Que maneira de voltar aos shows! Depois de quase 3 anos sem sair para ir a uma casa de espetáculos e ver um artista presentemente, seja pela pandemia ou pelo período que a antecedeu sem nada que nos mobilizasse fortemente (ah, se soubéssemos o que viria pela frente...), o retorno foi triunfal para conferir um dos monstros sagrados da música brasileira ao qual nunca havíamos assistido ao vivo:
Djavan. E não foi qualquer arranjo que fez com que
Leocádia e eu tivéssemos essa oportunidade! Minha irmã, Karine, produtora cultural lá no Rio de Janeiro, fez a ponte com um colega seu em Porto Alegre, que nos disponibilizou generosamente duas cortesias para irmos ao Teatro Bourbon Country "
djavanear o que é de bom". Uma programação, aliás, que nem sabíamos que ocorreria, visto que os ingressos restavam esgotados desde 2020, quando o show havia sido anunciado, mas precisou ser adiado em razão da pandemia, vindo a ocorrer somente agora.
Competente do início ao fim, o show foi mais do que somente isso: foi emocionante. Cenário, luz, repertório, qualidade do som, tudo perfeitamente funcionando para que o divino alagoano despejasse seus quase 40 anos de carreira e experiência no palco – recinto o qual, aliás, ele domina como poucos. E que performer! Djavan canta com afinação invejável, dança com graciosidade e suingue, comunica-se com a plateia, toca violão e guitarra (como poucos na MPB), cumprimenta o público do “gargarejo”. Domina o palco. As luzes todas se concentram nele, embora a irretocável banda (Felipe Alves, bateria; Arthur de Palla, baixo; Torcuato Mariano, violão e guitarra; e Renato Fonseca e Paulo Calasans, piano e teclados) acompanhe o altíssimo nível de seu front man.
Ainda um pouco desaquecido no começo, na bela “Viver é Dever” – do repertório do disco “Vesúvio”, seu último e motivo da turnê – e na clássica “Eu te Devoro”, entretanto, mal Djavan sentiu o retorno do público, já se soltou. Os sugestivos versos (“Teus sinais/ Me confundem da cabeça aos pés/ Mas por dentro eu te devoro...”) foram cantados de cabo a rabo por toda a plateia na primeira em que fez o teatro vir abaixo. Isso por que depois desta vieram muitos hits. Muito bem montado, o set list não deixou de apresentar consistentemente o trabalho novo, reservando-lhe 8 faixas, como a intrincada “Solitude”, a graciosa bossa-nova djavanesca “Orquídea”, a hispânica “Madressilva” e o estupendo tema-título. Mas, essencialmente, o músico privilegiou aquelas que a galera mais se identifica.
Djavan - trecho de "Eu te Devoro"
Teatro Bourbon Country - Porto Alegre (07/05/2022)
Aí, foi só emoção, com sequências de saltar o coração da boca, seja pela poesia rica em figuras de suas letras e fraseado, seja pela sonoridade única que tem, seja pela presença de palco ou pela produção técnica impecável. No que se refere à música, a gente fica com o mesmo embasbacamento que o midas da black music Quincy Jones teve ao ouvir desavisadamente Djavan pela primeira vez. É assombrosa a natural mistura que suas harmonias e ritmos, que carregam de samba, jazz, soul, bossa nova, blues, reggae e sonoridades caribenhas. E tudo com muito, mas muito suingue. De construção harmônico-melódica complexa, sua música, no entanto, é trazida, por conta de seu talento absurdo, para uma superfície pop que se comunica com todo mundo. Tudo se hibridiza de tal forma que, numa oportunidade como a que estivemos, de ver Djavan cantando e dançando e se entregando no palco, é possível entender que a música está integralmente dentro dele.
Bonito de perceber também a poética do artista. Os amores arrebatados (“Mesmo por toda riqueza dos sheiks árabes; Não te esquecerei um dia/ Nem um dia” ou “De tudo que há na terra/ Não há nada em lugar nenhum/ Que vá crescer sem você chegar”), as referências a símbolos da feminilidade (“Mal-me-quer.../ A vida segue seu lamento/ um tanto flor” ou “De estrelas perdidas no mar/ Pra chover de emoção/ Trovejar”) e a sensualidade (“um leito de rio/ no cio/ um cheiro de amor” ou “Insiste em zero a zero, e eu quero um a um”) fazem com que Djavan tenha uma forte identificação com o público feminino. Mas não de uma maneira forçada, e, sim, muito orgânica.
Foram quase 3 horas de um desfile da mais alta classe da música brasileira e mundial, que percorre a extensa e assertiva carreira do artista. Cantamos juntos e nos emocionamos juntos com clássicos como “Topázio” (“Kremlin, Berlim/ Só pra te ver/ E poder rir”), “Acelerou” (“Quando te vi/ Aquilo era quase o amor/ Você me acelerou, acelerou/ Me deixou desigual”), “Linha do Equador” (“Luz das estrelas/ Laço do infinito/Gosto tanto dela assim”), “Samurai” ("Ai.../ Quanto querer/ Cabe em meu coração”), “Sina” (“O luar, estrela do mar/ O sol e o dom”)... Caramba! É interminável a sucessão de sucessos deste hitmaker, que correm pelas últimas quatro décadas no Brasil, seja pelas rádios, novelas, na tevê ou no cinema. São canções que estão no imaginário do brasileiro, aquelas que pode por pra rodar em qualquer lugar que dificilmente não se sairá cantando junto.
Já falei aqui num antigo texto que escrevi sobre Djavan: se ele tivesse nascido em qualquer país tipo escandinavo ou germânico ele teria um trono, seria um intocável. Estender-se-iam tapetes vermelhos onde quer fosse. Naquela noite porto-alegrense, estávamos entre os milhares que minimamente fizemos isso: estendemos-lhe o tapete. Que presente: os ingressos, a volta aos shows e poder ver a olhos nus um artista do calibre de Djavan em vida. A se ver por este show, sabe-se lá quanta vida ele ainda tem pra dar!
Daniel Rodrigues