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quarta-feira, 7 de agosto de 2019
Música da Cabeça - Programa #122
Agosto é mês de cachorro louco? Então haja loucura pra começar o mês defendendo o Xingu, comemorando o aniversário de Caetano Veloso ou lembrando dos 50 anos do primeiro disco da The Stooges. Tudo isso e mais um montão de coisas loucas e importantes vão estar no Música da Cabeça desta quarta, como Black Alien, Jamiroquai, Gal Costa, Kraftwerk, Cyndi Lauper e mais. Se liga no MDC de hoje, então, às 21h, na Rádio Elétrica. Produção e apresentação: Daniel Rodrigues - sem antirrábica.
quarta-feira, 17 de abril de 2019
Música da Cabeça - Programa #106
Albert Einstein estava certo. Pensam que estamos falando desse tal de buraco negro? Que nada! O famoso físico alemão usou todo o seu alto conhecimento para prever que hoje, 17 de abril de 2019, terá Música da Cabeça! Essa grande descoberta da humanidade contará com Garbage, The Beatles, Kamasi Washington, The Claypool Lennon Delirium, Gal Costa, Criolo e mais! Além disso, "Música de Fato", "Palavra, Lê" e um "Sete List" literário para deixar tudo registrado para a posteridade. E não é que tio Einstein ainda acertou o horário e o local?! Às 21h, na Rádio Elétrica. Então, vai na dele, que é quente! Produção e apresentação: Daniel Rodrigues (mas é bom esse Einstein, hein?)
Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/
segunda-feira, 2 de abril de 2018
"Tropicália" ou "Panis et Circencis" - vários (1968)
O Descobrimento do Brasil
“Eu organizo o movimento/
Eu oriento o carnaval/
Eu inauguro o monumento/
No planalto central do país.”
Versos da canção “Tropicália”, de Caetano Veloso
“SEQUÊNCIA 5 – CENA 9
INTERIOR, NOITE EXTERIOR, DIA, ESTÚDIO DE GRAVAÇÃO. NARA, GAL, GIL, CAETANO, TORQUATO, CAPINAN E OS MUTANTES. FRENTE AO MICROFONE. OBEDECEM AO MAESTRO ROGÉRIO DUPRAT. UNÍSSONO.
TODOS – As coisas estão no mundo, só que é preciso aprender.
CORTA.”
Trecho do texto do encarte original de “Tropicália”
“Só a ANTROPOFAGIA nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.“
Trecho do Manifesto Antropofágico, de Oswald de Andrade, 1928.
Desafiador, por óbvio. Afinal, isso significa, antes de saber identificar o que é de fora, entender o que pertence a si próprio. Complicado de concretizar, ainda mais em terras tupiniquins historicamente subjugadas e inferiorizadas. Houve quem topasse a briga, contudo. E não foi um alguém, mas um grupo. Em 1967, Caetano Veloso e Gilberto Gil, filhos da santa Bahia imortal e seguidores da bossa-nova de João Gilberto, organizaram o movimento e orientaram o carnaval. Sob a égide das ideias oswaldianas, criaram aquilo que pertinentemente se chamou de “Tropicália”, disco e movimento, que estão completando celebráveis 50 anos. Vestidos de parangolés por dentro e por fora, eles, mais os representantes da Paulicéia Desvairada Mutantes e Rogério Duprat, os conterrâneos baianos Gal Costa e Tom Zé, a carioca Nara Leão o os poetas tão nordestinos quanto universais Torquato Neto e Capinan, fizeram aquilo que o continental, desigual e rico Brasil moderno ensejava: estabelecer uma verdadeira ponte entre o rural e o urbano, a alta e a baixa cultura, o bom e o mau gosto. Vicente Celestino dialogava, sim, com rock britânico, e Carmen Miranda não ficava abaixo da avant-garde. O mesmo para com Luiz Gonzaga em relação à Disney, ou os sambistas do morro à linhagem clássica do Velho Mundo. Tudo junto e misturado. Era mais que um desejo: era uma necessidade.
Caetano e Gil à época do Tropicalismo, as duas principais cabeças do movimento |
A influência do rock psicodélico da época está totalmente presente, como na colegam das faixas, igual ao então recente e já referencial “Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band”. Mal “Miserere...” anuncia seu término, já começam a se ouvir estrondos intermitentes. É a percussão martelada de “Coração Materno”, a superversão do seresteiro Vicente Celestino pela ótica tropicalista. Inspirando-se na veia sinfônica dos Beatles (“She’s Leaving Home”, “Eleanor Rigby”, entre outras), mas superando-os em conceito, a música evoca a orquestração carregada de Duprat e o canto emotivo de Caetano para dramatizar (ainda mais!) a canção escrita nos anos 30, redimensionando seu caráter operístico. Novamente, a dialética clássico versus popular. Ao mesmo tempo, a nova leitura moderniza o antigo original, cuja certa breguice esconde um ar tragicômico, dando-lhe um caráter de seriedade que o faz parecer... ainda mais tragicômica! Fina ironia.
É a vez, então, dos Mutantes aparecerem pela primeira vez com “Panis et Circencis”, um dos hinos do movimento e tão importante no repertório que subtitula o projeto. A produção impecável e ousada de Manuel Berenbein põe os acordes do Repórter Esso – noticiário de radio e telejornalismo símbolo da cultura de massa daquele Brasil – antecipando a exótica melodia que vem a seguir, misto de balada medieval com cantata italiana. A letra faz aberta crítica às “pessoas da sala de jantar”, a burguesia alienada apenas “ocupada em nascer e morrer”. Metalinguística, lá pela metade da faixa, o coro de Rita Lee, Arnaldo Baptista e Sérgio Dias é emulado como se o tape tivesse sido desligado. Um segundo momento na música traz solos de flauta e corneta e repetições de versos enquanto o andamento acelera para, em nova interrupção, entrar a ambiência de uma sala de jantar com pessoas à mesa, quando, enfim, tudo acaba sendo engolido de vez por um som agudo. Só no terceiro final, aí que a música acaba realmente. Como numa edição de um filme de Glauber Rocha ou um quadro de Hélio Oiticica, a fragmentação e a descontinuidade que traduziam os tempos confusos de então.
Nunca se vira nada igual na música brasileira (e nem mundial) até então.
Fragmentação na edição de "Terra em Transe", de Glauber Rocha, de 1967
Eis que dá a impressão de que tamanha subversão parece ser superada com “Lindoneia”, um bolero classicamente orquestrado e com a doce voz de Nara, símbolo da bossa-nova e do “bom gosto” consensual na música brasileira. Ledo engano. Inspirada numa tela do artista visual Robens Gerchman – aliás, autor da arte da capa do disco –, “Lindoneia” remonta a história de depressão de uma linda modelo que, diante da hipocrisia asfixiante da sociedade moderna, se suicida. “Despedaçados, atropelados/ Cachorros mortos nas ruas/ Policiais vigiando/ O sol batendo nas frutas/ Sangrando”. São as imagens que as retinas da jovem não conseguem parar de enxergar até que, fatalmente: “No avesso do espelho/ Mas desaparecida/ Ela aparece na fotografia/ Do outro lado da vida”. Sem precisar das famigeradas guitarras elétricas, combatidas pelos conservadores da MPB àqueles idos, a música é tão impactante e provocativa quanto o restante.
Na linha do que pautaria toda sua obra, “Parque Industrial”, de Tom Zé – que ainda gravaria o primeiro disco solo naquele ano –, é outra obra-prima de “Tropicália”. A sonoridade de bandinha marcial, como se celebrasse ignorantemente a industrialização do sentimento humano, é típica da ironia do baiano de Irará. Ele critica num só tempo as indústrias do entretenimento, dos bens de consumo e da comunicação, sem deixar de dar uns tapas na Igreja Católica: “Despertai com orações/ O avanço industrial/ Vem trazer nossa redenção”. E o refrão diz, impiedoso: “Pois temos o sorriso engarrafado/ Já vem pronto e tabelado/ É somente requentar/ E usar/ Porque é made, made, made, made in Brazil”.
O baião-exaltação “Geleia Geral” tem na poesia de Torquato e na brilhante melodia de Gil outro hino tropicalista, quase um ideário ali condensado. “Um poeta desfolha a bandeira/ E a manhã tropical se inicia/ Resplendente, cadente, fagueira/ Num calor girassol com alegria/ Na geleia geral brasileira/ Que o jornal do Brasil anuncia”. A letra carrega a complexidade cultural que a Tropicália descobria, como que tirando um véu das escondidas “relíquias do Brasil”:“Doce mulata malvada/ Um LP de Sinatra/ Maracujá, mês de abril/ Santo barroco baiano/ Superpoder de paisano/ Formiplac e céu de anil/ Três destaques da Portela/ Carne seca na janela/ Alguém que chora por mim/ Um carnaval de verdade/ Hospitaleira amizade/ Brutalidade, jardim.” Brasilianista, carrega em seus versos Macunaíma, Sérgio Buarque de Hollanda, cultura de massa, diáspora africana, arte popular, folclore. Uma das mais belas letras do cancioneiro nacional.
Instalação "Tropicália", de Oiticica, de 1966, antecipando o movimento |
A poesia concretista-visual da letra de"Bat Macumba" |
A pretensão modernista ainda hoje é digerida pelos dentes do Tropicalismo. Mesmo tão influente que foi e é, ainda lhe restam pedaços mal comidos sobre o prato – basta ver, hoje, o abismo que há entre Anitta e Criolo, dois influenciados. Por querer ou não, o movimento abriu caminho para a proposição de uma verdadeira identidade nacional, uma expressão brasileira salvadora. A Tropicália, em sua assimilação da antropofagia, fez o contrário dos inocentes índios quando os europeus lhes compravam com meros espelhos: dessa vez, foi o nativo quem apresentou o espelho para o forasteiro e lhe disse: “Olha só como eu sou”.
O Tropicalismo pôs o Brasil sobre um palco iluminado pelo sol dos trópicos e ornamentado com frutas e vegetação – com direito a mulatas rebolando e declamações de poesia ufanista. Sugeriu que o Brasil enxergasse a si próprio, que se lhe percorresse as matas, os sertões,os mangues, as praias e os morros. Conhecesse por dentro suas mansões, malocas, palafitas e ocas. Considerou admitir-se complexo, pois mestiço e pluricultural. Levantou a esperança da realização da alternativa alegre e sábia diante dos outros povos do mundo. “A alegria é a prova dos nove”, como já preconizava o Manifesto Antropofágico.
Se “o Brazyl não conhece o Brasil”, pois “nunca foi ao Brazil”, como disse certa vez Tom Jobim, a Tropicália propôs uma ruptura emancipadora a estes tristes trópicos. Ir a seu próprio encontro, mas não ao vento de caravelas, e sim, de expresso. De número 2222. No embalo do ritmo alucinante da modernidade para forjar o renascimento de uma nação. Como um (re)descobrimento do Brasil.
FAIXAS
1. "Miserere Nóbis" (Capinam, Gilberto Gil) – com Gilberto Gil - 3:44
2. "Coração Materno" (Vicente Celestino) – com Caetano Veloso - 4:17
3. "Panis et Circencis" (Caetano Veloso, Gilberto Gil) - Os Mutantes - 3:35
4. "Lindoneia" (Caetano Veloso) – com Nara Leão - 2:14
5. "Parque Industrial" (Tom Zé) – com Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa, Os Mutantes e Tom Zé - 3:16
6. "Geleia Geral" (Gilberto Gil, Torquato Neto) – com Gilberto Gil - 3:42
7. "Baby" (Caetano Veloso) – com Gal Costa e Caetano Veloso - 3:31
8. "Três Caravelas (Las Tres Carabelas)" (Algueró Jr., Moreau. Versão: João de Barro) - Caetano Veloso e Gilberto Gil - 3:06
9. "Enquanto seu Lobo Não Vem" (Caetano Veloso) - com Caetano Veloso, Gilberto Gil e Rita Lee - 2:31
10. "Mamãe, Coragem" (Caetano Veloso, Torquato Neto) – com Gal Costa - 2:30
11. "Bat Macumba" (Caetano Veloso, Gilberto Gil) – com Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil e Os Mutantes - 2:33
12. "Hino ao Senhor do Bonfim" (Artur de Sales, João Antônio Wanderley) com Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil e Os Mutantes - 3:39
OUÇA O DISCO
Vários - "Tropicália"
Daniel Rodrigues
quinta-feira, 2 de outubro de 2014
Gal Costa - "Recanto" (2012)
Cantar, Recantar
“Quando eu subo no
palco,
com esse som, os músicos, o repertório,
com tudo que ele representa pra
mim e pras pessoas,
é uma emoção muito forte.
É como uma entidade que me toma,
me arrebata. É o meu momento e também
é meu encontro com Caetano,
que sempre
gera alguma coisa forte, big-bang.”
Gal Costa
Caetano Veloso lança seu melhor disco desde os anos 70. Ops! Ato falho.
Desculpem: não foi ele, e sim a também baiana, também tropicalista, também
cantora Gal Costa com o CD “Recanto”, certamente seu melhor trabalho desde
“Cantar”, de 1974. Porém, meu engano não foi em vão: assim como o mencionado LP
dos anos 70, marcante obra do tropicalismo a qual Caetano dirigira e dera o
norte de todo o trabalho, este novo projeto repete a fórmula engendrada pela
dupla: Gal pondo seu belo canto a serviço de uma ideia coesa e verdadeira e
Caetano com a batuta, produzindo e concebendo.
As semelhanças vão além do formato, uma vez que, a princípio, o
colorido e tropical “Cantar” – cujo repertório inclui, entre outros
compositores, quatro canções de Caetano –, parece não ter nada a ver com o
obscuro e ruidoso “Recanto”, totalmente construído com novas composições do
“mano Caetano”. “Recanto Escuro” (assista ao vídeo abaixo), sua mais nova
obra-prima – que entra para o time de “Sampa”, “Gema” e “Trilhos Urbanos” –
abre o disco dando o tom soturno e introspectivo que perfará boa parte do
restante do disco. Uma melodia quase invariável, bela e triste, sem refrão.
Seca. Letra de reflexão, de lamento, como que ecoada de um recanto escuro de
onde saem confissões vasculhadas na alma tanto dele quanto dela. Mas o que
poderia ser feito só ao violão e voz, ganha, no arranjo eletrônico e texturado
de Kassin, uma cara de peça da vanguarda erudita, um Stockhausen, um Xenakis,
um Varèse. Absolutamente genial!
O tom de vanguarda, ora com ares de Velvet Underground, ora Brian Eno,
ora Silver Apples, perpassa todo o disco, dando-lhe um caráter moderno e duro,
que responde ao estilo introspectivo da maioria de suas faixas, como o rock
“Cara do Mundo”, a bossa-modernista “Autotune Auterótico” e a genial
eletro-monofonia “Neguinho”, um Nine Inch Nails menos pesado mas tão corrosivo
quanto que remete também ao krautrock
de Neu! e Faust. Clima sujo que encaixa totalmente com a letra, mordaz e
ferina. Caetano solta o verbo com sentenças como: “Neguinho compra 3 TVs de plasma, um carro GPS e acha que é feliz”,
ou ainda: “Neguinho quer justiça e
harmonia para se possível todo mundo. mas a neurose de neguinho vem e estraga
tudo”. No rim.
Belas também a bossa com pitadas eletrônicas, “Mansidão”, a mais “Gal”
de todas, e “Segunda”, um xote só ao cello
e prato de cozinha, totalmente acústico. Mas outra surpreendente é “Miami
Maculelê”, um funk carioca estilizado na qual o ouvido apurado de Caetano
consegue extrair uma das coisas que sempre me chamaram atenção neste estilo
dito vulgar e pobre musicalmente, que é a intenção de abrasileirar o ritmo
estrangeiro. O funk carioca não é só a batida funkeada do rap, pois contém, no
repique da batida, uma pitada de samba, o que, nessa salada toda, acaba por
remeter aos sons e danças africanos e indígenas da raiz brasileira, uma
embolada, um coco, um batuque, um... maculelê.
As referências ao período heroico da MPB não ficam só em Gal, mas em
Caetano e na Tropicália como um todo. E é aí que se dão as semelhanças entre o
histórico “Cantar” e o atual “Recanto”. Se antes Rogério Duprat ou Guilherme
Araújo eram os maestros que davam corpo aos arranjos, agora é o jovem Kassin (ao
lado da banda escolhida por Caetano: Pedro Baby, guitarras, e Domenico, bateria
e eletrônicos,) que destila seus computadores para cumprir esta função. Outra
autoreferência está em “Tudo Dói”, que dialoga com "Lindoneia", do Tropicália 1
(1967) ao transmitir o mesmo sentimento de depressão de uma mulher solitária
(não sem querer, “Lindoneia” também tinha sido dada a uma intérprete, Nara
Leão).
À época do lançamento, notou-se certo furor quanto a este Caetano rocker e tecnológico, que, desta vez,
não se concretizaram em críticas, mas em elogios. Um pouco porque, com Gal
interpretando tão bem, obviamente, os méritos são muito dela. Porém, novamente
parece que Caetano nada de novo contra a corrente, pois até mesmo os que
elogiaram, acostumados a criticá-lo sem fundamento, não parecem saber por que o
fazem, uma vez que estranham algo que não é de hoje, basta ter um pouquinho de
interesse – ou coragem. A parceria com Kassin, por exemplo, vem desde o pouco
comentado “Eu não peço desculpa”, dele e de Jorge Mautner (2002). A veia
experimental e vanguardista, igualmente, vem desde o concretista “Araçá Azul”
(1972) e está claramente em músicas como a parafraseada “Doideca” (brincadeira
com o termo “dodeca-fonia”), do CD “Livro” (1997), ou no “Rap Popcreto”, do
Tropicália 2 (1993).
O fato é que “Recanto” é demais. Certa vez, outro colaborador deste
blog, Lúcio Agacê, ponderou algo com certa razão. Para ele, o fato de a
“finada” Gal voltar dando um salto tão grande diante daquilo que vinha produzindo
se deve exclusivamente a Caetano, alguém que, além de um amigo generoso, é alguém
que está sempre se renovando. Se comparado com a fraca Gal que veio
degringolado nos anos 80 e se instaurou na mediocridade nos 90, isso é
plenamente verdade. Mas tropicalista é tropicalista. E se compará-la àqueles seus
primeiros idos, “Gal” (1969), “Fa-Tal” (1971), “Índia” (1973) e,
principalmente, “Cantar”, seu ápice, a musicalidade não está muito diferente.
Mais avançada em certos aspectos, menos explosiva do que antes, mais high-tech em texturas; porém a Gal de
“Recanto” recupera a daquela época - mesmo com quase 40 anos de atraso.
Num ano de 2012 que teve um ótimo Chico Buarque, um surpreendente
Criolo e um elogiado Lenine, também houve uma nova Gal recantando-se. Antes
tarde do que nunca.
"Recanto Escuro" - Gal Costa
FAIXAS:
1. Recanto Escuro - 3:51
2. Cara do Mundo - 2:52
3. Autotune Autoerótico - 3:40
4. Tudo Dói - 2:41
5. Neguinho - 5:35
6. O Menino - 4:28
7. Madre Deus - 3:35
8. Mansidão - 3:32
9. Sexo e Dinheiro - 3:40
10. Miami Maculelê - 4:06
11. Segunda - 3:49
todas as composições de Caetano
Veloso
***********************
Baixe e ouça:
Gal Costa - "Cantar" (1974)
"Gal é uma das grandes
personalidades da nossa história.
As Dunas da Gal, o Vapor Barato, ‘a mulher
mais elegante do Brasil’
(no dizer de Danuza Leão na época),
Baby, Divino
Maravilhoso, Índia:
todo um mundo brasileiro do qual
não podemos abrir mão
se
quisermos ser o que devemos ser."
Caetano Veloso
Caetano Veloso é, como todos sabem, irmão de Maria Bethânia. Mas sua
ligação e sinergia musicais com Gal Costa talvez sejam até maiores do que com a
cosanguínea. Baiana como ele, poucos anos mais nova mas da mesma geração, foi
com Gal que o cantor e compositor gravou seu primeiro disco, “Domingo”, de 1966
– embora o elo, inclusive familiar, já viesse de antes. Além disso, no entanto,
foi Gal quem, embarcada com os dois pés no Tropicalismo liderado por ele e Gilberto Gil na segunda metade dos anos 60, manteve acesa a explosão
transgressora e criativa aberta pelos tropicalistas quando do exílio da dupla
em Londres de 1969 a 1972. Ao contrário de Bethânia – que sempre soube seguir o
seu caminho fugindo ao máximo das rotulações e estereótipos –, Gal por escolha não
só segurou a barra enquanto única remanescente da formação original da
Tropicália durante os anos de chumbo da Ditadura como, mais ainda, avançou a
MPB em todos os sentidos, da confluência de estilos e referências (objetivo-fim
tropicalista) a, obviamente, sua própria arte maior: a técnica do canto.
Não se começou a falar em Caetano Veloso num texto sobre Gal Costa à
toa. Como aconteceria no espetacular "Recanto" – disco de 2012 cujo diálogo estreito
com este forma um díptico de 38 anos de ínterim –, é o quase-irmão Caetano quem
dá o tom do “cantar” de Gal. Produzido por ele em parceria com outro mestre da
retaguarda tropicalista, Perinho Albuquerque, é um disco totalmente maduro da
talentosa cantora, já deixando a extravagante e raivosa Gal do início da Tropicália
um pouco para trás. Aqui, ela está dona de si, de seu conceito como artista e
do posto de maior cantora de seu tempo ao lado de Elis Regina, também no auge à
época. E Caetano, dirigindo um projeto para ela pela primeira vez (até então
haviam exercido tal função Wally Salomão, Jards Macalé, Rogério Duprat e Guilherme Araújo), é um pouco responsável por esse amadurecimento.
Desfilam pelo disco músicos de primeira linha, como o genial João Donato, o mestre da raça Gil, o “Clube da Esquina” Noveli, o baterista Tuty
Moreno e, claro, os próprios Perinho e Caetano. O resultado é um álbum
resplandecente, florido como sugere a belíssima arte forjada pelo artista visual Rogério Duarte. A contestação de “Divino, maravilhoso”, a fúria de “Eu sou
terrível”, a psicodelia de “Dê um role” ou a estridência de “Meu nome é Gal”,
agora, refazem-se, remolduram-se. Estão ali, porém sob outro olhar. Um sopro de
pólen colorido no negror dos anos de chumbo.
O começo não é nem um desabroche: é a flor já em pleno estado de vida.
“Barato Total”, hit do álbum, é das melhores músicas de Gilberto Gil cujo
presente não se encerra somente no fato de este tê-la dado especialmente para a
amiga. Gil também empunha o violão durante a faixa, e Gil ao violão sabe-se
como é, né? Além de sua altíssima técnica que une a batida de João Gilberto ao
ritmo frenético do rock – e mais o congado, o maxixe, o jazz e o baião –, o
grande compositor simplesmente arrasa nas cordas, sustentando a melodia num
toque swingado e cheio. É tão intenso que, na regravação feita por Gal com a Nação Zumbi, em 2004 (também produzida por Caetano), bastou à banda traduzir
para os tambores pernambucanos a batida de violão de Gil. A letra traz, já na abertura
do disco, a mesma ideia de ressaltar a beleza da vida para além de toda a
situação política e moral do país: “Quando
a gente tá contente/ Tanto faz o quente, tanto faz o frio, tanto faz”. E
finaliza, numa exclamação: “Quando a
gente tá contente/ Nem pensar que está contente a gente quer/ Nem pensar a
gente quer, a gente quer/ A gente quer, a gente quer é viver”.
Como todo grande disco, “Cantar” larga com uma de encher os olhos. O
que virá a seguir superará ou se equiparará? Pois o lirismo da cantora estava
realmente germinado. Ela arrebenta na interpretação da clássica “A Rã”. É a primeira
das quatro de autoria de Caetano no disco, e justo uma em parceria com outro
personagem fundamental desta obra: João Donato. Ele, além desta, assina o
arranjo da canção de ninar que finaliza o disco, “Chululu” (de autoria da mãe
de Gal, Mariah Costa, que costumava cantá-la para a filha na infância), e de outras
duas: “Até quem Sabe”, só piano e voz, lindíssima e altamente erudita; e “Flor
de Maracujá”, um soul funkeado ao
estilo de “A Bed Donato” (referencial álbum gravado pelo acreano nos Estados
Unidos em 1970). Esta, última do lado A do vinil, dialoga maravilhosamente com
a primeira da segunda face: “Flor do Cerrado”, que, assim como “Barato Total” é
das melhores composições de Gil não gravadas por si próprio, também é das mais
belas de Caetano nunca registradas por ele mesmo. Letra de poesia caetaneana,
vocal cristalino de Gal e uma rica incursão do autor contracantando “Garota de
Ipanema”, de Tom e Vinícius. No refrão, ainda, Gal, afinadíssima, executa um
portamento de notas muito bonito e técnico, subindo gradualmente até finalizar
lá em cima da escala na última palavra: “Mas
da próxima vez que eu for a Brasília/ Eu trago uma flor do cerrado pra você”.
Antes, entretanto, o primeiro lado ainda guarda duas ótimas faixas.
Lua, lua, lua, lua”, mais uma de Caê, que, junto com outra que vem mais
adiante, “Joia” (um espetacular trabalho de percussões africanas e piano
monotonal que antecipa trabalhos de Caetano de 1997 e 2000, “Livro” e “Noites
do Norte”, respectivamente, quando ele aproxima a vanguarda erudita às raízes
da África), foram gravadas por Gal um ano antes do próprio usá-las no seu disco
– por sinal, intitulado “Joia”. E diferentemente da versão barroca que gravaria
para si, “Lua...” traz um elemento interessantíssimo: sob a voz dela, Caetano exercita
uma espécie de beat-box, expediente
que o mesmo se valera na concepção da trilha sonora do filme “São Bernardo”,
dois anos antes, encomendada pelo cineasta Leon Hirszman a ele quando ainda no
exílio.
A outra maravilha que completa a primeira parte de “Cantar” é “Canção
que morre no ar”, clássico da bossa-nova de Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli,
somente com a voz e um apaixonante e ornado arranjo de cordas de Perinho e
regência de Mário Tavares. Aqui, Gal encarna Billi Holliday acompanhada da
orquestra de Ray Ellis em "Lady in Satin"; Ella Fitzgerald conduzida pela batuta
de Nelson Riddle em “Sings the George and Ira Gershwin Songbook”; ou Dalva de
Oliveira com o conjunto sinfônico de Roberto Inglez. Gal está jazzística e
lírica em seu timbre de soprano. A letra faz uma fusão entre as atmosferas
lunar e flórea do disco como um todo: “O
mundo é sempre amor/ O pranto que desliza/ No seio de uma flor/ É a luz lá do
céu”.
Também síntese do álbum é “O Céu e o Som”, do cantor, compositor e
poeta Péricles Cavalcanti. Ritmada e gostosa, contrapõe cantos entre ela e um
coro masculino (que desconfio seriamente serem Os Golden Boys, embora não haja crédito
disso). “Cantar, cantar/ Há uma asa na
alma no ar/ Me ensina a cantar, amor”. E, lá pelas tantas, perguntam
retoricamente: “Quem foi que disse que a
mulher não voa?” Voa, sim.
Tanto voa que, antes de terminar o disco, Gal faz o ouvinte levitar no sensualíssimo
jazz “Lágrimas Negras”, composição de Jorge Mautner e Nelson Jacobina. Das
melhores do álbum, sua cadência suave remete (e serve muito bem para isso,
diga-se de passagem) ao momento de uma transa embalada ao ritmo da
guitarra-ponto dedilhada por Perinho. E quando Gal, diz, num compasso hiper sexy: “E você, baby, vai, vem, vai...”, é de arrepiar até o tal “astronauta
da saudade” mencionado na letra!
“Cantar” gerou um show que não foi bem recebido pelo público por ser
taxado de “muito suave”, contrastando com a imagem forte que a cantora criara a
partir do movimento tropicalista. À época, bom que se lembre, artistas de
sucesso como ela eram exigidos pela opinião pública burra de permanente e
abertamente lutarem contra a Ditadura na concepção de suas obras. Queriam
canções de protesto, não arte. Uma bobagem tamanha, uma vez que a premissa do
artista é exatamente a liberdade tão desejada por estes que os retalhavam.
Afora isso, visto noutro enfoque, há formas distintas de se lutar e se engajar
sem necessariamente bater de frente com a força bruta – e sair perdendo, como
geralmente acontece. Foi o que Gil e Caetano, enquanto tropicalistas como ela,
fizeram a seu modo. E venceram. Hoje, completando 40 anos de seu lançamento,
“Cantar” é um trabalho de uma riqueza descomunal que tem ainda muito a se
revelar e cuja participação destes protagonistas foi fundamental. Uma flor que
não morreu e ainda colore o jardim de quem entende que “o caminho do céu” está
“no caminho do som”. Gal nos ensina a cantar e voar.
"Barato Total" - Gal Costa
FAIXAS:
1. Barato Total (Gilberto Gil) - 3:48
2. A Rã (Caetano Veloso, João Donato) - 3:52
3. Lua, Lua, Lua, Lua (Veloso) - 3:02
4. Canção que Morre no Ar (Carlos Lyra, Ronaldo Bôscoli) - 1:50
5. Flor de Maracujá (Veloso/Lysias Ênio) - 2:56
6. Flor do Cerrado (Veloso – música incidental: “Garota de Ipanema”,
Tom/Vinicius) - 3:13
7. Joia (Veloso) - 3:24
8. Até Quem Sabe (Ênio/Donato) - 3:39
9. O Céu e o Som (Péricles Cavalcanti) - 3:00
10. Lágrimas Negras (Jorge Mautner/Nelson Jacobina) - 3:31
11. Chululu (Mariah Costa) - 0:56
Ouça:
por Daniel Rodrigues
quinta-feira, 11 de julho de 2013
cotidianas #234 - Antonico
"Sambinsta"- PENA, Luís |
Ô, Antonico
Vou lhe pedir um favorQue só depende da sua boa vontade
É necessário uma viração pro Nestor
Que está vivendo em grande dificuldade
Ele está mesmo dançando na corda bamba
Ele é aquele que na escola de samba
Toca cuíca, toca surdo e tamborim
Faça por ele como se fosse por mim
Até muamba já fizeram pro rapaz
Porque no samba ninguém faz o que ele faz
Mas hei de vê-lo muito bem, se Deus quiser
E agradeço pelo que você fizer.
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Antonico
(Ismael Silva)
Ouça:(Ismael Silva)
Gal Costa - "Antonico"
postado por Daniel Rodrigues
sexta-feira, 5 de julho de 2013
cotidianas #233 - A História de Lily Braun
Imagem do filme "O Anjo Azul"
de Josef von Sternberg
|
O homem dos meus sonhos
Me apareceu no dancing
Era mais um
Só que num relance
Os seus olhos me chuparam
Feito um zoom
Ele me comia
Com aqueles olhos
De comer fotografia
Eu disse cheese
E de close em close
Fui perdendo a pose
E até sorri, feliz
E voltou
Me ofereceu um drinque
Me chamou de anjo azul
Minha visão
Foi desde então ficando flou
Como no cinema
Me mandava às vezes
Uma rosa e um poema
Foco de luz
Eu, feito uma gema
Me desmilinguindo toda
Ao som do blues
Abusou do scotch
Disse que meu corpo
Era só dele aquela noite
Eu disse please
Xale no decote
Disparei com as faces
Rubras e febris
E voltou
No derradeiro show
Com dez poemas e um buquê
Eu disse adeus
Já vou com os meus
Numa turnê
Como amar esposa
Disse ele que agora
Só me amava como esposa
Não como star
Me amassou as rosas
Me queimou as fotos
Me beijou no altar
Nunca mais romance
Nunca mais cinema
Nunca mais drinque no dancing
Nunca mais cheese
Nunca uma espelunca
Uma rosa nunca
Nunca mais feliz
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"A História de Lily Braun"
(letra: Chico Buarque)
(letra: Chico Buarque)
Gal Costa - "A História de Lily Brown"
quinta-feira, 26 de janeiro de 2012
Gal Costa - "Recanto" (2012)
Canto. Cantar. Recanto. Recantar
Caetano Veloso lança seu melhor disco desde os anos 70. Ops! Ato falho. Desculpem: não foi ele, e sim a também baiana, também tropicalista, também cantora Gal Costa com o CD “Recanto”, certamente seu melhor trabalho desde “Cantar”, de 1974. Porém, meu engano não foi à toa: assim como o mencionado LP dos anos 70, marcante obra do tropicalismo a qual Caetano dirigira e dera o norte de todo o trabalho, este novo projeto repete a fórmula engendrada pela dupla: Gal pondo seu belo canto a serviço de uma ideia coesa e verdadeira e Caetano com a batuta, produzindo e concebendo.
As semelhanças vão além do formato, uma vez que, a princípio, o colorido e tropical “Cantar” – cujo repertório inclui, entre outros compositores, quatro canções de Caetano –, parece não ter nada a ver com o obscuro e ruidoso “Recanto”, totalmente construído com novas composições do “mano Caetano”. “Recanto Escuro” (assista ao vídeo abaixo), sua mais nova obra-prima – que entra para o time de “Sampa”, “Gema” e “Trilhos Urbanos” – abre o disco dando o tom soturno e introspectivo que perfará boa parte do restante do disco. Uma melodia quase invariável, bela e triste, sem refrão. Seca. Letra de reflexão, de lamento, como que ecoada de um recanto escuro de onde saem confissões vasculhadas na alma tanto dele quanto dela. Mas o que poderia ser feito só ao violão e voz, ganha, no arranjo eletrônico texturado de Kassin, uma cara de peça da vanguarda erudita, um Stockhausen, um Xenakis, um Varèse. Absolutamente genial!
O tom de vanguarda, ora com ares de Velvet Underground, ora Brian Eno, ora Silver Apples, perpassa todo o disco, dando-lhe um caráter moderno e duro, que responde ao estilo introspectivo da maioria de suas faixas, como o rock “Cara do Mundo”, a bossa-modernista “Autotune Auterótico” e a genial eletro-monofonia “Neguinho”, um 9 Inch Nails menos pesado mas tão corrosivo quanto que remete também ao krautrock de Neu! e Faust. Clima sujo que encaixa totalmente com a letra, mordaz e ferina. Caetano solta o verbo com sentenças como: “Neguinho compra 3 TVs de plasma, um carro GPS e acha que é feliz”, ou ainda: “Neguinho quer justiça e harmonia para se possível todo mundo. mas a neurose de neguinho vem e estraga tudo”. No rim.
Belas também a bossa com pitadas eletrônicas, “Mansidão”, a mais “Gal” de todas, e “Segunda”, um xote só ao cello e prato de cozinha, totalmente acústico. Mas outra surpreendente é “Miami Maculelê”, um funk carioca estilizado na qual o ouvido apurado de Caetano consegue extrair uma das coisas que sempre me chamaram atenção neste estilo dito vulgar e pobre musicalmente, que é a intenção de abrasileirar o ritmo estrangeiro. O funk carioca não é só a batida funkeada do rap, pois contém, no repique da batida, uma pitada de samba, o que, nessa salada toda, acaba por remeter aos sons e danças africanos e indígenas da raiz brasileira, uma embolada, um coco, um batuque, um... maculelê.
As referências ao período heróico da MPB não ficam só em Gal, mas em Caetano e na Tropicália como um todo. E é aí que se dão as semelhanças entre o histórico “Cantar” e o atual “Recanto”. Se antes Rogério Duprat ou Guilherme Araújo eram os maestros que davam corpo aos arranjos , agora é o jovem Kassim que destila seus computadores para cumprir esta função. Outra autoreferência está em “Tudo Dói”, que dialoga com “Lindoneia”, do Tropicália 1 (1967) ao transmitir o mesmo sentimento de depressão de uma mulher solitária (não sem querer, “Lindoneia” também tinha sido dada a uma intérprete cantar, Nara Leão).
Venho notando certo furor quanto a este Caetano rocker e tecnológico, que, desta vez, não se concretizaram em críticas, mas em elogios. Um pouco porque, com Gal interpretando tão bem, obviamente, os méritos são muito dela. Porém, novamente parece que Caetano nada de novo contra a corrente, pois os que elogiaram não parecem saber por que o fazem, uma vez que estranham algo que não é de hoje, basta ter um pouquinho de interesse – ou coragem. A parceria com Kassin, por exemplo, vem desde o pouco comentado “Eu não peço desculpa”, dele e de Jorge Mautner (2002). A veia experimental e vanguardista, igualmente, vem desde o concretista “Araçá Azul” (1972) e está claramente em músicas como a parafraseada “Doideca” (brincadeira com o termo “dodeca-fonia”), do CD “Livro” (1997), ou no “Rap Popcreto”, do Tropicália 2 (1993).
O fato é que gostei por demais de “Recanto”. Outro dia, em conversa com outro colaborador deste blog, meu primo Lúcio Agacê, ele me ponderou algo com certa razão. Para ele, o fato de a “finada” Gal voltar dando um salto tão grande diante daquilo que vinha conseguindo produzir se deve exclusivamente a Caetano, alguém que, além de um amigo generoso, é um cara que está sempre se renovando. Concordo se comparado com a fraca Gal que veio degringolado nos anos 80 e se instaurou na mediocridade nos 90. Mas tropicalista é tropicalista. Se compararmos àqueles primeiros idos dela, “Gal” (1969), “Fa-Tal” (1971), “Índia” (1973) e, principalmente, “Cantar”, seu ápice, a musicalidade não está muito diferente. Mais avançada em certos aspectos, menos explosiva do que antes, mais high-tech em texturas; porém a Gal de “Recanto” recupera a Gal daquela época - mesmo com 40 anos de atraso.
Num ano de um ótimo Chico Buarque novo, de um surpreendente Criolo e de um elogiado Lenine, 2012 começa também com uma nova Gal recantando-se. Antes tarde do que nunca.
vídeo de "Recanto Escuro", Gal Costa
Ouça o disco:
Gal Costa Recanto
As semelhanças vão além do formato, uma vez que, a princípio, o colorido e tropical “Cantar” – cujo repertório inclui, entre outros compositores, quatro canções de Caetano –, parece não ter nada a ver com o obscuro e ruidoso “Recanto”, totalmente construído com novas composições do “mano Caetano”. “Recanto Escuro” (assista ao vídeo abaixo), sua mais nova obra-prima – que entra para o time de “Sampa”, “Gema” e “Trilhos Urbanos” – abre o disco dando o tom soturno e introspectivo que perfará boa parte do restante do disco. Uma melodia quase invariável, bela e triste, sem refrão. Seca. Letra de reflexão, de lamento, como que ecoada de um recanto escuro de onde saem confissões vasculhadas na alma tanto dele quanto dela. Mas o que poderia ser feito só ao violão e voz, ganha, no arranjo eletrônico texturado de Kassin, uma cara de peça da vanguarda erudita, um Stockhausen, um Xenakis, um Varèse. Absolutamente genial!
O tom de vanguarda, ora com ares de Velvet Underground, ora Brian Eno, ora Silver Apples, perpassa todo o disco, dando-lhe um caráter moderno e duro, que responde ao estilo introspectivo da maioria de suas faixas, como o rock “Cara do Mundo”, a bossa-modernista “Autotune Auterótico” e a genial eletro-monofonia “Neguinho”, um 9 Inch Nails menos pesado mas tão corrosivo quanto que remete também ao krautrock de Neu! e Faust. Clima sujo que encaixa totalmente com a letra, mordaz e ferina. Caetano solta o verbo com sentenças como: “Neguinho compra 3 TVs de plasma, um carro GPS e acha que é feliz”, ou ainda: “Neguinho quer justiça e harmonia para se possível todo mundo. mas a neurose de neguinho vem e estraga tudo”. No rim.
Belas também a bossa com pitadas eletrônicas, “Mansidão”, a mais “Gal” de todas, e “Segunda”, um xote só ao cello e prato de cozinha, totalmente acústico. Mas outra surpreendente é “Miami Maculelê”, um funk carioca estilizado na qual o ouvido apurado de Caetano consegue extrair uma das coisas que sempre me chamaram atenção neste estilo dito vulgar e pobre musicalmente, que é a intenção de abrasileirar o ritmo estrangeiro. O funk carioca não é só a batida funkeada do rap, pois contém, no repique da batida, uma pitada de samba, o que, nessa salada toda, acaba por remeter aos sons e danças africanos e indígenas da raiz brasileira, uma embolada, um coco, um batuque, um... maculelê.
As referências ao período heróico da MPB não ficam só em Gal, mas em Caetano e na Tropicália como um todo. E é aí que se dão as semelhanças entre o histórico “Cantar” e o atual “Recanto”. Se antes Rogério Duprat ou Guilherme Araújo eram os maestros que davam corpo aos arranjos , agora é o jovem Kassim que destila seus computadores para cumprir esta função. Outra autoreferência está em “Tudo Dói”, que dialoga com “Lindoneia”, do Tropicália 1 (1967) ao transmitir o mesmo sentimento de depressão de uma mulher solitária (não sem querer, “Lindoneia” também tinha sido dada a uma intérprete cantar, Nara Leão).
Venho notando certo furor quanto a este Caetano rocker e tecnológico, que, desta vez, não se concretizaram em críticas, mas em elogios. Um pouco porque, com Gal interpretando tão bem, obviamente, os méritos são muito dela. Porém, novamente parece que Caetano nada de novo contra a corrente, pois os que elogiaram não parecem saber por que o fazem, uma vez que estranham algo que não é de hoje, basta ter um pouquinho de interesse – ou coragem. A parceria com Kassin, por exemplo, vem desde o pouco comentado “Eu não peço desculpa”, dele e de Jorge Mautner (2002). A veia experimental e vanguardista, igualmente, vem desde o concretista “Araçá Azul” (1972) e está claramente em músicas como a parafraseada “Doideca” (brincadeira com o termo “dodeca-fonia”), do CD “Livro” (1997), ou no “Rap Popcreto”, do Tropicália 2 (1993).
O fato é que gostei por demais de “Recanto”. Outro dia, em conversa com outro colaborador deste blog, meu primo Lúcio Agacê, ele me ponderou algo com certa razão. Para ele, o fato de a “finada” Gal voltar dando um salto tão grande diante daquilo que vinha conseguindo produzir se deve exclusivamente a Caetano, alguém que, além de um amigo generoso, é um cara que está sempre se renovando. Concordo se comparado com a fraca Gal que veio degringolado nos anos 80 e se instaurou na mediocridade nos 90. Mas tropicalista é tropicalista. Se compararmos àqueles primeiros idos dela, “Gal” (1969), “Fa-Tal” (1971), “Índia” (1973) e, principalmente, “Cantar”, seu ápice, a musicalidade não está muito diferente. Mais avançada em certos aspectos, menos explosiva do que antes, mais high-tech em texturas; porém a Gal de “Recanto” recupera a Gal daquela época - mesmo com 40 anos de atraso.
Num ano de um ótimo Chico Buarque novo, de um surpreendente Criolo e de um elogiado Lenine, 2012 começa também com uma nova Gal recantando-se. Antes tarde do que nunca.
vídeo de "Recanto Escuro", Gal Costa
Ouça o disco:
Gal Costa Recanto
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