aí vem a cabeça de peixe cantante aí vem a batata assada em sua roupa bizarra aí vem nada para fazer o dia todo aí vem outra noite sem conciliar o sono aí vem o telefone e sua campainha errada aí vem o cupim com um banjo aí vem um mastro com ohos vazios aí vem um gato e um cachorro usando meias de náilon aí vem uma metralhadora em cantoria aí vem o bacon numa frigideira aí vem uma voz dizendo qualquer coisa tola aí vem um jornal recheado com pequenos pássaros vermelhos com bicos marrons e retos aí vem a vitória carregando um balde de sangue e tropeçando num arbusto e os lençóis pendurados nas janelas e os bombardeiros em direção a leste oeste norte sul se perdem se reviram como salada enquanto todos os peixes no mar se alinham em fila única uma longa fila muito longa e fina a mais longa que você pode imaginar e nós nos perdemos cruzando montanhas púrpuras caminhamos a esmo por fim nus como a faca tendo desistido tendo posto tudo pra fora como uma inesperada semente de azeitona enquanto a garota da central telefônica grita ao telefone: "não retorne a ligação! você parece um cretino!"
************************************** "o principal" Charles Bucowski
“'Estrangeiro' é um grande disco (...). Foi feito em Nova Iorque e foi produzido por Arto, que eu conhecia desde que cheguei a Nova Iorque, em 1982 ou 83, e queria muito produzir um disco meu. Arto conhecia bem minha música, porque tinha vivido muito tempo no Brasil e adora o trabalho dos tropicalistas. Ele queria que aqueles procedimentos tropicalistas fossem conhecidos e reconhecidos internacionalmente (...) O 'Estrangeiro' tem também a marca muito forte do Peter Scherer - sempre a partir das coisas que eu estava fazendo, das ideias que vinha tendo - e de muitas ideias musicais do Arto: sempre resultado das conversas que tínhamos os três.”
Caetano Veloso
Em “O Cru e o Cozido”, Claude Lévi-Strauss sustenta que todo compositor musical é perpassado pelos mitos os quais o definem como indivíduo em uma coletividade. “O mito da mitologia”, define. Esta acepção, articulada em 1964, parece se adequar a Caetano Veloso, que chega gloriosamente às oito décadas de vida. O mesmo antropólogo francês que Caetano diz ter detestado a Baía de Guanabara na música que dá título ao disco “O Estrangeiro”, de 1989, talvez tenha este conceito de um dos cartões-postais do Rio de Janeiro e do Brasil justamente por ser alguém de fora e distanciado da mitologia a qual não pertence. Não é nem a falta de elogio, e sim o fato de que este olhar estrangeiro dá vantagens as quais Caetano não só não contrapõe - embora discorde - como entende muito bem.
Como em qualquer mitologia, porém, nem tudo é perfeito. Pode soar pouco festivo, mas a chegada de Caetano Veloso aos 80 anos simboliza um Brasil que nunca se realizou. Menos pessimista, que seja: uma promessa de Brasil. Caetano, tanto quanto alguns de sua dourada geração – Gil, Chico, Nara, Hermeto, Elis, Edu, Jards – mas mais do que todos eles em alguns aspectos, estetizou o Brasil assim como fizeram alguns dos ícones da nossa cultura: Villa-Lobos, Portinari, Machado de Assis e Mário de Andrade. E o fez, em grande parte, pela discordância. Caminhando contra o vento, sem lenço e sem documento, num movimento constante de imersão e submersão, de identificação e distanciamento. Isso faz com que ponha no mesmo pentagrama axé music e microtonalismo, pop e vanguarda, e nos ensine a não só ouvir, como pensar essas diferenças/semelhanças para chegar a um fim maior: o âmago da própria mitologia. A dissonância aprendida na bossa nova de João Gilberto aplica em tudo sem nunca, sobretudo, fugir do embate. Ele, que discutiu com universitários esnobes e alienados no FIC de 1968; que se exilou por causa da Ditadura; que sempre disse o que pensava e não admite desaforo.
“Estrangeiro”, um dos melhores discos da extensa obra do baiano, materializa em sons, letras e forma essa utopia tropicalista quase policarpiana de ser mito e mitologia ao mesmo tempo. A começar pela capa, reprodução da maquete concebida pelo Hélio Eichbauer para a peça "O Rei da Vela", do Oswald de Andrade, montada em São Paulo pelo Zé Celso Martinez Corrêa nos anos 60, pensada por Caetano quando este estava fora do Brasil.
A faixa de abertura, igualmente, é uma daquelas grandes composições de Caetano em letra e música, e traduz a ideia dual do álbum, em que diversos ritmos se cruzam e se hibridizam em tonalismo e atonalismo, assonância e dissonância. O reggae conversa com eletrônico, que conversa com o batuque, que conversa com world music, que conversa com a art rock e o jazz contemporâneo. Naná Vasconcelos, no esplendor da maturidade, e Carlinhos Brown, já um grande entre os grandes, são dois dos principais contribuintes da sonoridade do disco, visto que integram, através de suas percussões universais, aquilo que há de mais visceral e de mais moderno em arte musical. Sem refrão, numa verborragia típica do seu autor, “O Estrangeiro” (“Uma baleia, uma telenovela, um alaúde, um trem?/ Uma arara?/ Mas era ao mesmo tempo bela e banguela a Guanabara” ou “À áspera luz laranja contra a quase não luz, quase não púrpura/ Do branco das areias e das espumas/ Que era tudo quanto havia então de aurora”), reflexiona o ser brasileiro se colocando numa posição quase brechtiana de distanciamento e proximidade com o objeto. Até o videoclipe, dirigido pelo próprio Caetano, é um exercício de cinema de arte, extensão do experimental “O Cinema Falado”, único filme dirigido por ele três anos antes. E convicto de sua posição, ainda arremata: “E eu, menos estrangeiro no lugar que no momento/ Sigo mais sozinho caminhando contar o vento”. A música, aliás, inaugura algo que se poderia chamar de brazilian-post-jazz, o que o próprio Caetano, que atribui a Gilberto Gil a criação não reclamada do “samba-jazz-fusion”, mostra-se ainda mais modesto ao também desdenhar tamanho feito.
Videoclipe de "O Estrangeiro", de e com Caetano Veloso
Não à toa, “Estrangeiro” é produzido por dois músicos além-fronteiras: os Ambitious LoversPeter Scherer e Arto Lindsay – este último o qual, assim como Caetano, faz uma permanente ponte entre o nordeste brasileiro e cosmopolitismo, visto que norte-americano de nascimento, mas criado em Pernambuco. Ligados a cena do jazz M-Base de Nova York e a nomes ultramodernos como Ryuichi Sakamoto, Laurie Anderson, John Zorn e Brian Eno, Arto e Peter edificam a melhor e mais bem acabada produção da discografia de Caetano até então, algo que o músico não só repetiria a dose (“Circuladô”, de 1991) como serviria de base para revolucionar a música brasileira do início dos anos 90 inaugurando-lhe um novo padrão produtivo, a se ver por trabalhos marcantes como “Mais” e “Verde, Anil, Amarelo, Cor-de-Rosa e Carvão" (1992 e 1994), ambos de Marisa Monte, “The Hips of Tradition”, de Tom Zé (1992), e “Alfagamabetizado”, de Carlinhos Brown (1996).
Na sequência de “O Estrangeiro” vem o lindo pop afoxé “Rai das Cores”, que evoca as colorações sonoras tanto da canção-irmã “Trem das Cores”, composta por Caetano em 1982 para “Cores Nomes”, quanto outra ainda mais antiga: “Beira-Mar”, em parceria com Gil e gravada por este em seu primeiro disco, de 1966. A reiteração do “azul” como símbolo de beleza e pureza (“Para o fogo: azul/ Para o fumo: azul/ Para a pedra: azul/ Para tudo: azul”) dialoga com os belos versos finais da balada cantada em ritmo de bossa-nova pelo parceiro: “É por isso que é o azul/ Cor de minha devoção/ Não qualquer azul, azul/ De qualquer céu, qualquer dia/ O azul de qualquer poesia/ De samba tirado em vão/ É o azul que a gente fita/ No azul do mar da Bahia/ É a cor que lá principia/ E que habita em meu coração”. Já “Branquinha”, esta, aí sim, deixa de lado modos mais modernos para voltar à bossa-nova a qual Caetano nunca se desligou homenageando com graciosidade a então recente esposa Paula Lavigne, ainda hoje companheira e com quem ele teria dois filhos, Zeca e Tom, ambos músicos como o pai. Quão lindos, sensuais e apaixonados estes versos: “Branquinha/ Carioca de luz própria, luz/ Só minha/ Quando todos os seus rosas nus/ Todinha/ Carnação da canção que compus/ Quem conduz/ Vem, seduz”. E, mais uma vez ciente do deslocamento no mundo, ele diz: “Vou contra a via, canto contra a melodia/ Nado contra a maré”.
Mais um grande momento de “O Estrangeiro”: “Os Outros Românticos”. Samba-reggae potente, a música discute os conceitos de modernidade e racionalidade propostos no livro “O Mundo Desde o Fim” do não apenas compositor, poeta e parceiro Antonio Cícero, mas também filósofo. Além disso, traz os teclados firmes de Peter, as guitarras abrasivas de Arto e a sonoridade dos tambores afro de Salvador, que tanto começavam a fazer sucesso àquele final de anos 80 com a Olodum e a qual o próprio Caetano se valeria bastantemente dali para adiante, como em “Haiti” (“Tropicália 2”, 1993), “Luz de Tieta” (trilha sonora de “Tieta do Agreste”, 1997), “Alexandre” (“Livro”, 1997) e “Ó Paí Ó” (trilha do filme, 2007). Afora isso, a letra, análise sociopolítica contundente com referência ao olhar “universal” do cineasta alemão Win Wenders em “Asas do Desejo” (“Anjo sobre Berlim”), é daquelas altamente poéticas de Caetano: “Eram os outros românticos, no escuro/ Cultuavam outra idade média, situada no futuro/ Não no passado/ Sendo incapazes de acompanhar/ A baba Babel de economias/ As mil teorias da economia”. Para emendar com “Os Outros...”, a ainda mais internacional “Jasper”, parceria de Caetano com seus produtores. Outro ponto alto do disco, afora a brilhante melodia de ares eletro-funk e afro-brasileiros, traz por trás do inglês do cantor belos versos como: “Tempo é tão leve como a água”.
Ainda mais autorreferente, a segunda parte do álbum começa com a tocante “Este Amor”, que se pode classificar como a “Drão” de Caetano. Assim como a clássica canção de Gil dedicada à antiga esposa quando da separação dos dois, em “Este Amor” Caê versa para Dedé Gadelha, com quem vivera quase 20 anos e tivera Moreno, outro talentoso músico, espelhando-a dentro do disco com a anterior “Branquinha”, feita para a atual mulher. Ao contrário da balada melancólica de Gil, no entanto, a de Caetano é um afoxé suavemente ritmado e um canto sereno de um homem maduro, entrando nos 50 anos, capaz de olhar para trás e enxergar sem mágoa a beleza do que se viveu. “Se alguém pudesse erguer/ O seu Gilgal em Bethania... Que anjo exterminador tem como guia o deste amor?”.
Assim, espelhando-se mais uma vez na família de sangue e de vida, o disco prossegue com “Outro Retrato”. Se fez presentes Gal Costa, a irmã Maria Bethânia e Gil – também oitentão como ele em 2022 –, Caetano agora retraz a sua maior devoção: João Gilberto. Em ritmo caribenho, a música diz: “Minha música vem da música da poesia/ De um poeta João que não gosta de música/ Minha poesia vem da poesia da música/ De um João músico que não gosta de poesia”. Traços do arranjo de “Outro...” inspirariam canções futuras, como “Neide Candolina” e “"How Beautiful a Being Could Be", como os contracantos e a pegada pop sobre o ritmo latino. É o mesmo João que evoca, mas aqui junto de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, em “Etc.”, melancólica e romântica como os primeiros sambas da parceria clássica da bossa nova.
Caetano acompanhado de Brown e Moreno na turnê de "Estrangeiro", em 1989
Quase fechando o álbum, a faixa que talvez tenha surpreendido até Caetano tamanha repercussão que fez: “Meia-Lua Inteira”. Primeira de autoria Brown com maior projeção popular, a música estouraria nas rádios depois de entrar na trilha de “Tieta”, uma das telenovelas de maior sucesso da Rede Globo, e roubar o protagonismo, inclusive, da canção-tema, que abria o programa. Na época, até poderia soar um tanto modístico aquele samba-reggae colorido como os que Olodum, Banda Reflexus e Luiz Caldas vinham fazendo. Mas Caetano é Caetano. Tropicalista, mais uma vez adiantava-se ao que a crítica supunha entender e fincava a bandeira das manifestações populares e urbanas. “Meia-Lua Inteira”, aliás, mesmo sendo Caetano um artista desde muito acostumado com as paradas, pode ser considerado o seu abre-alas para as grandes vendagens, o que ocorreria pelo menos mais três vezes com “Não Enche” ("Livro"), “Sozinho” (“Prenda Minha – Ao Vivo”, 1998) e "Você não me Ensinou a te Esquecer" (trilha de "Lisbela e o Prisioneiro", 2003).
Para desfechar, Caetano vai buscar, enfim, a própria mitologia. O poeta retorna ao seu âmago, à sua origem, às suas reminiscências da infância em Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo baiano, onde nasceu, com a brejeira “Genipapo Absoluto”. No livro “Sobre as Letras” (2003), Caetano diz que um dado da letra que lhe emociona é que essa canção fala de sua identificação com o pai (“Onde e quando é jenipapo absoluto?/ Meu pai, seu tanino, seu mel”). Mas declara, em seguida: “minha mãe é minha voz”. Quando canta os versos “Que hoje sim, gera sóis, dói em dós”, inclusive, ele o faz imitando a de Dona Canô. E outro tocante refrão: “Cantar é mais do que lembrar/ É mais do que ter tido aquilo então/ Mais do que viver, do que sonhar/ É ter o coração daquilo”. Ao citar a irmã Mabel em certo momento, também é possível fazer ligação com outra antiga melodia sua: “Alguém Cantando”, do disco “Bicho”, de 1977, igualmente uma faixa de encerramento e cuja voz, literalmente, não é a sua, mas da outra irmã do compositor, Nicinha.
Caetano, tão nativo quanto forasteiro, decifrou o Brasil nestas últimas oito décadas de vida e seis de carreira unindo alta e baixa cultura, provando por que, pela visão tropicalista, é possível, sim, levar o pensamento aprofundado a “quem não tem dinheiro em banco” e catequisar “as pessoas da sala de jantar”. Utopia? Pode ser, mas sua obra gigantesca e da qual “Estrangeiro” é um dos mais significativos exemplares, está aí para ser sorvida. “Todo mundo pode aprender tudo”, disse ele certa vez. Mais do que apenas misturar, a diferença de Caetano está na sua visão, uma visão para além do óbvio, para além da própria música e da poesia, visto que filosófica. Caetano, literato e intelectual, ensinou o Brasil a pensar-se. "As coisas migram e ele serve de farol"... Mito e mitologia, ajudou a fundar a nossa modernidade. Ele, que é o tropicalista mais convicto de todos, visto que dialoga com a mesma potência poética "a delícia e a desgraça" como escreveu sobre os estrangeiros americanos. O estrangeiro que canta, na verdade, é ele próprio, num país que nunca, de fato, se realizou.
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FAIXAS:
1. “O Estrangeiro” - 6:14
2. “Rai Das Cores” - 2:37
3. “Branquinha” - 2:35
4. “Os Outros Românticos” - 4:58
5. “Jasper” (Caetano Veloso, Peter Scherer, Arto Lindsay) - 4:58
6. “Este Amor” - 3:26
7. “Outro Retrato” - 5:00
8. “Etc.” - 2:06
9. ”Meia-Lua Inteira” (Carlinhos Brown) - 3:43
10. “Genipapo Absoluto” - 3:22
Todas as composições de autoria de Caetano Veloso, exceto indicadas
Quando cheguei, ali pelas sete, a maioria do pessoal já estava lá. O Nelson falando bobagem como sempre, o Kiko com a filhinha, a Duda e a Rê fofocando na mesa, o Josué, o dono da casa, na churrasqueira e a mãe dele, a dona Leda, servindo os tira-gostos. Cheguei, cumprimentei o pessoal, o Nelson me zoou pelas entradas, pela barrigota, sentei, belisquei um petisco, demos umas risadas e tudo mais. Já tinha dado por completo, na minha contagem, o time dos convidados, quando surge do pátio a Lila. Que enorme surpresa! O resto do pessoal, de certa forma, sempre estivera próximo desde o final da faculdade. Era uma cervejinha de vez em quando, aniversário dos filhos, grupo de Zap, mas a Lila tinha ficado na dela desde o fim do curso. Nossa, a Lila era a mais linda da turma! Desejada por todos os caras no campus. Pelo que se sabia, agora, tava namorando um funkeiro, um tal MC Gutão. Nas redes sociais, só dava fotos deles em Paris, Salvador, Abu Dhabi... Nunca imaginei que ela fosse aparecer no nosso humilde churrasquinho. E agora estava ela ali... de biquíni. Estava brincando na piscininha de plástico com a filha do Nelson. Apareceu na churrasqueira rebolando e cantarolando "Piscininha, amor". Quando me viu, deu uma abanadinha, pegou um pedacinho de carne e veio na minha direção com os braços abertos. Disse que era bom me rever, fez algumas perguntas triviais, trabalho, família, contei da minha filha, se surpreendeu com a minha separação precoce, e, logo, despertada por um funk qualquer, foi arrastada pelo ritmo para a área livre entre a mesa e a churrasqueira, requebrando de uma maneira... ai, que nem é bom falar.
Com exceção da Lila, que era um fato excepcional, o restante da noite transcorreu dentro da normalidade: o Josué contando das suas, o marido da Flávia emburrado num canto, o Nelson e suas piadinhas, a Cláudia falando alto e a Rê passando da conta. Novidade eram os beliscões e reprimendas das mulheres para os maridos por causa da Lila que, por sua vez, parecia nem perceber os olhos masculinos pousando sobre seu corpo magnífico. Só queria saber de rir brincar e se divertir. Já seca e de roupa trocada, interagiu e conversou com todos, com simpatia e graça, mesmo sob alguns olhares tortos de esposas ciumentas. Era como se nunca tivesse ficado distante, como se tivesse ido a todos os churrascos anteriores, .
Pra mim, tinha dado a hora. Havia deixado minha filha com minha irmã e tinha prometido chegar cedo pra liberar a generosa "babá". Argumentaram que era cedo, se não podia ligar pra minha irmã pra dormir lá em casa com a minha filha... Disse que não dava. Me despedi, beijos, abraço e, de última hora a Lila resolveu que ia descer comigo. Não queria esperar táxi sozinha na rua. Beijos, beijos, promessas de comparecer nas próximas reuniões, e descemos.
Já na calçada, um táxi de aproximava mas, para minha surpresa, a Lila propôs que caminhássemos um pouco. Por mim, eu morava a poucos quarteirões dali, mesmo. Tudo ok exceto pelo fato que ela começou a andar para o lado oposto ao meu caminho. Ainda tentei adverti-la de que eu iria para o outro lado, mas ela já se distanciava alguns passos adiante e parecia se animar com umas luzes, mais à frente, depois da esquina, ensaiando uma corridinha para ver do que se tratava. "Vem, vamos lá ver o que que é aquilo". Olhei no relógio... Tá bom. Mais uns minutinhos.
Quando a alcancei já estava na frente do lugar. Era uma espécie de lançamento de empreendimento ou algo assim. Coisa grande! Malabaristas, fonte, barzinho. A Lila estava parada, fascinada, diante de um enorme painel de led passando ininterruptas manobras de surf. Mal parei a seu lado e ela já se desprendia, novamente, seduzida por alguma outra coisa. "Vem ver, vem ver...", ela chamou. Hipnotizado pelo telão, me demorei um pouco mas logo me apressei em sua direção. Era um espelho d'água com um chafariz. "Ah, perdeu! A água tava fazendo uma coisas legais", segundo ela. Me puxou pela mão. "Vamos entrar, quero beber alguma coisa", "Lila, não...", tentei argumentar mas ela já tinha entrado, atravessando um corredor de plantas ornamentais iluminado de verde por holofotes cênicos. No fundo do percurso, depois de conversar brevemente com uma espécie de cicerone do evento, com um gesto de mão e uma carinha de sapeca, Lila me chamava para segui-la. Não quis ser grosseiro, deixar que entrasse sozinha. Tomaria um drinquezinho e depois tomaria meu rumo.
No entanto, um inusitado acontecimento, aparentemente muito banal, acabaria por precipitar essa minha reorientação. Enquanto éramos conduzidos à mesa, ao ar livre, pelo garçom, perto de umas folhagens, algo pareceu passar correndo por trás dos arbustos. A Lila se assustou. Entrou num pânico desproporcional ao acontecido. Alardeava que era um rato, ao que o garçom, preocupado em não espantar os outros clientes e convidados, rebatia que devia ser só um miquinho, um esquilo ou algo parecido, e nisso já chegou o gerente oferecendo uma cadeira, uma água e era eu, o garçom e o gerente tentando acalmá-la.
Ela pegou minha mão... Disse que ficara assustada, pediu para que eu não fosse embora e ficasse com ela. Eu prometi que não iria. Disse que só ia pegar uma bebida para ela e voltaria logo e que, enquanto isso, o garçom tomaria conta dela. Ela resistiu em largar minha mão, mas permitiu que eu fosse. Fui até o balcão do bar. Achei que algo mais forte poderia fazer um efeito mais imediato então pedi um uísque. Quando estava voltando com a bebida, dei com o garçom que ficara com ela. Perguntei por que a deixara, uma vez que estava tão perturbada. Ele me acalmou dizendo que quando a deixara já estava bem melhor, que nem parecia a mesma que quase desmaiara minutos atrás.
Achei que era minha deixa. Entreguei-lhe o copo e pedi para que levasse para ela, e que dissesse que tive que ir, e para que me perdoasse.
Contornei o bar e saí pelo mesmo caminho de palmeirinhas iluminadas que atravessara antes. Minha filha estava me esperando em casa.
Nascer é depois, é nadar
após se afundar e se afogar...”
Waly Salomão,
trecho do poema “Sargaços”
“Que o leitor, livre dos
lugares-comuns, possa agora,
perambular livremente entre as falanges das
máscaras que povoam
os libanos de sonho da mente régia de Waly Salomão,
um dos
poetas mais originais e vigorosos do nosso tempo.”
Antonio Cícero
Cada vez que
escuto uma canção ou sua voz falando verborragicamente sobre algum tema, paro.
Ler não é a mesma coisa. Parece que a
voz de Waly Salomão ou a sua poesia transformada em canção tem que estar no
volume máximo. Assim, daquele jeito que o coração dispara, os olhos se fixam no
interlocutor e a mente divaga.
Sempre uma
cena mágica abre-se com sua presença. Ora pela risada estrondosa, ora pelo seu porte
de Rei Salomão. Lá de cima, com o limite cacheado dos cabelos, observa com
muita acidez o que ocorre nas entrelinhas da sociedade. E não perdoa. Solta as
palavras como leões ferozes, coreografados como se fossem um cardume infindável
de peixes dançarinos em nossa frente, chamando a atenção, hipnotizando.
Waly sempre intenso, escrevendo ou falando
Confesso que
o conheci por vias tortas. Explico. Custo a perceber as autorias, e olha que minha
desatenção já foi pior. Só quando alguma composição me toca é que mergulho nos
créditos, senão deixo um espaço livre para que as informações que valem a pena
se fixem. Talvez uma forma de backup
saudável em tempos que tudo interessa, tudo é cool, tudo deve ser fixado, aprendido numa mente que não pode ser
ampliada com acréscimos de memória eletrônica. Afinal “A memória é uma ilha de
edição”, não?
Não soube da
existência e paradeiro de Waly por muitos anos. Tempo demais, mas que me permitiu
escutá-lo numa palestra em Porto Alegre na Usina do Gasômetro, junto com a
minha irmã, em 1998. E lá estava Waly, ocupando um dos lugares na mesa, o homem
das Artes múltiplas, dos dizeres não-óbvios, das filosofias vãs e das frases
sem comprometimento com o dever de dizermos o que deve ser dito. Diga você o
que quiser, mas escute também o que vier. Dali em diante prestei atenção nele.
E descobri muito lentamente onde ele estava morando. Em quais espaços estava
presente. Desde então sempre quis saber por “Onde
estava o nosso Waly?” como se um mapa sinônimo da personagem Wally criado
pelo ilustrador americano Martin Handford pudesse avistá-lo, numa terra à
vista, em meio a tantos cacarecos desnecessários à essência humana. Afinal é
fundamental selecionar o que queremos receber, privilegiar aquelas produções
que sejam sintonizadas conosco, abrir espaço para aquilo que nos desacomoda. A
vida sem desafios torna-se muito tediosa e improdutiva.
Waly era
assim, desafiava a todos, começando por si próprio. Não poupava os seus
compatriotas, não poupava sua nação de escutá-lo. Baiano, filho de Xangô e
virginiano (“Eu deliro, mas tenho os pés
no chão porque sou de virgem”) sempre esteve ligado aos coletivos. Gostava de dizer: “Chega do papo furado de que o sonho acabou: A Vida é Sonho. A Vida é
Sonho. A Vida é Sonho.” como um cale-se a quem dizia que o sonho havia
acabado, gerando uma onda de baixa estima a tudo que fosse revolucionário.
Irreverente, sempre. Múltiplo também. Porque dizer algo que não tenha um pouco
de poesia, humor e sarcasmo misturados? De origem síria, não escondia suas
raízes “estrangeiras”, mas também sua relação com essa pátria em que todos
vivemos paridos pelo caos. Isso não o assombrava: o que seria diferença para
outros, para ele era semelhança.
Lemisnki
dizia que Waly “se não chegou a se tornar
tudo, foi muitas coisas”. Isso, claro, para a nossa sorte que bebemos um
pouco de lucidez através da sua poesia. Entre 1970 e 2000, Waly atuou como
poeta, ensaísta, letrista, articulador cultural, diretor de espetáculos,
artista visual e homem público. Dirigiu entre outros o espetáculo “FA-TAL – Gal
a todo vapor”; de Gal Costa, esteve na Direção da Fundação Gregório de Matos de
Salvador e coordenou o Carnaval da Bahia. Seus poemas foram musicados por
muitos artistas, entre eles: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Jards Macalé, João Bosco e Adriana Calcanhoto.
Depois de 11
anos da sua passagem, em 2003, a editora Companhia da Letras lançou com a
bênção dos herdeiros a poesia completa de Waly, “Poesia Total”. Cada vez que a família de algum artista faz essa
ação de compartilhar de forma organizada e acessível à obra de quem não pode
mais decidir sobre publicações, sinto-me esperançosa. As publicações são formas
de perpetuar a obra de um artista, daí meu agradecimento pela reunião da
produção do artista.
Ali estão os
poemas e as reflexões de Waly. Minhas prediletas são os poemas que viraram
canções: “Vapor Barato” com Gal; “Mal Secreto” com Jards; “Mel” e “Cobra Coral”,
ambas na voz de Caetano Veloso; “Fábrica do Poema”, em homenagem à arquiteta
italiana Lina Bo Bardi, a hipnótica “Pista de Dança” e a recente “Teu nome mais
secreto”, todas na voz de Adriana Calcanhoto; “Zumbi (A Felicidade Guerreira)”
e “Ganga Zumba (O Poder da Bugiganga)”, que encantam no filme “Quilombo”, na
voz de Gil; a descontraída e pontual “Assaltaram a Gramática”, musicada por Lulu Santos e gravada por Paralamas do Sucesso; “Memória da Pele”, musicada e
gravada por João Bosco e outros poemas dedicados em pura palavra-sentimento a
Solange Farkas, in memoriam à Lygia
Clarck e a Luiz Zerbini, além do amoroso poema “Mãe dos Filhos Peixes” a sua
Yemanjá: Martha.
Waly,
diferente da personagem americana que tem em seu protagonista um jovem
adolescente, cresceu. Ele que diz: “Tenho
fome de me tornar em tudo que não sou”, porém soube ser muitos sendo um só.
Amadureceu cedo demais. O poeta Alexei Bueno comenta uma obra de Waly, “Lábia,
1998”, sua retomada cortante e límpida com as palavras, mais adiante na resenha
diz que está na sintaxe sua mais poderosa característica. Senão isso, talvez a
clareza e a assertividade de pensamento fazem de Waly um poeta que nos deixa
suspensos numa ponte pênsil a cada palavra dita. Em Desejo&Ecolalia, de
1995, ele diz: “O que é que você quer ser
quando crescer? Poeta polifônico”. E foi assim que ele nos alcançou em meio
ao caos pertinentes da mesma pátria em que vivemos.
O "Pocket Waly", apresentado na
60ª Feira do Livro de POA
Ainda no ano
passado, uma dupla de músicos, Thiago Pirajira e Ricardo Pavão, levaram sua poesia em canção em plena Feira do
Livro de Porto Alegre – 60ª edição no “Pocket Waly”. A performance sonora misturava canções e dizeres de Waly e lotou a
Tenda de Pasárgada, tradicional palco para apresentações montado durante a
Feira. Waly estava ali cintilando de dourado e negro em meio aos violões e
vozes. Podia ver-se Waly vestido num parangolé
pamplona junto com Oiticica, enfeitado de muita sensibilidade e delicadezas
que ele possuía igualmente a sua capa de devaneio concreto. Vivo.
Se você
nunca esbarrou na obra de Waly Salomão ou nem pensou em procurá-lo, mude de
rota. Estabeleça uma meta e persiga-o incessantemente. Se conseguir alcançá-lo
não desista nas primeiras leituras: siga sereno, mas constante. Leia, cante e diga em voz alta sua poesia. Aos brados retumbando
suas frases você sentirá o que ele tinha internamente. Um vulcão prestes a
explodir! E sabemos que as terras próximas aos vulcões são sempre as mais
férteis, mas suas lavas podem queimar. Mesmo assim siga em frente, rompa essa
fronteira. Se necessário queime-se, transforme-se. Vale a pena.
Visitei no último final de semana, antes que acabasse, a
exposição “Dalí – a Divina Comédia” com obras temáticas do artista surrealista
ilustrando a obra imortal de Dante Alighieri.
Salvador Dalí,
mestre do surrealismo
Num conjunto de 100 pinturas, o artista catalão, retratou, na
sua visão bem peculiar, cada uma das etapas de “A Divina Comédia”, o “Inferno”,
o “Purgatório” e o “Paraíso”, em aquarelas com bicos de pena e xilogravuras no
seu traço característico distorcendo a percepção lógica de realidade. E quer
obra mais sugestiva que esta para este fim com todos os seus demônios, almas,
fogo, o sagrado, o profano, paisagens improváveis e sofrimento?
Combinação perfeita: Dalí / Dante!
Quem quiser conferir tem que correr, assim como eu fiz, pois
esta é a última semana.
Meu
amor por Caetano Veloso resplandecia quando escutei “Circuladô”.
Como qualquer brasileiro, hora ou outra ouvia alguma música desse
artista baiano por aí. Porém, na infância (época em que já me
ligava em música, vale dizer), meu interesse por aquele cara que
apresentava um programa que achava meio chato na Globo com o Chico Buarque era menor do que para com as bandas de rock da época, RPM, Legião Urbana, Titãs, entre outros. Essas realmente me empolgavam.
Fui escutá-lo com atenção e identificação pela primeira vez em
1988 (aos 9), quando meu irmão trouxe para casa um cassete com um
dos discos dele, o qual tinha uma sonoridade leve e acústica que me
dava condições de perceber com clareza as ricas construções
melódicas, o timbre cristalino da voz e a habilidade composicional
de Caê. O disco era “Caetano Veloso”, de 1986, feito para o
mercado norte-americano que continha coisas de várias épocas de sua
obra, como “Trilhos Urbanos”, “Cá Já”, “Terra” e duas
versões magníficas em inglês: “Billy Jean” (Michael Jackson) e
“Get Out of Town” (Cole Porter). Foi então que percebi: aquilo era,
evidentemente, diferenciado. Tinha que passar a ouvi-lo com mais
atenção de modo a não correr o risco de perder algo espetacular
que se apresentava à minha frente.
E
teria perdido mesmo. Apaixonei-me por seu álbum seguinte, “O
Estrangeiro”, de 1989, outro fundamental e no qual ele inicia a
grande fase da parceria com o Ambitious Lovers Arto Lindsay e com o
eclético maestro Jacques Morelembaum. Mas o disco que realmente me
fez entrar de vez na órbita de Caetano foi “Circuladô”, de
1991. No momento em que a MTV brasileira se estabelecia como um canal
bom e vendável, a indústria musical nacional, claro, se ligou neste
filão. Como já ocorria nos Estados Unidos, músicos passaram a
produzir com a mente não só na execução das rádios, mas no
videoclipe que produziriam para passar na Music Television. Com o
antenado Caetano Veloso, não foi diferente. A música de trabalho do
álbum estreou na emissora com um ótimo clipe da Conspiração
Filmes (com a participação do grupo de teatro Intrépida Trupe),
onde o compositor apresentava algo interessantíssimo: quase só voz
e percussão durante os versos, com uma guitarra wah-wah de
leve ao fundo, explodindo num samba-reggae no refrão com percussões
e samples, “Fora da Ordem” trazia a inteligente
verborragia político-filosófica de Caetano sobre sua visão
discordante – mas ao mesmo tempo poética – da Nova Ordem
Mundial, então recentemente anunciada por Bush “pai”: “Eu
não espero pelo dia em que todos os homens concordem/ Apenas sei de
diversas harmonias bonitas, possíveis sem Juízo Final”, versava
Caetano.
“Fora
da Ordem”, mesmo sem um ritmo identificável (não é exatamente
rock, reggae, funk ou samba) estourou e virou, em pouco tempo, um hit
dos mais tocados na MTV. Ao seu final, engenhosas repetições da
frase central da letra (“Alguma coisa está fora da ordem/ Fora
da Nova Ordem Mundial...”) ditas em outros idiomas que não o
português, como francês, japonês, espanhol e inglês, intercalando
vozes do cantor e femininas – entre estas, a de Bebel Gilberto.
Esta faixa abre o disco, que adquiri na época com grande interesse
de descobrir o que mais conteria. Já na primeira audição, o lado A
do meu cassete me arrebataria, sensação que se repete até hoje.
Isso porque, depois da música que não cansava de rever todos os
dias na TV, viria uma sequência de emocionar. A começar pela faixa
que traz a ideia central do álbum: “Circuladô de Fulô”, poesia
do filólogo, ensaísta e poeta Haroldo de Campos musicado por
Caetano com absoluta genialidade. O compositor já exercitava isso desde os anos 60, tendo posto música sobre poemas de Waly Salomão,
Torquato Neto, Gregório de Matos, Paulo Leminski, entre outros. Mas
essa é sua obra-prima neste sentido. Remetendo ao baião e ao
repente do mais embrionário folclore nordestino, ao mesmo tempo traz
a dissonância da vanguarda erudita, a polifonia dos motetos
populares medievais e um toque da milenar sonoridade oriental.
Caetano desliza o poema sobre os sons, cantando linda e tecnicamente
os versos que merecem ao menos a reprodução de um trecho: “O
povo é o inventalínguas na malícia da maestria no matreiro da
maravilha no visgo do improviso/ Tenteando a travessia/ Azeitava o
eixo do sol...”. Algo da melhor poesia já escrita em nossa
literatura.
O
próprio Haroldo de Campos comentou sobre a canção: “Devo
destacar que o trabalho que ele fez, ao musicar o fragmento
'Circuladô de Fulô', de minhas 'Galáxias', é particularmente
admirável por retratar com fidelidade seu conteúdo. Ele soube
restituir-me com extrema sensibilidade o clima do meu poema, que é,
todo ele, voltado à celebração da inventividade dos cantadores
nordestinos no plano da linguagem e do som, na grande tradição oral
dos trovadores medievais”.
Minhas
emoções não parariam. De surpresa, a voz adolescente do filho mais
velho de Caetano, Moreno Veloso (ainda não o músico profissional
que se tornaria) inicia, juntamente a uma orquestra de cordas
arranjada por Morelenbaum, uma das mais belas melodias de todo o
cancioneiro de seu pai: “Itapuã”. Lírica, graciosa. Impossível
não ser tocado todas as vezes que escuto: “Itapuã, o teu sol
me queima e o meu verso teima/ Em cantar teu nome/ Teu nome sem fim”,
ou: “Abaeté/ Tudo meu e dela/ A lagoa bela sabe, cala e diz/ Eu
cantar-te nos constela em ti/ E eu sou feliz.” Ainda mais
depois de ter conhecido a praia de Itapuã e ter sentido física e
espiritualmente suas “palmas altas”, suas “águas que se movem”
e sua “areia branca”, tão “assim: Caymmi”, como dizem os
versos.
Igualmente,
toca-me fundo “Boas-Vindas”, um samba-de-roda típico da região
de onde Caetano vem, o Recôncavo Baiano. Isso porque o artista
celebra a renovação da vida com a chegada de seu novo filho, Tom,
ainda na barriga (“Lhe damos as boas-vindas, boas-vindas,
boas-vindas/ Venha conhecer a vida/ Eu digo que ela é gostosa...”),
cantando com a família e amigos (“Minha mãe e eu/ Meus irmãos
e eu/ E os pais da sua mãe...”). O eterno companheiro Gilberto Gil, com sua inconfundível batida de violão; o “príncipe” Naná
Vasconcelos, na percussão (talking drum, cerâmica e congas);
e D. Edith do Prato, tocando, como diz sua alcunha, um prato de
cozinha raspado com um talher. Ainda, Moreno, junto com os outros
músicos, mantém o ritmo nas palmas, numa verdadeira festa de
interior animada ao som de samba rural. Lindíssima.
Dando
uma estratégica pausa nessa sequência, a complexa “Ela Ela”
carrega um manancial de referências e sensações. Apenas com
Caetano à voz e Arto Lindsay na guitarra, é uma verdadeira peça
avant-garde. O característico som do instrumento de Arto, com
sua afinação diferenciada e em altas distorção e amplificação,
cria traços sonoros que se assemelham aos criados por Cage com seu
piano preparado, às cordas agudas de Ligeti, às percussões
exóticas de Xenakis e aos ruídos eletroacústicos das fitas
magnéticas de Stockhausen. Caetano, por sua vez, exercita um arranjo
vocal assimétrico e dissonante, o que, junto aos grunhidos da
guitarra, formam não uma melodia palpável, mas um corpo sonoro de
puro atonalismo. A letra, por sua vez, remete ao modernismo e ao
dadaísmo. “Ela Ela”, no entanto, não lembra apenas essas pontes
externas. Na própria obra de Caetano ele já visitara os caminhos da
vanguarda (e seguiria visitando, haja vista a “doidecafônica”
“Doideca”, do disco “Livro”, de 1997, ou “Cantiga de Boi”,
de “Noites do Norte”, 2001). Na trilha que compusera para o filme
“São Bernardo”, em 1971, nota-se também semelhanças pelo
estilo de canto. Igualmente, nas colaborações com Walter Smetak,
nas experimentações de “Araçá Azul” (1973) e “Jóia”
(1975) e na explosão moderno-nordestina “Triste Bahia”, do
memorável disco "Transa", de 1972.
Se
“Ela Ela” quebra a emotividade com seu hermetismo, “Santa
Clara, Padroeira da Televisão” volta a fazer os olhos marejarem.
Numa interessante abordagem sobre a simbologia e a relevância da
tevê, Caetano desmistifica a visão preconceituosa geralmente
atribuída a esta mídia (“Que a televisão não seja sempre
vista/ Como a montra condenada, a fenestra sinistra/ Mas tomada pelo
que ela é/ De poesia...”) e, ainda por cima, expõe
recordações e impressões pessoais muito belas (“Quando a
tarde cai onde o meu pai/ Me fez e me criou/ Ninguém vai saber que
cor me dói/ E foi e aqui ficou...”). Coisa de poeta. Ao final,
depois de todos os instrumentos calarem, ainda um improvável solo de
trompete bem jazzístico.
Viro
de lado a minha fita e me deparo com bucolismo e melancolia. É a
versão de Caetano para um baião clássico: “Baião da Penha”,
em que reduz o compasso festivo do ritmo para criar uma peça
extremamente sensível e chorosa. Caetano a canta no mais alto nível
técnico apenas acompanhado de seu próprio violão. Em seguida,
“Neide Candolina”, talvez a mais pop do disco cujo brilhante
arranjo coloca o baixo e a guitarra em segundo plano para destacar o
ritmo da bateria, o arranjo de voz criado por Bebel e,
principalmente, os samples do mestre Ryuichi Sakamoto, o
compositor japonês mais brasileiro da world music. São os
efeitos eletrônicos de Sakamoto que dão o direcionamento da canção,
que, ao que se nota só pela descrição, é diferenciada e original.
Tanto
quanto é a letra de “Neide Candolina”, que homenageia a
professora de Língua Portuguesa que Caetano tivera no primário e
com a qual me identifico tamanhamente. Isso porque eu também tive
minha “Neide Candolina”: professora Berenice Brito, a Berê. O
significado de Berê para mim, também homem das letras, é muito
parecido dada a importância formativa que ele atribui à sua mestra.
Primeiro, o fato de serem duas “pretas chiques”, “lindas”
e “elegantes”, ambas ostentando seus cabelos “pixaim
Senegal” onde estiverem, seja na “sua suja Salvador” (no
caso de Berê, na também emporcalhada Porto Alegre) ou na “Europa”
– ainda mais pelo fato de Berê ter um namorado italiano e ir para
o Velho Mundo seguidamente. Igualmente, há a parte em que ele diz:
“Tem um Gol que ela mesma comprou/ Com o dinheiro que juntou/
Ensinando Português no Central”. Dadas as devidas localidades
e modelos, Berê, que ensinou a mesma matéria a mim e a centenas e
centenas de alunos gaúchos na Intercap, tendo se aposentado
exercendo isso, também tinha um veículo próprio Wolkswagen (um
fusca). Afora todas essas coincidências, ainda o exemplo de caráter
e cidadania é característico das duas. Se Neide “nunca furou
um sinal” por ser uma “preta correta democrata social,
racial”, lembro claramente de Berenice fazendo qualquer aluno
(mesmo os que se davam bem com ela, como eu) redigir repetidas vezes
como tema de casa todo o hino nacional caso ela tivesse percebido um
erro na hora de ouvir-nos cantá-lo.
O
clima animado é substituído, em seguida, por um de epicismo e
contemplação. É “A Terceira Margem do Rio”, outra obra-prima
do disco que se trata de, nada mais, nada menos, uma das raras
parcerias de Caetano com outro mestre da música brasileira: Milton Nascimento. Encomendada para a trilha sonora do filme homônimo de
Nelson Pereira dos Santos, baseado na obra de Guimarães Rosa,
carrega a atmosfera rica e densa do escritor tanto na elegante
melodia quanto na letra de alto poder poético de Caetano. O que são
de bonitos esses versos? “Meio a meio o rio ri/ Por entre as
árvores da vida/ O rio riu, ri/ Por sob a risca da canoa/ O rio riu,
ri/ O que ninguém jamais olvida/ Ouvi, ouvi, ouvi/ A voz das
águas...”. A música, típica composição de Milton, traz seu
tom grandioso, muito brasilianista mas quase românico, e isso apenas
em violões e percussões (cerâmica, caxixi e cabaça).
Não
deixando a bola cair, “O Cu do Mundo”, bossa-nova meio rock com
direito a samples e urros da guitarra de Arto, é outras das
mais legais do disco. Lembro-me de ouvi-la na antiga (e finada)
Ipanema FM e me impressionar com aquela letra indignada e sem papas
na língua: “O furto, o estupro, o rapto pútrido/ O fétido
sequestro/ O adjetivo esdrúxulo em U/ Onde o cujo faz a curva/ (O cu
do mundo, esse nosso sítio)”. A palavra “cu” dita de forma
aberta, no título, era uma das primeiras mostras conscientes de
libertação da censura que o Brasil recentemente vivia e que
descambaria na idiotice desbocada dos Mamonas Assassinas. À medida
que as partes vão se repetindo, vão entrando as vozes convidadas:
primeiro, de Gilberto Gil e, depois, de Gal Costa, num arranjo vocal
precioso que Caetano forjaria de maneira semelhante novamente 19 anos
depois na música “Cobra Coral”, quando chamara para dividir os
microfones com ele Lulu Santos e Zélia Duncan. Até o jazzista Butch
Morris faz uma ponta em “O Cu do Mundo”, com um intenso solo de
corneta, certamente contribuição como produtor de Arto, o
pernambucano mais norte-americano da world music.
Canção
irmã de “Você é Linda” (e de “Você é Minha”, que seria
gravada seis anos depois em “Livro”) “Lindeza”, romântica e
suave, é realmente muito bela. Juntamente com o violão-base, estão
o contrabaixo, as cordas e o piano de Sakamoto, que retorna para
finalizar o disco em grande estilo num arranjo criado a seis mãos
por ele, Arto e Caetano. Um acorde grave e ressonante do piano
desfecha esse disco irrepreensível, resultado de um momento de
aperfeiçoamento das técnicas de estúdio (foi gravado no Brasil e
em Nova York, onde também foi mixado e masterizado) e de boas
parcerias com a permanente criatividade de Caetano. “Circuladô”
é tão representativo que passou a servir como referência para
outros discos do próprio autor no que se refere à arquitetura de
repertório. Além das parecenças que já mencionei durante essa
resenha, isso fica evidente ao se fazer ainda outros paralelos, como
os começos pop de “Zii et Zie” (2009, com “Perdeu”) e "Abraçaço" (2012, com “A Bossa Nova é Foda”), a
musicalização de autores da literatura como tema principal do
projeto (“Noites do Norte”, este sobre texto de Joaquim Nabuco)
ou a faixa dedicada à indignação político-social (“Haiti”, de
“Tropicália 2”, de 1993, e “A Base de Guantánamo”, de “Zii
et Zie”).
Quanto
a mim, o impacto que “Circuladô” exerceria seria ainda maior.
Com apenas 13 anos, fui ao show de sua turnê em Porto Alegre, no
antigo Teatro da Ospa, o primeiro que assisti sozinho em minha vida.
Claro que eu, negro de classe média e muito jovem, era uma entidade
estranha naquele lugar, principalmente considerando aquela Porto
Alegre de era Collor em que a maioria dos meus pares ou não se
interessava, ou se constrangia em ir ou não tinha condições de ver
um espetáculo como aquele. Mas os olhares eram mais de admiração
do que de censura. Para mim, foi divertido e emancipador. No entanto,
mais do que isso, foi a partir dali que definitivamente me apaixonei
pela obra e pelo universo de Caetano. Foi a partir dali que meu amor
por ele resplandeceu. Foi a partir dali que tudo virou fulô.
vídeo de"Fora da Ordem",Caetano Veloso
***************
FAIXAS:
1.
Fora da ordem
2.
Circuladô de fulô (Caetano Veloso/Haroldo de Campos)
3.
Itapuã
4.
Boas vindas
5. Ela
ela (Veloso/Arto Lindsay)
6.
Santa Clara, padroeira da televisão
7.
Baião da Penha (Guio de Morais/David Nasser)
8.
Neide Candolina
9. A
terceira margem do rio (Veloso/Milton Nascimento)
10. O
cu do mundo
11,
Lindeza
todas
as composições de autoria de Caetano Veloso, exceto indicadas.