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quinta-feira, 8 de junho de 2023

"Grande Sertão: Veredas", de João Guimarães Rosa, adaptado para quadrinhos por Guazelli e Rodrigo Rosa - editora Quadrinhos na Cia. (2014)

 




"O diabo
no meio da rua
no meio do redemunho"


Belíssima adaptação para quadrinhos de um dos maiores clássicos da literatura brasileira. O roteirista Guazelli e o artista Rodrigo Rosa tiveram a desafiadora tarefa de transpôr para esta outra linguagem, ainda que também literária, porém muito mais visual, uma obra de estrutura difícil, de texto complexo e longa extensão, e no fim das contas, pesando acertos e erros, prós e contras, pode-se dizer que se saíram muito bem.
O romance gráfico consegue transmitir a atmosfera árida, o clima sufocante do sertão, a intensidade dos confrontos e a verdade do sertanejo, seja ela de ignorância ou de sabedoria.
"Grande Sertão: Veredas", obra original de Guimarães Rosa, um dos maiores gênios da literatura brasileira, narra, na voz de um sertanejo relatando a um visitante curioso, as sagas, aventuras e desventuras de um grupo de jagunços no interior de Minas Gerais, seus conflitos, traições, disputas de poder e batalhas, tudo sob um olhar de sabedoria do homem que aprendeu a conhecer os homens e a conhecer o mundo, e a partir disso formou juízos repletos de filosofia sobre tudo à sua volta.

A sensação do calor e a intensidade dos tiroteios
nas ilustrações impressionantes de Rodrigo Rosa

As ilustrações de Rodrigo Rosa são impressionantes! O leitor quase sente o calor, o sol castigando, a tensão entre os homens, a coragem, o medo, o clima dos tiroteios. O roteiro que peca um pouco nas transições, de situações, de lugar, de tempo, mas não  desvaloriza o grande trabalho de adaptação dessa obra, por um lado fácil de ser colocada em imagens, dada a riqueza narrativa de Guimarães Rosa, mas, por outro, difícil pelo formato, pelo texto corrido, pela linguagem sertaneja, etc.
Enfim, mais méritos que críticas ao trabalho dos autores da HQ. Parabéns a eles. Mais uma obra fundamental da nossa literatura que ganha traço e cores artísticas com muita qualidade. 

A beleza e a força da cena de Riobaldo invocando o demônio.





Cly Reis


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"Grande Sertão: Veredas"
romance gráfico adaptado a partir da obra "Grande Sertão: Veredas", de João Guimarães Rosa
roteiro: Guazelli
arte: Rodrigo Rosa
editora: Quadrinhos da Cia.



quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Milton Nascimento - "Geraes" (1976)

 

"Esses gerais são sem tamanho."
Guimarães Rosa, "Grande Sertão: Veredas"

"Sou o mundo, sou Minas Gerais."
Da letra de "Para Lennon e McCartney", de Lô Borges, Marcio Borges e Fernando Brant


Tom Jobim e o desenho sinuoso e sensual da Rio de Janeiro. 

Dorival Caymmi e a Bahia dos pescadores e santos do candomblé. 

Moondog e as pradarias inóspitas do Wyoming. 

Robert Johnson e as infinitas plantações de algodão do Mississipi. 

Violeta Parra e a imensidão das cordilheiras andinas. 

É sublime quando um músico consegue atingir tamanha simbiose entre ele e seu espaço, a ponto de passar a representar, através de sua arte, uma paisagem física. É como se ele fosse, por intermédio dos sons, não originário deste lugar, mas, sim, o próprio lugar.

Milton Nascimento é um destes seres que, como o próprio nome indica, nasce e gera a própria terra, Minas Gerais. O homem que integra a seu próprio nome um estado inteiro, o seu mundo. E não digam que Mi(lton) Nas(cimento) é mera coincidência linguística! Mais correto é afirmar que os Deuses - os do candomblé, da Igreja, muçulmanos, indígenas, todos aqueles que perfazem a cultura mineira - assim quiseram a este carioca desgarrado abraçado como um filho pelos morros de cor ferrosa das Gerais, os quais, junto à lúdica maria fumaça, ele mesmo representa na icônica capa em desenho a próprio punho. Como um ser pertencente àquela terra a qual se homogeiniza. 

Em meados dos anos 70, Milton já havia percorrido muita estrada de terra na boleia de um caminhão. Na faixa dos 35 anos, pai, casado, consagrado no Brasil e no exterior, idolatrado e gravado por Elis Regina, mentor do movimento musical mais cult da modernidade brasileira, autor de algumas das obras mais icônicas do cancioneiro MPB. O reconhecido talento como compositor, cantor, arranjador e agente catalisador misturava-se, agora, com a sabedoria da maturidade - como se ainda coubesse mais sabedoria a este ser nascido gênio. Quase que naturalmente a quem já havia ganhado o centro do País e desbravado o principal mercado fonográfico do mundo, o norte-americano, Milton, então, volta-se à sua própria essência: a terra que lhe é e a qual pertence. 

Mas Milton, carinhosamente chamado de Bituca por quem o ama, não faz isso sozinho, visto que convoca seu talentoso Clube da Esquina, reforçando o time de amigos, inclusive. Se "Minas", a primeira parte deste duo de álbuns gêmeos, explora a grandiosidade das geraes Guimarães Rosa de Drummond, seja em sons e letras, "Geraes" solidifica essa ideia quase que como um milagre: um homem torna-se seu próprio som. Ou melhor: transforma-se em montanha para, do alto de topografia, emitir a sonoridade da natureza. Samba, rock, soul, folk, jazz, toada, sertanejo, candombe, trova, oratório... world music, não só por acepção, mas por intuição, é o termo mais adequado para classificar.

A ligação entre uma palavra e outra, entre um título e outro, entre um disco e outro, se dá pelo mesmo acorde que desfecha “Simples”, última faixa de "Minas", e abre, em ritmo de toada mineira, a linda "Fazenda" (“Água de beber/ Bica no quintal/ Sede de viver tudo/ E o esquecer/ Era tão normal que o tempo parava"). A religiosidade católica do povo, traço cabal da cultura mineira, transborda tanto em "Cálix Bento", com a marca do violão universal de Milton e o emocionante arranjo de Tavinho Moura sobre tema da Folia de Reis do norte de Minas, quanto em "Lua Girou", outro tema do folclore popular – este da região de Beira-Rio, na Bahia – vertida para o repertório pela habilidosa mão do próprio Bituca. 

O lado político, claro, está presente. Milton, consciente da situação do País e jamais acovardado, não havia esquecido das recentes retaliações da censura que quase prejudicaram seu "Milagre dos Peixes", de 3 anos antes, um verdadeiro milagre de ter sido gestado com tamanha qualidade. O parceiro e produtor Ronaldo Bastos, além da concepção da capa, é quem pega junto em "O Menino", escrita anos antes pelos dois em homenagem ao estudante Edson Luís, assassinado em 1968 em um confronto com a polícia no restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro, episódio que uniu a sociedade em protestos que culminaram com a famosa Passeata dos Cem Mil contra a Ditadura Militar. E que luxo a banda que o acompanha: João Donato (órgão), Nelson Angelo (guitarra), Toninho Horta (guitarra), Novelli (baixo), e Robertinho Silva (bateria). Com a mira militares a outros artistas naquele momento, como Chico Buarque, Milton pode, enfim, lançar a música e não se calar diante da barbárie. 

Quem também garante o grito de resistência é um recente e igualmente genial amigo, com quem tanto e tão bem Milton produziria a partir de então. Justamente o então visado Chico Buarque. É com ele que Milton canta a canção-tema do filme "Dona Flor e Seus Dois Maridos", de Bruno Barreto, um sucesso de bilheteria no Brasil à época, "O que Será (À Flor da Pele)". Fortemente política, a letra, cantada com melancolia e até tristeza, reflete os tempos de iniquidade humana: "O que será que será/ Que dá dentro da gente que não devia/ Que desacata a gente, que é revelia/ Que é feito uma aguardente que não sacia/ Que é feito estar doente duma folia/ Que nem dez mandamentos vão conciliar/ Nem todos os unguentos vão aliviar/ Nem todos os quebrantos, toda alquimia/ Que nem todos os santos, será que será...". Gêmea de "O que Será (À Flor da Terra)", Milton retribui o convite e divide com Chico os microfones desta última no álbum dele naquele mesmo ano, o não coincidentemente intitulado “Meus Caros Amigos”


Milton e Chico: encontro mágico promovido à época
de "Geraes" e que deu maravilha à música brasileira

A maturidade filosófico-artística de Milton era tão grande, que as dimensões do que é grande ou pequeno, do que é parte ou geral, se reconfiguram numa consciência elevada de humanidade. A ligação universal de Milton com sua terra passa a significar o ligar-se a América Latina. Afinal, sua Minas é, como toda a latinoamérica, dos povos originários. “San Vicente” e "Dos Cruces", de "Clube da Esquina”, já traziam essa semente que “Geraes”, mais do que “Minas”, solidificaria, que é essa visão ampla do território, dos povos. Primeiro, na realização do sonho de cantar Violeta Parra com Mercedes Sosa. Apresentada a Milton por Vinícius de Moraes, La Negra divide com Milton os microfones da clássica “Volver a los 17”. Igualmente, vê-se o encontro dos rios do Prata e São Francisco, que não poderiam deixar de fazer brotar aquilo que os perfaz e lhes dá sentido: água. É com o conjunto de jovens chilenos deste nome, amigos recém conhecidos, que Milton instaura de vez, na acachapante “Caldera”, a alma castelhana dos hermanos na música popular brasileira – convenhamos, muito mais do que os músicos da MPG, cuja proximidade regional do Rio Grande do Sul propiciaria tal fusão mais naturalmente. É o canto dos Andes – mas também de Minas – sem filtro. 

As amizades, aliás, estão presentes em todos os momentos, e o território de Milton é como uma grande aldeia onde ele, consciente de seu papel de pajé, mantém a egrégora sob a força do amor. Fernando Brant, parceiro desde os primeiros tempos, coassina aquela que talvez seja a música mais sintética de todo o disco: “Promessas De Sol”. A sonoridade latina das flautas andinas, a percussão marcada pelo tambor leguero, o violão sincrético de Milton e os coros constantes e tensos dão à canção a atmosfera perfeita para um os mais fortes discursos políticos que a Ditadura presenciou em música. “Você me quer belo/ E eu não sou belo mais/ Me levaram tudo que um homem precisa ter”. Épica, como uma ópera guarani, a melodia vai escalando de um tom baixo para, ao final, se encerrar com intensos vocais de Milton bradando, denunciativo: “Que tragédia é essa que cai sobre todos nós?” 

Parece que não cabe mais emoção num álbum como este. Mas cabe. A brejeira “Carro De Boi”, de Cacaso e Maurício Tapajós (“Que vontade eu tenho de sair/ Num carro de boi ir por aí/ Estrada de terra que/ Só me leva, só me leva/ Nunca mais me traz”) casa-se com a inicial “Fazenda” seja na ludicidade ou na sonoridade ao estilo de cantiga sertaneja. Mas tem também a jazzística e comovente “Viver de Amor”, em que novamente Ronaldo, desta vez em parceria com o excepcional Toninho Horta, compõem para a voz cristalina de Milton uma das canções românticas mais marcantes de toda a discografia brasileira. Ronaldo, múltiplo, também tira da cartola mais uma vez com Milton outra joia do disco, que é o samba-jongo “Circo Marimbondo”. Assim como Milton, de ouvido tão absoluto quanto sensível, fizera ao contar com a voz de Alaíde Costa para cantar com ele "Me Deixa em Paz" em “Clube da Esquina”, aqui ele vai na fonte mais inequívoca para este tipo de proposta musical que une África e Brasil: Clementina de Jesus. Na percussão, além de Robertinho no tamborim e surdo, também outros craques da “cozinha”: Chico Batera, no agogô; Mestre Marçal, cuíca; Elizeu e Lima, repique; e Georgiana de Moraes, afochê. E que delícia ouvir o canto anasalado e potente da deusa Quelé acompanhada pelo coro de Tavinho, Miúcha, Chico, Georgiana, Cafi, Fernando, Bebel, Ronaldo, Bituca, Vitória, Toninho e toda a patota! 

Para encerrar? A música que conjuga o primeiro e o segundo disco, o corpo e o espírito: “Minas Geraes”. O violão carregado de traços étnico-culturais de Milton, sua voz que escapa do peito emoldurando-se ao vento, a docilidade das madeiras, a singeleza do toque do bandolim. Clementina, em melismas, embeleza ainda mais a canção, lindamente orquestrada por Francis Hime – outro novo amigo cooptado por Milton da turma de Chico. Tudo converge para um final emocionante, que, como os próprios versos dizem, saem do “coração aberto em vento”: “Por toda a eternidade/ Com o coração doendo/ De tanta felicidade/ Todas as canções inutilmente/ Todas as canções eternamente/ Jogos de criar sorte e azar”. 

Ouvindo-se “Minas” e “Gerais”, duas obras não somente maduras como altamente densas, simbólicas e encarnadas, é impossível não ser fisgado pelo mistério da música de Milton Nascimento. Encantamento que remete ao mistério da criação, o mistério da vida. Wayne Shorter, parceiro de Milton e mutuamente admirador, quando perguntado sobre esta esfinge que é a obra do amigo, diz: “Bem, ouça você mesmo, pois não há palavras para descrever. Apenas sinta”. Milton, que completa 80 anos de vida sobre o mundo, o seu mundo, é tudo isso: uma força da natureza. Ele é mais do que música: é som em estado puro. É mais que tempo: é a harmonia do espaço. 

Milton é mais do que homem: é pedra. Eterna.

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É impressionante perceber hoje, em retrospectiva, que o encontro de dois gênios da música brasileira se deu exatamente na época deste trabalho. Depois de aberta a porteira da fazenda de Milton para Chico, só vieram coisas lindas. Além de parcerias nos anos subsequentes - inclusive no célebre "Clube da Esquina 2", de 1978 - naquele mesmo ano de 1976 os dois se reuniriam para gravar o compacto "Milton & Chico", lançado oficialmente um ano depois. Incluído em "Geraes" na versão para CD, esta gravação clássica dos dois traz duas faixas: a melancólica "Primeiro de Maio", que denuncia a vida oprimida do trabalhador brasileiro no feriado dedicado a ele, e "O Cio da Terra", também combativa e ligada ao trabalhador, mas do campo, que se tornaria uma das canções emblemáticas do repertório tanto de Chico quanto de Milton.

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FAIXAS:
1. "Fazenda" (Nelson Angelo) - 2:40
2. "Calix Bento"(Folclore popular - Adap.: Tavinho Moura) - 3:30
3. "Volver a los 17" - com Mercedes Sosa (Violeta Parra) - 5:10
4. "Menino" (Milton Nascimento/ Ronaldo Bastos) - 2:47
5. "O Que Será (À Flor da Pele)" - com Chico Buarque (Chico Buarque) - 4:10
6. "Carro de Boi" (Maurício Tapajós/ Cacaso) - 3:40
7. "Caldera (instrumental)" - com Grupo Agua (Nelson Araya) - 4:25
8. "Promessas do Sol" - com Grupo Agua (Milton Nascimento/ Fernando Brant) - 5:00
9. "Viver de Amor" (Toninho Horta/ Ronaldo Bastos) - 2:34
10. "A Lua Girou" (Milton Nascimento) - 3:42
11. "Circo Marimbondo" - com Clementina de Jesus (Milton Nascimento/ Ronaldo Bastos) - 2:55
12. "Minas Geraes" com Grupo Agua e Clementina de Jesus (Novelli/ Ronaldo Bastos) - 5:13

Faixas bônus da versão em CD:
13. "Primeiro De Maio" - com Chico Buarque (Milton Nascimento/ Chico Buarque) - 4:46
14. "O Cio Da Terra" - com Chico Buarque (Milton Nascimento/ Chico Buarque) - 3:48


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OUÇA O DISCO
Milton Nascimento - "Geraes" 


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

"Bacurau", de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles (2019)



Sei que praticamente tudo já foi dito sobre "Bacurau", mas queria registrar aqui, como amante do cinema, uma enorme satisfação em ver, de novo, um filme brasileiro figurando com destaque, sendo reconhecido e premiado em festivais internacionais, especialmente em Cannes onde o Brasil já brilhara em outras oportunidades com obras de arte como "O Cangaceiro", que em 1953 levava o  prêmio de melhor filme de aventura, com "O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro", que rendeu o prêmio de direção a Glauber Rocha, em 1969, e "O Pagador de Promessas" que desbancou, entre outros, "O Anjo Exterminador", de Buñuel, para ficar com a Palma de Ouro em 1962, voltando à evidência agora com um filme tão oportuno e relevante, e que resgata com dignidade diversos elementos da tradição cinematográfica brasileira.
"Bacurau" é uma resposta em forma de arte aos ataques, restrições, limitações, cortes que a cultura brasileira  vem sofrendo desde a vigência do atual governo e, como se não  bastasse o "desaforo", a afronta, para não cair no vazio ou na desimportância, ainda ganha os holofotes do mundo e não passa despercebida. Meio faroeste, meio drama, meio suspense, meio policial, e até meio terror, o filme dos pernambucanos Juliano Dornelles e Kleber Mendonça Filho é construído pacientemente inserindo aos poucos elementos que vão nos elucidando a verdadeira trama, contando para isso com uma excelente  fotografia, uma trilha sonora precisa e atuações impecáveis, com destaque para o atemorizante Lunga, vivido por Silvero Pereira e para a brilhante Sônia Braga, como a médica alcoólatra Domingas.
"Bacurau" é um posicionamento diante da postura entreguista e lambe cu do atual governo brasileiro perante os norte-americanos, um grito de resistência, um brado retumbante. Uma declaração: nós não vamos nos entregar facilmente.
Em "Bacurau", a população do minúsculo povoado que dá nome ao filme e que, assim, do nada, some do mapa, se vê ameaçada diante da atuação de estrangeiros que vão à região com a intenção de caçar os cidadãos do lugar, por mero esporte, entretenimento, com a anuência do prefeito local, simplesmente porque quem vive ali, para eles não faz a menor diferença no mundo e sequer é gente. Mas no fundo a coisa não é tão simples assim, pois, como podemos observar no filme, a região que já fora um rico pólo aquífero, inclusive sediando uma barragem,  naqueles dias vive uma deplorável crise de abastecimento de água. Triste "semelhança" com um país que se submete a capacho, entregando suas riquezas de mão  beijada para os gringos por sua eterna síndrome de vira-lata e também, na verdade, por outros tantos interesses escusos.
"Bacurau" é Glauber, é Lima Barreto, é Nelson Pereira, Anselmo Duarte, Guimarães Rosa, é Portinari, é Lampião, é Canudos... "Bacurau" resgata o que o brasileiro realmente tem de melhor em arte e o que tem de mais forte em atitude. Se seu final sombrio, diante da revelação de que aquilo tudo é só o começo, nos faz vislumbrar tempos penosos, por outro lado nos estimula a buscar lá no fundo o espírito de luta e coragem que sempre guiou essa gente e, de certa forma, nos encorajam a afirmar, diante da ameaça do inimigo: "Podem vir. Estaremos prontos".
A comunidade reage. "Aqui, não!"
(muito Glauber essa cena)





por Cly Reis

segunda-feira, 6 de julho de 2020

Zé Leonardo Matraga Villar


Villar vivendo seu maior personagem:
Zé do Burro, de "O Pagador
de Promessas"
Sempre quando falo de grandes atuações do cinema, lembro-me de Leonardo Villar. Assim como Giulieta, Brando, Marília, Toshiro, De Niro, Pacino, Emil ou Lorre, o ator brasileiro é dos que foram além do convencional. Aqueles atores cujas atuações são dignas de entrar para o registro dos exemplos mais altos da arte de atuar. Sabe quando se quer referenciar a alguma atuação histórica? Brando em “O Poderoso Chefão”, Michel Simon  em “Boudu Salvo das Águas”, Giulieta em “A Estrada da Vida”? Pois Leonardo Villar fez isso não uma, mas duas vezes – e numa diferença de 5 anos entre uma realização e outra.

Primeiro, em 1960, ao encarnar Zé do Burro, o tocante personagem de Dias Gomes deO Pagador de Promessas, o filme premiado em Cannes de Anselmo Duarte (na opinião deste que vos escreve, o melhor filme brasileiro de todos os tempos). Na mesma década, em 1965, quando vestiu a pele a perigo de Augusto Matraga, do igualmente célebre A Hora e a Vez de Augusto Matraga, de certamente o melhor filme do craque Roberto Santos rodado sobre a obra de Guimarães Rosa. Dois filmes que, soberbamente bem realizados (“O Pagador...” é daqueles que considero perfeitos em todos os aspectos), não o seriam tanto não fosse a presença de Villar na concepção e realização dos personagens centrais das duas histórias. Ainda, personagens literários que, embora a riqueza atribuída por seus brilhantes autores, são - até por conta desta riqueza, o que resulta-lhes em complexos de construir em audiovisual - desafios para o ator. Desafios enfrentados com louvor por Villar.

Augusto Matraga: 5 anos depois, o ator realizava outra
atuação história no filme de Roberto Santos
Talvez por não ser ator, mas amar cinema, sou arrebatado pela arte do ator. Por óbvio, mais do que outros elementos como a fotografia, a trilha sonora ou a edição, a atuação é o que geralmente me mais faz associar a ideia de um filme, a que mais me faz lembrá-lo como obra. A concepção de um personagem, algo tão técnico quanto sensível e, por vezes mágico, é-me o grande mistério do cinema o qual perscruto o utópico entendimento sabendo, pois utópico, nunca chegar. Por isso, quanto mais vejo, mais me fascino.

Existem vários atores de grande capacidade e inúmeras atuações bem realizadas. Mas daquelas que simbolizam a arte cênica, são poucos. Poucos capazes de gerar tamanha empatia (seja amor, raiva, dó, asco, tesão, piedade ou o que for cabível despertar nessa relação imagético-real provocada pelo cinema) numa obra artística de pouco menos de duas horas de duração. Quando ator e personagem homogeneízam-se. A pessoa e a ideia, o real e a ficção. Tão raro quando isso ocorre, que não é errado pensarmos que estamos diante de um milagre. Por isso, perdas como essa devem ser, se não lamentadas, registradas. O momento em que perdemos Zé do Burro e Augusto Matraga. Aliás, Leonardo Villar e Leonardo Villar.


Leonardo Villar
(1923-2020)

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"O Pagador de Promessas" (1960)


"A Hora e a Vez de Augusto Matraga" - parte 1 e 2 (1966)
 


Daniel Rodrigues


quinta-feira, 3 de junho de 2021

"Cem Anos de Solidão", de Gabriel Garcia Márquez - ed. Record (1996)

 



"Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento,
o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota
em que seu pai o levou para conhecer o gelo.
Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara,
construídas à margem de um rio de águas diáfanas
que se precipitavam por um lei­to de pedras polidas, brancas e enormes
como ovos pré-históricos.
O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome
e para mencioná-las se precisava apontar com o dedo. (...)"
Frases iniciais de 
"Cem Anos de Solidão"


Me deparei há algum tempo atrás, na Internet, com duas curiosidades a respeito de "Cem Anos de Solidão" que me chamaram atenção e que, de certa forma, tem muito a ver com minha relação com esta obra. Uma delas é que uma pesquisa mostrava que "Cem Anos de Solidão" , publicado originalmente em 1967, era um livros que as pessoas mais mentem sobre terem lido, provavelmente para exibir algum status intelectual, mostrar boa bibliografia ou não sentir-se diminuído em uma discussão, dentro de determinado círculo ou diante de alguém que, eventualmente, venha a pôr à prova sua bagagem cultural.

Diante do resultado da pesquisa, já seria desconfiável se eu dissesse que li uma vez a obra-prima de Gabriel Garcia Márquez,  mas  mesmo correndo o risco de que duvidem de minha afirmação, uma vez que o número ao qual me referirei é, por muitos considerado uma quantia de mentirosos, devo dizer que, não apenas li, como o fiz sete vezes. Verdade! Juro!

Ah, não tem como resistir àquele início, àquelas primeiras frases! O que me leva à segunda curiosidade sobre a obra: outra lista, citava 10 ou 15 melhores, maiores, mais marcantes inícios de livro de todos os tempos. Estava lá o impactante começo de  "A Metamosfose" de Kafka, ("Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraça e, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas, no topo de qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha ..."); a inconfundível introdução de "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa ("Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvores no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade ..."); e, é claro, entre outros, o de "Cem Anos de Solidão". Se eu pegar esse livro e ler o primeiro parágrafo, eu, praticamente, não tenho como parar. Vou acabar lendo inteiro, de novo. Por sinal, quase aconteceu, de novo, agora, quando o folheei para refrescar a memória sobre algumas passagens e personagens. O que nos leva de volta à primeiro curiosidade.

A edição que tenho em casa, além de tudo,
tem belíssimas ilustrações do artista plástico
platino-brasileiro Carybé
Quem lê uma vez, precisa estar de novo em contato com aqueles personagens, aquele lugar, aqueles acontecimentos, reviver aquelas passagens. O colombiano, Nobel de Literatura, com muita sagacidade, concebe uma alegoria da formação da América Latina utilizando-se com criatividade e sutileza dos elementos intrínsecos aos nossos povos para montar um romance épico familiar inigualável. Estão presentes ali a valentia, a beligerância, o sangue-quente que serve para a batalha mas também para o amor, a sensualidade, a passionalidade, o respeito às tradições, o misticismo, e até a ingenuidade e uma certa inocência que, se fizeram de nós povos solícitos, receptivos,  hospitaleiros, mas também, muitas vezes facilmente engambeláveis. Simbolizada pela família Buendía, cujos nomes dos homens se assemelham, se ramificam e se repetem numa árvore-genealógica labiríntica, as características dos latino-americanos são desenhadas em cada personagem com traços mágicos e apaixonantes como a bravura irrefreável de Aureliano Buendía, persistente até o último  momento, mesmo diante de um pelotão de fuzilamento; a liderança mobilizadora de José Arcadio Segundo; a força e o apetite sexual de José Arcadio; a beleza hipnótica de Remédios, a bela, que levava os homens, literalmente, à loucura e até mesmo à morte, contrastando com sua pureza e inocência infantil; a experiência e sabedoria da anciã Úrsula, que mesmo depois de perder a visão conhecia o lugar de cada coisa na casa, dentre tantos outros pormenores que o autor desenvolve magnificamente, repletos de elementos simbólicos, ao longo da trajetória daquela casta.

Além disso, o autor nos apresenta figuras riquíssimas sobre os elementos de formação e desenvolvimento do continente com a dose certa de teor crítico e potencial reflexivo, tal como as contendas políticas e o surgimento de regimes autoritários; o galeão espanhol descoberto em expedição, muito além dos limites de Macondo, revelando-lhes, quase como uma nave extraterrestre seria para nós, que, para eles, eram os deuses navegadores; ou ainda exploração americana, simbolizada na Companhia Bananeira e na misteriosa chuva torrencial que, convenientemente, começa após a greve e ao massacre de funcionários na estação de trem, e que dura por anos impedindo investigações, persistindo até o fato ser esquecido. Isso tudo sem falar nos elementos "visuais" fascinantes, como as borboletas amarelas do apaixonado Maurício Babilônia, o tapete voador dos ciganos e outras "tecnologias" que encantavam os moradores do povoado; os peixinhos dourados do Coronel Aureliano, os bilhetes com o nome de cada coisa para que as pessoas não esquecessem os mais corriqueiros objetos e suas utilidades, na época da Peste da Insônia; a imagem do patriarca e fundador de Macondo, José Arcadio Buendía, já senil, amarrado a uma árvore atormentado pelo fantasma do homem que matara; e as altamente metafóricas formigas vermelhas que levam o último Buendía, extinguindo a extirpe e aquele povoado. Nessa parte, ainda nas últimas vezes, mesmo já conhecendo o livro de cabo a rabo, e mesmo depois de tantas releituras, não é incomum chegar à última página com os olhos cheios d'água.

Se "Cem Anos de Solidão" figura nestas duas curiosas listas, uma outra na qual é mais comum encontrá-lo, com muita justiça, por sinal, é a de melhores livros de todos os tempos. O que, nesse caso, não representa nenhuma surpresa. Quem já leu, provavelmente, não terá dúvidas em colocá-lo lá. Mas só quem já leu mesmo. Não vale mentir.


Cly Reis 

segunda-feira, 15 de julho de 2019

Airto Moreira - "Seeds of the Ground" ou "The Natural Sounds of Airto" (1971)



Capa original, de 1971, e a da reedição
em CD, de 1994
“Airto tem um curto período de tempo [nos Estados Unidos] e já tem um impacto importante aqui. Sua influência, expressões criativas e sons inovadores têm sido fortemente sentidos por muitos de nossos principais músicos. O som único de Airto beneficia-se fortemente da compreensão da necessidade de melhores métodos de comunicação – uma necessidade que ele sente que pode ser respondida através da música”. 
Bob Small, produtor musical

A virada dos anos 60 para os 70 foi um momento especialmente frutífero para músicos brasileiros no mercado internacional. Após uma primeira leva de compositores, cantores, instrumentistas e arranjadores descobertos pelos gringos por conta da bossa-nova, vários outros aproveitaram o prestígio já estabelecido da musica brasileira no exterior para abrir novas frentes. O principal destino: Estados Unidos. É quando talentos como Hermeto Pascoal, Dom Um Romão, João Donato e Eumir Deodato, entre outros, partem de mala e cuia para residir naquele que é maior mercado da música no mundo.

Caso de Airto Moreira. O já experiente percussionista catarinense, que, no Brasil, havia integrado os célebres trios Sambalanço (com César Camargo Mariano e Humberto Cláiber) e Sambrasa – ao lado de Hermeto e Cláiber –, além do igualmente icônico Quarteto Novo – novamente ao lado do “Bruxo”, mas também contando com Theo de Barros e Heraldo do Monte. Em 1967, participa do III Festival de Música Popular Brasileira, acompanhando Edu Lobo e Marília Medalha na interpretação da vencedora "Ponteio", a qual coassina com Edu o arranjo. Êxitos obtidos, o negócio era, agora, alçar outros voos.

Dono de um tempo rítmico que abarcava a sutiliza harmônica da bossa nova ao arrojo do jazz moderno, Airto, já em terras yankees, foi impulsionado definitivamente no disputado meio do jazz com a participação no referencial “Bitches Brew”, de Miles Davis, em 1969. Foi em apenas uma faixa (“Feio”), mas o suficiente para pô-lo no rol dos músicos da primeira linha. Tanto é que, um ano depois, veio o primeiro disco solo: “Natural Feelings”, pela Buddah Records, uma joia do jazz fusion com a cara daquilo que só um artista brasileiro é capaz de conceber mesmo longe de casa. Tão melhor que o álbum de estreia, no entanto, é “Seeds of the Ground”, de 1971, onde Airto, acompanhado do inseparável Hermeto (piano, teclados, violão e flauta), responsável pelas composições e arranjos, da magnífica Flora Purim aos vocais, do mago do baixo acústico Ron Carter e a maestria de Sivuca (violão e acordeom), deságua toda a sua inventividade enraizada na cultura brasileira mas conectada com a vanguarda internacional. E ali eram o lugar e a hora perfeitas para deixar fluir esta nova música.

“Andei”, que abre “Seeds...” (também intitulado como "The Natural Sounds of Airto"), deixa bem clara a proposta. Trata-se de um baião nordestino, que inicia com o som característico do Brasil: o de um berimbau. Em seguida, a potente bateria de Airto entra, carregando consigo toda a banda e os próprios vocalizes, formando uma sonoridade cheia e quase funkeada. O baixo de Ron, brasileiríssimo, dialoga com o berimbau. Ainda, a flauta de Hermeto completa a intensa atmosfera com aqueles solos que somente ele sabe extrair. Um “cartão de visitas” irrepreensível. Além disso, como classificar uma peça ímpar como esta? Um baião-fusion? Um brazilian-groove? Ou um ethnic-funk? É o talento do músico brasileiro dando um nó no sempre tão inovador jazz.

A incrível “O Sonho” traz pela primeira vez no disco a voz de Flora, esposa de Airto. A abertura onírica e dissonante, que remete ao abstratismo de Gil Melle e Don Cherry, logo se resolve em um jazz modal em que Airto e Hermeto estão especialmente afinados, um na bateria e o outro no piano elétrico – este último que, aliás, manda ver num longo e inspirado improviso. E Flora, então?! Que performance! Sua voz desenha com naturalidade a complexa e variante linha melódica, mudando de escalas e tons e, principalmente, dando unidade a este devaneio sonoro. Além de tudo isso, Flora ainda inventa de soltar gritos e sussurros pra lá de sensuais ao final da faixa. Caramba! De arrepiar.

Airto como a esposa e cantora Flora Purim e o parceiro
Hermeto: união de craques da música brasileira nos EUA
Na sequência, vem a bucólica e soturna “Uri”, que, pela atmosfera sertaneja e idílica, bem poderia compor a trilha de algum filme ou peça teatral baseada em uma obra da Guimarães Rosa. O violão sustenta a base, enquanto Airto intercala diversos instrumentos de percussão (chocalhos, tímpano, temple block e outros). A voz do coautor Googie e a de Flora, especialmente, que vai do agudo ao grave num lance, convivem com contracantos, gritos e vocalizes. Outro craque brasileiro vivendo na terra de Charlie Parker, Sivuca, em uma de suas participações, solta notas densas do acordeom, ampliando o clima sombrio e contemplativo. Mais uma mostra da contribuição sui genneris do Brasil para a música moderna que se produzia no exterior àqueles idos.

O baião aparece novamente em “Papo Furado”, em que Airto, brilhante na instrumentalização da percussão junto com outro ilustre convidado, Dom Um Romão, divide vocais com Hermeto, este, segurando todas no violão. O mesmo pode-se dizer de Carter, que parece ter vestido gibão e entrado no forró. A romântica “Juntos”, noutro clima, exige mais uma vez de Flora habilidades vocais – as quais ela, claro, mostra dominar totalmente dado a grande cantora que é. O tom baixo, que pede cuidado na afinação, dá um charme todo especial ao número, o qual conta, como em “Andei”, com o solo de flauta de Hermeto. Uma febril balada jazz, que faz remeter a Sarah Vaughan dos anos de Columbia.

“Seeds...” encerra com duas versões de “O Galho da Roseira”, composição de Hermeto originalmente de 1941, que era cantada por seus pais durante os trabalhos da roça em sua infância no interior de Alagoas. Porém, não se trata apenas de dois takes lançados ao final do disco com pequenas diferenças entre si, haja vista que ficam quase irreconhecíveis de uma para a outra. A parte 1, bem fiel à estrutura original – visto que arranjada pelo próprio Hermeto –, traz já de início o acordeom de Sivuca em solfejos serenos junto com as vozes de Hermeto e Flora. Até que, então, entra o restante do time, com Ron impressionando em suas modulações típicas no braço do baixo, Dom Um diversificando as texturas (sinos, chocalho, reco-reco, temple block) e Hermeto fazendo suas “bruxarias”, como transformar um violão em rabeca. Mas em termos de violão, a criatividade da turma não para por aí, porque contam com as mãos mágicas de Sivuca, que larga a gaita para pegar a viola caipira, num dos solos mais brilhantes do disco. Hermeto, no entanto, não fica atrás em um novo improviso, agora, no eletric harpsichord, articulando um momento modal ao tema tipicamente rural.

“O Galho...”, que recebeu da crítica o título de uma das melhores de 1971, ganha, na versão 2, caráter de um típico jazz fusion, como o que Airto contribuiria a partir daquele ano na banda Return to Forever ao acompanhar o pianista norte-americano Chick Corea em um de seus melhores momentos da carreira. Airto, como na faixa anterior, deixa tudo para os companheiros Ron, Hermeto, Sivuca e Dom Um, que se soltam, fechando o disco com uma pegada mais jazzística impossível.

Depois de “Seeds...”, vieram outros projetos de prestígio de Airto, a contratação pelo cultuado selo CTI, a participação na legendária Weather Report e a formação de uma nova banda. Bastante ativo nas décadas seguintes e ainda hoje vivendo nos Estados Unidos, Airto virou, merecidamente, uma lenda do calibre de Wayne Shorter, Herbie Hancock, Stanley Clarke, Keith Jarrett, George Benson, Jaco Pastorius e George Duke, parceiros com quem tocou. Mas o fato é que, por obra natural do destino, a fenomenal banda responsável por “Seeds...” nunca mais voltou a tocar junta. Isso faz com que o disco ganhe ainda mais importância por ter registrado um momento especial da música brasileira em que esta nada devia a qualquer outra que estivesse sendo produzida àquela época. Pelo contrário: estava dando exemplo e ensinando ao mundo um pouco de ginga, que só um brasileiro é capaz de oferecer.

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FAIXAS:
1. Andei (I Walked) - 2:40 
2. O Sonho (Moon Dreams) - 7:45 (Ray Evans/ Jay Livingston)
3. Uri (Wind) - 6:10 
4. Papo Furado (Jive Talking) - 3:29 
5. Juntos (We Love) - 3:22 (Hermeto/ Flora Purim)
6. O Galho Da Roseira (The Branches Of The Rose Tree) - 7:54
7. O Galho Da Roseira (The Branches Of The Rose Tree) Part II - 8:21
Todas as composições de autoria de Hermeto Pascoal, exceto indicadas

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OUÇA O DISCO:
Airto Moreira - "Seeds of the Ground"

Daniel Rodrigues

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Minhas 5 atuações preferidas do cinema

Brando: imbatível
Recebi do meu amigo e colega de ACCIRS Matheus Pannebecker o convite para participar de uma seção do seu adorável e respeitado blog Cinema e Argumento. A missão: escolher três atuações que me marcaram no cinema. Ora: pedir isso para um cinéfilo que adora elaborar listas é covardia! Claro, que topei. Não só aceitei como, agora, posteriormente à publicação do blog de Matheus, amplio um pouquinho a mesma listagem para compor esta nova postagem. Não três atuações inesquecíveis, mas cinco. 

Obviamente que ficou de fora MUITA coisa digna desta mesma seleção: Michel Simon em “Boudu Salvo das Águas” (Jean Renoir, 1932), Lima Duarte em “Sargento Getúlio” (Hermano Penna, 1983); Steve McQueen em “Papillon” (Franklin J. Schaffner, 1973); Marília Pêra em “Pixote: A Lei do Mais Fraco” (Hector Babenco, 1981); Toshiro Mifune em “Trono Manchado de Sangue” (Akira Kurosawa, 1957); Klaus Kinski em “Aguirre: A Cólera dos Deuses” (Werner Herzog, 1972); Fernanda Montenegro em “Central do Brasil” (Walter Salles Jr,, 1998); Dustin Hoffman em “Lenny” (Bob Fosse, 1974); Sharon Stone em “Instinto Selvagem” (Paul Verhoven, 1992); Al Pacino em “O Poderoso Chefão 2” (Francis Ford Coppola, 1974)... Ih, seriam muitos os merecedores. Mas fiquemos nestes cinco, escolhidos muito mais com o coração do que com a razão.

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Marlon Brando
“O Poderoso Chefão" (Francis Ford Coppola, 1972)
Há momentos na história da humanidade que a arte sublima. É como um milagre, uma mágica. Isso, não raro, provêm dos grandes gênios que o planeta um dia recebeu. Sabe Jimi Hendrix tocando os primeiros acordes de “Little Wing”? Pelé engendrando o passe para o gol de Torres em 70? A fúria do inconcebível de Picasso para pintar a Guernica? A elevação máxima da arte musical da quarta parte da Nona de Beethoven? Na arte do cinema este posto está reservado a Marlon Brando quando atua em “O Poderoso Chefão”. Assim como se diz que nunca mais haverá um Pelé ou um Hendrix ou um Picasso, esse aforismo cabe a Brando que, afora outras diversas atuações dignas de memória, como Vito Corleone atingiu o máximo que uma pessoa da arte de interpretar pode chegar. Actors Studio na veia, mas também coração, intuição, sentimento. Tão assombrosa é a caracterização de um senhor velho e manipulador no filme de Coppola que é quase possível se esquecer que, naquele mesmo ano de 1972, Brando filmava para Bertolucci (em outra atuação brilhante) o sofrido e patológico Paul, homem bem mais jovem e ferinamente sensual. Pois é: tratava-se, sim, da mesma pessoa. Aliás, pensando bem, não eram a mesma pessoa. Um era Marlon Brando e o outro era Marlon Brando.

cena inicial de "O Poderoso Chefão"



Giulieta Masina
“A Estrada da Vida” (Federico Fellino, 1954)
“A Estrada da Vida” é sem dúvida um dos grandes filmes de Federico Fellini. Sensível, tocante e levemente fantástico. Nem a narrativa linear e de forte influência neo-realista – as quais o diretor foi se afastando cada vez mais no decorrer de sua carreira em direção a uma linguagem mais poético e surrealista – destaca-se mais do que considero o ponto alto do filme: as interpretações. À época, Fellini se aventurava mais nos palcos de teatro e nas telas, basta lembrar do lidíssimo papel de “deus” no episódio dirigido pelo colega Roberto Rosselini no filme “O Amor” (1948). Talvez por essa simbiose, e por ter contado com o talento de dois dos maiores atores da história, Anthony Quinn (maravilhoso como Zampano) e, principalmente, da esposa e parceira Giulieta Masina na linha de frente, “A Estrada da Vida” seja daquelas obras de cinema que podem ser considerados “filme de ator”. Considero Gelsomina a melhor personagem do cinema italiano, o que significa muita coisa em se tratando de uma escola cinematográfica tão vasta e rica. Não se trata de uma simplória visão beata, mas o filme nos põe a refletir que encontramos pessoas assim ao longo de nossas vidas e, às vezes, nem paramos para enxergar o quanto há de divino numa criatura como a personagem vivida por Giulieta. Reflito sobre a passagem de Jesus pela Terra, e o impacto que sua presença causava nas pessoas e o que significava a elas. Se ele não era “deus”, era, sim uma pessoa valorosa entre a massa de medíocres e medianos. Gelsomina, com sua pureza e beleza interior quase absurdas, parece carregar um sentimento infinito que poucas pessoas que baixam por estas bandas podem ter – ou permitem-se. E é justamente essa incongruência que, assim como com Jesus, torna impossível a manutenção de suas vidas de forma harmoniosa neste mundo tão errado. Tenho certeza que foi por esta ideia que moveu Caetano Veloso a escrever em sua bela canção-homenagem à atriz italiana, “aquela cara é o coração de Jesus”.

cena de "A Estrada da Vida"



Leonardo Villar
“O Pagador de Promessas” (Anselmo Duarte, 1960)
Sempre quando falo de grandes atuações do cinema, lembro-me de Leonardo Villar. Assim como Giulieta, Brando, Marília, Toshiro, De Niro, Pacino, Emil ou Lorre, o ator brasileiro é dos que foram além do convencional. Aqueles atores cujas atuações são dignas de entrar para o registro dos exemplos mais altos da arte de atuar. Sabe quando se quer referenciar a alguma atuação histórica? Pois Leonardo Villar fez isso não uma, mas duas vezes – e numa diferença de 5 anos entre uma realização e outra. Primeiro, em 1960, ao encarnar Zé do Burro, o tocante personagem de Dias Gomes de “O Pagador de Promessas”, o filme premiado em Cannes de Anselmo Duarte (na opinião deste que vos escreve, o melhor filme brasileiro de todos os tempos). Na mesma década, em 1965, quando vestiu a pele de Augusto Matraga, do igualmente célebre “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”, de certamente o melhor filme do craque Roberto Santos rodado sobre a obra de Guimarães Rosa. Dois filmes que, soberbamente bem realizados não o seriam tanto não fosse a presença de Villar na concepção e realização dos personagens centrais das duas histórias. Ainda, personagens literários que, embora a riqueza atribuída por seus brilhantes autores, são - até por conta desta riqueza, o que lhes resulta em complexos de construir em audiovisual - desafios para o ator. Desafios enfrentados com louvor por Villar.

cena de "O Pagador de Promessas"



Emil Jannings
"A Última Gargalhada" (F. W. Murnau, de 1924)
Falar de Emil Jannings é provocar um misto de revolta e admiração. Revolta, porque, como poucos artistas consagrados de sua época, ele foi abertamente favorável ao nazismo, tendo sido apelidado pelo próprio Joseph Goebbels como o "O Artista do Estado". Com o fim da Guerra, nem o Oscar que ganhou em Hollywood em 1928 por “Tentação da Carne”, o primeiro da Melhor Ator da história, lhe assegurou salvo-conduto no circuito cinematográfico, do qual foi justificadamente banido.  Porém, é impossível não se embasbacar com tamanho talento para atuar. O que o ator suíço faz em “A Última Gargalhada”, clássico expressionista de F. W. Murnau, de 1924 é digno das maiores de todo o cinema. Que personagem forte e cheio de nuanças! A expressividade teatral, comum às interpretações do cinema mudo, são condensadas pelo ator numa atuação que se vale deste exagero dramatúrgico a favor da construção convincente de um personagem inocente e puro de coração. Com apenas 40 anos Jannings, que alimentava pensamentos fascistas, transfigura-se num idoso bonachão e humano. E tudo isso sem “pronunciar” nenhuma palavra sequer! Joseph Von Steiberg ainda o faria protagonizar um outro grande longa alemão, o revolucionário “O Anjo Azul”, em que contracena com a então jovem diva Marlene Dietrich, mas a mácula nazi não o deixaria alçar mais do que isso. Para Jennings, a última gargalhada foi dada cedo demais.

cena de "A Última Gargalhada"



Robert De Niro
"Touro Indomável" (Martin Scorsese, 1980)
Têm atuações em cinema que excedem o simples exercício da arte dramática, visto que representam igualmente uma prova de vida. Foi o que Robert De Niro proporcionou ao interpretar, em 1980, o pugilista ítalo-americano Jake LaMotta (1922-2017) em “Touro Indomável”, de Martin Scorsese. Desiludido com os fracassos que vinha acumulando desde o sucesso de crítica “Taxi Driver”, de 4 anos antes, o cineasta só vinha piorando a depressão com o uso desenfreado de cocaína. Somente uma coisa podia lhe salvar. A arte? Não, os amigos. De Niro, a quem Scorsese havia confessado que não iria mais rodar jamais na vida, convenceu-o a aceitar pegar um “último” projeto, que contaria a biografia do “vida loka” LaMotta. Claro, o ator, parceiro de outros três projetos anteriores de Scorsese, se responsabilizaria pelo personagem principal. Por sorte, o destino provou a Scorsese que ele estava errado em sua avaliação negativa e o recuperou para nunca mais parar de filmar. “Touro...”, uma das principais obras-primas da história cinema, é não só o melhor filme do diretor quanto a mais acachapante das atuações de De Niro. As “tabelinhas” dele com Joe Pesci, a qual o trio repetiria a dose nos ótimos “Os Bons Companheiros” e “Cassino”, começaram ali. Prova da capacidade de mergulho de um ator no corpo de um personagem, De Niro vai do físico de atleta, parecendo muito maior do que ele é de verdade, à obesidade de um homem decadente e alcoólatra. Fora isso, ainda tem a tal cena de quando LaMotta é preso em que, numa crise de fúria, ele esmurra a parede da cela, cena na qual De Niro, tão dentro do personagem, de fato quebra a mão.“Eu não sou um animal!”, bradava. Eu diria que é, sim: um “cavalo”, daqueles de santo que recebem dentro de si entidades.

cena de "Touro Indomável"


Daniel Rodrigues

quarta-feira, 19 de junho de 2024

Chico Buarque - "As Cidades" (1998)

 

"
O Brasil é capaz de produzir um Chico Buarque. Seu talento, seu rigor, sua elegância, sua discrição são tesouro nosso. Amo-o como amo o mundo, o nosso mundo real e único, com a complicada verdade das pessoas. Tudo está na dicção límpida de Chico."
Caetano Veloso

E Chico chega aos 80. Mais do que somente um aniversário ou uma mera contagem numérica, o fato de ser ele, Chico, a completar oito décadas de vida, diz muito sobre o Brasil. Um Brasil que, em algum momento, contrariando todas as expectativas negativas e detrações, deu certo. Uma nação colonizada, saqueada e profundamente escravagista que, naqueles anos 40 de seu nascimento, urbanizava-se a duras penas. Um mero exportador de matéria-prima, de traços rurais, que cedia ao populismo e perseguia contrários (entre eles, artistas e pretos). Uma sociedade convencida da falácia da Democracia Racial. Uma terra de revoltas e levantes, oprimida ora pela Política do Café com Leite, ora pela Política da Bombacha. Um Brasil violento, homicida, aporofóbico e injusto e de senso militarista, o mesmo que se conduziu ao poder e à barbárie por tantos tempo anos mais tarde.

Mas, no meio disso tudo, nasceu Chico. Caetano, contemporâneo, disse isso com a sapiência que a admiração lhe confere: "Quando o mundo se apaixonar totalmente pelo que ele faz, terá finalmente visto o Brasil". Do mundo, não sei. O que sei é que Chico concentra tudo que há de melhor num pais continental violento e dado à desgraça, mas, talvez por isso, pela necessidade de contrapor o que se é por destino, mágico e incomparável. Chico é isso: mágico e incomparável. Seja nas obras-primas às menores, independente da fase da carreira. Há uma regularidade sublime em sua obra, tanto na literatura, no teatro ou no cinema. 

Na música, sua praia desde a adolescência (e pensar que esse admirador de Niemeyer queria ser arquiteto...), essa regularidade se expressa numa obra tão extensa quanto coesa e profundamente simbólica. Quando se fala em resistência da MPB nos Anos de Chumbo, de quem se lembra? E junto a “Coração de Estudante”, não é sempre “Vai Passar” que vem à memória quando se revive o histórico momento das “Diretas Já!”? Chico está embrenhado em nossa história como nação nestes 80 anos que vivemos junto com ele.

Em todas as épocas, Chico, seja o da “flor da idade” ou “o velho”, traduz em sua música o que há de melhor (ou de pior, traduzido da melhor forma) em nós. “As Cidades”, seu 28º álbum de estúdio, é um dos mais perfeitos exemplos. À época, já consolidado como escritor, o autor passava a cada vez mais rarear seus discos, geralmente intercalados, agora, por algum novo livro. Afora projetos esparsos, “Paratodos”, por exemplo, trabalho musical imediatamente anterior, havia 6 anos de lançamento. Neste ínterim, lançara o segundo romance, o celebrado “Benjamin”, de 1995. Assim, havia, além de grande expectativa para o que traria em um novo álbum de música, o questionamento se ele faria jus à mitologia. “Estará agora dando mais atenção à literatura?” “O homem das canções terá perdido a capacidade de inventar preciosidades como “Mulheres de Atenas” ou “Tatuagem”?” “Chico será ainda Chico?”

Resultado: 100 mil cópias vendidas. Disco de ouro. Ele provava que, sim, ainda era Chico. “As Cidades”, com arranjos e produção de Luiz Claudio Ramos e a marcante capa de Gringo Cardia, abre com a malemolente “Carioca”, uma declaração de pertencimento: "Cidade Maravilhosa, és minha". Samba sincopado marcado no piano, é uma tradução da Rio de Janeiro nada óbvia, pois abrangente, generosa, cronista. “O pregão abre o dia/ Hoje tem baile funk/ Tem samba no Flamengo/ O reverendo/ No palanque lendo/ O Apocalipse”. Música que, aliás, daria exemplo aos trabalhos subsequentes de Chico, com aberturas ou encerramentos dedicadas à sua cidade: “Subúrbio”, em “Carioca” (2006), e “As Caravanas”, de “Caravanas” (2017).

A belíssima “Iracema Voou”, de melodia delicada e letra ainda mais, redimensiona para os tempos modernos o mito indianista de José de Alencar. Que beleza da divisão e do tempo musical dos versos: “Tem saudades do Ceará/ Mas não muita”! O bonito tango rumbado “Sonhos Sonhos São” antecede a igualmente delicada “A Ostra e o Vento”, tema escrito para a trilha sonora do filme homônimo de Walter Lima Jr. de um ano antes. Uma joia. A voz infantil de Branca Lima em duo com Chico transmite a sensibilidade desta canção, capaz de fazer referências visuais ao cenário inóspito do filme, uma ilha de marinheiros apartada do mundo, e àquilo que estes elementos trazem de significado: a ostra, o afloramento da sexualidade feminina; o barco, o destino; o peixe, a fecundidade; o vento, o erotismo e a passagem do tempo.

Belezas e delicadezas são, aliás, uma marca de Chico. “Xote da Navegação”, bem posta logo em seguida de uma música tão marítima quanto sensorial, amplifica esse sensação noutra preciosidade do disco. Parceria com o maior discípulo de Luiz Gonzaga, Dominguinhos, este xote com ares de fado lusitano retraz o Nordeste profundo, denotando, como disse certa vez Tom Zé, “quão barroca é a alma sertaneja”. “Com o nome Paciência/ Vai a minha embarcação/ Pendulando como o tempo/ E tendo igual destinação/ Pra quem anda na barcaça/ Tudo, tudo passa/ Só o tempo não”. É ou não é o que de melhor uma língua viva pode oferecer – no caso, o nosso tão desvalorizado Português? Como com a faixa “Carioca”, “Xote...” serve de espelho para os próximos trabalhos que Chico faria, quando põe, a aproximadamente esta mesma etapa do repertório, o baião “Ode aos Ratos” (do disco “Carioca”), "Tipo um Baião" (de "Chico", 2011) e “Massarandupió” (de “Caravanas”).

Outra parceria histórica é com o violinista e compositor Guinga na ardente “Você, Você”, típica melodia guinguiana, de inusitados intervalos e formações de acordes, vocalises e complexa harmonia. Na letra exímia de Chico, ele manda versos interrogativos como: “Que roupa você veste, que anéis?/ Por quem você se troca?/ Que bicho feroz são seus cabelos/ Que à noite você solta?”

Se estamos falando de obras-primas, então vem outra: “Assentamento”. Extraída do projeto “Terra”, produzido por Chico juntamente com o fotógrafo Sebastião Salgado, em 1997, é certamente uma das mais preciosas canções de todo o cancioneiro buarquiano. Resgatando a atmosfera de músicas antigas suas como “Fantasia” e “O Cio da Terra”, que carregam a temática das lutas fundiárias no Brasil, bem como a literatura de Guimarães Rosa, de quem declama os versos iniciais (“Quando eu morrer, que me enterrem na beira do chapadão/ contente com minha terra/ cansado de tanta guerra/ crescido de coração”), “Assentamento” é um canto político e de esperança ao Movimento Sem-Terra. “Vamos ver a campina quando flora/ A piracema, rios contravim/ Binho, Bel, Bia, Quim/ Vamos embora”. A luta continua, companheiros.

vídeo de "Assentamento" do DVD "As Cidades Ao Vivo"

Dois belos sambas: “Injuriado”, em dueto com a irmã e referência no meio dos bambas Cristina Buarque, e outra antiga: “Aquela Mulher”, do repertório do filme “Ópera do Malandro”, de 1985, mas que, cantada à época pelo ator Edson Celulari e, logo depois, por Paulinho da Viola, nunca havia sido registrada na voz do seu próprio criador.

Mais uma fineza de música, “Cecília”, parceria com Ramos, antecede o final triunfal no chão onde Chico pisa com tanta emoção: a Estação Primeira de Mangueira. “Chão de Esmeraldas”, criada por ele e Hermínio Belo de Carvalho para o então recente projeto “Chico Buarque da Mangueira”, a música parece não só ter expressado o carinho de Chico pela escola como, pé quente em terreno brilhante, antevisto a vitória da Verde e Rosa após 11 anos no Carnaval de 1998 com Chico como tema.

Motivos para desacreditar no Brasil nestes ¾ de século não são poucos. Suicídio de Getúlio, Serra Pelada, Ditadura, facções criminosas, hiperinflação, RioCentro, roubo da taça, colarinho branco, Collor, Eldorado dos Carajás, Anões do Orçamento, Carandiru, Golpe de Dilma, Lava-Jato, Extrema-Direita, 8 de Janeiro... E o que falar de Marielle, Edson Luiz, Amarildo, Mãe Bernadete, Herzog, Stuart Angel, Chico Mendes?... Não é fácil ser brasileiro.

Mas Chico é sempre Chico. É sempre uma qualidade acima da média, a qualidade potencial de um povo. Por causa dele, “todas as nossas fantasias de autodesqualificação se anulam”, diz Caetano. Chico é a Seleção de 70, as formas de Brasília, o oxigênio da Mata Atlântica, a batida de João, o traço de Tarsila, a sintaxe do Português, o baião de Gonzaga, o batuque do terreiro, a cintura da mulata. Chico materializa aquilo que podemos ser. E como é bom ser cidadão de um povo que tem como compatriota Francisco Buarque de Hollanda! Ou pode chamá-lo somente pelo apelido, que ele é gente como a gente. Essa gente.

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FAIXAS:
1. "Carioca" - 2:43
2. "Iracema Voou" - 2:58
3. "Sonhos Sonhos São" - 3:15
4. "A Ostra E O Vento" - 3:29
5. "Xote De Navegação" (Chico Buarque, Dominguinhos) - 2:30
6. "Você, Você" (Chico Buarque, Guinga) - 2:52
7. "Assentamento" - 3:43
8. "Injuriado" - 2:29
9. "Aquela Mulher" - 2:22
10. "Cecília" (Chico Buarque, Luiz Cláudio Ramos) - 4:03
11. "Chão De Esmeraldas" (Chico Buarque, Hermínio Bello de Carvalho) - 4:03
Todas as canções de autoria de Chico Buarque, exceto indicadas

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Daniel Rodrigues