Curta no Facebook

Mostrando postagens classificadas por data para a consulta Louis Armstrong. Ordenar por relevância Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens classificadas por data para a consulta Louis Armstrong. Ordenar por relevância Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Dexter Gordon - "Go" (1962)



“Minha vida é a música.
Meu amor é a música.”
fala de Dale Turner,
personagem vivido por Dexter Gordon
no filme “Por Volta da Meia Noite”



Quem é amante de jazz e afeito às comparações futebolísticas a diversos outros assuntos, vai concordar: se Miles Davis é o Pelé e John Coltrane o Garrincha do jazz, Dexter Gordon é o Nilton Santos. Miles por conta da longevidade e quantidade de gols feitos nas diferentes eras em que atuou. Coltrane pela meteórica e decisiva passagem, marcada pela genialidade, pela paixão por sua arte e pela habilidade jamais igualada. Gordon, por sua vez, poderia ter o mesmo apelido que o zagueiro do Botafogo e das duas primeiras seleções brasileiras campeãs mundiais: “enciclopédia”. O saxofonista era um craque do jazz.

Atravessando em atividade da fase áurea ao declínio do gênero, dos anos 40 aos 90, o californiano Dexter Keith Gordon estudou clarinete aos 13 anos e na adolescência já dominava o sax tenor. Só na primeira década como músico profissional já somava passagens pelas bandas de Louis Armstrong, Nat “King” Cole, Lionel Hampton, Ben Webster, Lester Young e nas orquestras de Fletcher Henderson e Billy Eckstine, esta última, com a qual tocou para gente do calibre de Sarah Vaughan e Dizzy Gillespie. Ainda nos anos 40, gravou pela Savoy, ao lado dos colegas Wardell Gray e Teddy Edwards, discos revolucionários que se tornariam referência para a então nova geração de saxofonistas tenores, entre os quais Coltrane e Sonny Rollins. Como se não bastasse, na década seguinte, o jovem alto e galante foi também um dos precursores de outra revolução: o estilo mundialmente assimilado chamado bebop.

Chegado aos anos 60, na faixa dos 30 e já com toda essa bagagem, mesmo não sendo uma celebridade de massas (o que cantores como Frank Sinatra e Tony Bennett cumpriam com autoridade), era evidente que o passe de Dexter Gordon estava valorizado. Pois o produtor Alfred Lion resolveu bancar. Em 1961, chama-o para seu selo, Blue Note, no qual permanece por quatro anos. O crème de la crème dos sete álbuns gravados por Gordon neste período é “Go!”, de 1962. Com a companhia de uma estelar “cozinha”, formada pelo requintado pianista Sonny Clark, o ágil baterista Billy Higgins e o flexível baixista Butch Warren, Gordon usa de toda sua maestria e compõem um disco impecável, considerado um dos melhores de todos os tempos da discografia jazz. Virtuose e dono de um estilo abarcante – no qual se ouviam facilmente a fineza de Armstrong, a pulsação de Charlie Parker, a sutileza de Young e a potência de Coleman Hawkins – é possível derivar do seu fraseado a tradição e a modernidade. Ele, que havia passado pela descoberta do swing, pelo estouro das big bands e pelo advento do cool e do bebop, junta tudo isso de uma forma absolutamente natural e híbrida.

Nesse clima abre a literalmente saborosa “Chees Cake”, única composição do álbum de autoria de Gordon. Acordes de baixo anunciam o começo, somando-se a este a bateria, marcada no prato de ataque. É quando vem Gordon com seu vigoroso e elegante sopro, extraído de pulmões possantes guardados em sua parruda caixa torácica. O riff, dos mais marcantes do cancioneiro jazz. Desenvolve-se um solo extenso e gostosamente inventivo, rebuscando o bebop e o recheando-lhe com novos temperos, que coloca a canção no limiar entre o cool e o hard bop. Clark assume brevemente em um notável solo antes de Gordon retornar para a segunda intervenção. Nova maravilha. Fluxo altamente vibrante e suingado, com uma engenhosa escolha das notas e escalas que só poderiam sair de um ”decano” como Gordon.

"Guess I'll Hang My Tears Out to Dry", na sequência, é um verdadeiro convite à melancolia e ao romantismo da noite nova-iorquina. Balada de ouvir dançando agarradinho ou para afundar as mágoas num copo de bourbon sem gelo. Linda. O soprar de Gordon é seguro e cheio, mas não menos lânguido e introspectivo, como quem está escutando o próprio coração e reproduzindo-o em sons. É possível sentir cada nota, cada sentimento. O sax se alonga em sua conversa com os apaixonados e/ou descornados, tomando-lhe quase 4 minutos. Dá um passe para que Clark faça, com habilidade, mate no peito e ponha no chão. O pianista faz um afago nas teclas, enquanto Higgins vaporiza a atmosfera com uma levada nas escovinhas tendo como companheiro para isso Warren serpenteando as cordas. Mas não dura muito tempo a vez do trio, pois Gordon “retoma a bola” para finalizar a canção repetindo frases e retomando as mesmas ideias amorosas de seu sax. Junto a "Blue in Green", de Miles, “Round Midnight”, com Chet Baker, “Naima”, de Coltrane, “Like Someone in Love”, com Ella Fitzgerald, está entre as 10 grandes baladas jazz da história.

"Second Balcony Jump" vem para elevar o ânimo num jazz bluesy animado e gracioso. Nada menos que 3 minutos e 40 de um improviso solto e ininterrupto de muita expressividade e agilidade de Gordon. Como nas anteriores, é Sonny Clark quem tem a primazia do segundo solo, o qual faz com absoluta destreza de quem “chuta” com as duas valendo-se da liberdade dada pelo líder. Gordon reaparece já dentro da área para finalizar com uma mais curta improvisação em que ratifica sua presença. Higgins dá um breve solo antes do saxofonista terminar o número brincando ao executar o clássico desfecho: “pam-pam-ram-ram-pam/ pam pam!”.

Sintonizado com um ritmo latino que se fazia novo nos Estados Unidos e que tomava o gosto dos músicos estrangeiros, uma tal de bossa-nova, Gordon traz uma feliz interpretação do clássico “Love for Sale”. Assim como Stan Getz, Charlie Byrd, Henri Mancini, Vince Guaraldi e outros impressionados com as inovações harmônicas e melódicas levadas a eles principalmente por conta da trilha do filme “Orfeu Negro”, de 1959 (o disco “Bossa Nova at Carnegie Hall”, o definitivo carimbo internacional da bossa-nova, seria gravado no final daquele ano), o saxofonista entra no gingado brasileiro e tece uma malemolente versão para a música de Cole Porter. Muito ajudado pela marcação sambada de Higgins. Clark, visivelmente movido pelo piano de Tom Jobim, é outro a entrar no espírito bossa-novista. Gordon, por sua vez, dá um show de manutenção dos tempos durante o riff, soltando a criatividade e apuro nos improvisos. Clark, por sua vez, vive aqui seu mais inspirado solo, engenhoso dentro dos tempos circulares que encadeia.

"Where Are You?" é mais uma balada para morrer de amor. As pronúncias seguras de sentimento do sax impressionam pela elasticidade e controle dos tempos, realizando leves atrasos, ataques carregados e modulações, todas precisas. Por volta dos 3 minutos e 30, Gordon intensifica a emotividade ao subir um tom. Prenúncio de uma breve pausa para o mais uma vez sutil e inteligente dedilhado de Clark, envolto num clima de nightclub, de fumaças de cigarro e cheiro de trago no ar, forjada pela condução de Higgins e Warren. “Go!” finaliza com a sibilante "Three O'Clock in the Morning", a qual começa com o piano marcando o tique-taque do relógio nas agudas teclas pretas. São três da manhã e é possível enxergar um casal enamorado passeando feliz e bêbado pelas ruas desertas da Big Apple entrando de bar em bar e alheios a qualquer coisa que não seu affair. É assim que o disco se encerra: na felicidade inebriada da boemia da Village Vanguard.

A lenda em torno de Dexter Gordon não terminaria em “Go!”. Um pouco pela desvalorização de “velhos” como ele em detrimento dos jovens ases do free-jazz e da avant-garde ­– sem falar nos astros pop ascendidos naquela década, quase hegemônicos na indústria fonográfica de então –, um pouco para se isolar por conta do vício em heroína, o músico norte-americano refugia-se na Europa. Lá é redescoberto e passa a viver em Paris e em Copenhague, onde vira a celebridade que não tinha sido até então. Torna à terra natal somente em 1976, quando é recebido com honras. Afinal, não é todo dia que se tem de volta o herdeiro de Armstrong, Parker, Hawkins e Young. Passados o estouro do rock ‘n’ roll, acalmado o fervor dos anos hippies e assimilada a hibridização do jazz com o rock – a esta época já haviam morrido Coltrane, Lee MorganJimi HendrixJanis Joplin e iam-se já seis anos do rompimento dos Beatles –, Dexter Gordon finalmente ocupa seu lugar dentro de casa.

Ainda, quatro anos antes de morrer, aos 63, roda, com o cineasta francês Bertrand Tavernier, o memorável filme “Por Volta da Meia-Noite” (1986), em que protagoniza o papel justamente de um saxofonista de jazz norte-americano autoexilado em Paris, onde é ovacionado. A abordagem dos problemas com drogas e álcool, os desajustes familiares e a saudade do ninho demonstrada pelo personagem tornam o filme bastante autobiográfico, mesmo que a história se baseie também em parte na trajetória de dois dos mestres de Gordon: Young e Bud Powell. A aura mítica que se cria em torno do alter-ego de Gordon, Dale Turner, é tão natural quanto a sua interpretação de si mesmo no longa: os gestos entre o charmoso e o ébrio, a voz naturalmente rouca, a fala pausada, o sorriso maroto, o porte altivo preservado da juventude. Pela atuação, o músico chegou a concorrer ao Oscar de Melhor Ator naquele ano. Não precisou nem vencer para reforçar o mito do então último expoente da gênese do jazz, gênero do qual ele foi, se não o maior como um Pelé ou o mais genial Coltrane, o exemplar mais completo como Nilton Santos. De modo que “Go!” não é simplesmente um disco: é um “golaço!”.
********* 

FAIXAS
1. "Cheese Cake" (Dexter Gordon) - 6:33
2. "Guess I'll Hang My Tears Out to Dry" (Jule Styne/Sammy Cahn) - 5:23
3. "Second Balcony Jump" (Billy Eckstine/Gerald Valentine) - 7:05
4. "Love for Sale" (Cole Porter) - 7:40
5. "Where Are You?" (Jimmy McHugh/Harold Adamson) - 5:21
6. "Three O'Clock in the Morning" (Dorothy Terris/Julian Robledo) - 5:42

*************** 
OUÇA O DISCO





segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Herbie Hancock – “Maiden Voyage” (1965)



"O esplendor de um navio marítimo em sua viagem inaugural".
Hancock,
sobre o que lhe inspirou
a compor a música “Maiden Voyage”



Ano passado, quando escrevi sobre um dos discos de jazz que mais admiro, "Empyrean Isles", de Herbie Hancock, que completava 50 anos de seu lançamento, deixei subentendido que, em 2015, outro dele não só mereceria também uma resenha quanto, igualmente, chegava ao cinquentenário. Pois a dourada década 60 para o jazz norte-americano, quando centenas de músicos produziam às pencas e com qualidade jamais vista, obviamente, contaminavam este pianista, tecladista, compositor e arranjador, um dos maiores jazzistas de todos os tempos e importante artífice da cena ocorrida cinco décadas atrás. Prodígio (aos 11, já tocava Mozart ao piano), Hancock notabilizou-se cedo no mundo do jazz de modo que, desde sua estreia como band leader, em 1962, aos 22 anos, seus trabalhos passaram sempre a ser aguardados com atenção. Após “Empyrean Isles”, já maduro e consagrado, era normal que se esperasse dele algo inovador. É quando entra nos famosos estúdios Van Gelder, em Nova York, a 17 de março de 1965, para lapidar outra pedra rara: o álbum “Maiden Voyage”.

Mas para equiparar-se ou até superar o que já havia feito, mais do que qualquer expectativa externa o próprio Hancock certamente se impunha a não apenas repetir a fórmula. Se o LP anterior trazia a semente do chamado jazz-funk, influenciando artistas da soul music, do jazz fusion, do rock e da música internacional (a ver pela MPB de Edu Lobo e Artur Verocai, para ficar em dois apenas), o desafio seguinte seria articular outra novidade dentro de seu gigantesco cabedal de referências sonoras. O jazz modal, o be-bop, a música clássica, as inovações da vanguarda, os ritmos latinos: tudo passava pela inventiva cabeça de Hancock. O resultado? Mais uma revolução dentro do jazz. E a célula disso é a monumental faixa-título, composição magistralmente arranjada e harmonizada por ele junto à não menos competente banda: o mestre do baixo acústico Ron Carter; o saxofonista tenor com blues nas veias George Coleman;  Freddie Hubbard, no trompete, outro monstro; e Tony Williams – dispensa comentários –, na bateria. Tudo amalgamado pelos cirúrgicos dedos de Rudy Van Gelder na mesa de som – além de ter uma das mais bonitas capas da Blue Note, assinada por Reid Miles.

E o que, então, essa “viagem inaugural“ de Hancock – não à toa, a faixa de abertura – trouxe de diferente? A começar, um aprofundamento do chamado jazz modal, introduzido por Miles Davis, artista do qual Hancock é um dos discípulos, no memorável "Kind of Blue", de 1959. Isso por que o tema se vale duma configuração de modos musicais distintos, organizando esses campos harmônicos através de uma distribuição entre os instrumentos espantosa. O riff de quatro acordes do piano se forma por uma conjunção sensorial dicotômica: os três primeiros soam austeros, enquanto o quarto, quase dispare, transparece vivacidade. O baixo, impositivo, logo assume a função da manutenção da base, mas a seu jeito: ondulante na passagem de uma nota para outra, dando sinuosidade ao contexto. Junto a isso, os metais, noutro andamento mas dentro do mesmo tempo, registram dois tons acima. Perfil sonoro alongado, de corpo simétrico e queda nada brusca. Parecem, sax e trompete, estar num transe. Arrematando, a delicada bateria de Williams, que suspende a melodia tanto pela manutenção nos pratos e caixa, o que lhe reforça o caráter etéreo, quanto pelo estabelecimento de um compasso arrastado (e distinto dos mantidos pelo piano e pelos metais, diga-se), no qual imprime leves atrasos no tempo. E, por incrível que pareça (não tão incrível em se tratando de Hancock): tudo fecha perfeitamente. Resta uma canção cujo centro modal é uno mas expandido, fazendo com que os acordes soem livremente mas sempre reconduzidos a este.

Os solos de “Maiden Voyage” são um caso à parte. A primazia de abrir as sessões de improviso é dada a Coleman, novo integrante e único não remanescente da banda que gravara ”Empyrean Isles”. E ele faz jus ao privilégio. Que solo! O seu melhor de todo o disco. Potente, rigoroso e lúcido. Já no final da primeira frase, anuncia a conotação vertiginosa que não apenas ele quanto todos os outros assumirão. Dois arpejos sutis mas determinados bastam para dizer isso. Sons em espiral, autorreferências, ciclos. Solo curto, mas abundantemente expressivo. Tão perfeito e afim com a melodia que não parece ter sido tirado na hora, mas sim escrito em partitura. Carter, inteligente, segura com mãos de mágico toda essa química quase improvável, enquanto Williams, este sim, sai apenas da manutenção do compasso para, aproveitando-se do campo estendido do modal, quebrar o andamento, lançar rolos curtos e desenhar o ritmo do jeito que a harmonia lhe autoriza.

Aí vem a parte de Hubbard. Se em “Cantaloupe Island”, peça-chave do disco anterior de Hancock, seu trompete trazia um dos solos que se tornaria um dos mais pop do cancioneiro jazz, aqui, há quase que uma recriação daquele improviso, porém, agora, ainda mais tomado de conexões com a tradição do instrumento (Louis Armstrong, Coleman Hawkins, Miles) e com o clima astral desse passeio musical proposto por Hancock. Altíssima técnica e controle. Quase finalizando o solo, ele chama todos os instrumentos a um momento mergulho, como que submersos num redemoinho de sons no qual ele executa sons cíclicos e os companheiros reavaliam seus lugares: oscilam, tumultuam-se e se reencontram novamente na margem. Emendado, o momento do próprio Hancock desnuda ainda mais o âmago da canção: idas e vindas do inconsciente em dissonâncias e sustenidos. A ideia espiral, claro, é retomada, adicionando aí a onicidade fantástica que as teclas brancas agudas oferecem. Um colosso da música mundial e uma das maiores expressões da avant-garde dentro do jazz. Enigmática mas instigante. Hermética mas saborosa. Ousada mas cativante. Estruturalmente complexa mas hipnotizante. Melodia, harmonia, arranjo, timbres: tudo faz com que “Maiden Voyage” seja uma esfinge ainda a ser totalmente desvendada.

Na sequência, o espírito blues é o que comanda “The Eye of the Hurricane”, hard-bop efervescente, como o título sugere, e de pura habilidade e afinação entre os integrantes. A atmosfera onírica não demora a reaparecer, entretanto. “Little One”, lenta e contemplativa, abre com repetidos rolos na caixa da bateria. O baixo e o piano largam acordes soltos e os sopros estabelecem um chorus longo, para, por volta de 1min20, mudar o compasso e entrar o sax de Coleman num solo apaixonadamente carregado. A mesma linha segue Hubbard, que ora retoma as ideias centrais do próprio improviso, ora dá voos. Elegante (mas não menos comovido), Hancock revela um piano quase erudito. Então que chega a vez de Carter maravilhar com um solo extraído da alma, antes de repetirem o intrincado chorus da introdução no final.

A exemplo do álbum anterior (na faixa “The Egg”), esta obra traz também a sua de caráter abertamente vanguardista. Aqui, é “Survival of the Fittest”. Inconstante, arranca com os sopros lançando notas agudas, o que é logo interrompido por um breve solo de Williams. O ritmo que se põe é intenso, suingado, sobre o qual Coleman destrincha acordes às vezes beirando o estilo dissonante de John Coltrane, sua forte inspiração. O andamento é quebrado novamente por volta dos 3 minutos para um novo momento da bateria, o qual antecipa a entrada de Hubbard. Tabelinhas com o piano, intensificadas pelas batidas, dão às improvisações do trompetista uma dinâmica incrível. Hancock entra e, entre dedilhados rápidos ora atonais ora coloridos feito um recital romântico, retraz lances de “Maiden Voyage”. Williams, de papel fundamental na construção de “Survival...” a finaliza carregando na caixa, no ton-tons e nos pratos.

O desfecho não poderia ser mais saboroso, com “Dolphin Dance”, standart do repertório de Hancock regravada por gente como Ahmad Jamal, Chet Baker e Bill Evans. Que melodia bela! Das mais deliciosas do jazz. Os solistas deitam e rolam: Hubbard arrasa em mais de 2 minutos ininterruptos só dele; Coleman, intenso e amoroso, como um bom Dexter Gordon. Dono da canção, Hancock sublinha ainda mais a emotividade adicionando-lhe novos motivos, pondo os golfinhos para dançar juntinhos. Uma simbólica maneira de terminar a “viagem inaugural”.

O ano de 1965 foi de obras-primas do jazz como "A Love Supreme" e “Ascension”, de Coltrane, “The Gigolo”, de Lee Morgan, e “The Magic City”, de Sun Ra. E “Maiden Voyage” certamente figura entre estes, quando não entre os maiores da história, como no caso das listas de uDiscover e Jazz Resource, que o apontam entre os 50 melhores de todos os tempos. Independente de colocação, o que importa mesmo é a permanência e a perenidade dessa música sem igual alcançada por Hancock e seus músicos. O próprio Hancock, irrequieto, não retornaria mais a este ponto: depois de apenas mais um trabalho na linha modal (“Speak Like a Child”, de 1968), o músico se enfiou em projetos com Miles, produziu trilhas sonoras e, quando viu, já estava nadando pelos mares do pós-bop, do fusion e do funk para mudar novamente a cara da música do século XX. “Maiden Voyage”, assim, serviu como uma verdadeira passagem para novos caminhos. Uma esplendorosa viagem inaugural sem volta e com destino à eternidade.
***************

FAIXAS:
1. Maiden Voyage
2. The Eye of the Hurricane
3. Little One
4. Survival of the Fittest
5. Dolphin Dance

todas as canções de autoria de Herbie Hancock.

************* 
OUÇA O DISCO:




quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Toquinho & Maria Creuza – Teatro Bourbon Country – Porto Alegre/RS (20/08/2015)



A dupla homenageando Vinícius de Moraes
foto: Dulce Helfer
Como venho ressaltado aqui no blog, a temporada de show está ótima. Mais um destes belos espetáculos, que vi ao lado de Leocádia Costa e de minha querida Martha Becker, ocorreu no Teatro Bourbon Country, quando o cantor, compositor e violonista Toquinho e a cantora Maria Creuza se reuniram para homenagear Vinícius de Moraes. A ocasião – comemorativa aos 15 anos do escritório jurídico TozziniFreire de Porto Alegre, que patrocinou o show – foi especial. Isso porque a dupla havia se apresentado junto apenas em um espetáculo, justo no histórico show de 1970 que os reuniu com Vinicius e que deu origem a um dos mais celebrados discos ao vivo da MPB, “Vinicius de Moraes en La Fusa”, gravado em Buenos Aires. Depois, nunca mais pisaram num palco juntos.
Porém, felizmente, ambos estão ativos para poderem repetir o feito. O show, na verdade, não se restringia apenas ao repertório de Vinicius de Moraes, pois é mesmo comandado por Toquinho, este virtuose do seu instrumento que, como João Bosco e seu mestre Baden Powell, aprendeu não apenas a tocar mas também a cantar e, principalmente, compor (alinhando-se a uma seleta estirpe de compositores que vai de Liszt e Rachmaninoff a Jimi Hendrix e Louis Armstrong). Assim, “Toco” – como é carinhosamente chamado por Maria Creuza –, teve a “sorte”, segundo o próprio, de cocriar com outros grandes mestres da música brasileira, como Chico BuarquePaulo César PinheiroJorge Ben e o próprio Baden, autores que também aparecem no set-list.
 Maria Creuza, ainda com seu belo timbre mas de voz já um pouco cansada, faz boas participações no meio e no final. Foi ela quem comandou clássicos como “Você abusou”, “Se Todos no Mundo Fossem Iguais a Você” e “Eu Sei que Vou te Amar”, este, seu melhor momento. Juntos, cantaram outras pérolas: “A Felicidade”, “Tomara” e “Samba em Prelúdio”, de Baden (que promove na segunda parte um lindo contracanto com as vozes de ambos), autor este do qual Toquinho ainda tocou uma impressionante versão de “Berimbau”, do memorável "Os Afro-Sambas" (1966), em que o violão, de tão bem tocado, parecia realmente soar como o típico instrumento afro.
Toquinho, um mestre com seu violão
foto: Dulce Helfer
De resto, o show é todo de Toquinho. Simpático e conversador, ele contou histórias e comentou praticamente todos os números, fosse antes ou depois. Afinal, histórias dele, dos tempos de bossa nova e, principalmente, do “vivido” amigo Vinicius, não faltam. Uma destas foi a que deu origem a um de seus maiores sucessos, “Tarde em Itapuã”. Ele, na época adolescente, vira o poeta escrevê-la em sua casa em Salvador e se encantara com os versos. Só que a mesma estava prometida para outro gênio da música brasileira musicar: Dorival Caymmi. No entanto, Toquinho, ousado, roubou o papel e aproveito que voltava uns dias para São Paulo para criar a melodia. Na volta a Bahia, encontrou Vinicius desesperado atrás do seu escrito e, para aplacar sua fúria quando soube que tal havia sido surrupiado, Toquinho tocou-a ao violão para o mestre. Meia hora depois, mais calmo, Vinicius aceitou não repassá-la a Caymmi e assim nasceu um dos maiores clássicos da MPB.
 O show teve ainda momentos de bastante emoção, como nas interpretações de “A Casa” e “O Pum”, do infantil "A Arca de Noé", último projeto de Vinicius com Toquinho antes de morrer, em 1980, obra que permeia a infância de muita gente que estava ali – a começar pela minha e de Leocádia, que, inclusive, já escreveu sobre sua ligação com “A Arca...” aqui no blog. Na mesma linha, as tocantes “O Caderno” (preferida do próprio Toquinho, dele com Mutinho) e “Aquarela”, com sua letra lúdica e realista (“Nessa estrada não nos cabe conhecer ou ver o que virá/ O fim dela ninguém sabe bem ao certo onde vai dar/ Vamos todos numa linda passarela/ De uma aquarela que um dia enfim/ Descolorirá.”), foram de levar às lágrimas. Como ele mesmo disse, o desafio de fazer música para os pequenos é se despir das complexidades harmônicas do adulto e se comunicar com as crianças sem subestimá-las.
 No seu tributo ao “poetínha” couberam ainda “Samba pra Vinicius” (“Poeta, poetinha vagabundo/ Quem dera todo mundo fosse assim feito você/ Que a vida não gosta de esperar/ A vida é pra valer/ A vida é pra levar/ Vinícius, velho, sarava”), dele e de Chico, “Chega de Saudade”, marco inicial da bossa nova em que deram vivas a João Gilberto, e, claro, as tão famosas parcerias com Vinicius: “Cotidianas n° 2”, "Como Dizia o Poeta” e a atualíssima “A Tonga da Mironga do Kabuletê”: “Você que lê e não sabe/ Você que reza e não crê/ Você que entra e não cabe/ Você vai ter que viver...”. Nem parece ter sido escrita nos anos 70... Pra terminar, “Regra três”, bis que fechou a noite.
 É muito bonito ver na ativa um verdadeiro representante de um período tão fértil da música brasileira, um cara que faz com propriedade a ligação entre os compositores dos anos 50 (Tom Jobim, Antonio Maria, Dolores Duran, Carlos Lyra, entre outros) com o período pós-bossa nova dos anos 60 e 70 (Chico, Baden, Elis Regina, festivais, tropicalistas) e, ainda assim, resgata a tradição dos violeiros e do choro, um dos estilos seminais do samba moderno. E mais digno ainda assistir eles homenageando Vinicius de Moraes, que revelou Maria Creuza e que, com Toquinho, principalmente, escreveu nada menos do que cerca de 130 canções, hoje eternizadas geração após geração. Toquinho teve sorte? Sim, mas, muita competência. Parafraseando o poeta: que nos desculpem os inaptos, mas talento é fundamental. E Toquinho tem de sobra.





quinta-feira, 18 de junho de 2015

Ornette Coleman – “The Shape of Jazz to Come” (1959)



"Ornette é um dos meus astronautas favoritos"
Wayne Shorter


“’Kind of Blue’ era um álbum bonito, delicado,
mas não lembro de ele ter realmente
virado minha cabeça na época.
 Então, quando Ornette surgiu,
 ele de fato soava como se
 pertencesse a uma outra era, 
a um outro planeta.
A novidade estava ali”.
Joe Zawinul



Chego ao meu 50° ÁLBUM FUNDAMENTAL por um motivo especial. Embora todos os discos sobre os quais escrevi sejam caros a mim, quando percebi que chegava a essa marca não queria que fosse apenas mais um texto. Tinha que ser por um motivo especial. Escreveria sobre os artistas brasileiros a quem ainda não resenhei: Chico BuarqueEdu LoboMilton NascimentoPaulinho da Viola? Ou das minhas queridas bandas britânicas, como The CureThe SmithsCocteau Twins, Echo and The Bunnymen? De algum dos gênios da soul, Gil Scott-Heron, Otis Reding, Curtis Mayfield, que tanto admiro? Do para mim formativo punk rock (Stranglers, Ratos de Porão, New York Dolls)? Obras consagradas de um Stravinsky ou alguma sinfonia de Beethoven? Outro de John Coltrane ou Miles Davis? Nenhum desses, no entanto, me pegava em cheio. A resposta me veio no último dia 11 de junho, quando o saxofonista norte-americano Ornette Coleman deu adeus a esse planeta. Aos 85 anos, Coleman morreu deixando não apenas o mérito da criação do free-jazz como uma das mais revolucionárias obras do jazz. A cristalização da proposta de inovação musical – e espiritual – de Coleman veio pronta já em seu primeiro disco, o memorável “The Shape of Jazz to Come”.

Gravado no mesmo ano de 1959 que pelo menos outros dois colossos do jazz moderno – "Kind of Blue", de Miles, arcabouço do jazz modal (agosto), e “Giant Steps”, de Coltrane, a cria mais madura do hard-bop (dezembro) –, “The Shape...”, vindo ao mundo a 22 de maio, não aponta para o lado de nenhum deles. Pelo contrário: engendra uma nova direção para a linha evolutiva do estilo. Nascido no Texas, em 1930, Coleman era daquelas mentes geniais que não conseguiam pensar “dentro da caixa”. No início dos anos 50, já em Nova York, nas contribuições que tivera na banda de seu mestre, o pistonista Don Cherry, ele, saudavelmente incapaz de seguir as progressões harmônicas do be-bop, já demonstrava um estilo livre de improvisar não sobre uma base em sequências de acordes, mas em fragmentos melódicos, tirando do seu sopro microtons e notas dissonantes, arremessadas contra às dos outros instrumentos, contra si próprias. Fúria e espírito. Carne e alma.

Seu processo era tão complexo que, exorcizando clichês, atinge um patamar até psicanalítico de livre associação e reconstrução do inconsciente coletivo, o que levou um dos pioneiros do cool jazz, John Lewis, a dizer: “Percebi que Coleman cunhou um novo tipo de música, mais semelhante ao ‘fluxo de consciência’ de James Joyce do que o entretenimento operado por Louis Armstrong com sua variação sobre uma melodia familiar”. Se na literatura este é seu melhor comparativo, faz sentido colocá-lo em igualdade também a um Pollock nas artes plásticas ou um Luis Buñuel no cinema. Na música, remete, claro, a Charlie Parker e Dizzie Gillespie, mas tanto quanto a compositores atonais da avant-garde como John Cage e György Ligeti.

Em “The Shape...”, a desconstrução conceitual já se dá na formação da banda. Traz o desconcertante sax alto de Coleman, a bateria ensandecida de Billy Higgins, o duplo baixo de outro craque, Charlie Haden (de apenas 22 anos à época), e o privilégio de se ter o próprio Cherry, com sua mágica e não menos desafiadora corneta. Nada de piano! Tal proposta, tão subversiva da timbrística natural do jazz a que Coleman convida o ouvinte a apreciar, assombra de pronto. “Lonely Woman”, faixa que abre o disco, é uma balada fúnebre e intempestiva. O free jazz, consolidado por Coleman um ano depois no LP que trazia o nome do novo estilo, dá seus primeiros acordes nesse brilhante tema. Dissonâncias na própria estrutura melódica, compasso discordante da bateria e um baixo inebriado que parece buscar um plano etéreo, longe dali. Algo já estava fora da ordem, anunciava-se. Coleman e Cherry, pupilo e mestre, equiparados e expondo uma nova construção composicional aberta, incerta, em que a música se cria no momento, numa exploração dramática conjunta.

Na revolução do free jazz, cada membro é tão solista quanto o outro. “Eventually”, um blues vanguardista em alta velocidade, e “Peace”, com seus 9 minutos de puro improviso solto, sem as amarras do encadeamento tradicional, são mostras disso. Cada músico está ligado ao outro primeiramente pelo estado de espírito, não apenas pela habilidade técnica. E eles perdem o apelo momentâneo? Jamais, apenas o centro melódico é outro. Os riffs e o tom estão lá como os do be-bop; a elegância do blues trazida do swing também. Mas o conceito e a dinâmica aplicados por Coleman e seu grupo fazem com que se desviem das formas tradicionais a as diluam, direcionando a uma tonalidade expandida como praticaram Debussy, Messiaen e Stravinsky.

Nessa linha, "Focus on Sanity" se lança no ar inquieta, mas logo freia para entrar o maravilhoso baixo de Haden, suingando, serenando-a. Não por muito tempo: por volta dos 2 minutos e meio, Coleman irrompe e o grupo retorna em ritmo acelerado para seu novo solo da mais alta habilidade de fúria lírica. O mesmo faz Cherry, que entra raspando com o pistão e forçando que o compasso reduza-se novamente. “Foco” e “sanidade”, literalmente. A inconstância desse número dá lugar ao blues ligeiro "Congeniality". Mais “comportada” das faixas, traz, entretanto, a fluência do quarteto dentro de um arranjo em que se prescinde da referência harmônica das cordas – o piano. Pode parecer um be-bop comum, mas, ditado pela intuição e não pelo arranjo pré-estabelecido (tom, escala, variação), definitivamente não é. Fechando o álbum, “Chronology” mais uma vez ataca na desconstrução da progressão acorde/escala. As explosões emocionais súbitas de Coleman e seu modo atritado e carregado de tocar estão inteiros neste tema.

Wayne Shorter, Anthony Braxton, Eric Dolphy, Albert Ayler, Pharoah Sanders e o próprio Coltrane, mesmo anterior a Coleman, não seriam os mesmos depois de “The Shape...”. O fusion e o pós-jazz nem existiriam. Coleman influenciou não apenas jazzistas posteriores como, para além disso, roqueiros do naipe de Jimi Hendrix, Don Van VlietFrank Zappa e Roky Erickson. Ele seguiu aprofundando esse alcance em vários momentos de sua trajetória. No ano seguinte ao de sua estreia, emenda uma trinca de discos, começando pelo já referido “Free Jazz” (dezembro) mais “Change of the Century” (outubro) e “This Is Our Music” (agosto). Em 1971, surpreende novamente com a sinfonia cageana “Skies of America”, para orquestra e saxofone. No meio da década de 70, ainda, adere ao fusion, quando lança o funk-rock “Body Meta” (1976), recriando-se com uma música dançante e suingada.

Além disso, Coleman teve a coragem de legar ao jazz um sobgênero, o que, juntamente com o contemporâneo “Kind of Blue”, referência inicial do jazz modal, ajudou a desafiar conceitos e padrões estabelecidos. O jornalista e escritor Ashley Kuhn, em “Kind of Blue: a história da obra de Miles Davis”, recorda a receptividade de “The Shape...” à época entre músicos e críticos, os quais vários deles (como um dos pioneiros do fusion, o pianista Joe Zawinul), colocavam os dois discos em polos opostos: free jazz versus modal. No entanto, como ressalta Kuhn: “No fim das contas, Coleman e Davis parecem mais filosoficamente compatíveis do que musicalmente opostos: ambos dedicaram suas carreiras a reescrever as regras do jazz”.

Desde que meu amigo Daniel Deiro, que mora em Nova York, disse-me anos atrás tê-lo assistido em um bar da Greenwich Village, fiquei esperançoso de também vê-lo no palco um dia. Não deu. O astronauta do jazz, capaz de fazer quem o ouve também flutuar sem gravidade, deixa como suficiente consolo uma obra gigantesca e densa a ser decifrada, sorvida, descoberta. Como a de um Joyce, Pollock ou Buñuel. Se a função do astronauta é desbravar o espaço, Ornette Coleman cumpriu o mesmo papel através da arte musical, que ele tão bem soube explorar em sua dinâmica atômica e imaterial através da propagação dos sons no ar, na atmosfera. E o fez de forma livre, como bem merece um free jazz. Agora, então, foi ele que se libertou para poder voar sobre outros planetas igual à sua própria música.

********************

FAIXAS:
1. "Lonely Woman" - 4:59
2. "Eventually" - 4:20
3. "Peace" - 9:04
5. "Focus on Sanity" - 6:50
5. "Congeniality" -  6:41
6. "Chronology" - 6:05

********************
OUÇA O DISCO:






quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Ella Fitzgerald and Louis Armstrong - "Ella and Louis" (1956)



"Homem, mulher ou criança,
Ella [Fitzgerald] é maior que qualquer um."
Bing Crosby

"Se houve alguém que foi um mestre,
esse alguém foi Luis Armstrong."
Duke Ellington



Um encontro de titãs de dois dos maiores nomes da música. Ella Fitzgerald, diva do jazz, uma das maiores cantoras de todos os tempos e dona de interpretações inigualáveis juntava-se a Louis Armstrong, cantor de voz inconfundível, de recursos vocais interessantíssimos e trompetista de estilo moderno e ousado para sessões de gravação que originariam o extraordinário “Ella and Louis”.
Composto basicamente por canções românticas e baladas de compositores como Gershwin e Irving Berlin, “Ella and Louis” (1956) é puro deleite. As interpretações de ambos, sustentadas por nada menos que o Oscar Peterson Trio, carregam o talento pessoal de cada um somados às suas respectivas grandes capacidades de improvisação, demonstrando um impressionante entrosamento e uma gostosa descontração de estúdio.
A lindíssima “Can't We Be Friends?” tem interpretação destacada da diva; “Isn't This a Lovely Day?” tem um daqueles belos solos econômicos, básicos e precisos de Louis, seus improvisos vocais característicos e um dueto lá-e-cá adorável entre os dois cantores; e ainda a ótima “Tenderly” que com uma performance solo arrasadora do trompete de Armstrong abre e prepara terreno para que Ella deslize sua voz doce sobre a canção, e igualmente fecha com outra demonstração de talento e inspiração no instrumento de sopro. Na adorável “Cheek to Cheek”, uma das minhas favoritas do álbum, mesmo reconhecendo que no quesito cantar Ella é muito mais completa que o Louis, o destaque é para a atuação vocal dele. Muitíssimo bem “A Foggy Day” dos Gershwin não pode deixar de ser mencionada assim como a melancólica “April in Paris”, que numa interpretação cheia de sentimento de Ella Fitzgerald, com um solo choroso do trompete de Louis Armstrong e com uma performance magistral de Oscar Peterson ao piano, encerra a obra de forma perfeita.
“Ella and Louis” só não é um documento musical único porque, por conta do sucesso do lançamento, a gravadora encomendou um novo encontro da dupla para o álbum “Ella and Louis Again”, que é considerado por muitos até mesmo melhor que o original.
Talvez. Não sei. Gosto muito do outro também. Talvez seja assunto para outro A.F.. Mas por hora fiquemos com este registro mágico onde a graça da Primeira Dama e a originalidade do Satchmo garantem um dos momentos mais célebres que a música já viveu.
**********************

FAIXAS:
01. Can't We Be Friends? (Paul James, Kay Swift) – 3:45
02. Isn't This a Lovely Day? (Irving Berlin) – 6:14
03. Moonlight in Vermont (John Blackburn, Karl Suessdorf) – 3:40
04. They Can't Take That Away From Me (George Gershwin, Ira Gershwin) – 4:36
05. Under a Blanket of Blue (Jerry Livingston, Al J. Neiburg, Marty Symes) – 4:16
06. Tenderly (Walter Gross, Jack Lawrence) – 5:05
07. A Foggy Day (G. Gershwin, I. Gershwin) – 4:31
08. Stars Fell on Alabama (Mitchell Parish, Frank Perkins) – 3:32
09. Cheek to Cheek (Berlin) – 5:52
10. The Nearness of You (Hoagy Carmichael, Ned Washington) – 5:40
11. April in Paris (Vernon Duke, Yip Harburg) – 6:33


********************
Ouça:

Cly Reis

terça-feira, 5 de março de 2013

Dossiê ÁLBUNS FUNDAMENTAIS


E chegamos ao ducentésimo Álbum Fundamental aqui no clyblog .

Quem diria, não?

Quando comecei com isso ficava, exatamente, me perguntando até quantas publicações iria e hoje, pelo que eu vejo, pelos grandes discos que ainda há por destacar, acredito que essa brincadeira ainda possa ir um tanto longe.

Nesse intervalo do A.F. 100 até aqui, além, é claro, de todas as obras que foram incluídas na seção, tivemos o acréscimo de novos colaboradores que só fizeram enriquecer e abrilhantar nosso blog. Somando-se ao Daniel Rodrigues, Edu Wollf , Lucio Agacê e José Júnior, figurinhas carimbadas por essas bandas, passaram a nos brindar com seus conhecimentos e opiniões meu amigo Christian Ordoque e a querida Michele Santos, isso sem falar nas participações especiais de Guilherme Liedke, no número de Natal e de Roberto Freitas, nosso Morrissey cover no último post, o de número 200.

Fazendo uma pequena retrospectiva, desde a primeira publicação na seção, os ‘campeões’ de ÁLBUNS FUNDAMENTAIS agora são 5, todos eles com 3 discos destacados: os Beatles, os Rolling Stones, Miles Davis , Pink Floyd e David Bowie , já com 2 resenhas agora aparecem muitos, mas no caso dos brasileiros especificamente vale destacar que os únicos que tem um bicampeonato são Legião Urbana, Titãs, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Jorge Ben, Engenheiros do Hawaii e João Gilberto, sendo um deles com o músico americano Stan Getz. A propósito de parcerias como esta de Getz/Gilberto, no que diz respeito à nacionalidade, fica às vezes um pouco difícil estabelecer a origem do disco ou da banda. Não só por essa questão de parceiros mas muitas vezes também pelo fato do líder da banda ser de um lugar e o resto do time de outro, de cada um dos integrantes ser de um canto do mundo ou coisas do tipo. Neste ínterim, nem sempre adotei o mesmo critério para identificar o país de um disco/artista, como no caso do Jimmi Hendrix Experience, banda inglesa do guitarrista norte-americano, em que preferi escolher a importância do membro principal que dá inclusive nome ao projeto; ou do Talking Heads, banda americana com vocalista escocês, David Byrne, que por mais que fosse a cabeça pensante do grupo, não se sobrepunha ao fato da banda ser uma das mais importantes do cenário nova-iorquino. Assim, analisando desta forma e fazendo o levantamento, artistas (bandas/cantores) norte-americanos apareceram por 73 vezes nos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS, os ingleses vem em segundo com 53 aparições e os brasileiros em, 3º pintaram 36 vezes por aqui.
Como curiosidade, embora aqueles cinco destacados anteriormente sejam os que têm mais álbuns apontados na lista, o artista que mais apareceu em álbuns diferentes foi, incrivelmente, Robert Smith do The Cure, por 4 vezes, pintando nos dois da própria banda ("Disintegration"  e "Pornography"), em um tocando com Siouxsie and the Banshees  e outra vez no seu projeto paralelo do início dos anos ‘80, o The Glove. Também aparece pipocando por aqui e por ali John Lydon, duas vezes com o PIL  e uma com os Pistols; Morrissey, duas vezes com os Smiths e uma solo; Lou Reed uma vez com o Velvet e outras duas solo; seu parceiro de Velvet underground, John Cale uma com a banda e outra solo; Neil Young , uma vez solo e uma com Crosby, Stills e Nash; a turma do New Order em seu "Brotherhood" e com o 'Unknown Pleasures" do Joy Division; e Iggy Pop 'solito' com seu "The Idiot" e com os ruidosos Stooges. E é claro, como não poderia deixar de ser, um dos maiores andarilhos do rock: Eric Clapton, por enquanto aparecendo em 3 oportunidades, duas com o Cream e uma com Derek and the Dominos, mas certamente o encontraremos mais vezes. E outra pequena particularidade, apenas para constar, é que vários artistas tem 2 álbuns fundamentais na lista (Massive Attack, Elvis, Stevie Wonder, Kraftwerk) mas apenas Bob Dylan e Johnny Cash colocaram dois seguidos, na colada.

No tocante à época, os anos ‘70 mandam nos A.F. com 53 álbuns; seguidos dos discos dos anos ‘80 indicados 49 vezes; dos anos ‘90 com 43 aparições; 40 álbuns dos anos ‘60; 11 dos anos ‘50; 6 já do século XXI; 2 discos destacados dos anos ‘30; e unzinho apenas dos anos ‘20. Destes, os anos campeões, por assim dizer são os de 1986, ano do ápice do rock nacional e 1991, ano do "Nevermind" do Nirvana, ambos com 10 discos cada; seguidos de 1972, ano do clássico "Ziggy Stardust" de David Bowie, com 9 aparições incluindo este do Camaleão; e dos anos do final da década de ‘60 (1968 e 1969) cada um apresentando 8 grandes álbuns. Chama a atenção a ausência de obras dos anos ‘40, mas o que pode ser, em parte, explicado por alguns fatores: o período de Segunda Guerra Mundial, o fato de se destacarem muitos líderes de orquestra e nomes efêmeros, era a época dos espetáculos musicais que não necessariamente tinham registro fonográfico, o fato do formato long-play ainda não ter sido lançado na época, e mesmo a transição de estilos e linguagens que se deu mais fortemente a partir dos anos 50. Mas todos esses motivos não impedem que a qualquer momento algum artista dos anos ‘40 (Louis Armstrong, Ella Fitzgerald, Cole Porter) apareça por aqui mesmo em coletânea, como foi o caso, por exemplo, das remasterizações de Robert Johnson dos anos ‘30 lançadas apenas no início dos anos 90. Por que não?

Também pode causar a indignação aos mais 'tradicionais', por assim chamar, o fato de uma época tida como pobre como os anos ‘90 terem supremacia numérica sobre os dourados anos 60, por exemplo. Não explico, mas posso compreender isso por uma frase que li recentemente de Bob Dylan dizendo que o melhor de uma década normalmente aparece mesmo, com maior qualidade, no início para a metade da outra, que é quando o artista está mais maduro, arrisca mais, já sabe os caminhos e tudo mais. Em ambos os casos, não deixa de ser verdade, uma vez que vemos a década de 70 com tamanha vantagem numérica aqui no blog por provável reflexo da qualidade de sessentistas como os Troggs ou os  Zombies, por exemplo, ousadia de SonicsIron Butterfly, ou maturação no início da década seguinte ao surgimento como nos caso de Who e Kinks. Na outra ponta, percebemos o quanto a geração new-wave/sintetizadores do início-metade dos anos ‘80 amadureceu e conseguiu fazer grandes discos alguns anos depois de seu surgimento como no caso do Depeche Mode, isso sem falar nos ‘filhotes’ daquela geração que souberam assimilar e filtrar o que havia de melhor e produzir trabalhos interessantíssimos e originais no início da década seguinte (veja-se Björk, Beck, Nine Inch Nails , só para citar alguns).

Bom, o que sei é que não dá pra agradar a todos nem para atender a todas as expectativas. Nem é essa a intenção. A idéia é ser o mais diversificado possível, sim, mas sem fugir das convicções musicais que me norteiam e, tenho certeza que posso falar pelos meus parceiros, que o mesmo vale para eles. Fazemos esta seção da maneira mais honesta e sincera possível, indicando os álbuns que gostamos muito, que somos apaixonados, que recomendaríamos a um amigo, não fazendo concessões meramente para ter mais visitas ao site ou atrair mais público leitor. Orgulho-me, pessoalmente, de até hoje, no blog, em 200 publicações, de ter falado sempre de discos que tenho e que gosto, à exceção de 2 ou 3 que não tenho em casa mas que tenho coletâneas que abrangem todas as faixas daquele álbum original, e de 2 que sinceramente nem gostava tanto mas postei por consideração histórica ao artista. Fora isso, a gente aqui só faz o que gosta. Mas não se preocupe, meu leitor eventual que tropeçou neste blog e deu de cara com esta postagem, pois o time é qualificado e nossos gostos musicais são tão abrangentes que tenho certeza que atenderemos sempre, de alguma maneira, o maior número de estilos que possa-se imaginar. Afinal, tudo é música e, acima de tudo, nós adoramos música.
Cly Reis

 ************************************

PLACAR POR ARTISTA:
  • The Beatles: 3 álbuns
  • The Rolling Stones: 3 álbuns
  • David Bowie: 3 álbuns
  • Miles Davis: 3 álbuns
  • Pink Floyd: 3 álbuns

  • Led Zeppelin; Massive Attack, Elvis Presley, Siouxsie and the Banshees; Nine Inch Nails, The Who; The Kinks; U2; Nirvana; Lou Reed; The Doors; Echo and the Bunnymen; Cream; Muddy Waters; Johnny Cash; Stevie Wonder; Van Morrison; Deep Purple; PIL; Bob Dylan; The Cure; The Smiths; Jorge Ben; Engenheiros do Hawaii; Caetano Veloso; Gilberto Gil; Legião Urbana; Titãs e João Gilberto: 2 álbuns

PLACAR POR DÉCADA:
  • Anos 20: 1 álbum ("Bolero", Maurice Ravel)
  • Anos 30: 2 álbuns ("The Complete Recordings", Robert Johnson e "Carmina Burana", de carl Orff)
  • Anos 50: 11 álbuns
  • Anos 60: 40 álbuns
  • Anos 70: 53 álbuns
  • Anos 80: 49 álbuns
  • Anos 90: 43 álbuns
  • Anos 00:  6 álbuns

PLACAR POR ANO:
  • 1986 e 1991: 10 álbuns
  • 1972: 9 álbuns
  • 1968 e 1969: 8 álbuns
  • 1987 e 1969: 7 álbuns

PLACAR POR NACIONALIDADE (ARTISTAS):
  • EUA: 73
  • Inglaterra: 53
  • Brasil: 36
  • Irlanda: 4
  • Escócia: 3
  • Alemanha: 2
  • Canadá: 2
  • Suiça; Jamaica; Islândia; França; País de Gales; Itália e Austrállia: 1 cada



terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Amy Winehouse - "Back to Black" (2006)


"Ela (Amy) é de outro planeta!"
Quincy Jones


Seria muita ousadia colocar um álbum tão recente de uma artista não totalmente consolidada entre os grandes da história? Talvez seja, talvez seja... Mas me parece, amigos, que temos entre nós uma das grandes artistas dos últimos tempos e que, provavelmente, fique ofuscada e diminuída por seus próprios excessos, escândalos, internações e bebedeiras. A gente acaba subestimando por causa disso. Eu mesmo devo admitir que antes de ouvir Amy Winehouse pensava ser ela só mais uma artista pop tentando chamar atenção. Mas o fato é que ao escutá-la cantar é que ela chama atenção de verdade.
Amy Winehouse é possivelmente a melhor cantora viva do nosso tempo e talvez a artista que chegue perto em importância do que representou um Kurt Cobain, o último que valia alguma coisa. Uma voz absoluta, segura, o domínio total de cada verso, de cada nota, a sensualidade e a energia. A artista que trouxe o jazz de volta às rádios e o aproximou do grande público que, na sua maior parte nem sabe o que está ouvindo, mas o importante é que nós sabemos. Com "Back to Black" ela coloca elementos pop no jazz (ou seriam elementos jazz no pop) como provavelemnte só Louis Armstrong tenha conseguido fazer tão perfeitamente na fase final de sua carreira. Mas não fica nisso: é rock, é pop, é blues é soul. É um baita disco!
É impossível falar de "Back to Black" e não citar o hit de refrão fácil, "Rehab", ou do outro sucesso, muito melhor na minha opinião, "You Know I'm No Good"; da ótima faixa-título do álbum, "Back to Black"; mas a melhor do álbum pra mim é indiscutivelemente, "Wake Up Alone", uma balada triste e emocionante ao melhor estilo das antigas divas do jazz.
De visual extravagante, talentosíssima no microfone mas com especial habilidade para fazer merda na vida, se não tomar jeito é candidata a integrar logo logo o famoso Clube do 27 que já conta com alguns representantes ilustres como Morrisson, Janis, Hendrix, Kurt... Bate na madeira, garota! (tem até setembro, quando faz 28, pra afastar a maldição). Mas ao que parece a moça anda se recuperando, tomando um pouco mais de juízo e já está até com disquinho novo na boca-do-forno pronto pra sair.
Ousadia colocar "Back to Black" entre os FUNDAMENTAIS? Pode ser. Mas, de certa forma, acho que esta é a ideia mesmo.
O tempo me dará razão.

*********************

FAIXAS:
• 1. Rehab
• 2. You Know I´m no Good
• 3. Me & Mr Jones
• 4. Just Friends
• 5. Back to Black
• 6. Love Is a Losing Game
• 7. Tears Dry on Their Own
• 8. Wake Up Alone
• 9. Some Unholy War
• 10. He Can Only Hold Her

***********************
Ouça:
Amy Winehouse Back to Black