que faria dali a dois dias, foi prestigiar a amiga.
Como nos velhos tempos, voz e violão.
O clima especial de quem está reverenciando sua própria obra faz com que a artista passe por pontos importantes, e Caetano está presente aí novamente. Além de ser personagem fundamental no resgate da companheira de Doces Bárbaros e o único a ter quatro composições no set-list, é dele ainda outro feito: a primeira canção gravada por Gal (ainda como Maria da Graça), “Sim, Foi Você”, em 1965. Para tocá-la, a própria volta a empunhar o violão, numa das horas emocionantes do show.
A pulsante “Casca” (Jonas Sá e Alberto Continentino), das melhores do show e que novamente remete ao tom kratrock de “Recanto”, fecha muito bem com o hino “Cartão Postal”, de Rita Lee e Paulo Coelho, resgatada com muita sensibilidade por Gal. É o que acontece também com “Arara”, de Lulu Santos, e no desbundante blues de “Como 2 e 2”, em que a cantora repete a performance que faz com que sua interpretação seja tão definitiva quanto a de Roberto Carlos. Por falar em Roberto, é a parceria dele com Erasmo Carlos escrita em homenagem à própria em 1969, o sucesso “Meu nome é Gal”, que fecha o show no bis. Ainda teria mais um impressionante arranjo, este para o samba dor-de-cotovelo de Lupicínio Rodrigues “Vingança”, que vira um bolero modernista, para encanto dos gaúchos.

Foi mais um show deste histórico momento de comemorações de 50 anos de carreira e/ou de 70 anos de idade, aos quais já presenciei de dois anos para cá de Caetano e Gil (tanto juntos quanto separadamente), Milton, Maria Bethânia e da norte-americana Meredith Monk. Ou seja: a celebração de uma geração que, na faixa ou acima dos 70 anos (ponham-se aí os Rolling StonesPaul McCartneyStevie WonderBob Dylan e outros precursores), ainda nos tem muito para dizer. E Gal, para sorte de todos, voltou ao time de forma inteira. Total. Legal. Fa-tal. Estratosférica.





quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Sá & Guarabyra - “Pirão de Peixe com Pimenta” (1977)



“Apesar de carioca,
sempre tive uma ‘visão exterior’
ligada ao resto do Brasil.
Meus pais viajavam muito
pelos interiores de Minas, São Paulo e Rio,
e isso, junto com as viagens que fiz com Guarabyra
ao então ignoto e isolado sertão do São Francisco,
me deram o necessário banho-Brasil.
Hoje sou um anel carioca folheado a sertão.”

“Concordo.
E concordo também com a crítica
que acha que outros é que são (risos)."
Guarabyra,
sobre a crítica considerar “Pirão de Peixe com Pimenta”
o melhor disco da dupla


Era começo de 1978, eu recém tinha passado no vestibular. Estava feliz porque tinha entrado no Jornalismo de primeira depois de “matar” o cursinho no sentido de que ia às aulas, mas sentava na última fila, onde se juntavam os malucos, baderneiros e afins. O mês era janeiro, tava um calorão e fui no Zaffari Ipiranga comprar uns discos (é, na época tinha discos pra vender no Zaffari: “economizar é comprar bem”). Dei de cara com um que tinha ouvido no rádio – 1120 Continental, por supuesto – e tinha gostado da música. Se chamava “Pirão de Peixe com Pimenta”, da dupla Sá & Guarabyra. Acompanhava os caras desde os tempos do rock rural que tinha eles mais o Zé Rodrix e do lendário jingle da Pepsi (“Hoje existe tanta gente que quer nos modificar...”). Dei uma ouvida e comprei sem pestanejar. Pois este disco me acompanha desde aquele tempo e é um dos meus discos favoritos.

A aventura musical começa com “Sobradinho”, música deles, talvez uma das primeiras a falar dos desmandos do poder público quando resolve que destruir a natureza é mais importante do que preservá-la. E a letra é explícita desde o começo: “O homem chega/ já desfaz a natureza/ tira gente põe represa/ diz que tudo vai mudar... E passo a passo vai cumprindo a profecia do beato/ que dizia que o sertão ia alagar/ O sertão vai virar mar/ dá no coração/O medo que algum dia o Mar também vire sertão... Remanso, Casa Nova, Sento Sé, Pilão Arcado, Sobradinho, Adeus, Adeus”. Preocupações ecológicas numa roupagem rock rural e a harmônica do mestre Maurício Einhorn percorrendo a canção. Grande sucesso na época, que só foi ofuscado na fase “Roque Santeiro” da dupla.

“Marimbondo”, uma parceria de Xico Sá com Marlui Miranda, bem ao estilo onomatopaico da cantora. “Marimbondo vem fazer sua casa/ em minha asa, za za/Sai azar marimbondo”. A banda base composta por Sérgio Caffa ao piano, Sérgio Magrão (Ex-O Terço, atual 14 Bis) no baixo, Luis Moreno na bateria e Chico Batera na percussão segura todas, enquanto os violões e as violas caipiras de Sá e Guarabyra encontram o bandolim de Quinintinho de Pirapora. No final, o narrador diz ao marimbondo que não pode fazer sua casa lá porque “Eu já sou torto e solto/ e não posso te morar/ ou vai curtir a bananeira/ que tem eira, eira, eira e eu/ não tenho eira nem beira não/ tenho eira nem beira”. Viagens de Xico e Marlui que S&G tornam palatáveis e, especialmente, audíveis.

Nesta fase, Sá e Guarabyra andavam muito curtindo o interior de Minas Gerais e da Bahia, e isso se reflete nas canções. “Trem de Pirapora” faz a defesa da vida interiorana: “O trem de Pirapora já passou por essa pont / perdido em Montes Claros/ achado em Belo Horizonte/ pirapora preta, preta barranqueira/ luz acesa até altas horas da noite... cadeira na calçada fugiu pra dentro de casa/ da porta entreaberta espreita a cara zangada...”. O arranjo de Nelson Ângelo valoriza as flautas de Paulo Jobim, Danilo Caymmi, Franklin e Paulo Guimarães e as cordas no final.

“João Sem Terra” toca no drama dos imigrantes e dos sem-terra numa levada sertanejo roqueira. “Desde pequeno me chamam/ desde pequeno me chamam/ João Sem Terra/ Filho de um sol estrangeiro/ que acabou me renegando/ fico onde chego primeiro/ João Sem Terra”. A questão de quem chega numa terra desconhecida é bem explorada pela dupla sem cair num rame-rame político-ideológico. Lá pelas tantas, a letra diz: “ter de se andar para frente/ sem olhar atrás o que se deixou/ não se deseja o pior inimigo/ tão sujo presente... ter de lembrar todo o dia/ o medo que te fez deixar teu chão/ nem ao pior inimigo/ se quer tão amarga recordação”. A dupla diz tudo e capta bem o sentimento do imigrante e do sem terra. Grande música.

Pra fechar o lado 1 do LP, vem a faixa-título, que dá água na boca só de ouvir: “Carne de Sol, pirão de peixe com pimenta/ e uma boa Januária completando a refeição/ dizendo assim até parece que é mentira/ de Sá & Guarabyra / coisa da imaginação...”. Com um arranjo do mestre Rogério Duprat, a canção vira uma grande celebração num coreto qualquer do interior do Brasil, com direito a bandinha. E esta comilança toda fica lá. Tanto que S&G ficam muito saudosos e dizem: “Eh parada em Carinhanha/ Eh Zé Sales nosso irmão/ Eh Ranchão de CorrentinA/ Eh paizinho de alemão/ vamos voltar no próximo verão/ O Quincas nos espera pra inauguração”. Uma delícia de canção.

Abrindo o Lado 2, tem “Coração de Maçã”, uma metáfora da busca do amor. “Coração de maçã/ uma fruta aqui dentro do peito/ que vive não fala/ tomada de horror/ pelos mistérios do mundo exterior”. Nela, se destaca o piano de Caffa, que percorre a canção enquanto os violões da dupla se misturam com as flautas de Paulo Guimarães e do lendário Copinha, arranjadas por Guarabyra e Duprat. E este coração vive um amor ardente: “Coração de maçã/ lutando contra o verão que queima este corpo/ febre equatorial/ bicho de amor/ Coração de maçã/ fechado e guardado espera/ o sangue vermelho e novo/ da primavera/ pra que possa dar sua flor”. Pelo jeito, tanto Sá quanto Guarabyra tiveram problemas com as garotas com coração de maçã.

O experimento musical mais ousado do disco vem com “Cinamomo”, que tem o baixo de Sérgio Magrão dando o tom e a flauta de Paulo Guimarães e as marimbas de Chico Batera ajudando a criar um clima. A experimentação também se dá na letra, uma poesia com jeito concretista, brincando com as sílabas: “Farta fumaceira/ faz este vapor/ moça marinheira/ quem é teu amor/ nos cabelos belos bibelôs/ nos cabelos bibelôs/ E um cinamo ci ci cinamomo/ E um cinamomo”. Deve se destacar também o piano elétrico de Caffa, que faz harmonias dissonantes.

Depois, vem outro sucesso do disco, a popular “Espanhola”, gravada por eles antes de estourar com Flávio Venturini, o autor da música junto com Guarabyra. Esta versão traz uma banda completamente diferente: Cartier no viola elétrica de 12 cordas; Burnier no violão; Gilson ao piano; Fernando Leporace no baixo; e Nonato na bateria mais o arranjo maravilhoso de cordas de Eduardo Souto Neto. A dupla só canta nesta linda canção que muita gente conhece, mas deveria ouvir esta linda versão. “Por quantas vezes/ eu andei mentindo/ só por não poder/ te ver chorando/ te amo espanhola/ te amo espanhola/ se vais chorar/ Te amo”. Vale a pena conferir.

O momento mais divertido do disco vem a seguir com “Canção dos Piratas”. O arranjo de Eduardo Souto Neto agora se utiliza dos metais com trompas, trombones e tuba pra dar um ar de trilha sonora de filme de pirata. E a letra é divertida: “Hoje o tempo parece tranquilo/uma brisa soprada de leve/ ahey, ahey/ Hoje o mar mais parece um espelho/ refletindo bonecos de neve/ ahey, ahey/ Diz o capitão que amanhã de manhã/ se continuar esta viração/ nós vamos chegar no mar do Japão”. Os backing vocals de Lizzie Bravo, Rosana, Ismail, Betinho e Didito ajudam S&G a dar o recado na canção, que tem o arranjo mais rebuscado de todo o disco.

“Pirão de Peixe com Pimenta” termina com uma canção linda que remete aos passeios no interior do Brasil, onde se pode ver a “Água Corrente”, pura e cristalina (ou pelo menos se podia naquela época). A banda está reduzida ao máximo com Sá na viola caipira, bandolim e guitarra slide; Guarabyra no violão; Sérgio Caffa ao piano; Sergio Magrão no baixo e Moreno na bateria. A letra é tão bonita que foi reproduzi-la inteira: “Água corrente, pedra rolante/ desce contigo o meu coração/ leito de rio, esconderijo e doce, doce prisão/ Deixa eu molhar minha voz e repetir a canção/ Água corrente, pedra redonda/ Onde os segredos se vão afogar/ Leva a saudade pra quem te espera longe/junto do mar/ Que nenhum desvio te possa deter/ por entre os barrancos/ palavras de amor/ lá se vão na corrente”. Linda canção, que encerra este disco e que tem um quê de country rock, o irmão americano do rock rural brasileiro.

Sou fã desta dupla e dois anos depois eles lançaram mais um disco muito bom e que, em breve vai estar aqui chamado “Quatro”. Mas isso é outra história.
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FAIXAS:
1. Sobradinho  
2. Marimbondo (Xico Sá/Marlui Miranda)
3. Trem De Pirapora      
4. João-Sem-Terra         
5. Pirão De Peixe Com Pimenta               
6. Coração De Maçã      
7.  Cinamomo   
8. Espanhola (Flávio Venturini/Guarabyra)
9. Canção Dos Piratas   
10. Água Corrente

todas as composições de autoria de Sá/Guarabyra, exceto indicadas.
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OUÇA O DISCO




quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Gal Costa - "Legal" (1970)

 

“Entramos em campo com o que tínhamos na mão. Gal já era a maior cantora do Brasil naquele momento e esse trabalho foi muito especial, pois nós juntamos os melhores músicos da época, como Chiquinho de Moraes e Lanny Gordin. A gente procurou pensar que tínhamos que fazer o melhor naquele clima de ditadura militar: Caetano e Gil exilados, a Copa do Mundo em cima, uma confusão danada. E fizemos o nosso trabalho".  
Jards Macalé

“Genial, contemporâneo e perturbador”. 
Assucena Assucena, da banda As Bahias e a Cozinha Mineira, sobre “Legal”

Ao mesmo tempo em que começa a se tornar cada vez mais comum ver os ídolos brasileiros da geração dos anos 50/60 se irem, caso de João Gilberto, Sérgio Ricardo, Moraes MoreiraLuiz Melodia e, mais recentemente, Gerson King Combo, em contrapartida, é uma enorme satisfação presenciar estas mesmas figuras referenciais chegarem à idade avançada. É mais do que só um motivo de comemoração, e sim de emoção. Caso da "água viva" da MPB: Gal Costa, que, mais do que viva, está operante e produzindo muito bem, obrigado. Gal chega aos 75 anos de idade e 55 de carreira celebrada como uma das maiores vozes do Brasil, posto que ocupa desde os anos 60 quando, junto com Gilberto Gil, Caetano Veloso, Tom Zé, Mutantes e toda a turma da Tropicália, revolucionou a musica brasileira para sempre. Parte dessa revolução, contudo, está de aniversario junto com ela: o genial disco da artista “Legal”, de 1970, que completa 50 anos de lançamento.

O contexto no qual o lançamento de “Legal” ocorreu, no entanto, não foi nada festivo. O que faz aumentar ainda mais seus méritos. AI5 em vigor há pouco mais de um ano; Caê e Gil exilados em Londres; Allende eleito no Chile; Seleção de Pelé e Jairzinho fazendo a alegria do povo; Estados Unidos bombardeando o Vietnã; Roberto Carlos tornando-se um rei “adulto”. Tudo isso sob a capa negra da “linha dura” da Ditadura Militar, que reprimia, perseguia, sequestrava, torturava e matava. Afora esta pior parte das violações à liberdade imposta pela ditadura, a repressão recaía, em maior ou menor grau, sobre qualquer um que se opusesse ao Estado. Para isso, os militares contavam, inclusive, com o policiamento da própria sociedade civil. Gal, que permaneceu no Brasil com a missão de manter tesa a sina do tropicalismo, não o fez sem vigília ou pressões. Ela conta que chegou, àquela época, a ser quase linchada em praça pública por "cidadãos do bem", que a viam como uma hippie subversiva e comunista. Afinal, pensar definitivamente não é um atributo de quem domina pela força.

Gal em 1970: cabelos repartidos
ao meio em novo visual, que
inspirou Oiticica
Toda essa brutal condição de medo e tensão – mas também de orgulhos e belezas inexoráveis – era despejada imediatamente na musica de Gal, e “Legal” é o seu álbum que melhor sintetiza esse momento. Amplificando a psicodelia e a postura rebelde dos seus trabalhos imediatamente anteriores, de 1968 e 1969, Gal vinha para não fazer concessões. Agora, ela explodia. A doce cantora que começara a carreira seguindo o estilo cool da bossa nova de João Gilberto agora soltava a voz da maneira mais aguerrida como jamais havia feito até então. Estridente, raivosa, intensa, provocadora - mas também doce quando quer. Com o auxílio nos arranjos e na banda dos igualmente arrojados Lanny Gordin – o histórico guitarrista inglês da Tropicália responsável aqui também pelas ensandecidas guitarras do disco – e do "maldito" Jards Macalé – antecipando o que este faria dois anos depois noutro LP clássico da música brasileira, “Transa”, de Caetano –, a “divina maravilhosa” baiana torna-se, agora, “terrível”. É com o então recente sucesso de Roberto que ela, num arranjo monstruoso, inicia o disco. Se “Eu Sou Terrível” soava como um ato de rebeldia na voz do seu careta autor, na de Gal, transformava-se num manifesto anti-ditadura. Na boca dela, versos como: "Estou com a razão no que digo" ou "Não tenho medo nem do perigo" significavam muito mais do que a mera e ingênua afirmação sexista da original. Ressignificadas, as palavras querem dizer, sem hesitação: "Não adianta me perseguir, que sou mais forte que vocês" e "vocês é que devem ter medo de mim".

E Gal tinha urgência. O rock com influências soul dessa indignada Etta James dos trópicos tem nos sopros arranjados por Chiquinho de Moraes e na guitarra rascante de Lanny a velocidade certa para acompanhar a cantora. Ou seja: com muita rapidez! Os garotos que andavam ao seu lado tinham certeza que ela andava mesmo apressada. Em resposta, a banda pratica o que em teoria musical se chama de “antecipação”, quando se encurta o tempo entre os acordes e joga-se uma nota estranha à harmonia, a qual, se verá logo em seguida que pertence ao acorde seguinte. Se Gal havia permanecido no Brasil, sua terra, ouvi-la dizer “Eu corro mesmo aqui no chão” fazia realmente muito sentido.

Se “Legal” começa assim, mostrando que não veio para brincadeira, o negócio era prender o fôlego e acostumar-se, pois seria assim até a última rotação da agulha no sulco. Em novo recado pros militares, Gal manda na sequência “Língua do Pe”, do exilado Gil. Já que o parceiro não podia como ela estar no seu próprio país, Gal dava um jeito de materializá-lo. Um novo rock se anuncia... só que não! Subvertendo a si mesma, de repente, a música torna-se um xaxado “pé de serra” animado no melhor estilo Luiz Gonzaga: zabumba, triângulo e sanfona. A letra, cifrada, tirava um sarro dos milicos: “Garanto que você/ Nãpão vapai não vai/ Compomprepeenpendeper/ Bulhufas”. Não compreenderam bulhufas, mesmo.

Não precisa mais do que duas faixas pra se notar que “Legal”, contrariamente ao vocábulo, não se presta a ser nada amigável com os hipócritas devotos da moral e dos bons costumes. De pura ironia e musicalidade, “Love, Try And Die”, este Broadway jazz chistoso tem a luxuosa participação de dois mitos da música pop brasileira: o jovem Tim Maia, que recém havia lançado seu exitoso disco de estreia, e de Erasmo Carlos, que, na direção oposta do pop romântico de Roberto no pós-Jovem Guarda, corajosamente alinhava-se aos tropicalistas. Autoria de Gal com seus fiéis escudeiros Macalé e Lanny, lembra a invencionice transgressora de "Cinderella Rockfella", de Rogério Duprat com os Mutantes, de 1968, e a galhofa que os próprios Roberto e Erasmo criariam em 1971 com a canção "I Love You", o solfejo tropicalista de RC.

Novos petardos: uma versão futurista de “Acauã”, de Zé Dantas, reafirmando a cultura do Nordeste como desde o início propôs o tropicalismo. A pegada regionalista, contudo, vem empunhando uma peixeira como Lampião. Inversamente a “Língua do Pe”, que inicia rocker e depois alivia, aqui é o folk regional que prevalece até boa parte da faixa, mas que ganha uma reviravolta para um baião-heavy de dar inveja a qualquer guitar band enfezada. Bem que dava para desconfiar quando Gal, no começo da música, calmamente entoa os versos: “Teu canto é penoso e faz medo/ Te cala, acauã/ Que é pra chuva voltar cedo”.

Mais uma inédita de Gil: a psycho-bossa “Mini-Mistério”. Uma só dele seria pouco pra confrontar os militares. E se “Língua do Pe” soa quase anedótica, o recado desta é bem mais direto: "Compre, olhe/ Vire e mexa/ Não custa nada/ Só lhe custa a vida". Ou que tal isso aqui?: “Procure conhecer melhor/ O cemitério do Caju/ Procure conhecer melhor/ Sobre a Santíssima Trindade/ Procure conhecer melhor/ Becos da tristíssima cidade/ Procure compreender melhor/ Filmes de suspense e de terror”. E Gal, que não tinha medo nem de filmes de suspense e de terror, repete ostensivamente a última palavra: “Terror, terror, terror, terror”. Afinal, este era o melhor termo para definir o sentimento que tomava conta daquele Brasil de terríveis minimistérios: delações, perseguições, olhos vigiando por todos os cantos, amigos presos, “amigos sumindo, assim, pra nunca mais”. Sob um suingue jazzístico acachapante, Gal ainda aconselha: “Ande muito/ Veja tudo/ Não diga nada/ Além de dois minutos”.

Gal e Macalé: alta qualidade musical contra a repressão

Jards, totalmente presente na concepção do disco, vem com outras duas suas. Primeiro, a emblemática e não menos provocativa “Hotel das Estrelas” (“No fundo do peito esse fruto/ Apodrecendo a cada dentada/ Mas isso faz muito tempo...”), que o próprio gravaria apenas dois anos depois em seu primeiro álbum solo. Interpretação tristonha e sensual de Gal na primeira parte, quando um blues jazzístico. Mas o andamento é bem mais variante que isso, e a banda acelera o ritmo para entrar numa soul quase gospel e, daí, voltar novamente à melancolia. Um arraso! De Jards e de Duda Mendonça também é o falso jazz “The Archaic Lonely Star Blues”. Falso até no idioma, pois, iniciando com versos em inglês, envereda, em seguida, para um samba-canção em que Gal deita e rola na interpretação sob o arranjo de cordas primoroso de Chiquinho de Moraes.

Transgressão pouca era bobagem para a combativa Gal. Ela guardava ainda mais munição em sua metralhadora sonora e poética. E, como as canções de Gil, vinham encomendadas também da Inglaterra as do mano Caetano. Primeiro, a carnavalesca “Deixa Sangrar”, cujo duplo sentido do título, obviamente, não é mera coincidência: “Deixa o coração bater, se despedaçar/ Chora depois, mas agora deixa sangrar/ Deixa o carnaval passar”. Alguma semelhança com a situação política de então? Neste aspecto, “Legal” ainda se beneficia pelo fato de ter sido lançado logo após o endurecimento da ditadura, ainda muito mais preocupada em reprimir a luta armada do que necessariamente censurar músicas – isso, até perceberam em seguida que o “perigo” era justamente a junção dos dois. Talvez por isso (e pela letra em inglês, esta na totalidade) tenha-se liberado “London London”, o tristonho canto de exílio de Caetano que atravessou o Atlântico trazendo ao Brasil os gélidos ventos do Velho Mundo poucos meses depois do próprio autor tê-la gravado no seu álbum londrino. Nesta rumba desenhada pela guitarra de Lanny e uma gaita de boca bem rithum n’ blues, toda a estridência que domina boa parte do disco dá lugar de vez à cantora melodiosa e de profundo apuro técnico. 

Igual à matadora versão de “Falsa Baiana”, reduzindo de vez o compasso em alta voltagem que havia iniciado o disco lá em “Eu Sou Terrível”. Bossa nova pura. Leve e melodiosa. Um contraste tremendo com o fervente início do disco. Os distraídos podem até achar que se trata de uma contradição por não perceberam mais uma ironia. “Falsa baiana” não é necessariamente aquela que "requebra direitinho", mas a que, contrariando a pecha de um povo "preguiçoso" e "acomodado", se levanta contra a atrocidade humana. Fora isso, Gal, saudavelmente apressada de novo, antecipa justamente seu mestre João Gilberto, que gravaria este samba de Geraldo Pereira somente três anos depois em semelhantes moldes.

Arte de Oiticica completa, com as
duas faces: capa e contracapa
A capa, autoria do célebre artista visual Helio Oiticica – pivô acidental no episódio da boate Sucata motivador da expulsão de Caetano e Gil do Brasil meses antes – emula o policulturalismo da capa clássica de "Sgt. Peppers", dos Beatles, ao reproduzir diversas fotos de referências constituidoras daquela proposta de obra. No entanto, além das diferentes figuras – por exemplo, Elis Regina, James Dean e a Marcha dos 100 Mil no lugar de Bob Dylan, Marylin Monroe e Karl Marx –, a arte de Oiticica direciona incisivamente esta intenção ao impregnar essas imagens fragmentadas nos cabelos de Gal (visual trazido de Londres, de onde ela recentemente viera de uma viagem) e cuja metade do rosto se agiganta em relação a todo o resto. O mundo pertence a ela, esta Medusa empoderada e resistente. Metáfora cortante de um álbum que cumpre a corajosa missão de falar por todos os exilados, os de fora e os de dentro do país. Se as vozes restavam sufocadas pelo poder das armas, havia a de Gal para representar-lhes. E acelerada, atenta e forte, sem tempo de temer a morte. Em “Legal”, como nunca ela foi porta-voz de toda uma geração. E quanta voz tem essa (verdadeira) baiana para portar!


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Gal Costa cantando "Acauã", programa Ensaio (1970)


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FAIXAS:
1. “Eu Sou Terrível” (Erasmo Carlos, Roberto Carlos) - 2:30
2. “Lingua Do P” (Gilberto Gil) - 3:40
3. “Love, Try And Die” (Gal Costa, Jards Macalé, Lanny Gordin) - 2:23 – partic.: Tim Maia e Erasmo Carlos
4. “Mini-Mistério” (Gil) - 4:16
5. “Acauã” (Zé Dantas) - 2:49
6. “Hotel Das Estrelas” (Duda Machado, Jards Macalé) - 4:22
7. “Deixa Sangrar” (Caetano Veloso) - 2:53
8. “The Archaic Lonely Star Blues” (Duda, Macalé) - 3:03
9. “London, London” (Caetano) - 4:00
10. “Falsa Baiana” (Geraldo Pereira) - 2:11


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OUÇA O DISCO:

Daniel Rodrigues

terça-feira, 31 de março de 2015

Exposição “Plásticas Sonoras”, de Walter Smetak – Galeria Solar Ferrão – Salvador/BA (3/3/2015)




"Um homem chegado de terras longínquas,
aqui plantou raízes, a compor, a tocar,
 a inventar instrumentos, misto de músico e escultor,
de filósofo e profeta,
uma das figuras mais extraordinárias da arte brasileira."
Jorge Amado

Sou um descompositor contemporâneo.”
Walter Smetak




Uma das coisas que mais queria ver quando fosse a Salvador, se esta ainda estivesse lá, era a exposição de obras de um cara que tenho grande admiração: Walter Smetak. O gênio da música microtonal que, a partir de uma obra pautada pela originalidade, didática e hermetismo, abriu caminho para toda a música moderna brasileira, influenciando e ensinando diretamente figuras como Caetano VelosoGilberto GilTom ZéRogério DupratRogário Duarte, Walter Franco, Gereba, Marco Antônio Guimarães, entre outros.

Já apreciador de sua música e trajetória (gravou dois discos: “Smetak”, de 1973, produzido por Caetano e Roberto Santana, e “Interregno”, com o Conjunto de Microtone, de 1980), em 2008, conheci em São Paulo sua neta, Jessica, jornalista como eu com quem estabeleci saudável amizade. No final do ano passado, no que confirmei minha ida à Terra de Todos os Santos , prontamente me comuniquei com ela para perguntar-lhe se ainda se mantinham em exposição as obras de seu avô. Um agravável “sim” recebi como resposta, indicando que o material se encontrava na Galeria Solar Ferrão, em pleno Pelourinho – quadras adiante de onde Leocádia e eu nos instalaríamos.

O Solar em si já é uma atração: um casarão construído entre o fim do século XVII e início do XVIII (tombado pelo IPHAN em 1938) sem os rebuscamentos da arquitetura colonial mas exuberante em dimensões: quatro andares com longas salas e um terraço, um subsolo e um pátio traseiro. Este abrigava três ricas exposições: a de arte africana (do colecionador italiano Claudio Masella), outra de arte sacra (de acervo pertencente ao artista plástico e também colecionador baiano Abelardo Rodrigues) e a terceira, a que eu tanto ansiava ver: “Plásticas Sonoras”, de Smetak.

Anton Walter Smetak, ou somente “Tak Tak” – como era apelidado por Gil devido à sua postura séria de educador europeu, mas também numa alusão onomatopeica à sua procedência da terra dos relógios –, era violoncelista, compositor, inventor de instrumentos musicais, escultor e escritor nascido em Zurique em 1913. Fugido da 2ª Guerra, veio parar no Brasil nos anos 30. Sua primeira cidade foi, por essas coincidências da vida, a minha Porto Alegre, tendo atuado como professor da recém-inaugurada faculdade de música da Universidade Federal do RS. Também na capital gaúcha, formou o Trio Schübert, juntamente com outros dois músicos de descendência europeia como ele, grupo de câmara com o qual se apresentava na antiga rádio Farroupilha. Trocando informações com sua neta tempo atrás, soube que ela estava escrevendo um livro sobre o avô (“Smetak: Som e Espírito”) e me prontifiquei a pesquisar alguma coisa nos arquivos do Museu de Comunicação Social Hipólito da Costa, aqui em Porto Alegre. Achei alguns anúncios da programação da rádio em que o Trio Schübert se apresentava em exemplares do jornal Correio do Povo de 1937. Embora pequena, minha contribuição foi parar no livro como bem podem ver.

Porém, como disse, minha contribuição foi pequena. Só podia, pois Smetak, depois de uma passagem pelo Rio de Janeiro iniciada em 1941, encontrou-se como cidadão e pessoa no destino seguinte: Salvador. Lá, a partir de 1950, casou-se, formou família e estabeleceu residência (até sua morte, em 1984). Profissionalmente, passou a integrar a Orquestra Sinfônica da Universidade da Bahia, onde também lecionava música. Em um período de forte impulso à cultura em Salvador, artistas do teatro, cinema, dança, artes visuais e, claro, música, surgiam de todas as partes incentivados pelos programas públicos. E a ida de Smetak para lá, a convite do maestro alemão Hans Joachim Koellheutter, foi de uma química inusitadamente acertada.

Adaptado ao clima, à cultura, ao misticismo e às gentes da Bahia, Smetak achou na calorosa Salvador um terreno fértil para expandir sua carga erudita a serviço de uma nova visão musical-espiritual. Volta-se para o experimentalismo, numa pesquisa que chamava de “Iniciação pelo Som”, sob o impacto de estudos realizados na Eubiose – corrente teosófica dedicada à ciência da vida focada na evolução humana, levando em conta os planos espirituais da mente. Passa a investigar o silêncio (tal como fizera John Cage), o som (a exemplo dos modernistas da vanguarda europeia) e as suas relações com o homem (numa visão que trazia para reflexão a cultura milenar oriental).

Na sala/galpão que recebe da Universidade, já nos anos 60, monta uma oficina de ideias e objetos. É quando, para encontrar esse “novo som”, passa a criar instrumentos, intitulados, justamente, de “Plásticas Sonoras”. Para construí-las, Smetak empregou cabaças, madeira, cordas, tubos de PVC, latas e qualquer material que estivesse a seu alcance. Particularmente, acho maravilhosas essas composições plásticas de Smetak, uma vez que unem com muita propriedade e conhecimento o equilíbrio físico e espiritual que o autor buscava, com uma precisão digna de um relojoeiro suíço, a uma brasilidade profunda pela utilização de materiais típicos da natureza local com outros reciclados (olha aí a mentalidade sustentável de Smetak 40 anos antes de isso virar moda).

Além dessa fusão tão distinta e original entre velho e novo nundos, as Plásticas Sonoras, engenhocas de utilização não apenas visual mas prática, ainda me impressionam por outro motivo: o bom humor. Vindo de um homem refugiado de sua terra-natal, desbravador de um país distante do seu, tanto em quilômetros quanto em emotividade, e cuja formação foi pautada na rigidez do ensino europeu do início do século XIX, não seria de estranhar que essas obras transmitissem certo grau de amargura ou secura. Pelo contrário. Smetak, eterno subversor da arte, na Bahia, reinventou a si através da música. Ele uniu os microtons (comuns na tradição musical de países orientais), Stockhausen, Cage, Ives e Obuhov e seu arsenal bachiano às sonoridades e harmonias folclóricas brasileiras, buscando nisso produzir uma música que ampliasse as percepções humanas a caminho de um autoconhecimento amplo da alma. Algo de um exotismo e imparidade apenas reduzidos pela larga aplicabilidade pedagógica que teve. As Plásticas Sonoras, assim, são uma extensão de sua música e filosofia, o que fica evidente nos títulos das peças: “Mulher faladora movida pelo vento”, “Mr. Play-Back”, “Caossonância”, “Piston Cretino”. De um humor que muito tupiniquim “original” não teria.

Se a Tropicália mudou a música brasileira no final do século XIX, reverenciando as dissonâncias agradáveis da bossa-nova e o legado tonal dos sambistas antigos, foi o lado avant-garde aprendido com Walter Smetak que deu lastro para a ligação da Tropicália com o modernismo, concretismo, neoconstrutivismo e atonalismo. Não foi a orquestração de George Martin nem o exemplo composicional engenhoso de Lennon/McCartney (pelo menos, não apenas). É Smetak que está fortemente nos arranjos de Duprat, na divisão harmônica de Tom Zé, no ”canto-de-ruídos guturais” de Caetano (como definiu Augusto de Campos), na ênfase minimalista do Uakati, no atonalismo de Walter Franco, na aproximação Brasil-Japão de “"Refazenda"-Refavela” de Gil. Este último, sabiamente como lhe é de costume, bem definiu a amplitude da obra do mestre e irmão: “Smetak é um mergulhador de excelente performance e vários records de profundidade no oceano da Dúvida”.

"Música dos Mendigos"- Walter Smetak

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"Plásticas Sonoras", de Walter Smetak
onde: Galeria Solar Ferrão (R. Gregório de Matos, 45, Pelourinho, Salvador/BA)
quando: Sábados, domingos e feriados, das 12h às 17h
visitação: terça a sexta, de 12h às 18h
entrada: gratuita



Anjo-soprador

Bicéfalo

Biflauta

Bimono

Caossonância

Chori-viola

Metástase

Mulher faladora
movida pelo vento

O Peixe

Pindorama

Piston cretino

Reta na curva

São Jorge Tibetano

Vidas I, II e III