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terça-feira, 17 de maio de 2016

João Bosco - "Acústico" (1992)


“Na direção de programação da MTV,
participei da implantação de novos programas,
entre [estes] o Acústico.
Fiz a direção geral com Rogério Gallo
e a direção do programa ficou a cargo do Adriano Goldman.
Na véspera sentamos como João Bosco no hotel
para decidir o repertório.
Ele pegou o violão e disse ‘vai ser assim’.
E nós ‘então tá bom’.”
Marcelo Machado,
cineasta e um dos responsáveis
por lançar a MTV Brasil em 1990.


Quem assiste hoje a MTV Brasil talvez não acredite que aquele canal acéfalo foi um dia a coisa mais interessante da época da televisão brasileira pré-canais por assinatura. No início dos anos 90, aquela nova e arejada emissora de sinal UHF, mesmo que a precária aparelhagem dos televisores de então gerasse uma sintonia com imagem chuviscada para desafortunados como eu, trazia um sopro de modernidade e até de vanguarda diante das poucas alternativas de TV aberta que se tinha, fosse pela estética dos videoclipes, pelas novidades musicais e plásticas, pela concepção descomplicada de apresentação e do Jornalismo ou mesmo pela programação.

Uma das atrações advindas foi o Acústico MTV, reprodução do projeto também recente na MTV norte-americana, o MTV Unplugged, cuja ideia era trazer releituras do repertório de artistas que rodavam na emissora através de clipes em especiais de meia hora. Isso tinha tudo para dar certo também no Brasil, país em que o canal vivia uma fase de crescimento de audiência e cujo estilo musical tradicionalmente valoriza a composição sem eletrificação. Depois de estrear com dois nomes do rock brazuca, Barão Vermelho e, em seguida, Legião Urbana, o terceiro escolhido foi um verdadeiro representante da MPB: João Bosco. O que naquela época podia soar estranho a um canal jovem, visto que música popular era ainda muito vista como “música para velhos”, se justificou plenamente, o que se confere no excelente álbum “Acústico”.  Virtuose do violão e dono de estilos de tocar e cantar muito próprios e apurados, João Bosco presenteou o público com um apanhado cirurgicamente bem pinçado de seu extenso cancioneiro, criando aquele que é talvez o melhor unplugged realizado nesses pagos tropicais.

O êxito começa na concepção: ao contrário de todos os outros acústicos, por mais incrível isso pareça em se tratando de um formato de apresentação no qual se propõe justamente uma sonoridade intimista, João Bosco o fez sozinho no palco, apenas voz e violão. Como seus mestres Baden Powell e João Gilberto. É que com um violão em punho, João Bosco faz chover! Se para outros fariam falta percussão e acompanhamentos, ao autor de “O Bêbado e a Equilibrista” não há nenhuma necessidade. Recuperando canções de várias fases, desde os clássicos dos anos 70 imortalizados por Elis Regina até sucessos recentes à época do lançamento, o cantor e compositor, repetindo o conceito de arranjo que já acertara em “100ª Apresentação”, de 1983, juntou isso a temas escritos com parceiros de peso. Um destes é “Odilê Odilá”, feita com Martinho da Vila. Após uma introdução solo ao violão impressionante em que já diz a que veio – onde dobra o som do instrumento, dando a nítida impressão de terem dois violonistas tocando –, Bosco abre o show com este samba no qual recupera, bem a seu estilo e ao de Martinho, referências da africanidade e dos ritmos brasileiros de raiz, engendrando um maxixe de cores modernas. Esta se emenda com “Zona de Fronteira”, parceria com os poetas Antônio Cícero e Waly Salomão do então recém-lançado álbum homônimo que, por outra via, também toca na temática africana: ”Rei/ Eu sei que sou/ Sempre fui/ Sempre serei/ Obá/ De um continente por se descobrir/ Já alguns sinais/ Estão aí/ Sempre a brotar/ Do ar/ De um território que está por explodir”.

Outra da parceria com Cícero e Waly, a intensa “Holofotes” dá no formato voz-violão a liberdade ideal para Bosco mostrar toda sua técnica e sensibilidade, numa interpretação que supera a versão original. Sob uma base sincopada, a letra junta versos de dois dos maiores poetas brasileiros: “Desde o fim da nossa história/ Eu já segui navios/ Aviões e holofotes/ Pela noite afora/ Me fissurarm tantos signos/ E selvas, portos, places/ Línguas, sexos, olhos/ De amazonas que inventei...”. Hit nacional alguns anos antes, a bela “Papel Machê” se encaixa bem no repertório por ser conhecida da plateia, contrastando com outros números bastante ligados ao contexto dos anos 70 e talvez distantes da realidade daquele público então presente.

Este papel de resgate cabe ao medley com “Quilombo” (1973), “Tiro de misericórdia” (1977) e “Escadas da Penha” (1975), composições dos primeiros discos do artista e nas quais a parceria dele com Aldir é determinante. Nas três, a forte temática do candomblé e da herança da África negra. A mais impressionante e provavelmente melhor do espetáculo – muito por causa do violão de Bosco, que mantém uma batida de samba intensa, repetitiva e rápida, forjando um clima espiral hipnótico – é “Tiro...”, a qual conta a história de um menino do morro aparentemente comum, mas que, por conta da proteção dos orixás, era invejado e malquisto pelos inimigos. A letra de Aldir é de uma riqueza literária espantosa, aproximando-se da prosa de Jorge Amado uma vez que engendra um espaço narrativo em que coabitam real e imaginário, concreto e transcendência, ou seja, o mundo dos homens (“Aiyê”) e o universo das forças não-terrenas (“Òrun”). Os versos dizem: “Exus na capa da noite soltara a gargalhada/ e avisaram a cilada pros Orixás/ Exus, Orixás, menino, lutaram como puderam/ mas era muita matraca e pouco berro”. Para arrematar, Bosco engata no mesmo ritmo “Escadas...”, que versa sobre a mesma potência das entidades místicas sobre a realidade ao colocar várias situações em que, ao serem influenciadas pelo poder das preces feitas na igreja da Penha (“A doideira da chama/ Chamou [...] O remorso num canto/ Cantou...”, por exemplo), alteram seu estado (“A doideira da chama/ Velou [...] O remorso num canto/ Guardou...”). Nada menos que admirável.

Outro medley traz as “líticas” “Granito” e “Jade”. A primeira, parceria com Cícero, questiona as semelhanças essenciais entre homem e pedra, numa abordagem em certo aspecto parecida com a do candomblé. Já “Jade”, do próprio Bosco, trata-se de uma balada de romantismo tocante, tanto por melodia quanto por letra (“Pedra que lasca seu brilho/ E queima no lábio/ Um quilate de mel/ E que deixa na boca melante/ Um gosto de língua no céu...”). “Romantismo” e “essência” são as palavras-chave de “Memória da Pele”, outra dele com Waly. Que versos lindos e profundos esses: “Eu já esqueci você, tento crer/ nesses lábios que meus lábios sugam de prazer/ sugo sempre, busco sempre a sonhar em vão/ cor vermelha/ carne da sua boca/ coração”.

“Corsário” é mais um momento especial. De relativo sucesso no final dos anos 80, essa canção traz um dos melhores poemas/letras de Aldir (e olha que são várias a disputar!). “Meu coração tropical/ está coberto de neve, mas/ ferve em seu cofre gelado/ e a voz vibra e a mão escreve: mar”. O lirismo é tal que Bosco, com assertividade, abre o tema com o poema “E então, que quereis...?”, do poeta russo Maiakowsky (“Fiz ranger as folhas de jornal abrindo-lhes as pálpebras piscantes. E logo de cada fronteira distante subiu um cheiro de pólvora perseguindo-me até em casa...”), o qual casa temática e estilisticamente com a música. Novamente, o dedilhado ágil do violão sobre acordes difíceis de executar dá à interpretação uma consistência melódico-harmônica sui generis, algo que somente um instrumentista de alto nível consegue extrair.

Para terminar, Bosco surpreende com uma fusão temporal em que aproxima rock britânico e samba de batuque ao inserir Beatles (“Eleanor Rigby”, anos 60) em Noel Rosa (“Fita Amarela”, anos 30). E como funciona! Completando este pot-pourri, “Trem Bala”, dele, Waly e Cícero, que traz uma mensagem de consciência e esperança às novas gerações, representadas ali pela jovem plateia: “A blitz ali na frente diz que aqui a onda/ tá mais pro Haiti do que pro Havaí/ Se as coisas nos reduzem simplesmente a nada/ de nada simplesmente temos que partir”. A base é de um toque ligeiro, que exige muita destreza, ao mesmo tempo em que intercala cantos com partes quase faladas, além das brincadeiras com a voz a la Clementina de Jesus típicos dele. Bosco, com sua característica simpatia, técnica e prazer pelo o que faz, cativa o público e consegue dar, com a maior naturalidade, um ar jovial ao especial mesmo sendo um artista “das antigas”, provando o quanto MPB, rock, pop e qualquer outra classificação são pura definição de gênero. Tudo é simplesmente música: atemporal e rica a qualquer um que se interesse.

O projeto Acústico da Music Television nacional foi ganhando cada vez mais visibilidade, e não demorou muito para que se tornasse um produto de pura venda para as grandes gravadoras e para a própria MTV. Ironicamente, foi o ótimo acústico de Gilberto Gil, de 1994, o começo do fim, uma vez que o mesmo estourara na mídia, vendendo milhões de discos e alertando de vez as gravadoras para (mais) uma fonte de renda ao sanguessuga e pouco criativo mercado fonográfico. Começaram a vir então shows chatos, incoerentes, duvidosos e megalomaníacos, contrariando totalmente a proposta intimista inicial, e a série, desvirtuada, nunca mais foi a mesma. Se hoje virou moda fazer shows desplugados, às vezes até pautando toda uma turnê em torno disso, o sempre corajoso e arrojado João Bosco é um dos principais responsáveis pela formação do mesmo no Brasil. Mas para o cara que enfrentou a censura do Governo Militar com hinos de resistência e denúncia uma contribuição como esta é apenas mais uma entre as tantas que deu à música brasileira.
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FAIXAS:
1. Odilê Odilá (Martinho da Vila, João Bosco)/ Zona de fronteira (João Bosco, Antônio Cícero, Waly Salomão)
2. Holofotes (João Bosco, Waly Salomão, Antônio Cícero)
3. Papel machê (Capinan, João Bosco)
4.  Granito (João Bosco, Antônio Cícero)/ Jade (João Bosco)
5. Quilombo/ Tiro de misericórdia/ Escadas da Penha (João Bosco, Aldir Blanc)
6. Memória da pele (João Bosco, Waly Salomão)
7. E então que quereis...? (Maiakovsky – Versão: Emílio Guerra)/ Corsário (João Bosco, Aldir Blanc)
8. Eleanor Rigby (John Lennon, Paul McCartney)/ Fita amarela (Noel Rosa)/ Trem bala (João Bosco, Antônio Cícero, Waly Salomão)

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OUÇA O DISCO






quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

“O Último Poema”, de Mirela Kruel (2015)




O documentário “O Último Poema” (2015), dirigido por Mirela Kruel, encontra na contenção sua beleza e sua força poética. O filme aborda a longa relação epistolar entre a professora gaúcha Helena Maria Balbinot Vicari e o grande poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade. Ambos se corresponderam por mais de vinte anos, sem nunca terem se conhecido pessoalmente. As cartas trocadas registram esta amizade cordial, este feliz encontro. As próprias histórias de vida vão ali se entrelaçando, em meio aos comentários sobre poesia, votos de felicidade e outras generalidades afetivas.
Hoje, é impressionante pensar na natureza desta relação, destacando-se aí, principalmente, sua extensão e sua gratuidade. Como poucos, o filme joga luz sobre a qualidade e o cultivo dos vínculos, sobre solidão e real intimidade. O que se mostra, na tela, é o avesso completo daquilo que encontramos à exaustão em nossas redes sociais, em nosso cotidiano hipermediado, aceleradíssimo e hiperexposto. Uma pergunta, neste cenário, fica no ar: entre as décadas de 1950 e 1960, eram comuns e frequentes tais práticas (tais práticas de interação entre escritor e leitor, entre público e artista)? Drummond, particularmente, era um missivista destacado? Ou surgiu, de fato, ali, um exercício singularíssimo, uma prática espantosa, na sua regularidade, na sua motivação espontânea?
Helena Maria Balbinot Vicari não era a fã chata ou a groupie inconveniente, forçando intimidade, não era o jornalista cultural, catando pauta e confidências publicáveis, não era o aprendiz de poeta, atrás de dicas e lições informais de poesia, também não era o pseudo-poeta pretensamente concorrente, não era a professora primária deslumbrada ou o crítico acadêmico, o resenhista profissional. Não cabia, exatamente, em nenhum destes papéis. Excedia cada um destes perfis. Talvez tivesse mesmo se tornado, para Drummond, o leitor ideal, motivado unicamente pelo produto e pela vivência da poesia, as emoções que guarda e encobre.
O filme de Mirela Kruel dialoga com outras produções recentes: “Sobre Sete Ondas Verdes Espumantes” (2013), de Bruno Polidoro e Cacá Nazário, dedicado à vida e à obra de Caio Fernando Abreu; “Só Dez por Cento é Mentira” (2009), “desbiografia” do poeta Manoel de Barros, dirigida por Pedro Cezar; e “Pan-Cinema Permanente” (2008), retrato visceral do poeta baiano Waly Salomão, assinado por Carlos Nader. Todos são ótimos documentários poéticos sobre poesia brasileira, moderna e contemporânea.

Mas observá-los em conjunto, reconhecer as afinidades que têm, as características que compartilham, nos permite formular uma suspeita: se, na década de 1960, a música popular se tornou um canal para a poesia brasileira, uma espécie de câmara de amplificação de nossa sensibilidade poética, dando-lhe maior trânsito e visibilidade, como tem argumentado o professor Luiz Augusto Fischer, citando o exemplo muito emblemático de Chico Buarque de Holanda, talvez hoje, por hipótese, o cinema documentário esteja assumindo este legado, esteja cumprindo não só a função de divulgar o trabalho literário de nossos poetas e de produzir os registros históricos que eles merecem, mas, acima de tudo, a função de dar vazão à inquietação poética, tornar-se poesia, num momento em que a canção popular e a vida cultural, de modo geral, no Brasil, definham.

trailer de "O Último Poema"


sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Gal Costa – Turnê “Estratosférica” – Auditório Araújo Vianna – Porto Alegre/RS (02/10/2015)




Divina e maravilhosa.
Sinceramente pensei que havíamos perdido Gal Costa. Por quase duas décadas, ela, uma das maiores cantoras do Brasil e do mundo havia se afundado numa fase obscura de falta de criatividade e trabalhos opacos que nem a voz cristalina conseguia impulsionar. Parcerias ruins, projetos mal elaborados, repertórios duvidosos, ações de marketing ineficientes. Tudo contribuía para pior a ponto de quase tirar o brilho da intérprete de tantas glórias e êxitos. Porém, em 2012, renascida das cinzas, Gal Costa chama o “mano” Caetano Veloso para exorcizar seus demônios e lança o “divisor de águas” "Recanto", no qual não só retoma uma série de referências que havia deixado no passado quanto, obviamente, se ergue de novo musicalmente.
Não é mesmo à toa que “Recanto” tenha esse título, pois de fato a partir dele tudo mudou para Maria da Graça Costa Penna Burgos, que completa louváveis 50 anos de carreira em 2015. E uma das mostras dessa mudança para melhor é o novo CD “Estratosférica”, cuja turnê passou por Porto Alegre numa memorável apresentação da baiana e sua banda de jovens rapazes. Aliás, a nova geração é que, sob a batuta dessa experiente cantora, dá o tom dos novos trabalho e show. A começar pela direção musical, a cargo de Pupilo (Nação Zumbi), certamente responsável em boa parte pelo tom de rock do show. Igualmente, o repertório é recheado de canções de compositores de agora, como Mallu Magalhães, Marcelo Camelo, Criolo, Zeca Veloso (sim, filho de Caetano!) e Alberto Continentino.
Maravilhosamente bem iluminado e com uma Gal em boa forma física e principalmente vocal, “Estratosférica” é uma aula de construção de repertório e conceito de espetáculo. Mesclando as novas músicas com sucessos e clássicos da carreira, Gal não faz apenas o que se espera como, assim, reassume a função que sempre foi sua desde que se tornou a revolucionária resistente do tropicalismo e a dona de hits incontestes das rádios: a de servir de canal transformador entre o novo e o tradicional na música brasileira. Afinal, foi ela uma das principais responsáveis por gravar, nos anos 60 e 70, os então jovens Caetano, Gilberto GilTom ZéJards Macalé, Luiz Melodia, Jorge Ben e vários outros. stoneano “Sem medo nem esperança”, música do novato Arthur Nogueira com poesia do veterano Antonio Cícero dando o recado pela intérprete: “Nada do que fiz/ Por mais feliz/ Está à altura/ Do que há por fazer” (assim é que nós gostamos de ver, Gal!). Esta emenda com “Mal Secreto”, de Jards e Waly Salomão, gravada por ela no histórico “Fa-Tal” ou “Gal a Todo Vapor”, de 1971. Voltando mais no tempo, Gal revive o ápice do tropicalismo com “Namorinho de Portão”, de Tom Zé, que ganha arranjo tão parecido com o de 1969 que a guitarra de Guilherme Monteiro soa até com aquele distorcido rasgado de Lanny Gordin. Grande momento.
Gal e sua excelente banda.
Nessa linha, o show começa detonando com o rockzão
Como todo bom concerto de rock, a base harmônica está na guitarra, que ganha ora peso ora groove, auxiliado pela bateria de Thomas Harres, pelo baixo de Fábio Sá e, principalmente, pelos teclados do ótimo Maurício Fleury, ora modernos ora retrô-psicodélicos, servindo como elemento climático e de textura. Soa assim a versão de outro clássico, “Não Identificado”, de Caetano, cujos efeitos do sintetizador cobrem muito bem a orquestração intensa e espacial de Rogério Duprat da original. “Pérola Negra”, de Melodia, é outra das antigas que conquista o público. As canções novas não deixam, no entanto, nada a dever para as já consagradas. É o caso de “Quando você olha pra ela”, gostoso samba-rock assinado por Mallu com cara do melhor Jorge Ben: melodia suingada, linha vocal assimétrica e a docilidade romântica de uma “Ive Brussel” e “Moça”. Aliás, Benjor é reverenciado mais de uma vez: primeiro numa embasbacante “Cabelo”, parceria com Arnaldo Antunes que ganha arranjo de funk-rock pesado, tipo Parlaiment/Funkadelic (o que é aquilo!). Lá no fim, Babulina volta em alto estilo para encerrar o show com uma improvável (mas maravilhosa) "Os Alquimistas Estão Chegando", misto de indie e samba-soul (o que é aquilo, de novo!).
Voltando às novas, ainda surpreendem a doce bossa-nova “Pelo fio”, de Camelo, com ares de Carlos Lyra ou Ronaldo Bôscoli; “Ecstasy”, joia nova de João Donato e Thalma de Freitas; a interessante faixa-título, de Maria Poças, Romário Oliveira Jr. e Barreto; e, principalmente, a genial “Por baixo”, um malicioso baião eletrônico de Tom Zé encomendado pela conterrânea: “Por baixo do vestido: a timidez/ Baixo da timidez: a seda fina/ Baixo dela: uma nuvem de calor/ Baixo de calor: um perfume da China...”. Ainda, a bela “Você me deu”, de Caetano e seu filho Zeca, revisitando o conceito de “Recanto”; “Muita Sorte", última música escrita pelo saudoso Lincoln Olivetti (morto em 2014), "Amor, Se Acalme" (de Marisa Monte, Arnaldo e Cezar Menezes); a sensorial “Anuviar”, de Moreno Veloso e Domenico; e a rica “Dez Anjos”, parceria de Criolo e Milton Nascimento, também feita especialmente para Gal. Aliás, para abrilhantar a noite no Araújo Vianna, Bituca, na cidade para um show que faria dali a dois dias, foi prestigiar a amiga.
Como nos velhos tempos, voz e violão.
O clima especial de quem está reverenciando sua própria obra faz com que a artista passe por pontos importantes, e Caetano está presente aí novamente. Além de ser personagem fundamental no resgate da companheira de Doces Bárbaros e o único a ter quatro composições no set-list, é dele ainda outro feito: a primeira canção gravada por Gal (ainda como Maria da Graça), “Sim, Foi Você”, em 1965. Para tocá-la, a própria volta a empunhar o violão, numa das horas emocionantes do show.
A pulsante “Casca” (Jonas Sá e Alberto Continentino), das melhores do show e que novamente remete ao tom kratrock de “Recanto”, fecha muito bem com o hino “Cartão Postal”, de Rita Lee e Paulo Coelho, resgatada com muita sensibilidade por Gal. É o que acontece também com “Arara”, de Lulu Santos, e no desbundante blues de “Como 2 e 2”, em que a cantora repete a performance que faz com que sua interpretação seja tão definitiva quanto a de Roberto Carlos. Por falar em Roberto, é a parceria dele com Erasmo Carlos escrita em homenagem à própria em 1969, o sucesso “Meu nome é Gal”, que fecha o show no bis. Ainda teria mais um impressionante arranjo, este para o samba dor-de-cotovelo de Lupicínio Rodrigues “Vingança”, que vira um bolero modernista, para encanto dos gaúchos.

Foi mais um show deste histórico momento de comemorações de 50 anos de carreira e/ou de 70 anos de idade, aos quais já presenciei de dois anos para cá de Caetano e Gil (tanto juntos quanto separadamente), Milton, Maria Bethânia e da norte-americana Meredith Monk. Ou seja: a celebração de uma geração que, na faixa ou acima dos 70 anos (ponham-se aí os Rolling StonesPaul McCartneyStevie WonderBob Dylan e outros precursores), ainda nos tem muito para dizer. E Gal, para sorte de todos, voltou ao time de forma inteira. Total. Legal. Fa-tal. Estratosférica.





terça-feira, 2 de junho de 2015

Caetano Veloso – “Circuladô” (1991)


Considero ‘Circuladô’
um dos momentos mais altos
da produção de Caetano.
É um CD no qual ele retoma
a interessante linha de experimentalismo
do disco ‘Araçá Azul’, de 1973,
harmonizando-o com o cantabile
de suas canções mais pulsivas e singelas”.
Haroldo de Campos




Meu amor por Caetano Veloso resplandecia quando escutei “Circuladô”. Como qualquer brasileiro, hora ou outra ouvia alguma música desse artista baiano por aí. Porém, na infância (época em que já me ligava em música, vale dizer), meu interesse por aquele cara que apresentava um programa que achava meio chato na Globo com o Chico Buarque era menor do que para com as bandas de rock da época, RPMLegião UrbanaTitãs, entre outros. Essas realmente me empolgavam. Fui escutá-lo com atenção e identificação pela primeira vez em 1988 (aos 9), quando meu irmão trouxe para casa um cassete com um dos discos dele, o qual tinha uma sonoridade leve e acústica que me dava condições de perceber com clareza as ricas construções melódicas, o timbre cristalino da voz e a habilidade composicional de Caê. O disco era “Caetano Veloso”, de 1986, feito para o mercado norte-americano que continha coisas de várias épocas de sua obra, como “Trilhos Urbanos”, “Cá Já”, “Terra” e duas versões magníficas em inglês: “Billy Jean” (Michael Jackson) e “Get Out of Town” (Cole Porter). Foi então que percebi: aquilo era, evidentemente, diferenciado. Tinha que passar a ouvi-lo com mais atenção de modo a não correr o risco de perder algo espetacular que se apresentava à minha frente.

E teria perdido mesmo. Apaixonei-me por seu álbum seguinte, “O Estrangeiro”, de 1989, outro fundamental e no qual ele inicia a grande fase da parceria com o Ambitious Lovers Arto Lindsay e com o eclético maestro Jacques Morelembaum. Mas o disco que realmente me fez entrar de vez na órbita de Caetano foi “Circuladô”, de 1991. No momento em que a MTV brasileira se estabelecia como um canal bom e vendável, a indústria musical nacional, claro, se ligou neste filão. Como já ocorria nos Estados Unidos, músicos passaram a produzir com a mente não só na execução das rádios, mas no videoclipe que produziriam para passar na Music Television. Com o antenado Caetano Veloso, não foi diferente. A música de trabalho do álbum estreou na emissora com um ótimo clipe da Conspiração Filmes (com a participação do grupo de teatro Intrépida Trupe), onde o compositor apresentava algo interessantíssimo: quase só voz e percussão durante os versos, com uma guitarra wah-wah de leve ao fundo, explodindo num samba-reggae no refrão com percussões e samples, “Fora da Ordem” trazia a inteligente verborragia político-filosófica de Caetano sobre sua visão discordante – mas ao mesmo tempo poética – da Nova Ordem Mundial, então recentemente anunciada por Bush “pai”: “Eu não espero pelo dia em que todos os homens concordem/ Apenas sei de diversas harmonias bonitas, possíveis sem Juízo Final”, versava Caetano.

“Fora da Ordem”, mesmo sem um ritmo identificável (não é exatamente rock, reggae, funk ou samba) estourou e virou, em pouco tempo, um hit dos mais tocados na MTV. Ao seu final, engenhosas repetições da frase central da letra (“Alguma coisa está fora da ordem/ Fora da Nova Ordem Mundial...”) ditas em outros idiomas que não o português, como francês, japonês, espanhol e inglês, intercalando vozes do cantor e femininas – entre estas, a de Bebel Gilberto. Esta faixa abre o disco, que adquiri na época com grande interesse de descobrir o que mais conteria. Já na primeira audição, o lado A do meu cassete me arrebataria, sensação que se repete até hoje. Isso porque, depois da música que não cansava de rever todos os dias na TV, viria uma sequência de emocionar. A começar pela faixa que traz a ideia central do álbum: “Circuladô de Fulô”, poesia do filólogo, ensaísta e poeta Haroldo de Campos musicado por Caetano com absoluta genialidade. O compositor já exercitava isso desde os anos 60, tendo posto música sobre poemas de Waly Salomão, Torquato Neto, Gregório de Matos, Paulo Leminski, entre outros. Mas essa é sua obra-prima neste sentido. Remetendo ao baião e ao repente do mais embrionário folclore nordestino, ao mesmo tempo traz a dissonância da vanguarda erudita, a polifonia dos motetos populares medievais e um toque da milenar sonoridade oriental. Caetano desliza o poema sobre os sons, cantando linda e tecnicamente os versos que merecem ao menos a reprodução de um trecho: “O povo é o inventalínguas na malícia da maestria no matreiro da maravilha no visgo do improviso/ Tenteando a travessia/ Azeitava o eixo do sol...”. Algo da melhor poesia já escrita em nossa literatura.

O próprio Haroldo de Campos comentou sobre a canção: “Devo destacar que o trabalho que ele fez, ao musicar o fragmento 'Circuladô de Fulô', de minhas 'Galáxias', é particularmente admirável por retratar com fidelidade seu conteúdo. Ele soube restituir-me com extrema sensibilidade o clima do meu poema, que é, todo ele, voltado à celebração da inventividade dos cantadores nordestinos no plano da linguagem e do som, na grande tradição oral dos trovadores medievais”.

Minhas emoções não parariam. De surpresa, a voz adolescente do filho mais velho de Caetano, Moreno Veloso (ainda não o músico profissional que se tornaria) inicia, juntamente a uma orquestra de cordas arranjada por Morelenbaum, uma das mais belas melodias de todo o cancioneiro de seu pai: “Itapuã”. Lírica, graciosa. Impossível não ser tocado todas as vezes que escuto: “Itapuã, o teu sol me queima e o meu verso teima/ Em cantar teu nome/ Teu nome sem fim”, ou: “Abaeté/ Tudo meu e dela/ A lagoa bela sabe, cala e diz/ Eu cantar-te nos constela em ti/ E eu sou feliz.” Ainda mais depois de ter conhecido a praia de Itapuã e ter sentido física e espiritualmente suas “palmas altas”, suas “águas que se movem” e sua “areia branca”, tão “assim: Caymmi”, como dizem os versos.

Igualmente, toca-me fundo “Boas-Vindas”, um samba-de-roda típico da região de onde Caetano vem, o Recôncavo Baiano. Isso porque o artista celebra a renovação da vida com a chegada de seu novo filho, Tom, ainda na barriga (“Lhe damos as boas-vindas, boas-vindas, boas-vindas/ Venha conhecer a vida/ Eu digo que ela é gostosa...”), cantando com a família e amigos (“Minha mãe e eu/ Meus irmãos e eu/ E os pais da sua mãe...”). O eterno companheiro Gilberto Gil, com sua inconfundível batida de violão; o “príncipe” Naná Vasconcelos, na percussão (talking drum, cerâmica e congas); e D. Edith do Prato, tocando, como diz sua alcunha, um prato de cozinha raspado com um talher. Ainda, Moreno, junto com os outros músicos, mantém o ritmo nas palmas, numa verdadeira festa de interior animada ao som de samba rural. Lindíssima.

Dando uma estratégica pausa nessa sequência, a complexa “Ela Ela” carrega um manancial de referências e sensações. Apenas com Caetano à voz e Arto Lindsay na guitarra, é uma verdadeira peça avant-garde. O característico som do instrumento de Arto, com sua afinação diferenciada e em altas distorção e amplificação, cria traços sonoros que se assemelham aos criados por Cage com seu piano preparado, às cordas agudas de Ligeti, às percussões exóticas de Xenakis e aos ruídos eletroacústicos das fitas magnéticas de Stockhausen. Caetano, por sua vez, exercita um arranjo vocal assimétrico e dissonante, o que, junto aos grunhidos da guitarra, formam não uma melodia palpável, mas um corpo sonoro de puro atonalismo. A letra, por sua vez, remete ao modernismo e ao dadaísmo. “Ela Ela”, no entanto, não lembra apenas essas pontes externas. Na própria obra de Caetano ele já visitara os caminhos da vanguarda (e seguiria visitando, haja vista a “doidecafônica” “Doideca”, do disco “Livro”, de 1997, ou “Cantiga de Boi”, de “Noites do Norte”, 2001). Na trilha que compusera para o filme “São Bernardo”, em 1971, nota-se também semelhanças pelo estilo de canto. Igualmente, nas colaborações com Walter Smetak, nas experimentações de “Araçá Azul” (1973) e “Jóia” (1975) e na explosão moderno-nordestina “Triste Bahia”, do memorável disco "Transa", de 1972.

Se “Ela Ela” quebra a emotividade com seu hermetismo, “Santa Clara, Padroeira da Televisão” volta a fazer os olhos marejarem. Numa interessante abordagem sobre a simbologia e a relevância da tevê, Caetano desmistifica a visão preconceituosa geralmente atribuída a esta mídia (“Que a televisão não seja sempre vista/ Como a montra condenada, a fenestra sinistra/ Mas tomada pelo que ela é/ De poesia...”) e, ainda por cima, expõe recordações e impressões pessoais muito belas (“Quando a tarde cai onde o meu pai/ Me fez e me criou/ Ninguém vai saber que cor me dói/ E foi e aqui ficou...”). Coisa de poeta. Ao final, depois de todos os instrumentos calarem, ainda um improvável solo de trompete bem jazzístico.

Viro de lado a minha fita e me deparo com bucolismo e melancolia. É a versão de Caetano para um baião clássico: “Baião da Penha”, em que reduz o compasso festivo do ritmo para criar uma peça extremamente sensível e chorosa. Caetano a canta no mais alto nível técnico apenas acompanhado de seu próprio violão. Em seguida, “Neide Candolina”, talvez a mais pop do disco cujo brilhante arranjo coloca o baixo e a guitarra em segundo plano para destacar o ritmo da bateria, o arranjo de voz criado por Bebel e, principalmente, os samples do mestre Ryuichi Sakamoto, o compositor japonês mais brasileiro da world music. São os efeitos eletrônicos de Sakamoto que dão o direcionamento da canção, que, ao que se nota só pela descrição, é diferenciada e original.

Tanto quanto é a letra de “Neide Candolina”, que homenageia a professora de Língua Portuguesa que Caetano tivera no primário e com a qual me identifico tamanhamente. Isso porque eu também tive minha “Neide Candolina”: professora Berenice Brito, a Berê. O significado de Berê para mim, também homem das letras, é muito parecido dada a importância formativa que ele atribui à sua mestra. Primeiro, o fato de serem duas “pretas chiques”, “lindas” e “elegantes”, ambas ostentando seus cabelos “pixaim Senegal” onde estiverem, seja na “sua suja Salvador” (no caso de Berê, na também emporcalhada Porto Alegre) ou na “Europa” – ainda mais pelo fato de Berê ter um namorado italiano e ir para o Velho Mundo seguidamente. Igualmente, há a parte em que ele diz: “Tem um Gol que ela mesma comprou/ Com o dinheiro que juntou/ Ensinando Português no Central”. Dadas as devidas localidades e modelos, Berê, que ensinou a mesma matéria a mim e a centenas e centenas de alunos gaúchos na Intercap, tendo se aposentado exercendo isso, também tinha um veículo próprio Wolkswagen (um fusca). Afora todas essas coincidências, ainda o exemplo de caráter e cidadania é característico das duas. Se Neide “nunca furou um sinal” por ser uma “preta correta democrata social, racial”, lembro claramente de Berenice fazendo qualquer aluno (mesmo os que se davam bem com ela, como eu) redigir repetidas vezes como tema de casa todo o hino nacional caso ela tivesse percebido um erro na hora de ouvir-nos cantá-lo.

O clima animado é substituído, em seguida, por um de epicismo e contemplação. É “A Terceira Margem do Rio”, outra obra-prima do disco que se trata de, nada mais, nada menos, uma das raras parcerias de Caetano com outro mestre da música brasileira: Milton Nascimento. Encomendada para a trilha sonora do filme homônimo de Nelson Pereira dos Santos, baseado na obra de Guimarães Rosa, carrega a atmosfera rica e densa do escritor tanto na elegante melodia quanto na letra de alto poder poético de Caetano. O que são de bonitos esses versos? “Meio a meio o rio ri/ Por entre as árvores da vida/ O rio riu, ri/ Por sob a risca da canoa/ O rio riu, ri/ O que ninguém jamais olvida/ Ouvi, ouvi, ouvi/ A voz das águas...”. A música, típica composição de Milton, traz seu tom grandioso, muito brasilianista mas quase românico, e isso apenas em violões e percussões (cerâmica, caxixi e cabaça).

Não deixando a bola cair, “O Cu do Mundo”, bossa-nova meio rock com direito a samples e urros da guitarra de Arto, é outras das mais legais do disco. Lembro-me de ouvi-la na antiga (e finada) Ipanema FM e me impressionar com aquela letra indignada e sem papas na língua: “O furto, o estupro, o rapto pútrido/ O fétido sequestro/ O adjetivo esdrúxulo em U/ Onde o cujo faz a curva/ (O cu do mundo, esse nosso sítio)”. A palavra “cu” dita de forma aberta, no título, era uma das primeiras mostras conscientes de libertação da censura que o Brasil recentemente vivia e que descambaria na idiotice desbocada dos Mamonas Assassinas. À medida que as partes vão se repetindo, vão entrando as vozes convidadas: primeiro, de Gilberto Gil e, depois, de Gal Costa, num arranjo vocal precioso que Caetano forjaria de maneira semelhante novamente 19 anos depois na música “Cobra Coral”, quando chamara para dividir os microfones com ele Lulu Santos e Zélia Duncan. Até o jazzista Butch Morris faz uma ponta em “O Cu do Mundo”, com um intenso solo de corneta, certamente contribuição como produtor de Arto, o pernambucano mais norte-americano da world music.

Canção irmã de “Você é Linda” (e de “Você é Minha”, que seria gravada seis anos depois em “Livro”) “Lindeza”, romântica e suave, é realmente muito bela. Juntamente com o violão-base, estão o contrabaixo, as cordas e o piano de Sakamoto, que retorna para finalizar o disco em grande estilo num arranjo criado a seis mãos por ele, Arto e Caetano. Um acorde grave e ressonante do piano desfecha esse disco irrepreensível, resultado de um momento de aperfeiçoamento das técnicas de estúdio (foi gravado no Brasil e em Nova York, onde também foi mixado e masterizado) e de boas parcerias com a permanente criatividade de Caetano. “Circuladô” é tão representativo que passou a servir como referência para outros discos do próprio autor no que se refere à arquitetura de repertório. Além das parecenças que já mencionei durante essa resenha, isso fica evidente ao se fazer ainda outros paralelos, como os começos pop de “Zii et Zie” (2009, com “Perdeu”) e "Abraçaço" (2012, com “A Bossa Nova é Foda”), a musicalização de autores da literatura como tema principal do projeto (“Noites do Norte”, este sobre texto de Joaquim Nabuco) ou a faixa dedicada à indignação político-social (“Haiti”, de “Tropicália 2”, de 1993, e “A Base de Guantánamo”, de “Zii et Zie”).

Quanto a mim, o impacto que “Circuladô” exerceria seria ainda maior. Com apenas 13 anos, fui ao show de sua turnê em Porto Alegre, no antigo Teatro da Ospa, o primeiro que assisti sozinho em minha vida. Claro que eu, negro de classe média e muito jovem, era uma entidade estranha naquele lugar, principalmente considerando aquela Porto Alegre de era Collor em que a maioria dos meus pares ou não se interessava, ou se constrangia em ir ou não tinha condições de ver um espetáculo como aquele. Mas os olhares eram mais de admiração do que de censura. Para mim, foi divertido e emancipador. No entanto, mais do que isso, foi a partir dali que definitivamente me apaixonei pela obra e pelo universo de Caetano. Foi a partir dali que meu amor por ele resplandeceu. Foi a partir dali que tudo virou fulô.

vídeo de "Fora da Ordem", Caetano Veloso

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FAIXAS:
1. Fora da ordem
2. Circuladô de fulô (Caetano Veloso/Haroldo de Campos)
3. Itapuã
4. Boas vindas
5. Ela ela (Veloso/Arto Lindsay)
6. Santa Clara, padroeira da televisão
7. Baião da Penha (Guio de Morais/David Nasser)
8. Neide Candolina
9. A terceira margem do rio (Veloso/Milton Nascimento)
10. O cu do mundo
11, Lindeza

todas as composições de autoria de Caetano Veloso, exceto indicadas.
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OUÇA O DISCO:







terça-feira, 21 de abril de 2015

Maria Bethânia – Show “Abraçar e Agradecer” – Teatro do SESI – Porto Alegre/RS (16/04/2015)



O encanto e a graça de Bethânia no Teatro do SESI
foto: Amanda Costa
Não sou um expectador de shows tão rodado, bem como sei que já perdi muitos deles que nunca mais assistirei, pois os artistas já se foram para outro plano. Mas sei também que já vi muita coisa boa pelos palcos da vida, e dificilmente algo se comparará ao megaespetáculo de Paul McCartney no Estádio Beira-Rio ou, noutra ponta, ao “concerto caseiro” que Paulinho da Viola proporcionou aos porto-alegrenses num belo domingo matinal na Redenção. Mas o que estou falando não tem nada a ver com isso. Tem a ver com a talvez maior cantora, maior performer, maior intérprete viva deste esférico e redundante planeta: Maria Bethânia. E em se tratando de Bethânia não há comparação.
O espetáculo “Abraçar e Agradecer”, apresentado por ela no Teatro do Sesi, em Porto Alegre, comemorando irrepreensíveis 50 anos de sua carreira, deixa muito claro todas essas acepções: vê-se uma artista plena no palco, ciente e aproveitadora de sua trajetória, carregada pelo alto profissionalismo e por suas próprias individualidade, apaixonada pelo o que faz. Como muitos gostam de dizer – mas que a ela se atribui de fato –: uma diva. Foram cerca de 1 hora e 45 minutos que percorrem vários momentos de sua trajetória como uma das mais importantes artistas da história da música brasileira.
Sob luzes intensas de um cenário magnificamente montado por Bia Lessa apenas por estas, Bethânia entra no palco. E é ai que tudo se ilumina de fato. A abertura é tão grandiosa quanto autorreferencial: “Eterno em Mim”, de autoria do mano Caetano Veloso, compositor preferido dela (junto com Chico Buarque) e de maior presença no repertório do show, com seis canções ao total. Tão lindo e completo que minha sensação era de que, logo que terminou o primeiro número, a apresentação poderia terminar ali. Exagero meu, pois tinha muito mais. Mais uma, “Dona do Dom” (de Chico César, de quem também Bethânia cantara outra marcante do show, o fado milongado “Xavante”), e vem um belíssimo poema da própria Bethânia, misto de agradecimento ao público, aos orixás, à natureza, aos amigos, à vida e a si mesma. Tão bonito que não deixa em nada a dever aos outros textos que, como de costume, ela entremeia às canções nos seus shows. Neste espetáculo, obviamente, não poderia ser diferente: tem Clarice Lispector (com três passagens), Waly Salomão, Carmen Oliveira e Fernando Pessoa.
Mas voltando às músicas, o repertório celebra sua história na música brasileira, mas, exceto o hit “Gostoso Demais” (Dominguinhos e Nando Cordel), evita obviedades como “Fera Ferida”, “Reconvexo”, “Álibi” ou “Um Índio”. Mas clássicos há, e vários deles. Tanto que Bethânia arrasa numa versão vibrante e comovente de “Gita”, de Raul Seixas e Paulo Coelho. Todas as músicas se emendam umas nas outras, o que faz com que intensifique ainda mais a montanha-russa emocional que ela impõe ao público, pois além da carga gerada pelas próprias músicas, ainda não dá tempo de respirar entre estas. No caso, “Gita” se liga com outra de Caê: a lírico-romântica “A Tua Presença Morena”, joia que o genial irmão compôs-lhe para o álbum “A Tua Presença”, de 1971, ainda no exílio em Londres. De arrebatar. Aí vem outra dele para ela: “Nossos Momentos” (“Quem pode compartilhar dos meus sentimentos/ Na hora que o refletor bater/ Momentos de luz e de nós/ Momentos de voz e de sonho/ Momentos de amor que nos fazem felizes/ E às vezes nos fazem chorar”), num diálogo tanto com o que veio antes quanto com o trecho de Lispector lido na sequência, que diz: “Antes de julgar a minha vida, calce os meus sapatos, percorra o caminho que percorri, viva as minhas tristezas, minhas dúvidas, viva as minhas alegrias. Tropece aonde eu tropecei, e levante-se assim como eu fiz.”
Gonzaguinha, outro importante parceiro, amigo e compositor da carreira de Bethânia, retoma a seção musical metalinguisticamente: “Começaria Tudo Outra Vez”. No palco de LED em que Bethânia pisa se projetam de diversas formas: flores, estrelas, letras, desenhos, geométricos. E as luzes sobre ela ajudam a marcar a incrível performance de uma artista que dança e interpreta com alegria e jovialidade, apesar dos cabelos tomados de branco e os quase 70 anos. “Alegria”, aliás, é o que ela traz em seguida no lindo samba de Arnaldo Antunes, que ganha batuques de axé. Logo após, “Voz de Mágoa” (Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro), uma tocante interpretação do clássico bossa-novista “Dindi” e uma ainda mais emocionante execução de “Você Não Sabe”, de Roberto e Erasmo, compositores “incultos” para a dita intelligentsia que Bethânia fora uma das primeiras a demonstrar a beleza de suas construções melódicas. Quando se pensa que vai se respirar um pouco, ela vem com “Tatuagem”, de Chico e Ruy Guerra, e aí os olhos marejam inevitavelmente.
Depois de novo texto de Lispector, Chico retorna noutra marcante na carreira de Bethânia: a apoteótica “Rosa dos Ventos”, título do memorável show da cantora de 1971 quando ela consolida este formato de apresentação altamente íntima e com composições de diversas vertentes. Um pout-pourri com a ótima banda comandada por Jorge Helder preenche o interlúdio, quando Bethânia sai para trocar de figurino e voltar para o segundo ato. “Tudo de Novo“, mais uma de Caetano, faz a montanha-russa, que havia estacionado por alguns minutos, voltar com toda a velocidade.
As referências aos orixás, principalmente Iansã e Oxum, e aos elementos “água” e “vento” aparecem do início ao fim, e bastantemente nesta segunda parte. “Doce”, de Roque Ferreira (“A lagoa escura que a Bahia tem/ Que a areia branca rodeou/ São as águas de Oxum que Caymmi batizou...”), ”Oração de Mãe Menininha”, de Caymmi (“E a Oxum mais bonita, hein? Tá no Gantois...”), “Eu e Água”, outra de Caetano (“O mar total e eu dentro do eterno ventre/ E a voz de meu pai/ voz de muitas águas”) dialogam entre si e mostram claramente isso. A música que dá título ao show, de Gerônimo e Vevé Calazans (porém na ordem inversa: “Agradecer e Abraçar”), mantém a mesma linha: “Abracei o mar na lua cheia...”. Igualmente as três de Roque Ferreira que vêm em sequência: “Vento de Lá” (“Foi o vento de lá, foi de lá que chegou/ Foi o vento de Iansã dominador que dormia...”), “Imbelezô Eu” (“Alecrim beira d'água/ Que me beijou percebeu/ Alguma coisa em mim aconteceu/ A mão que me tocou imbelezô eu...”) e a bela “Folia de Reis”.
Um samba antigo, “Mãe Maria”, de Custódio Mesquita e David Nasser, precede outra maravilhosa declamação de Bethânia – como talvez no Brasil ela seja a que melhor o saiba fazer –, agora com poesia do conterrâneo Waly: “Cresci sob um teto sossegado, meu sonho era um pequenino sonho meu. Na ciência dos cuidados fui treinado/ Agora, entre meu ser e o ser alheio, a linha de fronteira se rompeu.”. Neste momento, Bethânia, dona do repertório, faz um singular paralelo entre a música rural (“Eu, a Viola e Deus”, “Criação”, “Casa de Caboclo”, “Viver na Fazenda”) com a raiz indígena brasileira (“Povos do Brasil”, o canto tupi “Maracanandé” e a já citada “Xavante”) com o autorreconhecimento da voz (“Alguma voz”, outra de PC Pinheiro e Dori, e “Motriz”, última de Caetano no show), seleção de músicas cujo simbolismo, entremeada pelo pungente e feminino texto “Candeeiro”, de Carmen Oliveira, representa a sua própria existência como pessoa e cantora.
“Eu Te Desejo Amor”, canção francesa de Charles Trenet e Léo Chauliac, de 1942, vertida para o português por Nelson Motta, arrebatou o público, que a essas alturas já a aplaudia de pé. Ao final desta, por sinal, dois minutos de aplausos diante de uma Bethânia visivelmente emocionada que dizia: “Que plateia é essa?!”. Mas o deslumbre não terminaria ali, pois, depois de ler um de seus poetas preferidos, Pessoa, Bethânia inunda de emoção o teatro com uma interpretação, esta em francês de fato, do clássico de Edith Piaf “Non, Je ne Regrette Rien”, enquanto uma projeção no chão de uma faixa de estrada parece cruzar-lhe o peito em alta velocidade.
“Silêncio” fecha o show em versos que traduzem a despedida e a delicadeza daquele momento tão especial, tanto para a artista quanto para o público: “Silêncio, eu quero ouvir o que me diz a imensidão/ Saber se minha alma tem razão/ Quando acredita que essas coisas vão durar”. A banda encerra ao som de outro marco da trajetória de Bethânia: “Carcará”, de João do Vale. Sob um mar de aplausos ela sai do palco, mas logo retorna para entoar dois sucessos: `”É o Amor”, de Zezé di Camargo e Luciano, que ela, em 1999, recolocou num outro patamar interpretativo, e “O que é o que é”, o grande sucesso de Gonzaguinha. É quando a plateia, já de pé e dançando, entoou junto com ela os inesquecíveis versos: “Viver/ E não ter a vergonha de ser feliz/ Cantar e cantar e cantar/ A beleza de ser/ Um eterno aprendiz...”.
Pra mim, admirador de sua obra e colecionador de vários de seus discos, a sensação que saí foi, além do deslumbre, de que Bethânia, ainda por cima, é ótima de estúdio. Pois a maior certeza que se tem é que ela é inteiramente do palco. Como disse no início, dificilmente verei apresentações melhores de algumas que já vi, pois estas estão guardadas no coração do diletante. Mas como este show de Maria Bethânia, a quem vi pela primeira vez, acho que nunca mais presenciarei. Ao fim, as cortinas se cerram e não se vê mais Bethânia, mas, como dizem os versos de Chico: “Sei que além das cortinas/ São palcos azuis/ E infinitas cortinas/ Com palcos atrás.” Bethânia está sempre lá, atrás das cortinas, além das cortinhas. Ela é luz, ela é azul, ela é o palco.



segunda-feira, 23 de março de 2015

cotidianas #358 - Casa




"Dentro de Casa"- RODRIGUES, Daniel
grafite sobre sulfite com manipulação digital
nem tudo que
me consome
me
pertence

se
pense
o bolo do
pensamento
coze
e tudo
tudo mesmo
se dissolve

nem tudo
nem tudo mesmo
me convence
convivo, vivo
mas
contudo
suo

deságuo
no líquido
doido
que faz girar a minha
cabeça
de labirinto

Nix e Baco
se congraçam
feiticeiras e bruxas
tomo-me
tomo
engulo o líquido que me
desnorteia

é quando nasce
um poema
Gaia, Eros, Érebo e Caos
calmos
dentro do assim

aos píncaros
suo
e
se pulso
é, pois que
tudo
onde caibo
me pertence
me consome
e se
some
a tantos vire
o nada
absorto
absoluto


(a Waly Salomão)

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Casa

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

“Poesia Total”, de Waly Salomão – Ed. Companhia das Letras (2013)


Where's Waly?
por Leocádia Costa




“Nascer não é antes, não é ficar a ver navios,
Nascer é depois, é nadar após se afundar e se afogar...” 
Waly Salomão,
trecho do poema “Sargaços”


“Que o leitor, livre dos lugares-comuns, possa agora,
perambular livremente entre as falanges das máscaras que povoam
os libanos de sonho da mente régia de Waly Salomão,
um dos poetas mais originais e vigorosos do nosso tempo.” 
Antonio Cícero





            Cada vez que escuto uma canção ou sua voz falando verborragicamente sobre algum tema, paro. Ler não é a mesma coisa. Parece que a voz de Waly Salomão ou a sua poesia transformada em canção tem que estar no volume máximo. Assim, daquele jeito que o coração dispara, os olhos se fixam no interlocutor e a mente divaga.
         Sempre uma cena mágica abre-se com sua presença. Ora pela risada estrondosa, ora pelo seu porte de Rei Salomão. Lá de cima, com o limite cacheado dos cabelos, observa com muita acidez o que ocorre nas entrelinhas da sociedade. E não perdoa. Solta as palavras como leões ferozes, coreografados como se fossem um cardume infindável de peixes dançarinos em nossa frente, chamando a atenção, hipnotizando.
Waly sempre intenso,
escrevendo ou falando
       Confesso que o conheci por vias tortas. Explico. Custo a perceber as autorias, e olha que minha desatenção já foi pior. Só quando alguma composição me toca é que mergulho nos créditos, senão deixo um espaço livre para que as informações que valem a pena se fixem. Talvez uma forma de backup saudável em tempos que tudo interessa, tudo é cool, tudo deve ser fixado, aprendido numa mente que não pode ser ampliada com acréscimos de memória eletrônica. Afinal “A memória é uma ilha de edição”, não?
            Não soube da existência e paradeiro de Waly por muitos anos. Tempo demais, mas que me permitiu escutá-lo numa palestra em Porto Alegre na Usina do Gasômetro, junto com a minha irmã, em 1998. E lá estava Waly, ocupando um dos lugares na mesa, o homem das Artes múltiplas, dos dizeres não-óbvios, das filosofias vãs e das frases sem comprometimento com o dever de dizermos o que deve ser dito. Diga você o que quiser, mas escute também o que vier. Dali em diante prestei atenção nele. E descobri muito lentamente onde ele estava morando. Em quais espaços estava presente. Desde então sempre quis saber por “Onde estava o nosso Waly?” como se um mapa sinônimo da personagem Wally criado pelo ilustrador americano Martin Handford pudesse avistá-lo, numa terra à vista, em meio a tantos cacarecos desnecessários à essência humana. Afinal é fundamental selecionar o que queremos receber, privilegiar aquelas produções que sejam sintonizadas conosco, abrir espaço para aquilo que nos desacomoda. A vida sem desafios torna-se muito tediosa e improdutiva.
Waly era assim, desafiava a todos, começando por si próprio. Não poupava os seus compatriotas, não poupava sua nação de escutá-lo. Baiano, filho de Xangô e virginiano (“Eu deliro, mas tenho os pés no chão porque sou de virgem”) sempre esteve ligado aos coletivos.  Gostava de dizer: “Chega do papo furado de que o sonho acabou: A Vida é Sonho. A Vida é Sonho. A Vida é Sonho.” como um cale-se a quem dizia que o sonho havia acabado, gerando uma onda de baixa estima a tudo que fosse revolucionário. Irreverente, sempre. Múltiplo também. Porque dizer algo que não tenha um pouco de poesia, humor e sarcasmo misturados? De origem síria, não escondia suas raízes “estrangeiras”, mas também sua relação com essa pátria em que todos vivemos paridos pelo caos. Isso não o assombrava: o que seria diferença para outros, para ele era semelhança.
            Lemisnki dizia que Waly “se não chegou a se tornar tudo, foi muitas coisas”. Isso, claro, para a nossa sorte que bebemos um pouco de lucidez através da sua poesia. Entre 1970 e 2000, Waly atuou como poeta, ensaísta, letrista, articulador cultural, diretor de espetáculos, artista visual e homem público. Dirigiu entre outros o espetáculo “FA-TAL – Gal a todo vapor”; de Gal Costa, esteve na Direção da Fundação Gregório de Matos de Salvador e coordenou o Carnaval da Bahia. Seus poemas foram musicados por muitos artistas, entre eles: Caetano VelosoGilberto GilJards MacaléJoão Bosco e Adriana Calcanhoto.
            Depois de 11 anos da sua passagem, em 2003, a editora Companhia da Letras lançou com a bênção dos herdeiros a poesia completa de Waly, “Poesia Total”. Cada vez que a família de algum artista faz essa ação de compartilhar de forma organizada e acessível à obra de quem não pode mais decidir sobre publicações, sinto-me esperançosa. As publicações são formas de perpetuar a obra de um artista, daí meu agradecimento pela reunião da produção do artista.
            Ali estão os poemas e as reflexões de Waly. Minhas prediletas são os poemas que viraram canções: “Vapor Barato” com Gal; “Mal Secreto” com Jards; “Mel” e “Cobra Coral”, ambas na voz de Caetano Veloso; “Fábrica do Poema”, em homenagem à arquiteta italiana Lina Bo Bardi, a hipnótica “Pista de Dança” e a recente “Teu nome mais secreto”, todas na voz de Adriana Calcanhoto; “Zumbi (A Felicidade Guerreira)” e “Ganga Zumba (O Poder da Bugiganga)”, que encantam no filme “Quilombo”, na voz de Gil; a descontraída e pontual “Assaltaram a Gramática”, musicada por Lulu Santos e gravada por Paralamas do Sucesso; “Memória da Pele”, musicada e gravada por João Bosco e outros poemas dedicados em pura palavra-sentimento a Solange Farkas, in memoriam à Lygia Clarck e a Luiz Zerbini, além do amoroso poema “Mãe dos Filhos Peixes” a sua Yemanjá: Martha.
            Waly, diferente da personagem americana que tem em seu protagonista um jovem adolescente, cresceu. Ele que diz: “Tenho fome de me tornar em tudo que não sou”, porém soube ser muitos sendo um só. Amadureceu cedo demais. O poeta Alexei Bueno comenta uma obra de Waly, “Lábia, 1998”, sua retomada cortante e límpida com as palavras, mais adiante na resenha diz que está na sintaxe sua mais poderosa característica. Senão isso, talvez a clareza e a assertividade de pensamento fazem de Waly um poeta que nos deixa suspensos numa ponte pênsil a cada palavra dita. Em Desejo&Ecolalia, de 1995, ele diz: “O que é que você quer ser quando crescer? Poeta polifônico”. E foi assim que ele nos alcançou em meio ao caos pertinentes da mesma pátria em que vivemos.




O "Pocket Waly", apresentado na
60ª Feira do Livro de POA
            Ainda no ano passado, uma dupla de músicos, Thiago Pirajira e Ricardo Pavão, levaram sua poesia em canção em plena Feira do Livro de Porto Alegre – 60ª edição no “Pocket Waly”. A performance sonora misturava canções e dizeres de Waly e lotou a Tenda de Pasárgada, tradicional palco para apresentações montado durante a Feira. Waly estava ali cintilando de dourado e negro em meio aos violões e vozes. Podia ver-se Waly vestido num parangolé pamplona junto com Oiticica, enfeitado de muita sensibilidade e delicadezas que ele possuía igualmente a sua capa de devaneio concreto. Vivo.
           Se você nunca esbarrou na obra de Waly Salomão ou nem pensou em procurá-lo, mude de rota. Estabeleça uma meta e persiga-o incessantemente. Se conseguir alcançá-lo não desista nas primeiras leituras: siga sereno, mas constante. Leia, cante e diga em voz alta sua poesia. Aos brados retumbando suas frases você sentirá o que ele tinha internamente. Um vulcão prestes a explodir! E sabemos que as terras próximas aos vulcões são sempre as mais férteis, mas suas lavas podem queimar. Mesmo assim siga em frente, rompa essa fronteira. Se necessário queime-se, transforme-se. Vale a pena. 


Adriana Calcanhoto canta Waly