Curta no Facebook

Mostrando postagens com marcador Julia Ducournau. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Julia Ducournau. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 19 de maio de 2022

"Titane", de Julia Ducournau (2021)

 



Desagradavelmente bom. É o que posso dizer de “Titane”.

Um violento acidente de carro deixou longos e duradouros efeitos colaterais: uma criança carrega uma placa de titânio em seu crânio; uma modelo de showroom de carros começa a ter atração sexual por seus produtos; depois de um tempo, uma gravidez inesperada se transforma em um massacre aterrorizante e um bombeiro se reencontra com um homem brutalmente queimado que diz ser seu filho perdido.

Um filme que vai direto para te chocar. Ele quer deixar você desconfortável e, devo admitir que em várias cenas fiquei. Se sua vibe é aquela famosa “Vou ver um filme para desligar o cérebro”, esquece! Impossível isso. A diretora, Julia Ducournau, do também chocante "Raw", quer seu cérebro bem ligado. 

Muitas vezes, na minha opinião, "Titane" tenta chocar até demais e se prolonga em algumas cenas para este objetivo, contudo, quando decide ir direto ao ponto, mesmo com todo seu “horror” desconfortável, ele só tem acertos. E quando vai para uma direção de autoaceitação, de se respeitar, de se compreender mesmo com seus defeitos, acerta mais ainda e , nisso, tanto Agathe Rousselle, como Alexia, com sua fixações e fetiches (e crimes também),  quanto Vincent Lindon, como Vincent, que nos é apresentado injetado hormônios no próprio corpo para manter a virilidade, trazem essa carga de tentar se adequar e se aprovar, ambos com suas tragédias e suas histórias. 

Entre acertos e erros, “Titane”, vencedor da última Palma de Ouro em Cannes, se sai bem com muito mais pontos positivos que negativos. É desconfortável na medida certa mas tem a capacidade de gerar algumas boas reflexões. Um longa que daqueles que  continua na sua cabeça por dias.

Peque o carro e vá ver o filme. Vrumm! Vrumm!

E isso é só o começo...



por Vagner Rodrigues


terça-feira, 10 de agosto de 2021

74º Festival de Cinema de Cannes - Os Premiados



O bizarro "Titane" ficou com o prêmio principal.
As Olimpíadas estavam começando, a gente meio que se perdeu, deixou passar mas, no último dia 17 de julho, se deu a divulgação dos vencedores do Festival de Cannes, uma dos mais respeitados e tradicionais mostras competitivas de cinema do planeta. Mesmo com algum atraso, mesmo tendo dado mole, marcado bobeira, pela importância do evento e porque a gente adora cinema, não dava pra deixar passar.
A vencedora foi uma mulher, a francesa Julia Ducournau, pelo intenso "Titane", filme em que uma menina que sofrera um acidente automobilístico na infância e tem implantada uma placa de titânio na cabeça, anos mais tarde passa a sentir atração sexual por carros e a cometer assassinatos de maneira compulsiva. A francesa de 37 anos já havia se notabilizado pelo excelente "Raw", um terror canibalístico incomum e impactante, que já causara alvoroço no Festival em 2016. Agora Julia se junta a Jane Campion, diretora de "O Piano", como, apenas, a segunda mulher a vencer o badalado prêmio francês, 28 anos depois do, até então, inédito feito, e decreta, definitivamente, que 2021 é o das mulheres nos cinema mundial!


Pra quem se perdeu, como nós, e não conhece ainda todos os premiados, segue abaixo, a lista com os vencedores em todas as categorias:

  • Palma de Ouro: "Titane", da francesa Julia Ducournau
  • Grande Prêmio: "A Hero", do iraniano Asghar Farhadi e "Compartment N. 6", do finlandês Juho Kuosmanen
  • Prêmio do Júri: "Ahed's knee", do israelense Nadav Lapid e "Memoria", do tailandês Apichatpong Weerasethakul
  • Melhor Direção: o francês Leos Carax por "Annette"
  • Melhor Roteiro: os japoneses Ryusuke Hamaguchi e Takamasa Oe por "Drive my car"
  • Melhor Atriz: a norueguesa Renate Reinsve por "The worst person in the world"
  • Melhor Ator: o americano Caleb Landry Jones por "Nitran"
  • Palma de Ouro de Honra: a atriz e diretora americana Jodie Foster e o diretor italiano Marco Bellochio
  • Câmera de Ouro: "Murina", da croata Antoneta Alamat Kusijanovic
  • Palma de Ouro de curta-metragem: "All the crows in the world", da honconguesa Tang Yi
  • Menção Especial de curta-metragem: "Céu de Agosto", da brasileira Jasmin Tenucci


C.R.

sábado, 10 de março de 2018

Elas metem medo




As canadenses irmãs Soska
nomes de destaque na nova cena feminina do terror.
Durante muito tempo, devo admitir, nutri uma série de restrições a filmes dirigidos por mulheres. Com exceção de algumas diretoras como Agnés Varda, Jane Campion, Agnieszka Holland, Sophia Coppola e mais uma que outra ou alguma obra eventual, de um modo geral torcia o nariz para filmes de realizadoras. Não por julgá-las menos capazes ou talentosas para a atividade, mas muito em função da própria identidade criada em torno de suas obras, fruto das limitações ou das imposições  estabelecidas pelos estúdios e da própria expectativa comportamental apregoada pela sociedade machista, que com seus dogmas como "isso não é coisa de menina", "mulher tem que ser comportada", entre outros tantos, acabou por padronizar o produto cinematográfico feminino tornando-o, muitas vezes, previsível e enfadonho.
Mas os novos tempos, o surgimento de um novo pensamento no tocante a gêneros e uma nova atitude feminina, associada à abertura, ainda que pequena, de oportunidades e confiança por parte de produtores fez surgir uma nova geração de cineastas "de saias" cheia de ideias, vigor e talento. Desatreladas dos padrões estabelecidos como "femininos", elas abordam, sim, assuntos pertinentes à sua condição de mulher, mas o fazem de maneira mais inventiva, ousada e reflexiva. No terror, por exemplo, estilo cujos princípios básicos sempre foram veementemente apartados das mulheres desde suas infâncias ("menina não vê essas coisas", "isso é muito nojento", "tem que ver filme de princesa"...), e no qual muito raramente figuravam até dez, quinze anos atrás, parece agora encontrar uma safra criativa, madura e livre dessas amarras estéticas e morais capaz de produzir bons trabalhos e imprimir sua identidade. Selecionamos, aqui, alguns destes filmes dirigidos por mulheres que mostram que elas começam a se destacar num dos gêneros até então mais predominantemente masculinos do cinema, com bons argumentos e trabalhos muitíssimo bem realizados. Podem começar a ficar com medo porque elas estão chegando.




1. "O Babadook", de Jennifer Kent (2014) - Um dos filmes de terror mais assustadores dos últimos tempos numa história repleta de símbolos e metáforas que aborda temas como perdas, a maternidade sozinha e estados psicológicos conflitantes e relação a um filho, com muita criatividade e inteligência.
Amelia perde o marido em um acidente de carro no dia em que está para ter seu bebê e a partir dali passa a, de certa forma, responsabilizar o filho pela perda e a todos os problemas decorrentes daquela ausência, nunca dedicando o amor e a dedicação que deveria a ele. O menino Samuel, com 6 anos, tem problemas de comportamento na escola, um temperamento difícil e uma mente muito inventiva e a mãe não lida nada bem com nenhuma destas situações tratando-o com indiferença, negligência e até raiva. Num dos raros momentos em que reúne paciência para dar alguma atenção ao garoto, resolve ler para ele e encontra na estante um livro que não conhecia chamado Mister Babadook e aí que os problemas começam de verdade pois o personagem do livro, um homem de capa, cartola, corpo esticado e unhas enormes, lembrando um figura de expressionismo alemão, começa a atormentar e ameaçar o garoto e a mãe e, pelas páginas do livro anuncia que não irá deixá-los em paz.
Talvez a criatura seja somente fruto da mente confusa e inventiva de Samuel, talvez seja realmente apenas um livro do mal, talvez o pai retornando do além, ou ainda, talvez seja nada menos do que o próprio estado mental de Amelia em relação ao filho e a projeção e materialização de sua negação a ele, da qual ela só conseguirá se livrar se conseguir lidar com isso.





2. "Raw", de Julia Ducournau (2016) - Terror forte, intenso, pesado, chocante, com cenas gráficas de canibalismo mas que não deixa de trazer assuntos interessantes à tona. Maturidade, sexualidade, autodescoberta e autoaceitação são alguns dos temas presentes em "Raw" , ótimo filme da francesa Julia Ducournau de apenas 34 anos.
Uma garota vegetariana que acaba de entrar na faculdade de veterinária, Justine, em um dos trotes pesados impostos pelos veteranos é obrigada a comer rim de coelho, mudando então drasticamente seu comportamento a partir deste momento, passando não somente a comer carne como a ter atitudes estranhas e assustadoras. A carne parece ter libertado a Justine que estava presa dentro dela. A verdadeira Justine. Uma pessoa que se escondia atrás do vegetarianismo, da virgindade, da pureza, de valores que na verdade talvez não tivessem a importância que ela queria fazer crer. Uma volta ao mais primário instinto do homem. O instinto animal.






3. "Boa Noite, Mamãe", de Veronika Franz e Severin Fiala (2016) - Um dos filmes mais perturbadores que já assisti. "Boa Noite, Mamãe" é tenso do início ao fim. Sua limpidez e calmaria, sem sustos ou sobressaltos, contrasta com a tensão presente no ar o tempo inteiro. Uma mulher volta para casa depois de uma cirurgia plástica no rosto mas seus dois filhos gêmeos, Elias e Lukas, têm dúvidas se aquela mulher que retorna é mesmo sua mãe. A atadura no rosto, sua atitude ríspida, sua indiferença e uma série de outros pequenos indícios fazem com que os garotos, num primeiro momento a confrontem e adiante, a mantenham prisioneira chegando a torturá-la física e psicologicamente em busca de uma confissão e da revelação do paradeiro da verdadeira mãe.
O filme muito bem dirigido pela austríaca Veronika Franz em parceria com Severin Fiala faz questão de deixar uma série de questões em aberto de modo a manter o espectador curioso e intrigado. O que houve com a mulher para que fizesse uma cirurgia plástica? Houve um acidente? Um incêndio? Os meninos teriam algo a ver com isso? Será por isso que a "mãe" proíbe isqueiros? Será por isso que ela ignora um dos gêmeos? E será que realmente são duas crianças?... Assista e tire suas próprias conclusões.






5. "Acorrentados", de Jennifer Lynch (2002) - Essa é filha de peixe! Tem seu talento, tem seu estilo, tem suas próprias ideias mas não dá pra ignorar que ter sido criada no lar de um dos mestes do cinema contemporâneo ajuda muito na formação. E no caso de Jennifer Lynch parece que não apenas na escolha do caminho como na linguagem, uma vez que faz a linha esquisitona do pai com temas sombrios, violentos, surreais e grotescos, o que já ficava evidente em sua estreia com o bizarro "Encaixotando Helena" de 1993. Em "Acorrentados" ela volta ao maníaco obsessivo e dominador desta vez com um taxista que sequestra uma mulher e seu filho na saída do cinema. Bob, o taxista, estupra e mata a mulher mas mantém o garoto de nove anos como prisioneiro e o faz permanecer assim por muitos anos, até a adolescência, acorrentado, sempre presenciando outros sequestros e crimes contra mulheres.
A violência contra a mulher e aquela ideia que muitos homens tem que por usar determinada roupa ou agir de tal maneira a mulher "está pedindo pra ser estuprada" são assuntos evidentes na abordagem da diretora, mas temas como violência doméstica na infância e traumas psicológicos ligados à família também aparecem principalmente no que diz respeito ao vilão Bob.
Esse não é exatamente um terror, mas vindo da família Lynch, no mínimo é de mexer com a cabeça de qualquer um.






6. "Garota Sombria Caminha Pela Noite", de Ana Lily Amirpur (2014) - Uma espécie de justiceira sobrenatural que vaga pelas noites iranianas colocando machões, abusadores e traficantes no seu devido lugar e que, numa dessas perambulações noturnas, topa com Arash, um rapaz envolvido com traficantes e cujo pai é viciado, que está exatamente tentando se afastar daquele universo envenenado de Bad City, a cidade fictícia onde vivem. O encontro dos dois, criaturas que de alguma forma precisam de algo que complete ou que justifique suas vidas, parece frear um pouco os ímpetos da garota e quem sabe, amenizar sua sede de sangue.
Típico cult movie. Preto e branco, cenas longas, diálogos breves, silêncios, quadros estáticos e ação mais psicológica do que prática. Muito interessante a direção de arte que, mesmo com orçamento baixíssimo, mistura elementos dos de épocas diferentes deixando indeterminado o momento em que acontece a ação, bem como a trilha sonora que reforça essa sensação de indefinição de tempo e local, com ênfase em música americana dos anos 80, mas com momentos de música clássica e canções regionais iranianas. Embora seja cheio de referências à cultura e ao cinema americano, "Garota Sombria Caminha Pela Noite", por seu ritmo, sua estética e dinâmica é um daqueles filmes para quem está interessado numa proposta diferente como filmes de arte e "filmes cabeça".





7. "American Mary", de Jen e Sylvia Soska (2012) - Terror com toques de fetichismo. "American Mary" conta a história de uma estudante de medicina que, ainda durante o curso, decepcionada com o universo da profissão que escolhera e vendo sua situação financeira cada dia pior, ao tentar a carreira de stripper sendo que em seu primeiro dia na boate, uma circunstância inesperada faz com que tenha que pôr em prática suas habilidades médicas. a partir dali entra para o ramo de cirurgias clandestinas de modificações corporais executando algumasoperações absolutamente bizarras.
O que começa como uma necessidade financeira que ela realiza cheia de relutância e até repugnância, transforma-se numa atividade sádica e prazerosa e um objeto de vingança. 
Forte, sangrento, sádico, "American Mary" de certa forma coloca em discussão os sonhos profissionais, a ética dentro de uma atividade, os caminhos que podem levar uma pessoa a realizar algo fora de seus padrões morais e mais uma vez, os abusos sexuais contra mulheres. Uma boa mostra do cinema das promissoras irmãs Soska que, sem dúvida, tem muito mais coisas interessantes a oferecer.







8. "O Convite", de Karyn Kusama (2015) - Will e sua namorada Kyra são convidados para um jantar com amigos do tempo de colégio e faculdade na casa da ex-esposa dele, Eden, depois de anos sem se verem e de terem superado, ambos, separados, à distância, a tragédia em comum da morte de seu filho. Eden, agora com um novo marido parece refeita e animada, no entanto o convite e o jantar parece esconder algo de muito suspeito que apenas Will parece perceber mas que é ignorado e subestimado pelos demais convidados supondo que a desconfiança de Will se dê em função de todo o trauma que sofrera.
Embora não seja brilhante, o filme tem o mérito de manter essa dúvida de estar ou não acontecendo alguma coisa estranha e o espectador vai sendo absorvido e cada vez mais envolvido na trama em grande parte graças à atuação do ator Logan Marshall-Green que, sendo o centro de observações dos fatos e das ações dos outros personagens, nos transmite todas as sensações com de maneira muito convincente.
O roteiro meio que escorrega lá pela metade, a justificativa toda em si não é das mais válidas, mas a cena final do filme é simplesmente inquietante.






9. "Quando Chega a Escuridão", de Katrhyn Bigelow (1987) - Este provavelmente é o mais fraco da lista mas vai apenas para destacar a diretora que seria a primeira mulher a ganhar um Oscar de melhor direção, aqui ainda em seu segundo longa. "Quando Chega a Escuridão" é uma espécie de terror road-movie- western de vampiros. Entendeu?
Tudo começa quando um rapaz, Caleb, conhece Mae e no fim da noite ela lhe pede uma carona para casa. Só que durante o caminho ela começa a demonstrar algum pânico pela inevitável chegada da manhã e aí, né, já sabemos porquê. Ele não escapa dos dentinhos dela e é lavado até um grupo de amigos da garota, saqueadores e baderneiros, todos vampiros, é claro, onde ele terá que passar por uma prova para entrar para a gangue uma vez que não é bem-vindo. 
O filme de Bigelow se distingue de muitos do gênero pelo caráter humano que ela confere às criaturas da noite, não mencionado, por exemplo, a palavra vampiro em momento algum do filme. O roteiro se perde um pouco em alguns momentos, a trama acaba corrida demais e o final fica um pouco em desacordo com o que foi todo o resto do filme mas mesmo assim é interessante observar o crescimento do cinema da cineasta. Com certeza que valeu pela experiência e aprendizado até chegar à estatueta dourada.





10. "O Cemitério Maldito", de Mary Lambert (1989) - Esse é um bônus! Outro que não é da nova geração mas serve bem para ilustrar o trabalho das mulheres no cinema de terror.
Uma família se muda para uma nova casa na beira de uma rodovia movimentada. Lá, o gato da família morre atropelado na estrada destino que muitos outros mascotes já vieram a ter, conforme conta Ju, o vizinho ao dr. Louis Creed, o novo morador. Sensibilizado pela tristeza que a morte do bichano causaria ao menininho, filho de Louis, o velhote revela que ali perto existe um antigo cemitério indígena no qual se crê que quem for enterrado lá volta à vida. O médico usa o artifício com o gato e o resultado é positivo apenas em parte pois o bicho volta à vida mas diferente do que era, muito mais agressivo e perigoso. Vendo, logo em seguida seu filho, Gage, ter o mesmo destino na movimentada estrada, Louis não hesita em enterrá-lo no cemitério dos bichos para trazê-lo de volta mas o retorno do filho é ainda pior do que o do animalzinho de estimação. 
Baseado no romance "O Cemitério" de Stephen King e roteirizado pelo mesmo, "O Cemitério Maldito" é um clássico do terror sendo frequentemente lembrado em listas de melhores pelos cinéfilos amantes do gênero. Destaque ainda para o tema musical do filme, "Pet Sematary" dos Ramones, que além da boa história, bom roteiro, maquiagem assustadora e climão aterrorizante, é mais um ponto a seu favor.




Cly Reis

sexta-feira, 29 de setembro de 2017

"Raw", de Julia Ducournau (2016)



Diante de tantos filmes de terror tão iguais e sem bons argumentos, o franco-belga "Raw" consegue se destacar como uma obra que, além de perturbar por seu tema central, suas cenas pesadas, grotescas e chocantes, também o faz por carregar consigo assuntos como maturidade, autodescoberta, feminismo e sexualidade, abordando-os de forma muito engenhosa e inteligente. Justine uma garota vegetariana, pura, virginal, que acaba de entrar na faculdade de veterinária, entre uma série de trotes pesados impostos pelos veteranos, num deles é obrigada a comer rim de coelho. A partir daí seu comportamento transforma-se totalmente, passando não somente a consumir o alimento que até então repudiava como a agir de forma estranha, impulsiva, inconsequente e desmedida. É como se a ingestão da carne tivesse levado embora sua "pureza". Sinto aí uma certa provocação a vegetarianos e veganos mas pode ser apenas impressão minha. Mas fato é que essa iniciação é um dos símbolos interessantes do filme no sentido de uma espécie de "lançamento para a vida", uma vez que o ingresso numa faculdade funciona também simbolicamente como uma etapa de entrada para a vida adulta. Sua visão das coisas aos poucos vai se transformando, sua relação com a irmã já veterana na faculdade também muda, com seu amigo homossexual colega de quarto, seu corpo muda e nela começam a se manifestar desejos... alguns bastante inusitados, diga-se de passagem. A carne funciona como uma volta ao instintivo, ao animal, ao seu "eu" mais puro. É a autodescoberta. É o deixar-se aceitar como é. Só que no caso de Justine, e aí entra o terror, o que ela descobre em si, é absolutamente assustador.
"Raw" não vai lhe dar sustos, não espere por isso, mas pode fazer você desviar o rosto da a tela. A cena em que Justine come o dedo decepado da irmã, por exemplo, é horripilante, repugnante mas ao mesmo tempo sensual e fascinante. Só para que se tenha uma ideia, depois das primeiras exibições nas quais o longa já causara desmaios na plateia, algumas salas de cinema passaram a distribuir sacos de vômitos para os espectadores antes das sessões. Mas é injusto com um filme tão bom, tão bem trabalhado, bem elaborado, lembrá-lo somente por estes tipos de reações. "Raw" é um daqueles filmes de terror nos quais o terror, em si, é quase que somente um detalhe integrante de uma boa ideia cinematográfica.
Podem estar certos que aquilo na mão dela não é uma batata frita
e o vermelho não é catchup.

Cly Reis