Há algum tempo atrás fui assistir a uma apresentação "despretensiosa" em um domingo de manhã no Parque Farroupilha, em Porto Alegre, de Paulinho da Viola e surpreendentemente, pra mim que já tinha visto U2, Madonna, Cure ao vivo, aquele pequeno show superou em qualidade estes de monstros do pop rock, os quais aprecio muitíssimo. O show do sambista brasiliero só veio a ser superado na minha avaliação, pelo do Pearl Jam em Porto Alegre em 2005. Nem gostava tanto dos caras na época mas fui ver só porque há tempos não havia um show grande em POA e aquela era uma oportunidade, e, NOSSA!, o Pearl Jam destruiu! Quase pôs a baixo o Gigantinho. Um repertório consagrado e de tirar o fôlego, com uma intensidade, vibração e garra que foram de arrepiar, incrementado pela participação de Marky Ramone tocando bateria em "I believe in miracle" dos próprios Ramones. Aquilo foi quase inacreditável.
E eis que na última sexta-feira o Peral Jam perdeu o seu trono!
Sempre tivera grande expectativa para ver ao vivo o Kraftwerk, mas às vezes, a própria expectativa exagerada frustra. Que nada!!! Kraftwerk ao vivo foi tudo o que eu imaginava, queria ver e ouvir ( e + um pouco ainda!).
Pra quem acha que um show do Kraftwerk não passa de quatro caras parados mexendo nos seus laptops com programações pré-gravadas e com um monte imagens passando num telão ao fundo, não nota, com certeza, a profundidade, a penetração, o trabalho de composições que são preciosas e elaboradas, e que são executadas AO VIVO (sim) com a precisão de um relógio, de uma máquina, que é exatamente o conceito com o qual o grupo trabalha, e que é lógico, traz bases pré-gavadas também, mas até mesmo o próprio Radiohead que viria depois apresentava este recurso também. As imagens projetadas, por sua vez, são parte componente do espetáculo, uma vez que estão sincronizadas às letras, a ruidos, às batidas de forma ativa e integrada e se por uma lado, não se vê uma performance ativa e vibrante dos membros da banda, o contexto visual o faz por eles. E é essa a idéia!
"The Man Machine" na abertura já sai dando esse recado: nós somos "homens-máquina", e daí pra frente são só clássicos e composições geniais. "Radioactivity" destruidora com seu conceito RADIO-RADIOATIVIDADE-ENERGIA perfeitamente integrado em som, imagem e performance, "Trans-Europe Express" emenda "Metal on Metal" em outra seqüência de arrepiar, "Aerodynamic" como parte de "Tour de France" trouxe fotos antigas e trechos de filmes antigos da volta ciclística da França, que interagiam admiravelmente com a música. "Showroom Dummies" cantada em francês virou "Les Manequins" e completou o passeio musical de moda e estilo da banda com "The Model".
Depois de um intervalinho em que a banda sai do palco, eles retornam em roupas com detalhes fosfluorescentes lembrando o visual do disco "Electric Café" e, acabam o show exatamente com uma música deste álbum, "Music Non Stop", como sempre toda misturada com "Boing Boom Tschak" e Technopop".
A propósito deste intervalo, todo mundo está careca de saber que em algum momento os robôs vão ser colocados no palco e vão se mover naquela espécie de balé mecânico, mas é sempre uma expectativa vê-los e é um barato quando eles substituem a banda no palco durante "Robots", pelo tempo suficiente para aquela pausinha para a água. Afinal de contas, eles também são gente. (?)
1. Nem com o Cure que é minha banda do coração fiquei tão REPLETO quanto, agora, assistindo ao show do Kraftwerk.
2. Felizmente cheguei ao Sambódromo já ao final do show do Los Hermanos e só tive que agüentar duas músicas. Nossa! Eles me impressionaram! São muito PIORES do que pareciam.
É muito ruim!
3. Minha intenção antes de ver o show dos alemães era a de ficar mais um pouco no show do Radiohead, pelo menos pra ver os caras tocando "Creep", mas acabando o show dos "robôs", me pergunta se eu, com a alma cheia, vou ficar vendo Radiohead? Quem vê Kraftwerk não fica pra ver Radiohead.
4. Não fui o único a ir embora. É lógico que não esvaziou o local, não ficou às moscas, mas notei pelos menos umas 50, 60 pessoas indo embora. Outros que, como eu, não precisavam de mais nada.
5. Todo mundo sabe da influência do Kraftwerk para a música eletrônica em geral, mas por esses dias, vendo as publicações que faziam referência ao show, li algumas manifestações impressionantes, mas que não ficam muito longe da verdade, como por exemplo que o Kraftwerk seria possivelmente a banda mais influentes do século passado ao lado apenas dos Beatles e também li que figuraria entre as cinco maiores bandas de pop/rock de todos os tempos. Exagero? Provavelmente não.
6. Complemento dizendo que na minha opinião a música do Kraftwerk é a continuidade da tradição alemã de música clássica representada por nomes como Händel, Bach, Orff entre outros, tendo dado o passo adiante em modernidade que é necessário em todas as épocas, para todas as artes, em todas as culturas, fazendo a interação de linguagens como a arquitetura, as artes-plásticas, o design e a tecnologia alemãs, traduzindo todos estes elementos em MÚSICA.
"O Kraftwerk é tão influente quanto os Beatles na música popular na segunda metade do século XX."
Eles são uma espécie de últimos herdeiros da tradição musical alemã. Filhos indiretos de Schubert, Bach e Beethoven. Representam ainda hoje um patamar elevado de vanguarda, experimentação, originalidade e ousadia no que diz respeito a método e técnica, e de concretismo e minimalismo no tocante à linguagem; sem renegar, contudo, sua evidente influência da música clássica, na qual sempre mantém um pezinho mesmo quando levam sua sonoridade industrial aos limites.
O Kraftwerk, especialmente nos anos 70, tratou de 'humanizar" sons mecânicos, industriais, tecnológicos e dar vida ao que não tinha som até então. E que ironia, logo eles com seu aspecto, comportamento e sonoridade quase mecânicos.
Foi assim com "Radio-Activity", álbum conceitual, todo concebido a partir do tema básico ENERGIA. Ela e seus usos, resultados, reflexos e consequências, sendo explorados em todas as suas formas e meios de emissão, propagação, produção, etc. "Radio-Activity" vai de ondas de rádio a materiais radioativos; de simples sinais sonoros a energia nuclear. A genial abertura, por exemplo, é um contador geiger que aproximando-se da fonte de radiação, acelera seu sinal e por fim incorpora-se à percussão da faixa-título, "Radioactivity".
As composições minimalistas e mais ritmadas que nos álbuns anteriores, inserem perfeitamente o disco no contexto pré-punk da metade dos anos 70. "Airwaves", uma das melhores, é exemplo evidente da proposta e daquele panorama musical. Acelerada, palpitante, com um ritmo mais agressivo e constante.
Já "Radioland", antecipa a tendência dark do início dos anos 80 com uma batida marcada e ôca; soturna e sombria.
Faixas como "News" e "Radio Stars", podem ser subestimadas numa primeira audição, parecer meros ruídos ou repetições cansativas, mas se bem ouvidas e analisadas com a devida atenção, revelam uma musicalidade muito peculiar, só que nós, meros mortais (excessivamente humanos) não teríamos descoberto isso sozinhos até que alguém resolvesse chamar de música.
Ainda a se destacar a ótima "Antenna" com sua levada mais elétrica, também já influenciada pelos punks precoces, e a derradeira "Ohm Sweet Ohm", mais uma homenagem ao rádio, numa melodia que cresce de um ritmo melancólico a um final grandioso.
A capa é outro elemento interessante: além do nome dúbio (rádio + atividade), a arte é de uma simplicidade e de uma genialidade admiráveis. Uma frente de rádio antigo na capa, e na contra, a parte de trás do aparelho. Só isso. E precisava mais? Tecnologia, energia, evolução, modernidade, comunicação, música... tudo ali. Imagens que valem por muitas palavras e suscitam inúmeros sons.
O mais incrível é, hoje, a gente ouvir qualquer coisa, não apenas da cena eletrônica mas mesmo do universo pop e rock e ver que ali tem Kraftwerk; desde um conceito, um ruído, uma base, um sampler, uma ideia. Talvez só encontremos tamanha evidente influência no universo pop-rock com os Beatles.
Kraftwerk está em tudo!
Tem uma cena do filme “The Last Waltz” (“O Último Concerto de Rock” no
Brasil), de Martin Scorsese, que define o irlandês Van Morrison, autor do disco que é um dos favoritos totais aqui da
casa: “Into the Music”, de 1979.
Após cantar seu sucesso “Caravan” com The Band, o guitarrista do grupo, Robbie
Robertson, olha para a plateia e diz: “Van the Man”. É exatamente isso que Van
Morrison é: THE MAN! Um irlandês baixinho, arretado, irritado, brigão, xarope,
malão mesmo. Mas quando compõe e abre a boca pra cantar, todo mundo esquece
estas “qualidades” e se delicia com a música em estado puro que se derrama
daquele corpinho. Mas nem sempre foi assim.
Durante os anos 60, ele surgiu liderando o grupo Them, que fez muito
sucesso com “Gloria”. Quando o empresário começou a dar palpites, Van partiu
pra carreira solo, que começou lá em cima com o cultuado "Astral Weeks", em 1968,
e seguiu com "Moondance", dois anos depois
(ambos perfilados aqui no blog como ÁLBUNS FUNDAMENTAIS). Na segunda
metade dos anos 70, entretanto, ele passava por um momento de reflexão profunda
da sua carreira musical e se voltando – como todo irlandês, aliás – para a
religião e o amor a Deus. Após gravar “Veedon Fleece”, em 1974, ficou três anos
fora dos estúdios e dos palcos. Ao voltar, fez um disco chamado “A Period of Transition”,
que era exatamente isso. No ano seguinte, ensaiou uma volta à velha forma com
“Wavelength”, mas ainda não era aquele disco que se esperava de uma figura
mítica como ele. Isto só aconteceu em 1979 com “Into the Music”, não por acaso
uma brincadeira e trocadilho com uma de suas canções mais conhecidas, “Into the
Mystic”. Ao lado de seu fiel escudeiro, o baixista David Hayes, mais a
violinista Tony Marcus e a dupla extraordinária Pee Wee Ellis (ex-James Brown)
no saxofone e Mark Isham nos trompetes, teclados e arranjos, entre outros, Van
reuniu um grupo de canções que louvam a Deus, ao poder curador da música e, é
claro, às mulheres, todas embaladas em blues,
folk, R&B, soul e muito mais.
Tudo começa com “Bright Side of the Road”, um country com levada R&B, onde brilham a harmônica de Van, o
violino de Marcus e os backing vocals
de Katie Kissoon. Na letra, Van diz à mulher amada que “Do final escuro da rua/ ao lado iluminado da estrada/ seremos amantes
novamente/ no lado iluminado da estrada/ Querida vem comigo/ me ajuda a
repartir este peso?”.
Ao começar o disco com um discurso “profano”, Van se retrata com “o
homem” em “Full Force Gale” cantando: “Como
uma tempestade a toda força/ eu fui erguido novamente/ eu fui erguido pelo
Senhor/ E não importa por onde eu ande/ Vou encontrar meu caminho de volta pra
casa/ Vou sempre voltar para o Senhor”. Esta letra de entrega à religião é
carregada pela slide guitar de Ry Cooder e o naipe de sopros fazendo aquele clima soul music.
Em “Steppin' Out Queen”, Van volta a conversar com uma mulher afirmando
que ela pode “Passar seu batom/ se
maquiar/ Às vezes você está vivendo num sonho/ e então cai fora rainha”. Na
verdade, Van quer convencê-la a “vir para
o jardim e olhar as flores”, ao invés de sair pra rua. O naipe de sopros
toca um tema irresistível, daqueles de ficar assobiando o dia inteiro.
“Troubadours” traz o penny
whistle (flautim irlandês) de Robin Williamson, um dos fundadores da
Incredible String Band. Van fala sobre os trovadores e sua música que “trazia as pessoas que vem de longe e vem de
perto/ para ouvir os trovadores”. Mais adiante, afirma que “eles vem cantando canções de amor e cavalheirismo
dos tempos antigos”. Ellis e Isham também ganham solos nesta canção, que
trata do poder curativo da música.
Já “Rolling Hills” traz a influência da música celta que Van ouviu a
vida inteira em Belfast. E volta o discurso místico: “Entre as colinas ondulantes/ Eu vivo minha vida com ele/ Oh eu vivo
minha vida com ele/ entre as colinas ondulantes/ Eu leio minha Bíblia quieto/
Oh eu leio minha Bíblia quieto/ entre as colinas ondulantes”.
Pra fechar o Lado 1, um exemplo bem claro do que se poderia chamar de soul music na versão de Van Morrison:
“You Make Me Feel So Free”. Como as letras são ambíguas durante todo o disco,
Van pode estar se referindo a uma mulher ou à música: “Algumas pessoas passam a vida correndo em círculos/ sempre atrás de um
pássaro exótico/ eu prefiro gastar meu tempo apenas ouvindo algo muito
especial/ que nunca ouvi/ Gosto de ter uma canção nova pra cantar, outro show
ou algum lugar totalmente diferente para ficar/ mas baby, você me faz sentir
muito livre”. Quem é “baby”? A
música, uma mulher, o Deus? Faça sua escolha. O saxofonista Pee Wee Ellis deve
ter lembrado dos seus tempos com os JBs, pois seu solo tem todas aquelas
características dos melhores trabalhos de James Brown. E o pianista Mark Jordan
brinca com o jazz de New Orleans e a sonoridade de Professor Longhair e Dr.
John.
Abrindo o lado 2 do LP, mais uma ode, agora explícita, a uma mulher,
“Angeliou”, um anjo em forma de fêmea. O encontro aconteceu “no mês de maio/ na cidade de Paris”.
Tony Marcus faz misérias com seu mandolin e violino, enquanto Mark Jordan faz
um tema ao piano que lembra aquelas peças para cravo de Bach. Ao abrir seu
coração para Angeliou, ele afirma que “caminhando
numa rua quem poderia imaginar que seria tocado por uma total estranha, não eu/
Mas quando você veio até a mim aquele dia e contou sua história/ Lembrou muito
de mim mesmo/ Não foi o que você disse mas a maneira como pareceu a mim/ sobre
uma busca e uma jornada como a minha”. Nesta canção, Van faz o que se
tornou uma marca registrada de suas interpretações, o ad-lib ou a improvisação em cima da letra e do tema da música, bem
ao estilo jazzístico, mudando o andamento e o tempo. À medida que avança,
“Angeliou” vai se transformando numa balada R&B.
Este estilo interpretativo chega ao auge na próxima música, “And the
Healing Has Begun”. O título diz tudo: “E a cura começou”. A cura através da
música. Com a batida de Peter van Hooke beirando a soul music e a violinista Tony Marcus tomando as rédeas dos solos
nas suas mãos, Van se transporta a um nirvana musical cantando: “Quando você escuta a música tocando sua
alma/ E sente em seu coração e cresce e cresce/ E vem daquele rock and roll das ruas e a cura começou”. E se sua
cura não começar ao ouvir esta música, pode crer que está muito doente!
Depois deste orgasmo musical, Van, expert
em dinâmica de um disco, baixa a bola. Tudo recomeça com a única música que não
foi composta por ele neste disco: “It's All in the Game”, que ganhou letra de
Carl Sigman em 1951 em cima de uma melodia composta 40 anos antes por Charles
Dawes, que foi vice-presidente dos Estados Unidos. Foi sucesso pop no final dos
anos 50 com Tommy Edwards, um cantor de R&B. A curiosidade é que Van usa
esta canção como um veículo para desaguar em outra composição sua, “You Know
What They're Writing About”. Esta sim explicando a quem porventura não tenha
entendido ainda o poder mágico da música e suas curas. Ele abre esta canção
sussurrando: “Você sabe sobre o que eles
estão compondo/ É uma coisa chamada amor através dos tempos/ Te faz ter vontade
de chorar às vezes/ Te faz ter vontade de deitar e morrer às vezes/ Te anima às
vezes/ Mas quando tu entendes, te levanta o astral”. No final, os sopros de
Pee Wee Ellis e Mark Isham fazem um tema, enquanto Van canta “quero te encontrar/ você está aí?”. O
resto da banda se esbalda até a canção ir morrendo aos poucos.
Um final apoteótico para “Into the Music” que, segundo ele, representa
a volta à música. Esta busca incessante de Van Morrison pelo amor da musa, por
Deus e pela cura dos males através da música continua até hoje. Recentemente,
ele lançou um disco cujo título diz absolutamente tudo: “Born to Sing: No Plan
B”, ou seja, “Nascido para cantar: sem Plano B”.
*****************
FAIXAS:
1. "Bright Side
of the Road" – 3:47
2. "Full Force
Gale" – 3:14
3. "Stepping Out
Queen" – 5:28
4. "Troubadours"
– 4:41
5. "Rolling
Hills" – 2:53
6. "You Make Me
Feel So Free" – 4:09
7. "Angeliou"
– 6:48
8. "And the
Healing Has Begun" – 7:59
9. "It's All In
The Game" (Charles Dawes/Carl Sigman) – 4:39
10. "You Know
What They're Writing About" – 6:10
todas as composições de autoria
de Van Morrison, exceto indicada
“Meu
som não deixa nada a desejar para o que houve,
há e haverá no
mercado musical.
Digo, repito, atesto e assino embaixo,
sem medo de
errar e sem falsa modéstia.
É muito swing, balanço, molho,
charme e malemolência,
pois nem Santo Antonio com gancho consegue
segurar,
nem o boato ou disse-me-disse de que
eu havia morrido de
desastre de moto.
Se esqueceram de uma coisa: que eu sou imorrível!”
Di Melo
Assim
como não seria exagero dizer que tudo em Seu Jorge que não é João
Nogueira é Carlos Dafé, a mesma comparação dialética serve muito
bem para outro ídolo da música brasileira da atualidade: tudo que
não é Sabotage em Criolo é Di Melo. A constatação, embora
um tanto capciosa, denota o quanto a arte musical de hoje no Brasil
anda a reboque daquilo que já foi produzido e, principalmente, o
quanto artistas do passado foram, de fato, precursores. No caso de Di
Melo, este é pioneiro de muito do que se considera “inovação”
na música brasileira de hoje e, novamente em comparação a Criolo,
a poética afiada e o ecletismo que se percebem neste último chegam
a quase parecer uma cópia.
Todo o
pioneirismo de Di Melo está, curiosamente, em apenas um disco, o
álbum homônimo produzido por ele em 1975, um marco na história da
música pop brasileira. Idolatrado por artistas como Otto, Nação Zumbi, Leo Maia, Simoninha, Max de Castro e Charles Gavin (que, como
produtor, o verteu para CD em 2004), “Di Melo” é tomado
de lendas para os apreciadores e colecionadores, assim como a própria
figura do simpático e bonachão músico pernambucano. Saído de sua
Recife natal nos anos 60 para São Paulo, onde gravou este álbum em
alto estilo, Roberto de Melo Santos é daqueles músicos cheios de
talento e criador de uma única grande obra que, com o passar do
tempo, caíram no ostracismo. Porém, como muitas vezes acontece com
artistas brasileiros esquecidos no seu próprio país, o retorno de
Di Melo à mídia tem a ver com a apreciação que veio de fora. Nos
anos 90, seu LP tornou-se sucesso entre DJ’s europeus e teve uma de
suas faixas incluída numa coletânea da gravadora norte-americana de
jazz Blue Note. O suficiente para a galera tupiniquim voltar correndo
para conhecer aquilo que desprezava. Logo “Di Melo” passou a ser
valorizado nas lojas de bolachões paulistanas até esgotar e virar
raridade no mercado negro, chegando a custar 300 Reais em média um
vinil.
Os
músicos que participaram de sua gravação dão ao disco uma aura
ainda mais épica: contou com uma cozinha com Cláudio Bertrame
(baixo), Bolão (sax), Luiz Melo (teclado), Geraldo Vespar (maestro,
arranjos e violão), José Briamonte (maestro), Waldemar Marchette
(arregimentação) e ainda participações de gente do calibre de Hermeto Paschoal nos arranjos (!) mais Heraldo Dumont, Capitão,
Ubirajara (pai do Taiguara) e até de um músico da banda de Astor
Piazzola.
Já
para com Di Melo, a falácia chegou ao nível de este ser considerado
morto após um hipotético acidente de moto. Tudo boato: Di Melo mora
no subúrbio de Recife com filha e esposa, vive da venda dos quadros
que pinta e, segundo o próprio, tem mais de 400 canções prontinhas
para serem gravadas (inclusive parcerias com Geraldo Vandré).
Dessas, as que conseguiu pôr no acetato no famoso disco de 1975 são
verdadeiras joias da música brasileira moderna, onde demonstra uma
versatilidade e um groove de deixar muito medalhão da MPB com
inveja.
“Di
Melo” começa com a gostosa “Kilariô”, um arrasador jazz-funk
com uma pitada caribenha e cuja melodia de voz é daquelas que pegam
no ouvido de cara: “Kilariô, raiou o dia/ Eu fiz chover em
minha horta/ Ai ai meu Deus do céu, como eu sofri ao ver a natureza
morta”. A voz de timbre abençoado de Di Melo, algo entre o tom
metálico de Moraes Moreira e a pronúncia aberta de Wilson Simonal,
é ainda mais realçada pelo belo sotaque pernambucano (com suas
pronúncias “holandesas” do “T” como “Tí” e do “D”
como “Dí”). Além disso, Di Melo canta ao estilo dos mestres da
soul music norte-americana, mas também referenciando-se em
artistas nordestinos como ele, desde o swing de Jackson do
Pandeiro até o vocal rasgado de Genival Lacerda.
Em
seguida, outra que vem ratificar definitivamente a veia soul:
“A vida em seus métodos diz calma“, seu maior sucesso tanto na
época quanto na sua “retomada”, visto que foi esta a faixa que
os gringos escolheram para a coletânea de “novidades” da Blue
Note. A letra, igualmente pegajosa, é um destaque, tanto pela
mensagem quanto pela melodia de voz que lhe é empregada: “A
vida em seus métodos diz calma/ Vai com calma, você vai chegar/ Se
existe desespero é contra a calma, é/ E sem ter calma nada você
vai encontrar”. Nesta fica evidente a afinação da banda e a
qualidade da produção de Zilmar R. de Araújo. Tudo certo, tudo no
lugar: o groove da batida, os timbres, a levada da guitarra, o
arranjo dos sopros.
Na
sequência, vêm três maravilhas altamente críticas à sociedade
moderna e à condição do homem oprimido pela cidade grande, algo
que a percepção de nordestino na gigantesca São Paulo ajuda a
enxergar com mais clareza. Primeiro, “Aceito tudo”, de poética
letra que remete ao modernismo e ao fraseado de um estilo musical que
ainda nem existia, o rap, visto seu jeito de cantar e organizar os
versos na melodia. Música que lembra muito a maneira de escrever e
cantar de Chico Science (até por causa do sotaque) e que
provavelmente é tudo o que Criolo sempre quis fazer: espécie de
repente moderno marcado na guitarra com letra sacaca e de sinapses
ligeiras (Aí eu pensei que ia indo caminhando mas não fui/ para
um sonho diferente que se realiza e reproduz/ E pensando fui seguindo
num caminho estreito cheio de toco/ Esqueci de lembrar de pensar que
todo penso é torto...”). No fim, desemboca em um funk
irrepreensível comandado pelos vocais espertos de Di Melo.
A
outra é mais uma pérola: "Conformopolis". Mas, peraí: essa
melodia é uma... milonga?! Sim, uma milonga, ritmo hispano-ibérico
típico do Rio Grande do Sul e dos vizinhos portenhos Uruguai e
Argentina. Esta gravação é algo sem precedente dentro da MPB fora
dos pagos gaúchos. Não eram os irmãos Ramil, não era Hartlieb,
não eram os Almôndegas nem Ellwanger. É um pernambucano em terras
paulistanas totalmente sintonizado com a arte musical – pois,
afinal, música boa não tem fronteira. Pungente, realista,
melancólica: “A cidade acorda e sai pra trabalhar/ Na mesma
rotina no mesmo lugar/ Ela então concorda que tem que parar/ Ela não
discorda que tem que mudar...”. Das grandes do disco, que já
foi motivo de Cotidianas aqui no ClyBlog.
Mais
um apelo crítico à vida maquinal e desumanizadora da sociedade
moderna, desta vez na balada marcial “Má-lida”. Os versos,
confessionais, traduzem através da repetição fonética e de
sentenças curtas o deslocamento existencial de um homem no mundo:
“Ah! tenho de pouco surrados miúdos malditos/ Fui entrelaçado
e já fui casado/ Um tanto inibido/ E pra muita gente sou um
depravado.” E completa: “Ah! julgo não ser enxerido nem
intrometido/ Tampouco ousado/ É que estou saturado de tanta má-lida/
Mesmo trabalhando como um condenado”. E os arranjos de cordas
são preciosos.
E se
pensa que as surpresas param por aí, é porque não se tem noção
do que vem a seguir. Depois de três exemplos de soul, de uma
canção mais contemplativa e de uma surpreendente milonga, Di Melo
manda ver um tango! Sim, “Sementes” é um tango, ainda mais
platino que “Conformópolis”. É nesta em que toca um dos músicos
da banda de Piazzola que Di Melo em entrevista diz não lembrar do
nome, mas que, afora esse detalhe importante, dá um show de
acordeom. Os versos acompanham a elegância dramática deste estilo
musical: “Vai, flor que se mata a espera do amanhã/ Vai,
desembaraça teu sorriso a uma irmã/ Vai, que quando passas tu
perfumas chão ardente/ Vai, que o tempo atrai de ti sua semente...”.
“Pernalonga”
retoma o swing num balanço irresistível, o mesmo com outra
ótima do disco: “Minha Estrela”, de letra romântica mas no
ritmo chacoalhante da soul. De novo, a voz variante de Di
Melo, que vai do som aberto ao aveludado, bem como a pronúncia
pernambucana, se sobressai: “Minha estrela/ Girai na noite até
o raiar do dia/ Se tiver fossa vem que eu canto a melodia/ Não quero
ver o teu sorriso magoado”. O samba-rock “Se o mundo acabasse
em mel” pode ser considerado uma "Construção" pop, porém não
narra a morte repentina de um trabalhador pobre como no clássico de Chico Buarque, mas sim de um milionário do mundo do business
publicitário. “Deu pane no nervo do cérebro/ Taquicardia e
reverbério/ Momentos trágicos, instantes sórdidos/ Tombou perplexo
em pleno orbe”. Que versos!
Bucólica,
“Alma gêmea” começa com um dedilhado de violão a la
Bach que marca sua base, acompanhado de acordes de flauta que
explicitam a tocante canção. É outra que faz lembrar bastante Moraes e Chico Science, mas também da MPB rural da época. Em
“João”, a força melódica e letrística de Di Melo volta com
tudo para uma nova análise existencial do homem, um “João”
qualquer que vive submerso nas exigências sociais (trabalho,
casamento, amigos, lazer) e naquilo que ele deve ou não ser mas que,
justamente por isso, faz com que se perca de si como indivíduo. Na
alta variedade de ritmos do disco, ele finaliza com um xote.
“Indecisão” ainda termina com versos quase proféticos vindos de
um artista que conheceria o estrelato e o ostracismo, mas que nunca
deixaria de seguir pelo caminho da música: “Tem gente que nasce
pra ter e tem gente que vem pra cantar”.
Pode-se
tranquilamente colocar “Di Melo” junto a outros grandes álbuns
da soul music brasileira como os “Tim Maia Racional”, “Pra
que vou recordar o que chorei”, de Dafé, ou “Saci Pererê”, da Black Rio. Esse sentimento é compartilhado por vários apreciadores
desta obra, o que pode ser visto no bom curta documentário “Di
Melo, O imorrível”, de Alan Oliveira e Rubens Pássaro, realizado
em 2011 e que retrata a vida do compositor hoje, relembrando
histórias, coletando depoimentos de fãs e amigos e mostrando sua
ainda tímida volta aos palcos. Oxalá Di Melo possa tornar a gravar
e, quem sabe, fazer o sucesso que lhe é cabido. Para quem já foi
dado como morto e que, de certa forma realmente “reviveu”, nada é
tão improvável assim. Certo é que sua obra, mesmo passados tantos
anos (40 anos), segue sendo cada vez mais admirada. E, afinal, como Di Melo diz
de si próprio: “Para o imorrível nada é impodível”.
"Eu sempre quis falar de música clássica como se fosse popular
e de música popular como se fosse clássica."
Alex Ross
Tão logo soube que sairia, já me aprontei para comprar o livro "Escuta Só - Do Clássico ao Pop", do jornalista Alex Ross, e agora finalmente o adquiri. Meu acentuado interesse dá-se muito pelo fato que, pelo que sei e conheço deste crítico, sua abordagem nesta obra aproxima-se muito de uma visão que eu já expunha aqui no blog algumas vezes, quanto à relação da música contemporânea com oque se considera um música erudita ou de nível superior.
Alex Ross, assim como eu, antes de mais nada, entende que música é música simplesmente e que os rótulos ou nomenclaturas, em grande parte dos casos são inadequados, sobremaneira o do gênero tido como 'clássico', e que na verdade, só o afasta do público em geral e tenta colocá-la num pedestal mais alto do que precisaria estar. E tudo isso, quando na verdade tudo na música não passa de uma evolução, transformação de conceitos, épocas, ideias que fazem desembocar em outras formas de manifestação,novas técnicas, linguagens muitas vezes tão válidas e qualificadas quanto estas elitizadas porém subestimadas por serem punk, funk, pop, etc.
Embora não precise de respaldo para escrever qualquer coisa que afirme aqui, fico feliz em ver num crítico e jornalista conceituado e criterioso, um pouco desta proximidade de conceito a respeito da música. Apenas para citar como exemplos, aqui mesmo já foi mencionada a formação erudita de Trent Raznor dos Nine Inch Nails, e que no entanto, não o impede de produzir algumas das canções mais furiosas dos últimos tempos; a veia clássica do Kraftwerk que faz deles, para mim, os herdeiros legítimos de toda a tradição musical alemã de Brahms, Bach, Schubert; as sinfonias ruidosas do My Bloody Valentine; a breve analogia entre "TV II" do Ministry com "Eggo Sum Abbas" da obra "Carmina Burana" e a própria inclusão desta obra de Carl Orff nosÁLBUNS FUNDAMENTAIS do ClyBlog, salientando toda a característica pop da obra, valendo-me inclusive de um comentário do próprio Ross na introdução.
Comecei agora a leitura. Nem sei se ele toca exatamente nestes pontos, nem qual exatamente o foco de abordagem, mas a mera semelhança de pensamentos e o fato de falar de música de forma tão abrangente já me faz ter todo o interesse neste trabalho.
À leitura!
Conheci a jovem Amy Hildebrand através da minha irmã e sócia, estudante de Pedagogia Carolina Costa em abril de 2012, dois meses antes do projeto que divulgou Amy ao Mundo ser concluído. O trabalho de Carolina sob o título “O ato de ver: solidariedade, justiça e respeito” para a disciplina de Estudos Sociais da PUCRS me impressionou bastante, porque dialogava com a nossa forma de compreender o universo visual das pessoas com cegueira e baixa visão na Aprata (http://www.aprata.com.br/) nos últimos cinco anos.
O trabalho começava com uma seleção das fotos de Amy e depois o breve texto: “Ela é cega e formada em fotografia”. Mais adiante Carolina destacava: “Amy é casada, tem dois filhos e nunca aprendeu a ler em Braille. Graças aos tratamentos feitos durante sua vida, conseguiu recuperar 20% da visão, o que de fato já se faz suficiente em meio ao talento extraordinário que possui. ´Eu sou uma pessoa com albinismo, mas eu também sou uma fotógrafa, esposa, mãe e artista. O albinismo é apenas um aspecto em mim e não é ele que me define´ declara Amy Hildebrand”.
Amy por causa do albinismo nasceu cega. O albinismo é um distúrbiocongênito caracterizado pela ausência completa ou parcial de pigmento na pele, cabelo e olho, devido à ausência ou defeito de uma enzima envolvida na produção de melanina que afeta a visão, levando a baixos percentuais de visão ou até mesmo cegueira. Em 17 mil pessoas no mundo apenas uma pode ser albina e, por isso mesmo, essa característica torna a pessoa alguém raro. Na sua família não havia nenhum bebê albino até Amy nascer, mas por “algum motivo desconhecido a desordem apareceu em três das quatro gestações” , conta Amy. Mas não é o albinismo que faz dessa jovem mulher alguém tão especial e sim a maneira como ela vive o que seria uma limitação visual. Sua família não se acomodou com o diagnóstico médico e expôs Amy a vários estímulos que a levaram a mudar o rumo de sua vida.
Lendo as entrevistas que Amy concedeu a jornalistas mundo afora percebemos que a atuação da família e a sua força de vontade foram fundamentais no processo de cura: “Acredito que tudo esteja relacionado ao ambiente onde crescemos. Ninguém nunca nos disse que não poderíamos fazer algo. Fazíamos. E quando não conseguíamos, meus pais diziam que era porque talvez não fosse adequado para nós. Nunca disseram algo como ´você não pode por causa do seu problema de visão".
Durante a adolescência Amy passou a enxergar cores, formas e sombras, ela relata seu primeiro registro visual: “Lembro do piso de linóleo vermelho da cozinha. O sol entrava pela janela, e a poeira pairava no ar. Lembro de simplesmente deitar lá e ficar olhando o sol incidindo sobre o piso, o contraste entre o vermelho do linóleo e a luz, as sombras, minha mãe fazendo as tarefas domésticas. As cores eram tão vívidas. Eu amava isso. É como se fosse um sentimento aliado a uma experiência visual. É algo muito forte para mim. Muita cor, mas também muito amor”. Buscando a melhor forma de se expressar encontrou a fotografia: “Sempre me senti confortável com uma câmera nas mãos. Parecia o jeito mais natural de me expressar. Me perguntavam como eu enxergava o mundo, e nunca encontrei uma maneira adequada de responder isso, até começar a fotografar”. A fotografia pode ser entendida como um desenho com luz e contraste. A baixa visão levou Amy a interpretar muito o contexto ao longo dos dias, assim seu trabalho com fotografia faz com que as pessoas possam enxergar o que ela vê e da maneira que ela vê. Amy lançou na internet o blog With Little Sound (tradução: Com pouco som) que lembra um diário com mil fotos e 29 textos escritos ciclicamente. As fotos são diárias e os textos de 30 em 30 dias. O período mais difícil para Amy fotografar foi quando seu padrasto foi diagnosticado com câncer terminal, numa entrevista a BBC Brasil ela comentou: “Mas depois de sua morte tentei ser o mais positiva possível”.
As fotos de Amy estão intercaladas entre textos. A numeração das fotos segue seu fluxo, assim como os dias das nossas vidas. Alguns períodos são mais intensos, noutros as imagens se concentram nos interiores das casas, na intimidade com a sua família. O que mais impressiona é que ela manteve seu plano inicial estabelecido nas regras e extraiu do seu cotidiano imagens essencialmente artísticas, nos deixando ver o que está mais forte no seu momento de vida. O afeto permeia a Arte de Amy durante todo o tempo. Imagens me acompanham desde que conheci o Blog, alguns olhares dela se identificam com o meu olhar de fotógrafa. Os desfoques me agradam. As cores ofuscantes também. As composições rendem inúmeras interpretações semióticas.
Separei para vocês as minhas imagens prediletas. Os textos mais bonitos a meu ver são os que falam das festas de Natal e dos filhos, me lembram cartas a partir dos posts de 10.02.2010 quando deixam de ser escritos diretamente no Blog e parecem ser cartas scanneadas. Alguns posts são mais reflexivos beirando o estado permanente de deriva de quem está apreendendo cada momento: “Today reminded me of one of the first days of this project. I see the light at the end of the tunnel and I find myself hesitating on moving forward”(“Hoje me lembrou um dos primeiros dias deste projeto. Eu vejo a luz no fim do túnel e eu me encontro hesitando em avançar” – texto da foto número 720 ).
As regras estabelecidas por Amy em 14.09.2009 me chamaram atenção e demonstram a persistência diária (“postar uma foto por dia; a foto tem que resumir o meu dia, seja ele emocional, físico, real ou fantasioso e depois deste post preliminar, vou escrever a cada 30 dias”). Além disso, sempre despedia-se do leitor com a palavra coração entre aspas, numa demonstração de quanto há de afeto nessa conquista. Em chinês, os pensamentos são movimentos do coração - mente e coração são a mesma palavra.
“Coração”
Leocádia
PS. 1: Amy esteve em Porto Alegre/RS em outubro de 2012 a convite do projeto “Saber Viver” como palestrante e trouxe sua mostra “1000 Fotos em 1000 dias”. P.S. 2: O albinismo faz parte da vida de outras pessoas talentosas: Jonhy e Edgar Winter: músicos texanos; Connie Chiu: primeira modelo albina no Mundo admitida por Jean-Paul Galtier; Ademir da Guia: jogador de futebol, conhecido por negro-aço. Possui estátua no Palmeiras onde é um dos ídolos da história do Clube; Hermeto Pascoal alagoano toca sanfona, violão, contrabaixo, flauta, saxofone e uma infinidade de outros instrumentos musicais. Aprendeu a tocar sanfona por ter que ficar horas em casa. Ele não podia ajudar os pais na lavoura por causa das queimaduras de Sol. Nos anos 1970, participou das gravações de um álbum do astro do jazz Miles Davis que o chamou de “músico mais impressionante do mundo”; Sivuca: Também apelidado de “Cabelo de Milho”, “Sarará Crioulo” e “Gênio Louro”, Sivuca nasceu em Itabaiana, na Paraíba, sob o nome Severino Das de Oliveira em 1930. Na época da guerra racial na África do Sul, saiu com a cantora negra Miriam Makeba em turnê mundial. O ousado músico gostava de experimentar e chegou até a tocar Bach usando sua sanfona. ***********************************
fica o orgulho de dividir alguns momentos da música
com o
Brasileiro Antonio das águas de março,
do matita, do porto das caixas, do
amparo, das luísas,
da sinfonia de Brasília, das saudades do Brasil.
O maior
compositor da música popular
de todos os países.”
Edu Lobo, sobre Tom Jobim
Há momentos em que uma obra-prima surge do acaso. Não foi assim com o
sonho em comum tido por Salvador Dali e Luís Buñuel na mesma noite e que os
motivou a filmar “Um Cão Andaluz”? Ou o processo intuitivo de Jackson Pollock,
que formava seus quadros com tintas de pura aleatoriedade? Pois em música
acasos como estes também acontecem. Em 1981, Edu Lobo, cantor, compositor e arranjador, um dos mais criativos e
respeitados artistas da música brasileira pós-Bossa Nova, estava de saída de
sua então gravadora, a PolyGram. Como era de praxe, haveria de realizar um
disco com a participação de vários artistas, como uma despedida festiva pelos
anos de casa. Em cumplicidade com o produtor Aloysio de Oliveira, o primeiro a
ser convidado sem pestanejarem foi Tom Jobim.
Num clima de admiração mútua, auxiliados pela direção não menos afetuosa
e sábia de Aloysio, chamaram Tom para tocar piano em “Pra dizer adeus”, faixa
de um dos primeiros discos de Edu, logo após esse ser descoberto por Vinícius de Moraes, no início dos anos 60. Tom o fez, mas não sem lançar contracantos, cantar
alguns versos e ainda adicionar-lhe acordes, os quais passariam a partir dali a
integrar a partitura da canção. Ou seja: chegou para uma participação e mudou a
música para sempre. Ao final da gravação, visto que todos estavam felizes com o
resultado e com a egrégora formada no estúdio, Tom pergunta: “Era só isso?”. Aloysio propôs, então,
de modo a não desapontar o maestro, que se gravasse outra de Edu, desta vez,
uma parceria com aquele que representava o elo entre os dois: Vinicius. Edu,
claro, gostou da ideia.
Mandaram ver, então, “Canção do Amanhecer”, esta, do primeiro álbum de
Edu, de 1965, dando à precoce parceria daquele jovem músico de 22 anos com o
tarimbado e mítico poetinha uma versão amadurecida. A presença de Vinicius,
como ele gostava de fazer com os amigos, mesmo que imaterial nesta ocasião só vinha
a reforçar a afinidade entre Edu e Tom. Como no primeiro take, o resultado foi incrível novamente: sintonia pura,
descontração e musicalidade aflorando. Quando termina, Tom capciosamente solta
de novo a pergunta: “Era só isso?”.
Aloysio, que conhecia bem o parceiro desde os anos 50 – época em que já
compunham juntos clássicos como “Dindi” e “Inútil Paisagem” –, entendeu o
recado e ligou para o executivo da gravadora. Estava claro que o “canto do
cisne” de Edu Lobo na PolyGram não teria vários músicos convidados, mas apenas
um: Antonio Carlos Jobim. O maior deles.
Com trabalhos solo recentemente lançados, ambos tinham poucas novidades
em suas pautas. Uma das inéditas, entretanto, abre o lado A do LP: a graciosa
“Ai quem me dera”, composição antiga de Tom em parceria com Marino Pinto até
então guardada para uma ocasião especial. A ocasião surgiu. Sente-se o sabor
dos primeiros temas da Bossa Nova, aquele mais carioca e gingado, com Tom e Edu
cantando em uníssono com perfeição. É nítida a afinidade entre os dois. Outra
de ânimo florescente é “Chovendo na Roseira”, composição instrumental de 1970 regravada
por Elis Regina quatro anos depois com a participação de Tom e já com a letra lírico-ecológica
do próprio autor. Aqui, esta valsa de cores tipicamente debussyanas (“Olha, que chuva boa, prazenteira/ Que vem
molhar minha roseira/ Chuva boa, criadeira/ Que molha a terra, que enche o rio,
que lava o céu/ Que traz o azul!”) recebe um tratamento harmônico de alto
requinte. A voz de Edu se apropria de tal forma que parece um tema coescrito
por ele.
Equilibrando as autorias – ora de um ora de outro com ou sem parceiros
–, escolheram-se mais duas em que Tom assina letra e melodia. Uma delas é
“Ângela”, das obras-primas do compositor. Tema da segunda fase da Bossa Nova
presente no clássico disco “Matita Perê” (1973), a romântica e melancólica
“Ângela” guarda traços da complexidade harmônica da música de Chopin. Ivan
Lins, um dos ilustres aprendizes do “maestro soberano”, contou certa vez que
esta é canção que ele gostaria de ter escrito – precisa dizer mais? A outra,
igualmente lírica e impressionista, é “Luíza”, a segunda e última inédita do
disco, das mais queridas do cancioneiro jobiniano e que abre o lado B do vinil.
Composta recentemente por Tom para o tema de uma novela da Globo, de tão
vigorosa, saiu neste álbum e ainda na trilha sonora da novela, ficando meses
nos ouvidos dos brasileiros todos os dias sem que jamais tenha se desgastado. E
que letra! “Rua/ Espada nua/ Boia no céu
imensa e amarela/ Tão redonda a lua/ Como flutua/ Vem navegando o azul do
firmamento/ E no silêncio lento/ Um trovador, cheio de estrelas/ Escuta agora a
canção que eu fiz/ Pra te esquecer, Luiza...”.
Os parceiros de Tom e de Edu são de extrema importância no repertório
afetivo escolhido pela dupla para este projeto quase acidental. É o caso de Chico Buarque. Assim como Vinicius, o autor de “Olhos nos Olhos” é outro que os
liga musical e afetuosamente. Parceiro de Tom desde os anos 60, tivera a mão de
Edu nos arranjos da trilha de sua peça/disco “Calabar/ChicoCanta”, em 1973.
Mas, por incrível que pareça, toda a grande obra da parceria Chico-Edu, que
hoje faz parte do inconsciente coletivo da música brasileira, veio somente depois
de “Moto-contínuo”, esta, sim, a primeira dos dois, escrita naquele ano e
lançada praticamente junto com a versão do álbum “Almanaque”, de Chico. Já na
estreia da parceria, Chico se esmerava na letra, uma de suas melhores. Ao
expressar em hipérboles a admiração intrínseca do homem pela figura feminina,
lança, através de anáforas e epíforas (“Um
homem pode...” e “se for por você”),
versos da mais alta beleza poética: “Juntar
o suco dos sonhos e encher um açude/ se for por você (...) Homem constrói sete
usinas usando a energia/ que vem de você”. Ainda, Tom faz-se presente
categoricamente, introduzindo neste samba cadenciado e denso ricos contracantos
de seu piano e a voz em uníssono com Edu – com timbres muito parecidos, aliás.
Outros dois sambas melancólicos: “É Preciso Dizer Adeus”, de Tom e
Vinicius (“É inútil fingir/ Não te quero
enganar/ É preciso dizer adeus/ É melhor esquecer/ Sei que devo partir/ Só nos resta
dizer adeus”), representando a reverência à parceria gênese de toda a
geração da qual Edu pertence; e “Canto Triste”, mais uma dele com Vinicius,
esta imortalizada, assim como “Chovendo...”, por Elis (“E nada existe mais em minha vida/ Como um carinho teu/ Como um silêncio
teu/ Lembro um sorriso teu/ Tão triste”), fechando o disco de forma
altamente melodiosa: só ao violão e a voz de seu autor.
Não sem antes, entretanto, registrarem a talvez melhor do disco: “Vento
Bravo”. Faixa do obscuro e hoje cult
“Missa Breve”, gravado por Edu em 1972, trata-se de uma composição feita com
outro parceiro e amigo em comum com Tom: Paulo César Pinheiro. Em entrevista
para o programa O Som do Vinil, do Canal Brasil, Edu comenta que não entendera
bem porque Tom, que pedira para incluí-la no set-list, gostava tanto desta música. Parece, porém, evidente. A
letra, com marcas da literatura regionalista – remetendo à prosa de Guimarães Rosa de “Sagarana” e a de Monteiro Lobato de “Urupês” –, confere estilisticamente com o que o próprio Pinheiro escrevera para Tom anos antes
para a música "Matita Perê". As leis dos homens e da natureza, com emboscadas e
perseguições, bem como a implacável ação do tempo, são marcas de ambas as
obras. “Vento virador no clarão do mar/
Vem sem raça e cor, quem viver verá/ Vindo a viração vai se anunciar/ Na sua
voragem, quem vai ficar/ Quando a palma verde se avermelhar/ É o vento bravo/ O
vento bravo”, diz a letra, que narra a fuga de um escravo mata adentro. O
refrão, melodicamente intrincado e encantador, ainda diz: “Como um sangue novo/ Como um grito no ar/ Correnteza de rio/ Que não
vai se acalmar...”. Ao contrário da sinfônica peça de Tom, porém, traz uma
melodia intensa baseada no som dos violeiros folclóricos do sertão. Remete ainda,
no trítono do piano que lhe faz base, às trilhas de filmes e séries policiais norte-americanas
dos anos 50/60, as quais Edu sempre soube adicionar à sua música com
brilhantismo.
E como conjugar tanto talento, tanta sabedoria musical e sensibilidade
artística e de tão vastos cancioneiros? Por incrível que pareça, nem sempre juntar
isso resulta em boa coisa, pois se pode pecar para mais ou para menos. Em “Tom
& Edu”, primeiro, a opção foi por uma estética limpa, enxuta. Nada de grandes
bandas ou orquestra. Pretendeu-se, já que “só tinha de ser com você”,
reproduzir o clima de admiração mútua. A ausência das cordas, que chegou a ser
motivo de crítica à época do lançamento na “vira-latas” imprensa brasileira –
que achava um desperdício dois regentes dispensarem a orquestração – é de um
acerto categórico. Basicamente, ouve-se o piano de Tom e/ou de Edu, o violão de
Paulo Jobim e Luiz Cláudio Ramos, o baixo dividido por Sérgio Barroso e Luiz
Alves e apenas a bateria como percussão, tocada por Paulo Braga. Quando muito,
o flugehorn impecável de Marcio
Motarroyos, como em “Chovendo...” e “Vento...”. E, claro, o canto dos dois experientes
artistas. A essência clássica de ambos, cujas musicalidades não à toa são
parecidas, retraz naturalmente harmonias ao estilo de Debussy, Ravel, Bach e
Villa-Lobos. Menos, para quem tem conteúdo, é sempre mais.
O segundo motivo de acerto do projeto é a presença de Aloysio como
produtor. Parceiro dos dois de longa data, o ex-dono do selo mítico selo Elenco
(pelo qual gravara e lançara inúmeros artistas fundamentais à MPB nos anos 60,
entre os quais o próprio Edu Lobo) tinha a mão apurada nas mesas de som,
conhecia com profundidade harmonia e composição, compartilhava-lhes do mesmo
carinho e, principalmente, tinha maturidade para saber influir apenas no que
devia. Afinal, quem ousaria mandar em Edu Lobo e Tom Jobim dentro de um
estúdio? Tendo recentemente coordenado dois projetos de Tom semelhantes àquele
(os discos com Miúcha de 1977 e 1981), Aloysio soube dar a arquitetura sonora
certa às faixas.
Já mais satisfeito ao final das 10 gravações que acabava de ajudar a deixar
para a história, Tom enaltece o pupilo: “Eu
vos saúdo em nome de Heitor Villa-Lobos, teu avô e meu pai”. Edu, por sua
vez, contou em entrevista que tem a felicidade de ter dito em vida a Tom de que
este era o maior nome da música brasileira de todos os tempos, palavras que,
segundo ele, emocionaram Tom. “De todos
os arquitetos da música da música que conheço, Antonio Carlos Brasileiro de
Almeida Jobim é, sem dúvida, o de traço mais amplo e perfeito”, pontuou o
seguidor inconteste do maestro. Tanta identificação, tanta confluência entre os
artistas, que somente o próprio Aloysio de Oliveira, no alto de sua sapiência,
para saber definir: “Edu e Tom, Tom e
Edu. E até, se você quiser, Tu e Edom”. Definitivamente, não foi por acidente que eles se juntaram para esse encontro, pois eram almas irmãs.
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FAIXAS:
1. Ai Quem Me Dera (Tom Jobim/Marino Pinto) - 2:13