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quinta-feira, 27 de abril de 2023

Elis Regina - "Falso Brilhante" (1976)

 




Ábuns Fundamentais ClyBlog - Elis Regina - Falso Brilhante
"Você não sente, não vê mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo
Que uma nova mudança em breve vai acontecer
O que há algum tempo era novo, jovem
Hoje é antigo
E precisamos todos rejuvenescer"
da letra de "Velha Roupa Colorida"



Acho que ninguém em perfeito juízo discorda de que Elis Regina foi uma das melhores, senão a maior cantora brasileira de todos os tempos. Logicamente, em pleno gozo de minha sanidade, me junto a esse coro quase unânime entre os apreciadores de música neste país. Embora admire seu repertório, é uma artista da qual não domino informações sobre sua obra. Talvez pelo fato de que alguns de seus clássicos  apareçam em maus de um formato, em mais de um álbum, com parceiros diferentes, etc. Tem "Águas de Março", com Tom, sem Tom, ao vivo, no estúdio, alegre, emburrada..; tem "Tiro ao Álvaro", com Adoniram, sem Adoniram, no disco solo, dando risada no do programa de TV; tem "Bêbado e a Equilibrista", bêbada, sóbria, equilibrada, caindo... e nisso, ainda que idolatrando a cada uma dessas versões, cada interpretação, eu sempre tão interessado em datas, set-lists, álbuns,  etc., nunca me esforcei em saber onde se localizavam essas músicas na discografia de Elis Regina.

Só que de uns tempos pra cá, vinha observando a constante referência a um álbum específico e ele, então,  passou a me chamar atenção. "Falso Brilhante" era destacado em sites como um dos melhores discos de Elis, aparecia em listas de melhores discos brasileiros, era mencionado como influência por algum músico da minha preferência, era amplamente reverenciado aqui e acolá, e aí que fui atrás de mais informações sobre o tal disco.

Era o disco de "Fascinação", um dos maiores clássicos do repertório da cantora, numa interpretação inesquecível de uma delicadeza precisa e emocionante. Mas também era o disco de "Como Nossos Pais", o rock de Belchior que tentava dar uma sacudida numa juventude estagnada, e que Elis interpretava com uma força e uma intensidade absurdas. Inigualáveis! Sim era Elis cantando rock! E não era o único: "Velha Roupa Colorida", também  de Belchior, e também sobre atitude, era outra canção carregada de rock'roll e que, igualmente Elis depositava garra, potência, vibração, chegando a rasgar a voz, dando tudo de si, num dos melhores momentos do álbum. Mas há  outros pontos altos: "Gracias a la Vida", de Violeta Parra parece carregar a força da resistência da mulher latina contra os regimes autoritários que prevaleciam aqui e no Chile, terra da autora. Bem como "Los Hermanos", do argentino Atahualpa Yupanqui, uma espécie de convocação à união em nome da mais bela "irmã", a liberdade.

E tem ainda três de João Bosco com Aldir Blanc, "Um por todos", "Jardins de Infância" e "O Cavaleiro e os Moinhos", sempre com a sonoridade rica e aquele tom ácido característico da dupla; e pra fechar ainda, uma versão de arrepiar de "Tatuagem" de Chico Buarque, numa releitura ímpar, na interpretação de Elis.

Alguns afirmam que "Falso Brilhante" seria o disco em Elis que cantava rock, e se formos parar para analisar, não está muito longe da verdade: as duas de Belchior, logo de saída; "Quero", muito Beatles; a releituras de Bosco e Blanc, pungentes e carregadas nas guitarras; e mesmo as duas versões dos hermanos, andinos e platenses, que exploram, combinam e incorporam as alternativas e possibilidades de outros ritmos e nacionalidades, como tão bem costuma fazer o rock'n roll.

Se "Falso Brilhante" é o disco rock de Elis, acho que, possivelmente, deva ser por isso que gosto tanto dele. O brilho verdadeiro de uma estrela. Um diamante cuidadosamente lapidado. Uma verdadeira joia musical.

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FAIXAS:

1. Como Nossos Pais (Belchior)
2. Velha Roupa Colorida (Belchior)
3. Los Hermanos (Atahualpa Yupanqui)
4. Um Por Todos (João Bosco/Aldir Blanc)
5. Fascinação (Fermo Dante Marchetti, Maurice de Féraudy. Versão: Armando Louzada)
6. Jardins De Infância (João Bosco/Aldir Blanc)
7. Quero (Thomas Roth)
8. Gracias A La Vida (Violeta Parra)
9. O Cavaleiro E Os Moinhos (João Bosco/Aldir Blanc)
10. Tatuagem (Chico Buarque)

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Ouça:

Eis Regina - Falso Brilhante (1976)


por Cly Reis

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Milton Nascimento - "Geraes" (1976)

 

"Esses gerais são sem tamanho."
Guimarães Rosa, "Grande Sertão: Veredas"

"Sou o mundo, sou Minas Gerais."
Da letra de "Para Lennon e McCartney", de Lô Borges, Marcio Borges e Fernando Brant


Tom Jobim e o desenho sinuoso e sensual da Rio de Janeiro. 

Dorival Caymmi e a Bahia dos pescadores e santos do candomblé. 

Moondog e as pradarias inóspitas do Wyoming. 

Robert Johnson e as infinitas plantações de algodão do Mississipi. 

Violeta Parra e a imensidão das cordilheiras andinas. 

É sublime quando um músico consegue atingir tamanha simbiose entre ele e seu espaço, a ponto de passar a representar, através de sua arte, uma paisagem física. É como se ele fosse, por intermédio dos sons, não originário deste lugar, mas, sim, o próprio lugar.

Milton Nascimento é um destes seres que, como o próprio nome indica, nasce e gera a própria terra, Minas Gerais. O homem que integra a seu próprio nome um estado inteiro, o seu mundo. E não digam que Mi(lton) Nas(cimento) é mera coincidência linguística! Mais correto é afirmar que os Deuses - os do candomblé, da Igreja, muçulmanos, indígenas, todos aqueles que perfazem a cultura mineira - assim quiseram a este carioca desgarrado abraçado como um filho pelos morros de cor ferrosa das Gerais, os quais, junto à lúdica maria fumaça, ele mesmo representa na icônica capa em desenho a próprio punho. Como um ser pertencente àquela terra a qual se homogeiniza. 

Em meados dos anos 70, Milton já havia percorrido muita estrada de terra na boleia de um caminhão. Na faixa dos 35 anos, pai, casado, consagrado no Brasil e no exterior, idolatrado e gravado por Elis Regina, mentor do movimento musical mais cult da modernidade brasileira, autor de algumas das obras mais icônicas do cancioneiro MPB. O reconhecido talento como compositor, cantor, arranjador e agente catalisador misturava-se, agora, com a sabedoria da maturidade - como se ainda coubesse mais sabedoria a este ser nascido gênio. Quase que naturalmente a quem já havia ganhado o centro do País e desbravado o principal mercado fonográfico do mundo, o norte-americano, Milton, então, volta-se à sua própria essência: a terra que lhe é e a qual pertence. 

Mas Milton, carinhosamente chamado de Bituca por quem o ama, não faz isso sozinho, visto que convoca seu talentoso Clube da Esquina, reforçando o time de amigos, inclusive. Se "Minas", a primeira parte deste duo de álbuns gêmeos, explora a grandiosidade das geraes Guimarães Rosa de Drummond, seja em sons e letras, "Geraes" solidifica essa ideia quase que como um milagre: um homem torna-se seu próprio som. Ou melhor: transforma-se em montanha para, do alto de topografia, emitir a sonoridade da natureza. Samba, rock, soul, folk, jazz, toada, sertanejo, candombe, trova, oratório... world music, não só por acepção, mas por intuição, é o termo mais adequado para classificar.

A ligação entre uma palavra e outra, entre um título e outro, entre um disco e outro, se dá pelo mesmo acorde que desfecha “Simples”, última faixa de "Minas", e abre, em ritmo de toada mineira, a linda "Fazenda" (“Água de beber/ Bica no quintal/ Sede de viver tudo/ E o esquecer/ Era tão normal que o tempo parava"). A religiosidade católica do povo, traço cabal da cultura mineira, transborda tanto em "Cálix Bento", com a marca do violão universal de Milton e o emocionante arranjo de Tavinho Moura sobre tema da Folia de Reis do norte de Minas, quanto em "Lua Girou", outro tema do folclore popular – este da região de Beira-Rio, na Bahia – vertida para o repertório pela habilidosa mão do próprio Bituca. 

O lado político, claro, está presente. Milton, consciente da situação do País e jamais acovardado, não havia esquecido das recentes retaliações da censura que quase prejudicaram seu "Milagre dos Peixes", de 3 anos antes, um verdadeiro milagre de ter sido gestado com tamanha qualidade. O parceiro e produtor Ronaldo Bastos, além da concepção da capa, é quem pega junto em "O Menino", escrita anos antes pelos dois em homenagem ao estudante Edson Luís, assassinado em 1968 em um confronto com a polícia no restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro, episódio que uniu a sociedade em protestos que culminaram com a famosa Passeata dos Cem Mil contra a Ditadura Militar. E que luxo a banda que o acompanha: João Donato (órgão), Nelson Angelo (guitarra), Toninho Horta (guitarra), Novelli (baixo), e Robertinho Silva (bateria). Com a mira militares a outros artistas naquele momento, como Chico Buarque, Milton pode, enfim, lançar a música e não se calar diante da barbárie. 

Quem também garante o grito de resistência é um recente e igualmente genial amigo, com quem tanto e tão bem Milton produziria a partir de então. Justamente o então visado Chico Buarque. É com ele que Milton canta a canção-tema do filme "Dona Flor e Seus Dois Maridos", de Bruno Barreto, um sucesso de bilheteria no Brasil à época, "O que Será (À Flor da Pele)". Fortemente política, a letra, cantada com melancolia e até tristeza, reflete os tempos de iniquidade humana: "O que será que será/ Que dá dentro da gente que não devia/ Que desacata a gente, que é revelia/ Que é feito uma aguardente que não sacia/ Que é feito estar doente duma folia/ Que nem dez mandamentos vão conciliar/ Nem todos os unguentos vão aliviar/ Nem todos os quebrantos, toda alquimia/ Que nem todos os santos, será que será...". Gêmea de "O que Será (À Flor da Terra)", Milton retribui o convite e divide com Chico os microfones desta última no álbum dele naquele mesmo ano, o não coincidentemente intitulado “Meus Caros Amigos”


Milton e Chico: encontro mágico promovido à época
de "Geraes" e que deu maravilha à música brasileira

A maturidade filosófico-artística de Milton era tão grande, que as dimensões do que é grande ou pequeno, do que é parte ou geral, se reconfiguram numa consciência elevada de humanidade. A ligação universal de Milton com sua terra passa a significar o ligar-se a América Latina. Afinal, sua Minas é, como toda a latinoamérica, dos povos originários. “San Vicente” e "Dos Cruces", de "Clube da Esquina”, já traziam essa semente que “Geraes”, mais do que “Minas”, solidificaria, que é essa visão ampla do território, dos povos. Primeiro, na realização do sonho de cantar Violeta Parra com Mercedes Sosa. Apresentada a Milton por Vinícius de Moraes, La Negra divide com Milton os microfones da clássica “Volver a los 17”. Igualmente, vê-se o encontro dos rios do Prata e São Francisco, que não poderiam deixar de fazer brotar aquilo que os perfaz e lhes dá sentido: água. É com o conjunto de jovens chilenos deste nome, amigos recém conhecidos, que Milton instaura de vez, na acachapante “Caldera”, a alma castelhana dos hermanos na música popular brasileira – convenhamos, muito mais do que os músicos da MPG, cuja proximidade regional do Rio Grande do Sul propiciaria tal fusão mais naturalmente. É o canto dos Andes – mas também de Minas – sem filtro. 

As amizades, aliás, estão presentes em todos os momentos, e o território de Milton é como uma grande aldeia onde ele, consciente de seu papel de pajé, mantém a egrégora sob a força do amor. Fernando Brant, parceiro desde os primeiros tempos, coassina aquela que talvez seja a música mais sintética de todo o disco: “Promessas De Sol”. A sonoridade latina das flautas andinas, a percussão marcada pelo tambor leguero, o violão sincrético de Milton e os coros constantes e tensos dão à canção a atmosfera perfeita para um os mais fortes discursos políticos que a Ditadura presenciou em música. “Você me quer belo/ E eu não sou belo mais/ Me levaram tudo que um homem precisa ter”. Épica, como uma ópera guarani, a melodia vai escalando de um tom baixo para, ao final, se encerrar com intensos vocais de Milton bradando, denunciativo: “Que tragédia é essa que cai sobre todos nós?” 

Parece que não cabe mais emoção num álbum como este. Mas cabe. A brejeira “Carro De Boi”, de Cacaso e Maurício Tapajós (“Que vontade eu tenho de sair/ Num carro de boi ir por aí/ Estrada de terra que/ Só me leva, só me leva/ Nunca mais me traz”) casa-se com a inicial “Fazenda” seja na ludicidade ou na sonoridade ao estilo de cantiga sertaneja. Mas tem também a jazzística e comovente “Viver de Amor”, em que novamente Ronaldo, desta vez em parceria com o excepcional Toninho Horta, compõem para a voz cristalina de Milton uma das canções românticas mais marcantes de toda a discografia brasileira. Ronaldo, múltiplo, também tira da cartola mais uma vez com Milton outra joia do disco, que é o samba-jongo “Circo Marimbondo”. Assim como Milton, de ouvido tão absoluto quanto sensível, fizera ao contar com a voz de Alaíde Costa para cantar com ele "Me Deixa em Paz" em “Clube da Esquina”, aqui ele vai na fonte mais inequívoca para este tipo de proposta musical que une África e Brasil: Clementina de Jesus. Na percussão, além de Robertinho no tamborim e surdo, também outros craques da “cozinha”: Chico Batera, no agogô; Mestre Marçal, cuíca; Elizeu e Lima, repique; e Georgiana de Moraes, afochê. E que delícia ouvir o canto anasalado e potente da deusa Quelé acompanhada pelo coro de Tavinho, Miúcha, Chico, Georgiana, Cafi, Fernando, Bebel, Ronaldo, Bituca, Vitória, Toninho e toda a patota! 

Para encerrar? A música que conjuga o primeiro e o segundo disco, o corpo e o espírito: “Minas Geraes”. O violão carregado de traços étnico-culturais de Milton, sua voz que escapa do peito emoldurando-se ao vento, a docilidade das madeiras, a singeleza do toque do bandolim. Clementina, em melismas, embeleza ainda mais a canção, lindamente orquestrada por Francis Hime – outro novo amigo cooptado por Milton da turma de Chico. Tudo converge para um final emocionante, que, como os próprios versos dizem, saem do “coração aberto em vento”: “Por toda a eternidade/ Com o coração doendo/ De tanta felicidade/ Todas as canções inutilmente/ Todas as canções eternamente/ Jogos de criar sorte e azar”. 

Ouvindo-se “Minas” e “Gerais”, duas obras não somente maduras como altamente densas, simbólicas e encarnadas, é impossível não ser fisgado pelo mistério da música de Milton Nascimento. Encantamento que remete ao mistério da criação, o mistério da vida. Wayne Shorter, parceiro de Milton e mutuamente admirador, quando perguntado sobre esta esfinge que é a obra do amigo, diz: “Bem, ouça você mesmo, pois não há palavras para descrever. Apenas sinta”. Milton, que completa 80 anos de vida sobre o mundo, o seu mundo, é tudo isso: uma força da natureza. Ele é mais do que música: é som em estado puro. É mais que tempo: é a harmonia do espaço. 

Milton é mais do que homem: é pedra. Eterna.

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É impressionante perceber hoje, em retrospectiva, que o encontro de dois gênios da música brasileira se deu exatamente na época deste trabalho. Depois de aberta a porteira da fazenda de Milton para Chico, só vieram coisas lindas. Além de parcerias nos anos subsequentes - inclusive no célebre "Clube da Esquina 2", de 1978 - naquele mesmo ano de 1976 os dois se reuniriam para gravar o compacto "Milton & Chico", lançado oficialmente um ano depois. Incluído em "Geraes" na versão para CD, esta gravação clássica dos dois traz duas faixas: a melancólica "Primeiro de Maio", que denuncia a vida oprimida do trabalhador brasileiro no feriado dedicado a ele, e "O Cio da Terra", também combativa e ligada ao trabalhador, mas do campo, que se tornaria uma das canções emblemáticas do repertório tanto de Chico quanto de Milton.

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FAIXAS:
1. "Fazenda" (Nelson Angelo) - 2:40
2. "Calix Bento"(Folclore popular - Adap.: Tavinho Moura) - 3:30
3. "Volver a los 17" - com Mercedes Sosa (Violeta Parra) - 5:10
4. "Menino" (Milton Nascimento/ Ronaldo Bastos) - 2:47
5. "O Que Será (À Flor da Pele)" - com Chico Buarque (Chico Buarque) - 4:10
6. "Carro de Boi" (Maurício Tapajós/ Cacaso) - 3:40
7. "Caldera (instrumental)" - com Grupo Agua (Nelson Araya) - 4:25
8. "Promessas do Sol" - com Grupo Agua (Milton Nascimento/ Fernando Brant) - 5:00
9. "Viver de Amor" (Toninho Horta/ Ronaldo Bastos) - 2:34
10. "A Lua Girou" (Milton Nascimento) - 3:42
11. "Circo Marimbondo" - com Clementina de Jesus (Milton Nascimento/ Ronaldo Bastos) - 2:55
12. "Minas Geraes" com Grupo Agua e Clementina de Jesus (Novelli/ Ronaldo Bastos) - 5:13

Faixas bônus da versão em CD:
13. "Primeiro De Maio" - com Chico Buarque (Milton Nascimento/ Chico Buarque) - 4:46
14. "O Cio Da Terra" - com Chico Buarque (Milton Nascimento/ Chico Buarque) - 3:48


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OUÇA O DISCO
Milton Nascimento - "Geraes" 


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 15 de março de 2018

"Lou", de Cordula Kablitz-Post (2016)


São vários os filmes sobre mulheres de atuação política importante para a história da sociedade moderna. Rosa Luxemburgo, Frida Kahlo, Maud Watts, Norma Rea, Violeta Parra, Alice Paul e as brasileiras Pagu e Zuzu Angel já foram retratadas nas telas. Entretanto, se comparado às cinebiografias sobre figuras masculinas, ainda há uma grande lacuna. Mary Wollstonecraft, Ada Byron, Alexandra Kollontai e Maria Firmina dos Reis, por exemplo, nunca receberam esse reconhecimento. Entre estas, faltava, igualmente, uma obra que abordasse a vida de outra dessas figuras libertárias para a questão feminina: a escritora, filósofa e psicanalista Lou Andreas-Salomé (1861-1937). Feito muito bem realizado pela cineasta alemã Cordula Kablitz-Post no longa “Lou”. Equilibrando os aspectos emocionais e biográficos da personagem com momentos históricos dos quais ela foi criadora e criatura, o filme traz à luz uma história fundamental de ser conhecida, principalmente em dias de empoderamento e nova consciência da mulher como os atuais.

No fim do século XIX, Salomé vive de forma livre e contestadora. Suas ideias e atitudes seduzem as mentes mais brilhantes da sua época, como os filósofos Paul Rée e Friedrich Nietzsche, o psicanalista Sigmund Freud e o poeta Rainer Maria Rilke, além do jovem filólogo Ernst Pfeiffer. Pfeiffer a ajuda a escrever as suas memórias aos 72 anos, quando Salomé passa a relembrar sua juventude em meio à comunidade alemã de São Petersburgo, os anos em Zurique, Roma e Berlim e, claro, as ricas e invariavelmente conturbadas convivências com os intelectuais da época.

Interpretada muito bem pelas atrizes Nicole Heesters, que a faz mais velha, e Katharina Lorenz, quando jovem (e também por Liv Lisa Fries, na fase adolescente, embora com menos aparição), Salomé é daquelas pessoas que, para se tornar o ícone que hoje é, precisaram sustentar uma sobrecarga sobre as costas. Sua renúncia ao casamento formal e a recusa à maternidade – levada ao extremo do aborto intencional –, traçam um preocupante paralelo com a realidade de muitas mulheres ainda hoje, quase 100 anos depois do seu nascimento.

Nicole Heesters muito bem como Salomé na fase final de vida
O que movia Salomé como mulher era uma busca por aquilo que ela acreditava, não pelo que a sociedade estabelecia. Internamente, no entanto, as motivações disso eram mais intrincadas. Como bem levantou o psiquiatra Luiz Carlos Mabilde em uma sessão comentada do filme ocorrida no GNC Cinemas do Praia de Belas Shopping, em Porto Alegre, dentro do projeto “Cinepsiquiatria” (promovido pelo Centro de Estudos Cyro Martins, Associação Brasileira de Psiquiatria e Associação Psiquiátrica da América Latina), a base do conflito pessoal de Salomé estava na figura da mãe. Autoritária e repressiva e, por isso, masculinizada em termos de padrão de comportamento, a imagem da mãe contrastava com a do pai, a quem tivera somente até a puberdade, mas que lhe era afetuoso e protetor, algo “feminino” num contexto tradicional. Isso se refletiu em todos os relacionamentos amorosos dela: quanto mais a encurralavam com sentimentos de paixão viril, como fizeram Nietzsche, Rée e Hendrik Gillot, mais ela recuava. Mesmo Rilke, com quem, depois de anos de autocastração, se entregara em momentos de ardor, foi recusado no momento em que transferira para ela toda a responsabilidade pela existência dele mesmo. Na cena em que, em meio à simbólica vegetação, um descontrolado e atormentado Rilke roga pela mão de Salomé, que lhe responde: “Mas você já tem a mim". 

Realmente, o que chama atenção na personalidade de Salomé são suas convicções. Aquilo que sentia e buscava, mesmo de modo tão espontâneo e explosivo, é o fato de parecer não haver conflito interno entre pensar e agir. A despeito do excessivo racionalismo, seus embates pareciam ser de natureza íntima, mas, sim, exclusivamente com o que a oprimia externamente, o que não a deixava ser o que queria ser: a família tradicional, a Igreja, a autocracia, o sexismo, os preconceitos. A sociedade é que não estava preparada para ela, e não o contrário.

A histórica e polêmica foto de Salomé açoitando Nietzsche e Rée
reproduzida no filme e a original, de 1882
Em sua narrativa bem amarrada e delineada, a diretora, também co-roteirista, consegue estabelecer aquilo que se encontra nas boas cinebiografias: equilibrar uma evidência documental ao sabor da admiração à reluzente personagem que foi Salomé. E com toda a razão, visto que é impossível estabelecer apenas um distanciamento racional uma vez que na própria escolha do objeto biografado já está sinalizada essa admiração – sem que isso, contudo, exclua as impressões críticas sobre o mesmo. O filme tem cenas muito bem montadas, como o momento da célebre foto, que escandalizou a sociedade europeia à época, com Nietzsche e Rée amarrados como animais e ela com um chicote pronta para fustigá-los tal cavalos de tração. Igualmente, a incomum sessão de psicanálise com Freud, assim como as criativas fusões sobre fotos históricas somente com Salomé em movimento. Além disso, Cordula conduz as atuações dos atores com muita competência e sensibilidade, unindo substrato documental com a detecção de elementos emocionais peculiares do que cada personagem quer "dizer".

Não é por coincidência que a maioria dos filmes destas personagens históricas tão essenciais para a emancipação da mulher na sociedade sejam dirigidos, justamente, por mulheres. A própria Salomé já tinha sido tema do filme "Para além de bem e mal", de 1977, também dirigido por uma mulher, a italiana Liliana Cavani, que centrava-se na relação com Nietzsche e Rée. Se elas ainda não são a maioria por trás das telas ou não lhes seja dado o mesmo valor que os homens – basta ver qualquer premiação cinematográfica no mundo, que os mais premiados ainda continuam sendo homens –, ao menos têm cabido às cineastas o fundamental papel de valer-se da arte cinematográfica para desaguar essas histórias. Com as armas que dispõem, a ideologia, essas mulheres do presente são as que hoje dão continuidade à trilha aberta por pioneiras do passado como foi Lou Andreas-Salomé.

Assista ao trailer de "Lou"


Daniel Rodrigues

quarta-feira, 9 de março de 2016

A Pureza dos Sons

Uma das coisas mais impressionantes que já presenciei em um show de música foi numa apresentação de Naná Vasconcelos. Algo tão impressionante que me leva a relativizar, inclusive, os termos que acabo de usar: “apresentação” e “show de música”. Não me refiro necessariamente à emoção de assistir a um artista que se gosta, o que, por si, já causa impressão. Naná foi um deles, assim como foi Paul McCartneyGilberto GilMorrisseyMaria BethâniaHelmetDi MeloThe CureMonarcoPrimal ScreamMilton Nascimento, e por aí vai. Só vê-los num palco, gigantes que se tornam – alguns, de baixa estatura como Caetano Veloso ou Vitor Ramil, mas enormes entidades quando cantam –, é um momento especial.

Refiro-me a outra coisa. Esse show de Naná foi em 2010, no Salão de Atos da UFRGS, em Porto Alegre. A começar, não havia mais ninguém no palco: apenas o gênio pernambucano (mais um deles) cujos tambores e percussões foram responsáveis por virar de ponta-cabeça a música do século XX com sua arte originalmente universal, forjada no âmago mais recôndito da África negra mas sensivelmente generoso aos sons de todo o mundo. Tudo que se fala hoje em termos de inclusão, diversidade, cosmopolitismo e até sustentabilidade estavam presentes desde sempre na música de Naná. As reminiscências da humanidade estão preservadas em seus sons, a manifestação inata e orgânica do corpo em movimento também, assim como entenderam Meredith Monk, os tap dances norte-americanos, Dorival CaymmiVioleta Parra, os bluesmans do Mississipi.

Pois, por toda essa complexidade – extremamente natural de ser sorvida e apreciada com a maior das facilidades –, questiono que aquilo tenha sido uma “apresentação” e necessariamente de “música”. Ele, sozinho no palco, rodeado de alguns instrumentos percussivos (não muitos), não simplesmente apresentou, mas experenciou algo a nós, plateia. E não somente um show, o que seria simplório, mas, por cerca de 1 hora, vivemos um momento de humanidade. Conversou e contou histórias com a simplicidade contrastante de um tímido acostumado a comandar públicos há décadas. Mas, principalmente, tocou. Tangeu, atritou, bateu, produziu sons. Ele e instrumentos eram a mesma coisa. Do mesmo barro. Independia a nós, que ouvíamos sua arte e certamente, antes de mais nada, a ele  próprio, se os sons emanavam do seu aparelho vocal, do berimbau, da pancada com as mãos em sua própria pele ossuda e ressonante ou da sua respiração. Ecos, reverberações, estampidos, fala, raspados, vibrações: tudo de igual origem.

Provavelmente só vira tal integração natureza/homem quando assistira Monk ano passado, quando esta recolhera o repertório de 50 anos de pesquisas e aprofundamento de sua “música impermanente”. Com Naná, entretanto, a comunicação foi maior. Costumaz colaborador de tantos e tantos artistas e bandas pelo mundo, em realidade não precisava de mais ninguém num palco. Quando o vi, havia Naná e centenas de outros. Todos dentro dele. Naquele dia, quem teve a sorte de estar na plateia – e isso certamente ocorria a muitos e em qualquer lugar que fosse, dada a generosidade de sua arte – teve a chance de experimentar essa sensação tão natural a nós, humanos, e, curiosamente, tão inacesssada.

Foi quando, para terminar o “encontro” (nego-me a classificar somente como “show”), Naná convidou a nós da plateia a produzir o som do Rio Amazonas quando chove... Sim, o som da água, da chuva caindo no rio e na mata! Como um maestro – ou um mago –, regeu-nos. Sob seu comando emitimos sons guturais e batíamos palmas acompanhando um ritmo que ele conduzia em gestos. O resultado foi algo simplesmente transcendente. Estávamos ali, sim, imitando o som da chuva na selva. Tornamo-nos água naqueles instantes, rumamos direto para àquilo que nos forma, que nos rege, aquilo que nos compõem em maioria em termos físicos e espirituais. Vibramos todas nossas moléculas e as harmonizamos no ritmo das ondas, sob a orientação dos ventos, sob a influência dos astros. Voltamos ao útero. Sentimos a pureza.

Não sei do restante das pessoas, mas eu nunca mais fui o mesmo a partir daquele momento. Mesmo que pouco, aquela experiência me mudou para sempre de alguma maneira, a ponto de, hoje, quando Naná Vasconcelos deixa esse planeta do qual tanto compreendeu e simbolizou com beleza, lembrar-me justamente desse episódio. Ele dizia que nunca iria gravar aquilo, pois era uma experiência para ser vivida. Eu vivi. E virei água como ele.


NANÁ VASCONCELOS
(1944-2016)





segunda-feira, 19 de outubro de 2015

cotidianas #399 - Um bom motivo para “volver” a Santiago



A genial artista chilena,
agora devidamente homenageada.
Leio uma notícia da abertura do Museu Violeta Parra e minha memória remonta a outubro de 2006. Depois de dormir uma noite em um hostel isolado em Uspallata (onde filmaram "Sete anos no Tibet" – tem até um barzinho lá cheio de fotos do Brad Pitt), no meio da Cordilheira dos Andes, tomei um ônibus rumo a Santiago. A viagem foi linda e tranquila, especialmente por conta da paisagem e das incríveis 49 curvas em ‘U’ que formam os chamados "caracoles chilenos". O longo percurso, ainda que feito dentro de um ônibus desses de linha urbana, foi bem menos desafiador do que os 800 km que eu havia feito dentro de um Scania 111, ano 1979, que me levara de Uruguaiana até Córdoba. Naquele mochilão, eu já tinha conseguido umas coisas bem legais, como: 1) passar um dia na Fundación Atahualpa Yupanqui, em Cerro Colorado; 2) conhecer, tomar mate e prosear com o simpático "Koya" Chavero, filho de Don Ata (que, inclusive, me deu uma carona de volta a Córdoba); e 3) ter passado uma noite em um ginásio lotado para ver a "Peña de los Carabajal", cheio de gente dançando zamba e chacarera.
Uma das principais obras da artista,
exposta no Museu do Louvre.
Bueno, voltando a Santiago. A primeira coisa que fiz na cidade foi ir à rua Carmen, número 340. Era lá que funcionava (olha a minha cabeça), NOS ANOS 60, a Peña de los Parra, tocada por Violeta Parra e pelos filhos, Angel e Isabel. Victor Jara vivia lá, também. Era uma vida de música, folclore, bebidas e empanadas. Cheguei lá e dei de cara com uma casa normal onde não tinha mais nada senão... uma casa normal. Na minha cabeça, lá deveria funcionar uma fundação, um museu ou algo do gênero. Mas não.
Peguei um ônibus e me mandei para a calle Brasil (isso mesmo), onde ficava a Fundación Victor Jara. Essa, sim, existia. E não só existia como tive a sorte de encontrar por lá sua viúva, a bailarina inglesa Joan Jara, autora de "Uma canção inacabada", livro fundamental sobre a vida e a obra desse gênio chileno assassinado dias após o golpe de Pinochet, em 1973. Agora, nove anos depois, a amiga Míriam Miràh (uma das pedras fundamentais do Tarancón, grupo que nos anos 70 difundiu o folclore e a música de protesto latino-americana pelo Brasil) me alerta sobre a inauguração, finalmente, de um museu que vai abrigar a obra tátil de Violeta, como tapeçarias, bordados e pinturas. Quanta história envolvida. E que bom motivo para volver a Santiago.





terça-feira, 24 de março de 2015

cotidianas #359 - Emiliano passou por aqui



foto: Ricardo Lacerda
É um absurdo o que me aconteceu neste domingo, mas um fato desses não posso deixar passar batido. Domingão de sol, 11h, resolvo dar uma caminhada na Redenção. Eis que esse cara da foto estraga o passeio. Ali, bem no meião do Brique, sentado numa caixa de som que sequer era plana, o cidadão cantava: "Que dulce encantos tienen tus recuerdos Mercedita...". Pô, mas que coisa séria! Parei para dar aquela conferida. Eis que o louco emenda uma milonga do Alfredo Zitarrosa. Aí pensei, cá com meus botões: "Imagina se emenda uma chilena". Foi bem aí que o diabo do músico começou: "Volver a los 17, después de vivir un siglo...". Ah, não! Violeta Parra em plena Redenção é mais que luxo pro gaúcho. Entrou um cisco no meu olho, marejado por detrás das lunas. E ali fui me quedando. Eu e uma dúzia de vivente. E ele não parava: de boininha a la rebelde, violão desbeiçado, microfone todo enjambrado com durex, a cada troco que despejado no case (a maioria de 2 conto), ele dizia um simpático: "brigado, cara". O sotaque não enganava: o “qüera” não era desde aqui.
E assim o tempo foi passando, em meio a zamba, chacarera, chamamé, milonga e até corrido mexicano. Fui ficando, por supuesto. Entre uma e outra instrumental, o exibido encarnou Atahualpa Yupanqui, Daniel Viglietti, José Larralde, Miguel Aceves Mejia y otras cositas más. Uma melhor que a outra. Pedi Victor Jara e Los Olimareños. Fui prontamente atendido. Vendo que estava prestes a fundar um fã-clube do folclorista ali mesmo, um casal (na casa dos 60 e picos de idade) puxou assunto. "Eu vim comprar carne. Preciso ir pra casa fazer o churrasco, mas tá difícil", disse ele. "Por mim, como uma tapioca por aqui mesmo", retrucou a senhora. Mesmo contrariado, o senhor tentou ir embora umas quatro vezes, mas ela sempre dizia: "Deixa eu ouvir mais essa".
A certa altura, já há uns 45 min ali, meu novo amigo foi saindo e me disse, de galhofa, "entrega ela lá em casa amanhã, por favor". Deixei 10 mirréis pro artista. Segundo meu escrutínio, ele angariou uns R$ 200 naquela uma hora e meia em que fiquei no espetáculo. Eu também precisava ir para casa. Quando o artista resolveu dar uma pausa para tomar água, aproveitei e fugi – ainda que a contragosto. Emiliano está de partida. Apenas passou por Porto Alegre. Nessa semana, deve voltar para sua Córdoba natal. Que cara sacana esse Emiliano, estragando o passeio dos outros.