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segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Gilberto Gil - "Dia Dorim Noite Neon" (1985)

 


"Só quem não amar os filhos/ Vai querer dinamitar os trilhos da estrada/ Onde passou passarada/ Passa agora a garotada, destino ao futuro".
Da letra de "Roque Santeiro, O Rock"

Os anos 80 foram de instabilidade na carreira de Gilberto Gil. Assim como com seus companheiros de Tropicalismo Caetano Veloso e, ainda mais, Tom Zé – este, relegado a um ostracismo graças a Deus interrompido tempo depois – a década com a pecha de "perdida" parece ter influenciado com seu mau agouro os consagrados músicos da MPB. O BRock de Legião Urbana, Barão Vermelho, Blitz, Titãs, Lobão, RPM e outras bandas da época ocupavam as rádios, o que, somado com o que vinha de fora, quase não deixava espaço para o "produto nacional". 

Gil, exímio compositor que é, até emplacou sucessos no começo da década de 80. "Andar com Fé" e "Vamos Fugir" tocaram bastante, é bem verdade. Em compensação, seus álbuns passavam longe de terem a mesma regularidade e reconhecimento de crítica e público frente a seus clássicos dos anos 60 e 70, como o disco de 1968, "Expresso 2222", de 1972, ou a revolucionária trilogia "Re" ("Refazenda"/"Refavela"/"Realce", 1975, 1977 e 1979 respectivamente). Também, o baiano tentara, por duas vezes quase sequentes, entrar no mercado norte-americano. Ao contrário de alguns de seus pares, como Djavan, Ivan Lins, Tânia Maria e Milton Nascimento, ele não obteve o êxito esperado e se recolheu ao nicho já conquistado: o Brasil. O destino, no entanto, reservaria mais um abalo ainda maior a Gil naquele final de década de 80: o filho Pedro, baterista de sua banda desde 1984, se acidentaria de carro no Rio de Janeiro e morreria em janeiro de 1990. Aos 19 anos.

Mas os tropicalistas têm uma vantagem sobre outros artistas da música brasileira, mesmo para com os da mesma estirpe: eles ditam tendência. E se nos anos 80 a tendência estava posta pela indústria, então o negócio era passar a ratificá-la. Como já vinha ocorrendo desde os Mutantes, Gil e Caetano tornaram-se totens de certificação a toda a geração mais jovem, de A Cor do Som a Chico Science & Nação Zumbi. "Dia Dorim Noite Neon", lançado por Gil em 1985 para comemorar os 20 anos de carreira e que completa 40 em 2025, além de trazer excelentes composições, estabelece essa consciência quase benta do velho artista para com os súditos. Porque, sim: o rock brasileiro deve muito a MPB, ao contrário do que já se tentou negar ou esconder. Um privilégio que só o Brasil tem, mas algo desqualificado pela imprensa por muito tempo.

A bela vinheta de abertura e encerramento, "Minha Ideologia, Minha Religião", traz o violão dedilhado de Gil e seu vocal acompanhando as vozes infantis em coro, que cantam uma prece universal de pureza aos deuses para iniciar a jornada – e, lá na última faixa, agradecer pela mesma. Logo na sequência, vem o hit do disco, o reggae "Nos Barracos da Cidade", um canto de contestação social de um Brasil recém saído da ditadura. “Barracos”, seu subtítulo, abriria também portas a outra música com características parecidas e de ainda maior sucesso, que é "Alagados", marco do pop rock brasileiro, gravada pelos Paralamas do Sucesso com Gil um ano depois no mesmo estúdio, Nas Nuvens.

Sem muito respiro, Gil emenda o rockasso "Roque Santeiro, o Rock", um hard rock enfezado de dar inveja a muita bandinha poser que esteve no Rock in Rio naquele ano. Gil que, aliás, havia feito uma apresentação histórica no festival meses antes com a mesma banda mas ainda com o repertório do disco anterior, "Raça Humana". Na música em questão, a excelente produção do mutante Liminha dá protagonismo à bateria potente de Pedro Gil e à guitarra de outro e original mutante, Sérgio Dias, sintonizado com a sonoridade que o vanguardista produtor norte-americano Bill Laswell estava se apropriando e que cristalizaria no referencial "Album", da Public Image Ltd., de um ano depois. Ou seja: era o auge do rock'n’roll na mídia dos anos 80.

Gil e o filhão Pedro, falecido anos depois, mas 
fundamental para a atmosfera rocker de "Dia Dorim..."
Captando todas essas pulsões, inclusive o sucesso popular da novela de Dias Gomes de mesmo nome que rodava à época na Globo, Gil se vale de sua experiência e visão tropicalista para escrever uma música altamente simbólica para aquele período. Ele sintoniza, com olhar sábio, generoso e até paternal aquilo que a juventude ansiava, do esporte radical a uma nova compreensão da religiosidade. ”Deixa ele tocar o rock/ Deixa o choque da guitarra tocar o santeiro/ Do barro do motocross/ Quem sabe ele molde um novo santo padroeiro", diz a letra. Tudo isso, claro, simbolizado na potência do rock. O filho Pedro, aliás, é fundamental neste processo. Rapaz cheio de vitalidade, foi ele quem motivou o pai a entrar na onda roqueira. Gil identificava nele um representante daquela geração a qual faz referência na música, como os Paralamas, Ultraje a Rigor, Titãs e Lobão. Era como se dissesse: "Meus filhos musicais, eu abri caminho pra vocês lá atrás. Agora, é com vocês, mas eu estarei aqui, sempre perto".

Atentando também à cena pop do momento de nomes como Marina, Zizi Possi e Vinícius Cantuária, Gil diminui a rotação e traz a bela 'Seu Olhar", que conta com a guitarra do "Paralama" Herbert Vianna antes deste se tornar seu parceiro em "A Novidade", o que ocorreria meses depois no celebrado "Selvagem?", terceiro disco da banda. A faixa antecede a bossa-nova introspectiva "Febril", das melhores e mais desconhecidas canções do repertório gilbertiano. Espécie de reverso de 'Palco", que exorciza os males do mundo no instante sagrado do encontro do músico com o público, "Febril", ao contrário, revela o lado solitário da existência do artista, a qual pode imperar mesmo diante de uma vasta plateia. "Tanta gente, e estava tudo vazio/Tanta gente, e o meu cantar tão sozinho". Gil e sua profundidade capaz de revelar o avesso das coisas.

A próxima faixa vem noutra sintonia, mas sem perder coerência com a atmosfera pop do álbum: o french-afoxé "Touches Pas A Mon Pote". Noutra excelente produção de Liminha, Gil, dono de um francês impecável, ressignifica, nos ritmos essencialmente afro-brasileiros, a África francófona, ou seja, Senegal, Benin, Costa do Marfim, de onde parte dos escravos vieram para o Brasil e a sua Bahia séculos antes. Esta primeira aproximação simbólico-sonora Brasil-França de Gil, vista em uma série de canções dele a partir de então, o próprio redimensionaria 23 anos depois em outra música igualmente cantada na língua de Hugo (mas também de Mbougar Sarr): "La Renaissance Africaine", originalmente do disco “Banda Larga Cordel”.

O lado B do vinil começa com mais uma agitada, mas desta vez sob a batida do funk: "Logos Versus Logo". Sob inspiração da sonoridade típica do pop soul da época de Prince, Marcus Miller, Patti LaBelle e outros artistas – bateria eletrônica, baixo em slaps, guitarra suingada e ritmo soul –, Gil aborda o papel de resistência do poeta no mundo capitalista, problematizando a questão com poesia e lucidez. Outra música que, assim como “Febril”, é de suas melhores mas também das mais esquecidas. E que bela letra: "E o bom poeta, sólido afinal/ Apossa-se da foice ou do martelo/ Para investir do aqui e agora o capital/ No produzir real de um mundo justo e belo". Só que Gil não se presta a simplesmente copiar o som da moda tocado nos Estados Unidos: ele o enriquece. Como poucos ousavam fazer naqueles idos de embate "rock x MPB", o baiano, do meio para o fim da faixa, adiciona-lhe percussões de samba, fundindo de forma empolgante o ritmo mais brasileiro de todos ao groove do funk. Pouco tempo depois, Lobão, Os Engenheiros do Hawaii e The Ambitious Lovers fariam semelhante. 

Com a autoridade de um dos pioneiros do reggae no Brasil, Gil traz um outro ainda mais raiz do que “Barracos”: “Oração Pela Libertação da África Do Sul”. Mais uma de teor espiritualista mas que, desta vez, clama por outro problema social que o mundo vivia naquele então, que era o Apartheid na África do Sul, o regime de segregação que retirou os direitos da população negra do país. Valendo-se da força de resistência e denúncia que o ritmo do ídolo Bob Marley carrega, Gil torna a atuar politicamente através da música, unindo-se, neste caso, ao movimento global de solidariedade com a luta anti-Apartheid, que aumentou a conscientização sobre a injustiça dessa política e ajudou a impulsionar a mudança 5 anos depois com a queda do regime.

Voltando ao pop, na sofisticada “Clichê Do Clichê” Gil conta com a parceria do já mencionado amazonense Vinícius Cantuária, à época estourado nas rádios com o hit “Só Você”. Ligações com “Touches...” nas diversas referências à cultura francesa, como Brigitte Bardot, Jean-Paul Belmondo e o cinema francês. Quase fechando o disco, a música que justifica a referência à personagem Diadorim do título: “Casinha Feliz”. Esse doce xote sertanejo (visivelmente uma inspiração para “Madalena”, gravada com sucesso por Gil em “Parabolicamará”, de 1992) contém os versos motivados pelo universo de Guimarães Rosa: “Onde resiste o sertão/ Toda casinha feliz/ Ainda é vizinha de um riacho/ Ainda tem seu pé de caramanchão”. E completa: “De dia, Diadorim/ De noite, estrela sem fim”.

Encerrando, outra belíssima composição, esta, do amigo Jorge Mautner. “Duas Luas” fecha com a poesia lírica e estelar própria do “maldito” num ijexá moderno, a se ver pelo elegante sax solo de Zé Luis. ”Estou adorando andar pelas ruas/ Como quem não quer nada/ Debaixo do sol/ Debaixo das luas/ Que são mais de duas”, numa referência às luzes de neon que também compõe o título deste disco precioso.

Num período em que vinha um tanto inconstante, “Dia Dorim Noite Neon” ajustou a rota e elevou novamente a régua de Gil diante da própria obra. E muito se deve ao vigor contagiante de Pedro Gil, que deixou este plano bem cedo, mas não antes de reenergizar seu próprio pai com o espírito do rock. Vieram, na sequência, “O Eterno Deus Mu Dança”, de 1989, álbum de estúdio em que aproveita algumas receitas do antecessor, a trilha do filme “Um Trem para as Estrelas”, em inédita parceria com Cazuza, e dois ótimos discos ao vivo: “Live in Tokyo” e “Gilberto Gil em Concerto”, todos os três de 1987. Mas “Dia Dorim...” pode tranquilamente ser considerado seu melhor trabalho em toda aquela década. Antenado com seu momento histórico em letras, melodias, atmosfera e sonoridade, mas sem soar datado como muita coisa dos anos 80 – a começar pelo próprio álbum anterior, “Raça Humana” –, o disco serviu, inclusive, para ajudar a quebrar preconceitos entre música popular e o então fortalecido rock, como se o primeiro fosse coisa de velho e o segundo de jovens. Sem divisar. O Rappa, Planet Hemp e Skank são fruto dessa mentalidade arejada nos anos 90. 

Gil provou que, como diz na vinheta do disco, sua forma de pensar/ser é aceitar a impermanência das coisas e conectar-se à espiritualidade. No caso, a igreja do rock. "Outrora, o reino do Pai/ Agora, o tempo do Filho com seu novo canto." Esse tal de rock'n'roll pode até ser coisa do diabo, mas também sabe muito bem ser divino.

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FAIXAS:
1. “Abertura: Minha Ideologia, Minha Religião” – 0:26
2. “Nos Barracos Da Cidade (Barracos)” (Gilberto Gil, Liminha) - 4:11
3. “Roque Santeiro, O Rock” - 4:25
4. “Seu Olhar” - 4:02
5. “Febril” - 3:41
6. “Touches Pas A Mon Pote” - 3:45
7. “Logos Versus Logo” - 3:05
8. “Oração Pela Libertação Da África Do Sul” - 3:28
9. “Clichê Do Clichê” (Gil, Vinicius Cantuária) - 4:20
10. “Casinha Feliz” - 3:14
11. “Duas Luas” (Jorge Mautner) - 3:32
12. “Final: Minha Ideologia, Minha Religião” – 0:25
Todas as composições de autoria de Gilberto Gil, exceto indicadas


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OUÇA O DISCO:
Gilberto Gil - "Dia Dorim Noite Neon" 


Daniel Rodrigues

terça-feira, 9 de maio de 2023

Rita Lee e Tutti-Frutti - "Fruto Proibido" (1975)




Fruto Proibido álbum de Rita Lee (1975)
"Acho que eu sempre fui
a ovelha negra, mesmo.
Uma vez uma pessoa me parou na rua,
me agradecendo:
'Depois que eu ouvi "Ovelha Negra"
eu tive coragem de sair de casa'. "
Rita Lee



Rita Lee se foi!

Cara, que coisa...

É mais uma daquelas artistas que a gente parece nunca estar preparado para perder.

A gente sabe que um dia esses mitos vão, a própria Rita já vinha bem debilitada, em virtude de um câncer, mas era difícil aceitar que uma hora aconteceria.

Bom, mas temos que aceitar. Temos que entender, nos consternar. Nos conformar com tudo o que já nos proporcionou, o legado de atitude que deixou e com a obra que construiu.

Obra que começou com "Fruto Proibido" de 1975, embora a cantora já tivesse dois álbuns lançados numa época meio enrolada com sua ex-banda, os lendários Mutantes, no curso de sua separação com Arnaldo Baptista e sua expulsão do grupo.

Uma pena, se formos considerar tudo o que construiu com os Mutantes, mas uma sorte considerando tudo o que ela podia fazer e mostrou-se capaz a partir dali.

"Fruto Proibido" é uma das grandes obras do rock brasileiro! Disco que escancara o rock de Rita, sua atitude, destrava sua ânsia por dizer coisas, por se revelar, por se mostrar mulher cheia de personalidade, reivindicações, desejos. 

Disco que já traz alguns dos grandes hits de sua carreira como "Agora Só Falta Você", que soa quase como um recado para sua ex-banda ("Um belo dia resolvi mudar /e fazer tudo o que eu queria fazer /me libertei daquela vida vulgar / que eu levava estando junto a você") ; a irreverentíssima "Esse tal de Roque Enrow", parceria com "O Mago" Paulo Coelho; a auto-reveladora e feminista "Luz Del Fuego", a desafiadora faixa que dá título ao disco, "Fruto Proibido", ("quem foi que disse que eu devo me cuidar"); e a que se tornaria praticamente um "hino" de sua carreira, "Ovelha Negra", alcunha que, de certa forma, sempre a acompanhou por sua rebeldia e atitude.

Só nos resta agradecer por coisas como essa, por álbuns como este, por suas letras, por seu doboche, por ter sido até o fim essa ovelha negra inspiradora para todos os rebeldes.

Vai em paz, Rainha Mutante!

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FAIXAS:

1. "Dançar pra não Dançar" (Rita Lee) 4:13
2. "Agora só Falta Você" (Luis Sérgio Carlini / Rita Lee) 3:25
3. "Cartão Postal" (Paulo Coelho / Rita Lee) 3:25
4. "Fruto Proibido" (Rita Lee) 2:04
5. "Esse Tal de Roque Enrow" (Paulo Coelho / Rita Lee) 3:53
6. "O Toque" (Paulo Coelho / Rita Lee) 5:20
7. "Pirataria" (Lee Marcucci / Rita Lee) 4:29
8. "Luz del Fuego" (Rita Lee) 4:42
9. "Ovelha Negra" (Rita Lee) 5:39

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Ouça:





Cly Reis

quarta-feira, 3 de maio de 2023

Os Mutantes e o Caso do Relógio de 22 Rubis

 




"Os Mutantes e o Caso do Relógio de 22 Rubis"- REIS, Cly -
fan art estilo HQ inspirada nos quadrinhos dos X-Men e
na banda Os Mutantes
com referência às canções "Senhor F", "O Relógio", "Fuga nº1", "Trem Fantasma" e "Jardim Elétrico"
ilustração digital (GIMP)





"Os Mutantes e o Caso do Relógio de 22 Rubis"
Cly Reis

segunda-feira, 2 de abril de 2018

"Tropicália" ou "Panis et Circencis" - vários (1968)


O Descobrimento do Brasil

“Eu organizo o movimento/ 
Eu oriento o carnaval/ 
Eu inauguro o monumento/
No planalto central do país.”
Versos da canção “Tropicália”, de Caetano Veloso

“SEQUÊNCIA 5 – CENA 9
INTERIOR, NOITE EXTERIOR, DIA, ESTÚDIO DE GRAVAÇÃO. NARA, GAL, GIL, CAETANO, TORQUATO, CAPINAN E OS MUTANTES. FRENTE AO MICROFONE. OBEDECEM AO MAESTRO ROGÉRIO DUPRAT. UNÍSSONO. 
TODOS – As coisas estão no mundo, só que é preciso aprender.
CORTA.”
Trecho do texto do encarte original de “Tropicália”

“Só a ANTROPOFAGIA nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.“ 
Trecho do Manifesto Antropofágico, de Oswald de Andrade, 1928.


A filosofia antropofágica que o modernista Oswald de Andrade concebeu em finais dos anos 20 traz no cerne uma revolução conceitual cuja difícil assimilação perdura ainda nos dias de hoje. Como criar uma arte brasileira e original ao deglutir, temperado com os sabores tropicais, aquilo que vem de fora? Oswald converteu o ato de canibalismo ameríndio do colonizador numa metáfora de combate ideológico. Noutras palavras, devorar e digerir todas as influências estrangeiras que sirvam para fortalecer a própria cultura e, assim, recriá-la.

Desafiador, por óbvio. Afinal, isso significa, antes de saber identificar o que é de fora, entender o que pertence a si próprio. Complicado de concretizar, ainda mais em terras tupiniquins historicamente subjugadas e inferiorizadas. Houve quem topasse a briga, contudo. E não foi um alguém, mas um grupo. Em 1967, Caetano Veloso e Gilberto Gil, filhos da santa Bahia imortal e seguidores da bossa-nova de João Gilberto, organizaram o movimento e orientaram o carnaval. Sob a égide das ideias oswaldianas, criaram aquilo que pertinentemente se chamou de “Tropicália”, disco e movimento, que estão completando celebráveis 50 anos. Vestidos de parangolés por dentro e por fora, eles, mais os representantes da Paulicéia Desvairada Mutantes e Rogério Duprat, os conterrâneos baianos Gal CostaTom Zé, a carioca Nara Leão o os poetas tão nordestinos quanto universais Torquato Neto e Capinan, fizeram aquilo que o continental, desigual e rico Brasil moderno ensejava: estabelecer uma verdadeira ponte entre o rural e o urbano, a alta e a baixa cultura, o bom e o mau gosto. Vicente Celestino dialogava, sim, com rock britânico, e Carmen Miranda não ficava abaixo da avant-garde. O mesmo para com Luiz Gonzaga em relação à Disney, ou os sambistas do morro à linhagem clássica do Velho Mundo. Tudo junto e misturado. Era mais que um desejo: era uma necessidade.

Caetano e Gil à época do Tropicalismo, as duas principais
cabeças do movimento
De fato, a conturbação sociológica a que os anos 50 e 60 se acometiam não era pouca: Guerra do Vietnã, ameaça de desastre atômico, ascensão das ditaduras nas Américas, Crise dos Mísseis, assassinato de Kennedy, corrida espacial, revolução sexual. No Brasil, se a bossa-nova, a arquitetura de Niemeyer e o Cinema Novo colocavam o País no mapa mundial da produção intelectual – para além apenas da habilidade física de um futebol já bicampeão mundial àqueles idos –, os primeiros anos de Ditadura Militar anunciavam tempos cada vez mais sombrios de censura, perseguições, prisões, vigília, cerceamento e exílio – como acabaria por ocorrer com Caetano e Gil menos de dois anos dali. Os festivais espocavam de euforia e tensão. A cultura de massa começava a fermentar nas telas da tevê. Roberto Carlos, Elis Regina e Wilson Simonal movem multidões. Ao mesmo tempo, pairava no ar um clima de inquietação, medo e incertezas. E a antropofagia cultural caía como uma luva para compreender essa louca realidade brasileira.

“Tropicália” mostrava-se, então, como um acidente inevitável. Não tinha mais como fugir: era ir adiante sem lenço e sem documento enquanto o seu lobo não vinha."Tupi or not tupi", era essa a questão. Os acordes de órgão em clima litúrgico abrem o disco dando uma noção da complexidade que seguirá até o seu término. A missa pagã irá começar! É o início de “Miserere Nobis”, cuja letra de Capinan guarda em seu latim ecumênico ideias revolucionárias de igualdade social (“Tomara que um dia de um dia seja/ Que seja de linho a toalha da mesa/ Tomara que um dia de um dia não/ Na mesa da gente tem banana e feijão”) e de resistência (“Já não somos como na chegada/ O sol já é claro nas águas quietas do mangue/ Derramemos vinho no linho da mesa/ Molhada de vinho e manchada de sangue”).

A influência do rock psicodélico da época está totalmente presente, como na colegam das faixas, igual ao então recente e já referencial “Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band”. Mal “Miserere...” anuncia seu término, já começam a se ouvir estrondos intermitentes. É a percussão martelada de “Coração Materno”, a superversão do seresteiro Vicente Celestino pela ótica tropicalista. Inspirando-se na veia sinfônica dos Beatles (“She’s Leaving Home”, “Eleanor Rigby”, entre outras), mas superando-os em conceito, a música evoca a orquestração carregada de Duprat e o canto emotivo de Caetano para dramatizar (ainda mais!) a canção escrita nos anos 30, redimensionando seu caráter operístico. Novamente, a dialética clássico versus popular. Ao mesmo tempo, a nova leitura moderniza o antigo original, cuja certa breguice esconde um ar tragicômico, dando-lhe um caráter de seriedade que o faz parecer... ainda mais tragicômica! Fina ironia.

É a vez, então, dos Mutantes aparecerem pela primeira vez com “Panis et Circencis”, um dos hinos do movimento e tão importante no repertório que subtitula o projeto. A produção impecável e ousada de Manuel Berenbein põe os acordes do Repórter Esso – noticiário de radio e telejornalismo símbolo da cultura de massa daquele Brasil – antecipando a exótica melodia que vem a seguir, misto de balada medieval com cantata italiana. A letra faz aberta crítica às “pessoas da sala de jantar”, a burguesia alienada apenas “ocupada em nascer e morrer”. Metalinguística, lá pela metade da faixa, o coro de Rita Lee, Arnaldo Baptista e Sérgio Dias é emulado como se o tape tivesse sido desligado. Um segundo momento na música traz solos de flauta e corneta e repetições de versos enquanto o andamento acelera para, em nova interrupção, entrar a ambiência de uma sala de jantar com pessoas à mesa, quando, enfim, tudo acaba sendo engolido de vez por um som agudo. Só no terceiro final, aí que a música acaba realmente. Como numa edição de um filme de Glauber Rocha ou um quadro de Hélio Oiticica, a fragmentação e a descontinuidade que traduziam os tempos confusos de então.

Nunca se vira nada igual na música brasileira (e nem mundial) até então.

Fragmentação na edição de "Terra em Transe", de Glauber Rocha, de 1967

Eis que dá a impressão de que tamanha subversão parece ser superada com “Lindoneia”, um bolero classicamente orquestrado e com a doce voz de Nara, símbolo da bossa-nova e do “bom gosto” consensual na música brasileira. Ledo engano. Inspirada numa tela do artista visual Robens Gerchman – aliás, autor da arte da capa do disco –, “Lindoneia” remonta a história de depressão de uma linda modelo que, diante da hipocrisia asfixiante da sociedade moderna, se suicida. “Despedaçados, atropelados/ Cachorros mortos nas ruas/ Policiais vigiando/ O sol batendo nas frutas/ Sangrando”. São as imagens que as retinas da jovem não conseguem parar de enxergar até que, fatalmente: “No avesso do espelho/ Mas desaparecida/ Ela aparece na fotografia/ Do outro lado da vida”. Sem precisar das famigeradas guitarras elétricas, combatidas pelos conservadores da MPB àqueles idos, a música é tão impactante e provocativa quanto o restante.

Na linha do que pautaria toda sua obra, “Parque Industrial”, de Tom Zé – que ainda gravaria o primeiro disco solo naquele ano –, é outra obra-prima de “Tropicália”. A sonoridade de bandinha marcial, como se celebrasse ignorantemente a industrialização do sentimento humano, é típica da ironia do baiano de Irará. Ele critica num só tempo as indústrias do entretenimento, dos bens de consumo e da comunicação, sem deixar de dar uns tapas na Igreja Católica: “Despertai com orações/ O avanço industrial/ Vem trazer nossa redenção”. E o refrão diz, impiedoso: “Pois temos o sorriso engarrafado/ Já vem pronto e tabelado/ É somente requentar/ E usar/ Porque é made, made, made, made in Brazil”.

O baião-exaltação “Geleia Geral” tem na poesia de Torquato e na brilhante melodia de Gil outro hino tropicalista, quase um ideário ali condensado. “Um poeta desfolha a bandeira/ E a manhã tropical se inicia/ Resplendente, cadente, fagueira/ Num calor girassol com alegria/ Na geleia geral brasileira/ Que o jornal do Brasil anuncia”. A letra carrega a complexidade cultural que a Tropicália descobria, como que tirando um véu das escondidas “relíquias do Brasil”:“Doce mulata malvada/ Um LP de Sinatra/ Maracujá, mês de abril/ Santo barroco baiano/ Superpoder de paisano/ Formiplac e céu de anil/ Três destaques da Portela/ Carne seca na janela/ Alguém que chora por mim/ Um carnaval de verdade/ Hospitaleira amizade/ Brutalidade, jardim.” Brasilianista, carrega em seus versos Macunaíma, Sérgio Buarque de Hollanda, cultura de massa, diáspora africana, arte popular, folclore. Uma das mais belas letras do cancioneiro nacional.

Instalação "Tropicália", de Oiticica,
de 1966, antecipando o movimento
Se a referencial bossa-nova carioca permeia toda a obra, como no sucesso “Baby” – aqui, na sua versão mais clássica – e "Enquanto seu Lobo Não Vem", genial em sua construção em contrapontos, o igualmente basal baião nordestino sustenta a dissonante "Mamãe, Coragem", outra joia da parceria Caetano/Torquato (“Mamãe, mamãe não chore/ Não chore nunca mais, não adianta/ Eu tenho um beijo preso na garganta/ Eu tenho um jeito de quem não se espanta”) cuja interpretação de Gal é irretocável. Novamente, um final abrupto que, junto de todos os outros elementos sonoros e simbólicos, dá feições não apenas musicais, mas também visuais e antropológicas à proposta tropicalista.

A poesia concretista-visual da
letra de"Bat Macumba"
O passeio pela cultura brasileira está presente ainda na farra “Bat Macumba”, de letra claramente sintonizada com o concretismo de um dos padrinhos do movimento, Augusto de Campos, e cujo arranjo mistura os batuques de terreiro com as guitarras distorcidas do rock; na releitura histórico-musical de “Três Caravelas”; e na faixa que encerra apoteoticamente o álbum, "Hino ao Senhor do Bonfim", que se indica uma afirmação “baianística” dos seus mentores, também funciona como um interessante contraponto à música de abertura, “Miserere Nobis”: primeiro, a súplica e, depois, a elevação.

Caetano, Gil e a turma tropicalista já eram artistas populares tanto por suas obras musicais quanto pelas participações ativas em teatro, tevê e cinema. Mas é a partir desse projeto coletivo muito bem concebido e acabado que eles engendram uma revolução não somente em suas obras e carreiras, mas na cultura nacional. Nunca mais o Brasil foi o mesmo. Nunca mais o Brasil se viu da mesma forma. BRock, Black Rio, Lambada, Axé Music, Pagode, Mangue Beat: tudo teve (e seguirá tendo) o visto do Tropicalismo.

A pretensão modernista ainda hoje é digerida pelos dentes do Tropicalismo. Mesmo tão influente que foi e é, ainda lhe restam pedaços mal comidos sobre o prato – basta ver, hoje, o abismo que há entre Anitta e Criolo, dois influenciados. Por querer ou não, o movimento abriu caminho para a proposição de uma verdadeira identidade nacional, uma expressão brasileira salvadora. A Tropicália, em sua assimilação da antropofagia, fez o contrário dos inocentes índios quando os europeus lhes compravam com meros espelhos: dessa vez, foi o nativo quem apresentou o espelho para o forasteiro e lhe disse: “Olha só como eu sou”.

O Tropicalismo pôs o Brasil sobre um palco iluminado pelo sol dos trópicos e ornamentado com frutas e vegetação – com direito a mulatas rebolando e declamações de poesia ufanista. Sugeriu que o Brasil enxergasse a si próprio, que se lhe percorresse as matas, os sertões,os  mangues, as praias e os morros. Conhecesse por dentro suas mansões, malocas, palafitas e ocas. Considerou admitir-se complexo, pois mestiço e pluricultural. Levantou a esperança da realização da alternativa alegre e sábia diante dos outros povos do mundo. “A alegria é a prova dos nove”, como já preconizava o Manifesto Antropofágico.

 Se “o Brazyl não conhece o Brasil”, pois “nunca foi ao Brazil”, como disse certa vez Tom Jobim, a Tropicália propôs uma ruptura emancipadora a estes tristes trópicos. Ir a seu próprio encontro, mas não ao vento de caravelas, e sim, de expresso. De número 2222. No embalo do ritmo alucinante da modernidade para forjar o renascimento de uma nação. Como um (re)descobrimento do Brasil.

FAIXAS
1. "Miserere Nóbis" (Capinam, Gilberto Gil) – com Gilberto Gil - 3:44
2. "Coração Materno" (Vicente Celestino) – com Caetano Veloso - 4:17
3. "Panis et Circencis" (Caetano Veloso, Gilberto Gil) - Os Mutantes - 3:35
4. "Lindoneia" (Caetano Veloso) – com Nara Leão - 2:14
5. "Parque Industrial" (Tom Zé) – com Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa, Os Mutantes e Tom Zé - 3:16
6. "Geleia Geral" (Gilberto Gil, Torquato Neto) – com Gilberto Gil - 3:42
7. "Baby" (Caetano Veloso) – com Gal Costa e Caetano Veloso - 3:31
8. "Três Caravelas (Las Tres Carabelas)" (Algueró Jr., Moreau. Versão: João de Barro) - Caetano Veloso e Gilberto Gil - 3:06
9. "Enquanto seu Lobo Não Vem" (Caetano Veloso) - com Caetano Veloso, Gilberto Gil e Rita Lee - 2:31
10. "Mamãe, Coragem" (Caetano Veloso, Torquato Neto) – com Gal Costa - 2:30
11. "Bat Macumba" (Caetano Veloso, Gilberto Gil) – com Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil e Os Mutantes - 2:33
12. "Hino ao Senhor do Bonfim" (Artur de Sales, João Antônio Wanderley) com Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil e Os Mutantes - 3:39

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OUÇA O DISCO
Vários - "Tropicália"

Daniel Rodrigues

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Música da Cabeça - Programa #38



Como diria Cassiano: “Então é Natal/ Estrelas no céu/ Então é Natal/ Papai Noel”. Pois o Bom Velhinho vem com um saco cheio de presentes musicais no programa de hoje, às 21h, na Rádio Elétrica! E tem pra todos os gostos: Caetano Veloso, Beatles, The Cure, Chico Buarque, R.E.M., Carole King, Mutantes e muito mais. Ah, o Papai Noel também não se esqueceu dos quadros “Palavra, Lê”, “Música de Fato” e do pedido de quem ouve o Música da Cabeça, que vai rolar no “Cabeça dos Outros”. Então, se comportem, que aí vocês ganham aquilo que pediram de Natal, ou seja: muita música. Produção, apresentação e trenó, Daniel Rodrigues.


sábado, 23 de abril de 2016

Rita Lee - "Babilônia" (1978)



"Suspenderam os jardins da Babilônia
E eu pra não ficar por baixo
Resolvi botar as asas pra fora."
Rita Lee, "Jardins da Babilônia"



Álbum básico da discografia nacional. O quarto disco de Ritta Lee depois dos Mutantes e o último com a banda Tutti-Frutti colabora enormemente para uma afirmação da linguagem e identidade musical da cantora para a partir dali alçar novos voos em sua carreira. Embora bem rock'n roll, "Babilônia", (1978) já começava a apresentar as características que marcariam os trabalhos futuros da cantora.
"Babilônia" conseguia com grande mérito alternar temas banais como uma bebedeira ou uma relação alucinante com críticas de comportamento, questionamentos existenciais e protesto. De inteligência privilegiada e ironia ácida, Rita Lee, já lá nos idos dos anos 70, em "Miss Brasil 2000", ironizava o estereótipo de beleza nacional e perguntava qual seria o perfil da mulher brasileira do século XXI. Seria a "bela, recatada e do lar"? "Será que ela vai continuar uma tradição?/ Será que ela quer modificar uma geração?", perguntava. Era Rita Lee sendo naturalmente feminista muito antes da atual atitude feminina renascer com força como acontece hoje. A propósito de atualidades, "Agora é Moda", um rock proto new-wave com refrão puxado no xaxado, que remete muito a ousadia rítmica dos Mutantes, é outra que nem parece ter sido escrita ali na metade dos anos 70 tal sua atualidade, uma vez que muitas coisas que eram "moda", lá em 1978, por incrível que pareça, continuam ou voltaram a estar em alta em pleno 2016.
"Jardins da Babilônia", a faixa que inspira o nome do disco, é um daqueles desafios que poucos artistas tiveram a inteligência e ousadia para fazer contra o sistema e o regime totalitário do Brasil daquele momento, colocando-se na linha de frente, chamando pra briga e afirmando estar ali para o que desse e viesse. Com sua maneira debochada, como quem não queria nada, parecendo despretensiosa, "Jardins da Babilônia" era um indignado grito de resistência: "Minha saúde não é de ferro/ Mas meus nervos são de aço/ Para pedir silêncio eu berro/ Para fazer barulho eu mesma faço...".
O rock psicodélico "O Futuro Me Absolve" levanta a velha questão humana da existência e quer saber não só de onde viemos e para onde iremos como também para onde caminha a humanidade e onde isso tudo vai parar. "Sem Cerimônia" traz uma estrutura toda quebrada e uma melodia vocal pouco convencional; e "Eu e Meu Gato" uma canção hyppie, tipo "sem destino" cuja ideia básica é a da liberdade total naquele espírito de "vamos sair por aí pelo mundo afora". Uma pop-rock apenas interessante, nada mais. No rockão "Que Loucura", Rita agradece ao seu anjinho-da-guarda por permitir que ela voltasse inteira de mais uma noitada daquelas e por extensão, provavelmente, por todas as loucuradas da vida. Destaque para a guitarra de Luis Carlini, sempre marcante mas nesta, em especial, matadora. A rotação baixa então com a bucólica "Modinha', uma singela canção acústica muito zen bastante apropriada para um final de álbum.
Como disse no início, este seria o último disco de Rita Lee com a Tutti-Frutti, o que para muito diminuiu seu potencial de rockeira desde então. Não vejo assim. Talvez sonoramente a pegada rock, psicodélica, o experimentalismo tenha efetivamente se dissolvido em sua obra a partir dali, até visando um alcance maior em um momento de novas possibilidades sonoras e rítmicas como era aquele final de anos 70, mas no caso dela, me parece que o fundamental seja sua atitude, sua inteligência e sua inquietude que fazem com que mesmo em eventuais trabalhos extremamente pop e radiofônicos sempre esteja contida uma ponta de provocação, de contestação, de escracho, de ironia, enfim, de rock'n roll. E, sim, ela permanece e continuará sendo ainda por muito tempo a grande dama do rock brasileiro. Bom, talvez 'daaaama' não seja o termo mais adequado, não no sentido mais usual da palavra. Acho que pode-se afirmar com segurança que ao longo de seus 68 anos a Tia Rita nunca fez muito a tal linha "bela, recatada e do lar", não? Felizmente para nós. Felizmente.
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FAIXAS:
01. Miss Brasil 2000
02. Disco Voador
03. Agora é Moda
04. Jardins da Babilônia
05. O Futuro me Absolve
06. Sem Cerimônia
07. Que Loucura
08. Eu e Meu Gato
09. Modinha

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Ouça:


Cly Reis

sábado, 3 de março de 2012

Mutantes - "Os Mutantes" (1968)



"Os Mutantes são demais!"
Caetano Veloso, em 1968


Surgidos em meio ao movimento Tropicalista do final dos anos 60, o trio paulistano Arnaldo Baptista, Sérgio Dias e Rita Lee, os Mutantes, inspirados pelos Beatles traziam à música brasileira uma proposta absolutamente original e inovadora, agregando à psicodelia desta raiz rock, ritmos regionais brasileiros e incorporando toda a linha de pensamento e ação daquele movimento artístico no que dizia respeito à quebra de regras, padrões, formatos e paradigmas.
Em seu disco de estreia de 1968, “Os Mutantes”, a banda levava ao extremo seus preceitos: em um trabalho brilhante desfaziam a estrutura das canções, teatralizavam a música, desvirtuavam gêneros e misturavam linguagens artísticas.
“Panis et Circenses” a faixa que abre o disco, com sua letra surreal e arranjos 'aloprados' do maestro Renato Duprat, é um exemplo claro deste rompimento de estrutura mudando de forma várias vezes ao longo de sua duração, incorporando ruídos, elementos publicitários, sinais sonoros, até acabar abruptamente interrompendo a encenação de um jantar em família.
“A Minha Menina” que vem na sequência, de autoria de Jorge Ben, traz uma introdução com o próprio mandando todo mundo tossir e ainda sua colaboração na própria música com aquele violão ímpar cheio de ritmo, numa batucada-rock com a guitarra de Sérgio Dias bem alta, aguda e destacada.
Quem ouve “Adeus Maria Fulô”, um retrato crítico e cru da vida no sertão nordestino e da fuga pra cidade grande, num primeiro momento pode-se deixar enganar pela instrumentação percussiva e pela condução de cuíca, mas logo vai perceber tratar-se na verdade de um falso-samba regionalista nesta canção que, talvez, na sua essência seja a mais rock de todo o disco.
Outro destaque é “Bat Macumba”, de Caetano e Gil. Bem ritmada e embalada com uma guitarra estridente solando o tempo todo, é daquelas canções cuja letra genial, cheia de simbologias, fonologias, ícones e chaves é tão significativamente formal que é possível lê-la e perceber sua estrutura concretista visual mesmo musicada e acompanhar sua composição e decomposição.
Batmacumba iêiê batmacumbaoba
Batmacumba iêiê batmacumbao
Batmacumba iêiê batmacum
Batmacumba iêiê batmacum
Batmacumba iêiê batman
Batmacumba iêiê bat
Batmacumba iêiê ba
Batmacumba iêiê
Batmacumba iê
Batmacumba
Batmacum
Batman
Bat
Ba
Bat
Batman
Batmacum
Batmacumba
Batmacumba iê
Batmacumba iêiê
Batmacumba iêiê ba
Batmacumba iêiê bat
Batmacumba iêiê batman
Batmacumba iêiê batmacum
Batmacumba iêiê batmacumba
Batmacumba iêiê batmacumbao
Batmacumba iêiê batmacumbaoba
A divertida (mas séria) “O Senhor F” é quase teatro mambembe; “Le Premier Bonheur du Jour” com sua letra em francês seria charmosa com o vocal sensual de Rita se não fossem as fungadas ao fim de cada verso; “O Relógio” é extremamente bem construída no seu experimentalismo bem ao estilo "Sgt. Peppers"; e a versão de “Baby”  (outra de Caetano) com sua guitarra rasgada, é cantada de maneira irreverente, quase debochada, por Arnaldo Baptista. No mais, temos a excelente “Trem Fantasma”, a experimental e psicodélica “O Relógio”; o jazz "Tempo no Tempo"; e a finalização com a instrumental de linhas orientais “Ave, Gengis Kahn”.
Disco fundamental para o rock brasileiro, para a música popular brasileira como um todo e por que não para um cenário mais amplo, a observar-se a recente descoberta e surpresa de artistas internacionais com o som dos Mutantes. Sua presença já se fazia obrigatória nesta seção fazia algum tempo. Demorou, mas finalmente ei-lo aqui. Carimbo de qualidade ÁLBUM FUNDAMENTAL do ClyBlog.
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FAIXAS:
1. "Panis et Circenses" (Caetano Veloso, Gilberto Gil) 3:38
2. "A Minha Menina" (Jorge Ben) 4:42
3. "O Relógio" (Arnaldo Baptista, Rita Lee, Sérgio Dias) 3:30
4. "Adeus Maria Fulô" (Humberto Teixeira, Sivuca) 3:04
5. "Baby" (Caetano Veloso) 3:01
6. "Senhor F" (Arnaldo Baptista, Rita Lee, Sérgio Dias) 2:33
7. "Bat Macumba" (Caetano Veloso, Gilberto Gil) 3:10
8. "Le Premier Bonheur du Jour" (Frank Gerald, Jean Renard) 3:36
9. "Trem Fantasma" (Arnaldo Baptista, Caetano Veloso, Rita Lee, Sérgio Dias) 3:16
10. "Tempo no Tempo (Once Was a Time I Thought)" (John Philips - Versão: Arnaldo Baptista, Rita Lee, Sérgio Dias) 1:47
11. "Ave Gengis Khan" (Arnaldo Baptista, Rita Lee, Sérgio Dias) 3:48

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Ouça:
Os Mutantes 1968


Cly Reis

sábado, 16 de abril de 2011

cotidianas #78 - Adeus, Maria Fulô


Adeus, vou me embora meu bem
Chorar não ajuda ninguém
Enxugue seu pranto de dor
Que a seca mal começou


Adeus, vou me embora Maria
Fulô do meu coração
Eu voltarei qualquer dia
E só chover no sertão
E os dias da minha volta
Eu conto na minha mão
Adeus Maria Fulô
Marmeleiro amarelou
Adeus Maria Fulô
Olho d'água estorricou

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"Adeus Maria Fulô"
de Humberto Teixeira e Sivuca

Ouça:
Mutantes - "Adeus, Maria Fulô"