Curta no Facebook

Mostrando postagens classificadas por relevância para a consulta Drummond. Ordenar por data Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens classificadas por relevância para a consulta Drummond. Ordenar por data Mostrar todas as postagens

terça-feira, 29 de novembro de 2016

"Quando é Dia de Futebol", de Carlos Drummond de Andrade - Ed. Companhia das Letras (2014)



"Quando é Dia de Futebol", reunião de crônicas, poemas e cartas de Carlos Drummond de Andrade que tem o futebol como pano de fundo é meramente interessante. Com textos que atravessam o período de nove Copas do Mundo, começando na de 1954 na Suiça e culminando na do México em 1986, o poeta mineiro muito sutil e poeticamente vai montando uma linha de tempo político-social-antropológica do Brasil enquanto versa, muito descompromissadamente, sobre o esporte que é paixão nacional. E é essa paixão e a maneira como ela se manifesta no íntimo do brasileiro que o escritor consegue captar com rara sensibilidade. Drummond não era um grande entendedor de futebol, muito pelo contrário, fato que  mesmo humildemente admite comparando-se com outros cronistas como João Saldanha e Sérgio Cabral Sênior, ("Tenho que (...) fingir uma competência que nunca tive  e ir na retaguarda do Sandro, do Novais, do Saldanha do Cabral e outros cobras, deitando sabença especializada..."), mas talvez exatamente por essa "ignorância" técnica das especificidades do esporte dentro das quatro linhas e das particularidades de seus bastidores é que sua visão de leigo aficionado torne-se tão pura e válida. É curioso observar o crescimento do valor do futebol dentro do conceito e admiração de Drummond, uma vez que num primeiro momento vê com muita estranheza a demasiada atenção e importância que as pessoas dão a uma partida de futebol ("Não posso atinar bem como uma bola, jogada à distância, alcance tanta repercussão no centro de Minas") passando ao longo do tempo a fazer parte da massa fanática de torcedores sequiosos por mais um título para a Seleção Canarinho como na "oração" pedindo ao Velho lá de cima a posse definitiva da Jules Rimet, "Meu coração agora tá no México batendo pelos músculos de Gérson, unha de Tostão, a ronha de Pelé (...)/ Dê um jeito, meu velho, e faça com que essa taça/ com milagre ou sem ele nos pertença/ para sempre, assim seja... Do contrário/ ficará a nação melancônica/tão roubada em seu sonho e ardor/ que nem sei como feche a minha crônica".
Os poemas, de um modo geral, salvo algum que outro, não são dos mais inspirados de sua careira literária, beirando em determinados momentos à puerilidade, e muitos dos escritos pela brevidade ou pela ingenuidade futebolística são mesmo de valor discutível, mas devo admitir que os textos sobre Pelé e Garrincha são lindos bem como o da eliminação para a Itália na Copa de 82.
Compilação válida pela apresentação organizada e criteriosa desta outra faceta menos conhecida do grande escritor brasileiro, por essa sensível percepção do efeito que este jogo exerce sobre as pessoas,  mas no fim das contas nada que acrescente qualitativamente a tudo que já era conhecido e apreciado do grande mestre de Itabira. Craque ele era mas neste em "Quando É Dia De Futebol" não dá pra dizer que tenha sido um Pelé.




Cly Reis

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

“O Último Poema”, de Mirela Kruel (2015)




O documentário “O Último Poema” (2015), dirigido por Mirela Kruel, encontra na contenção sua beleza e sua força poética. O filme aborda a longa relação epistolar entre a professora gaúcha Helena Maria Balbinot Vicari e o grande poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade. Ambos se corresponderam por mais de vinte anos, sem nunca terem se conhecido pessoalmente. As cartas trocadas registram esta amizade cordial, este feliz encontro. As próprias histórias de vida vão ali se entrelaçando, em meio aos comentários sobre poesia, votos de felicidade e outras generalidades afetivas.
Hoje, é impressionante pensar na natureza desta relação, destacando-se aí, principalmente, sua extensão e sua gratuidade. Como poucos, o filme joga luz sobre a qualidade e o cultivo dos vínculos, sobre solidão e real intimidade. O que se mostra, na tela, é o avesso completo daquilo que encontramos à exaustão em nossas redes sociais, em nosso cotidiano hipermediado, aceleradíssimo e hiperexposto. Uma pergunta, neste cenário, fica no ar: entre as décadas de 1950 e 1960, eram comuns e frequentes tais práticas (tais práticas de interação entre escritor e leitor, entre público e artista)? Drummond, particularmente, era um missivista destacado? Ou surgiu, de fato, ali, um exercício singularíssimo, uma prática espantosa, na sua regularidade, na sua motivação espontânea?
Helena Maria Balbinot Vicari não era a fã chata ou a groupie inconveniente, forçando intimidade, não era o jornalista cultural, catando pauta e confidências publicáveis, não era o aprendiz de poeta, atrás de dicas e lições informais de poesia, também não era o pseudo-poeta pretensamente concorrente, não era a professora primária deslumbrada ou o crítico acadêmico, o resenhista profissional. Não cabia, exatamente, em nenhum destes papéis. Excedia cada um destes perfis. Talvez tivesse mesmo se tornado, para Drummond, o leitor ideal, motivado unicamente pelo produto e pela vivência da poesia, as emoções que guarda e encobre.
O filme de Mirela Kruel dialoga com outras produções recentes: “Sobre Sete Ondas Verdes Espumantes” (2013), de Bruno Polidoro e Cacá Nazário, dedicado à vida e à obra de Caio Fernando Abreu; “Só Dez por Cento é Mentira” (2009), “desbiografia” do poeta Manoel de Barros, dirigida por Pedro Cezar; e “Pan-Cinema Permanente” (2008), retrato visceral do poeta baiano Waly Salomão, assinado por Carlos Nader. Todos são ótimos documentários poéticos sobre poesia brasileira, moderna e contemporânea.

Mas observá-los em conjunto, reconhecer as afinidades que têm, as características que compartilham, nos permite formular uma suspeita: se, na década de 1960, a música popular se tornou um canal para a poesia brasileira, uma espécie de câmara de amplificação de nossa sensibilidade poética, dando-lhe maior trânsito e visibilidade, como tem argumentado o professor Luiz Augusto Fischer, citando o exemplo muito emblemático de Chico Buarque de Holanda, talvez hoje, por hipótese, o cinema documentário esteja assumindo este legado, esteja cumprindo não só a função de divulgar o trabalho literário de nossos poetas e de produzir os registros históricos que eles merecem, mas, acima de tudo, a função de dar vazão à inquietação poética, tornar-se poesia, num momento em que a canção popular e a vida cultural, de modo geral, no Brasil, definham.

trailer de "O Último Poema"


quinta-feira, 30 de abril de 2015

Ry Cooder - “Bop Till You Drop” (1979)




"Eu tinha tudo pronto, quando um desses incompetentes gerentes de gravadora ouviu a demo e decidiu que era uma merda de cachorro e que não valia a pena gravar, de modo que não me deixaria fazer isso. Aí então que eu a gravei [“The Very Thing That Makes You Rich (Makes Me Poor)”] em “Bop...” e, de repente, eles queriam saber quem era esse autor Sidney Bailey. Ridículo. Agora, até mesmo a gravadora não pode localizá-lo para lhe pagar os seus royalties. De repente, ele poderia estar sentado neste momento numa prisão e esse dinheiro poderia tirá-lo de lá. Ou talvez ele esteja doente e precise de uma operação...” 
Ry Cooder, em 1981




Fui apresentado ao Ry Cooder pelo meu amigo, colega de Famecos e atualmente professor de Filosofia da PUC, Cláudio Almeida. Ele foi aos Estados Unidos num período no final dos anos 70 e trouxe na bagagem uma fita cassete de um disco chamado “Bop Till You Drop”. Virou hit lá em casa e nas casas de amigos, especialmente na de Mauro Magalhães. A partir deste disco, começamos uma busca incessante pelos outros trabalhos do cara, um guitarrista de mão cheia e uma espécie de arquivo vivo da música americana do Século XX. É dele aquele solo lancinante de “Sister Morphine” dos Rolling Stones.

Como um profundo conhecedor da “americana”, Cooder resolveu revisitar o rhythm and blues neste disco. E se deu muito bem. O trabalho é um triunfo estilístico bem ao estilo do guitarrista. Como se não bastasse, Cooder ainda tem o que se convencionou chamar de uma voz “blue-eyed soul”, ou seja, um branco que canta como um negro.

“Bop Till You Drop” começa com uma versão de “Little Sister”, canção de Doc Pomus & Mort Schuman que foi gravada por ninguém menos do que Elvis Presley. Como eu não gosto do “rei do rock”, prefiro o clima R&B que Cooder e seus comparsas (David Lindley na guitarra e no slide guitar; Tim Drummond no baixo; Jim Keltner na bateria; Milt Holland na percussão mais os maravilhosos vocais de Bobby King, Herman Johnson e Cliff Givens) colocam no caldeirão.
“Go Home Girl” é um bolero muito engraçado, quase um reggae. Toda em cima da percussão de Holland, do órgão de Barron e das guitarras e violões de Cooder e Lindley, a canção relata as desventuras de um cara que se mete num triângulo amoroso com a namorada de seu melhor amigo. “Go on go home girl / You better go on home / You better move on” ("Vá para casa, menina/ É melhor você ir para casa / É melhor você seguir em frente"), diz ele, mandando a garota embora, apesar de amá-la muito. Segundo ele, o “amor de uma mulher e o amor de um amigo são duas coisas que não podem ser comparadas”. Num determinado momento, Frank empresta o carro para seu amigo e fica esperando, em casa. Mal sabe ele que seu amigo está dispensando SUA namorada neste exato momento. Pra fechar, Bobby King dá a primeira de muitas estrebuchadas vocais que fazem deste disco uma delícia de ouvir.

The Very Thing That Makes You Rich (Makes Me Poor)” tem uma história interessante. Composta pelo taxista Sidney Bailey, a música foi dada a Cooder num cassete pelo próprio autor, quando o guitarrista entrou em seu carro. Até aí, nada demais. O que Cooder não sabia é que já havia gravado outras duas composições de Bailey em seu disco “Paradise and Lunch”: “Fool for a Cigarrette / Feelin' Good”, que havia encontrado numa editora. Brilham mais uma vez as guitarras de Cooder e Lindley. Keltner faz misérias na bateria. E os vocais parecem saídos direto de uma missa de domingo numa igreja batista. E a letra é divertidíssima, pois é misógina de uma maneira jocosa: “Meu pai me disse em seu leito de morte / Rapaz, a mulher vai conseguir o que quiser, não se engane / Porque ela tem uma coisa que faz / o homem deixar o dinheiro bem na mão dela / e a exata coisa que faz ela rica / te faz pobre”. Sensacional filosofia popular. Mais adiante, o pai continua a aconselhar seu filho: “Nunca, de maneira alguma, cometa este erro / Prefiro subir numa cama com uma cascavel / do que trabalhar duro todos os dias pra dar meu dinheiro pra ela”. À medida que a canção avança, os vocais vão entrando naquele clima de pergunta e resposta bem ao estilo soul music. Uma das grandes surpresas do disco vem a seguir; “I Think It's Going to Work Out Fine”, música que foi gravada por Ike & Tina Turner. Aqui, numa versão instrumental, onde Ry Cooder e David Lindley carregam a melodia nas guitarras elétricas, enquanto o mandolin faz a base.

A única composição original do disco, “Down in Hollywood” é de autoria de Cooder e do baixista Drummond e traz a primeira participação da cantora funky Chaka Khan. No refrão, eles avisam os incautos que vão passear de carro em Los Angeles: “Passeando em Hollywood / é melhor que você não fique sem gasolina / Ele vai te tirar do seu carro e chutar seu traseiro / Eles estão parados numa esquina esperando um trouxa como você / Se você quer permanecer saudável, é melhor seguir em frente”. E aí começam a aparecer todas as figuras que habitam as noites de Hollywood: os gays, os cafetões, as prostitutas, os policiais. Tudo embalado por um clima soul-funk. De certa maneira, Cooder previa os temas dos rappers de hoje, em especial a violência urbana.

“Look at a Granny Run Run” foi grande sucesso na voz de Howard Tate, um cantor de soul music da segunda metade da década de 60. A recriação de Cooder mantém o sabor original da primeira versão, mas acrescenta um astral de blues, com o mandolin e seu violão de aço fazendo a introdução. O vovô fica correndo atrás da vovó, vocês imaginam com que intenção, né? Lá pelas tantas, o vovô deixa tudo explícito: “Olhe aqui, mamãezinha, pare de correr/ tudo o que eu quero é fazer um amorzinho antes que chegue a minha hora/ Não tem nada errado com isso”.

“Trouble, You Can't Foll Me” mantém a levada R&B com ênfase no blues, especialmente nas guitarras e violões que fazem uma teia de sons, segurando a onda de Cooder e seus backing vocals. As mulheres continuam a ser um problema, mas elas não podem enganá-lo. “Estou te vendo atrás daquela árvore”.

A faixa seguinte, “Don't Mess Up a Good Thing”, foi sucesso com a cantora Fontella Bass, mas aqui vira um funky superdançante com a bateria de Keltner fazendo aquela batida soul, mantendo o clima dado pelas guitarras e pelo órgão, enquanto Cooder e Chaka Khan conversam. A mulher pede que ele “não estrague uma coisa boa” e o homem diz que “mesmo que tenha pulado a cerca de vez em quando, o cheque do pagamento vai pra ela”. É interessante que Cooder revisite o R&B dos anos 50 e 60, quando as mulheres ainda não tinham voz ativa na sociedade e eram figuras decorativas que só pensavam em gastar o dinheiro de seus maridos. O revisionismo de Ry Cooder chega a este ponto, quase que um tema só no disco inteiro, apesar das composições serem todas diferentes.

Pra fechar este maravilhoso disco, “I Can't Win”, uma balada soul entoada pelo incrível Bobby King. Cooder se dá ao luxo de fazer backing vocal pro seu backing! E se você não se dobrou totalmente por este disco e esperou até o último momento, chegou a sua hora de ajoelhar e rezar na igreja de São Ry! Esta não é uma canção. É uma prece! “Tenho tentado muito encontrar um caminho pro seu coração/ mas não consigo ganhar/ seu amor”. É uma canção de coração partido, triste como ela só. Mas com este astral gospel americano de verdade e não esta chinelagem travestida e “universalizada” (se é que vocês me entendem) que a gente ouve por aí. Se não tivesse acompanhamento musical, esta ainda seria a melhor canção do disco inteiro. É de arrepiar os cabelos. Vozes de verdade, sentimentos de verdade. Há quanto tempo, você não ouvia falar nisso, hein? Bobby King ganhou este presente de Ry Cooder, que repassou para nós, ouvintes.
*******************

FAIXAS:
1. "Little Sister" (Doc Pomus, Mort Shuman) – 3:49
2. "Go Home, Girl" (Arthur Alexander) – 5:10
3. "The Very Thing That Makes You Rich (Makes Me Poor)" (Sidney Bailey) – 5:32
4. "I Think It's Going to Work Out Fine" (Rose Marie McCoy, Sylvia McKinney) – 4:43
5. "Down in Hollywood" (Cooder, Tim Drummond) – 4:14
6. "Look at Granny Run Run" (Jerry Ragovoy, Mort Shuman) – 3:09
7. "Trouble, You Can't Fool Me" (Frederick Knight, Aaron Varnell) – 4:55
8. "Don't Mess Up a Good Thing" (Oliver Sain) – 4:08
9. "I Can't Win" (Lester Johnson, Clifton Knight, Dave Richardson) – 4:16

*******************
OUÇA O DISCO:




segunda-feira, 31 de outubro de 2011

cotidianas #113 - "Cota Zero"

 No dia dedicado ao poeta Carlos Drummond de Andrade, denominado Dia D, mais uma dele aqui nas COTIDIANAS:

COTA ZERO


STOP.
A vida parou
ou foi o automóvel?


**************






Carlos Drummond de Andrade

*********************************

terça-feira, 29 de novembro de 2022

cotidianas #781 - "Saque"

 



Tenho um remorso antigo - confidenciou-me à mesa do bar. - Quando eu era garoto, adorava futebol de botão. Um dia, acabei com os botões do quarto de costura de mamãe, e não havia outros em casa. Fui ao guarda-roupa de vovô e saqueei-o.
Coitado, o velhinho vivia na cadeira de rodas, e praticamente só usava pijama. no dia em que ele morreu, a família ficou atrapalhada para vestir-lhe um terno escuro: estava tudo sem botão.



*******

"Saque"
Carlos Drummond de Andrade
de sua coluna no Correio da Manhã, de 1965

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

cotidianas #52



"Tomou três chopes duplos, comeu queijo picado pensando: viver é tão simples e eu não sabia: tomar chope e comer queijo é viver; viu uma moça de verde: ver uma moça de minissaia verde é viver e ver as pessoas atravessando a rua de noite também é viver. 
Tudo tão simples e eu não sabia. 
Lembrou do pé-de-moleque que a mãe fazia - comer pé-de-moleque que a mãe da gente faz também é viver, mas eu não sabia."

trecho do conto "A outra margem"
de Roberto Drummond


*********************

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Neil Young & The Crazy Horse - "Zuma" (1975)




“Trabalhar com Neil é um privilégio,
não um direito.”
Stephen Stills


Um dos meus artistas preferidos é o cantor e compositor canadense Neil Young. Ele me foi apresentado pelo meu querido e saudoso primo José Carlos de Andrade Ribeiro, o popular Chico Caroço, em 1972, quando ele mostrou pra mim o disco “Harvest”. De cara, chapei com “Old Man” e fiquei de olho em alguma coisa que lançassem dele no Brasil. Só voltei a ouvi-lo com toda a atenção em 1975, quando o mesmo Chico Caroço me apresentou o disco favorito de hoje: “Zuma”, de Neil Young e seus fiéis escudeiros, o trio Crazy Horse (Frank Sampedro na guitarra base; Billy Talbot, no baixo, e Ralph Molina na bateria.
Com uma capa muito expressiva de Mazzeo, “Zuma” foi lançado após uma trilogia de discos muito bons, porém terrivelmente tristes (“Time Fades Away”, de 1973; “On the Beach”, de 1974, e o melhor de todos, “Tonight's the Night”, de 1975), inspirados na morte por overdose de Danny Whitten, o guitarrista original do Crazy Horse.
A viagem começa com “Don't Cry No Tears”, uma típica música de NY com Crazy Horse. As guitarras distorcidas fazem a cama para uma letra onde Neil Young pergunta: “Eu fico pensando quem está com ela esta noite?/ E eu fico pensando quem a está abraçando bem apertado/ Mas não tem nada que eu possa dizer/ para fazê-lo ir embora/ Um velho amor verdadeiro não é difícil de ver/ Não chore, sem lágrimas perto de mim”. Uma pegada country rock com ênfase no rock.
“Danger Bird” põe o dedo sujo na ferida do relacionamento de Young com a atriz Carrie Snodgress, mãe de seu filho Zeke. Como em todo o disco, as guitarras ditam o clima que iria inspirar Lou Reed a dizer que Neil tinha se tornado um grande guitarrista nesta época. E a letra é de um ressentimento absoluto: “Agora eu penso em você o dia inteiro/ Este é o momento em que ele se despedaça/ Porque você esteve com outro homem/ Há um tempo atrás no museu com seus amigos/ Aqui você está e aqui estou eu”. O homem ciumento que Neil havia se tornado lhe inspira a se comparar a um pássaro perigoso cujas asas viraram pedra. Mas mesmo assim ele consegue voar pra bem longe.
“Pardon my Heart” dá uma pausa na eletricidade e tem Neil em todos os instrumentos, especialmente guitarras e violões e percussão mais o baixista Tim Drummond e os backing vocals de Billy Talbot e Ralph Molina. Uma balada bem folk ao velho estilo. Mais um recadinho para Carrie Sondgress: “É uma triste comunicação/ Com pouca razão para acreditar/ Quando um não está dando/ E o outro finge receber”. Mais adiante, ele tenta remendar a situação dizendo: “Perdoe meu coração/ Se mostrei que me importava/ Mas eu te amo mais do que os momentos/ Que nós dividimos ou não”.
A próxima canção, “Looking for a Love”, tem uma base country music e um alívio na tristeza. “Tenho procurado um amor/ Mas ainda não a encontrei ainda/ Ela não será nada do que eu imaginei/ Nos seus olhos descobrirei/ Outra razão porque/ eu quero viver e fazer o melhor do que eu possa”. Mas ele sabe que não é moleza lhe aguentar quando, no refrão, ele garante: “Tenho procurado um amor que seja certo pra mim/ Não sei quanto tempo vai durar/ Mas espero tratá-la bem/ e não mexer com sua cabeça/ quando ela começar a ver o meu lado negro”. Autocrítica em dia, né?
“Barstool Blues” fala de um bebum num banco de bar e de sua tristeza. “Se eu conseguisse aguentar por apenas um pensamento/ o suficiente para saber/ porque minha mente está se movendo tão rápido/ e a conversa é devagar”. Lá pelas tantas, o fantasma de Danny Whitten volta a habitar – e a assombrar – Neil: “Era uma vez tinha um amigo meu/ que morreu milhares de mortes/ Sua vida era cheia de parasitas/ e incontáveis ameaças vadias/ Ele confiava numa mulher/ e nela fez suas apostas/ Era uma vez tinha um amigo meu/ que morreu incontáveis mortes”. A mulher, no caso, a heroína que causou a morte de Whitten.
Apesar do disco estar cheio de guitarras luminosas e aparentemente ser mais “solar" dos que os anteriores, “Zuma” tem sua carga de demência, ódio e ressentimento. O lado B começa com uma diatribe dirigida a uma “Stupid Girl”. Comenta-se que a canção seria direcionada à cantora e compositora canadense Joni Mitchell, com quem ele teve um namoro rápido e conturbado. E a letra é puro rancor: “Você é uma garota tão estúpida/ Realmente tem muito o que aprender/ Comece a viver de novo/ Esqueça de lembrar/ Você é uma garota tão estúpida”. E a agressão não dá refresco: “Você é um peixe muito bonito/ Pulando na areia do verão/ Olhando pra onda que perdeu/ quando outra já está chegando/ Você é uma garota tão estúpida”. Como as mensagens são diretas, a música não poderia ser diferente. Batidas simples, baixo marcando o tempo e as guitarras em distorção total. Nada de sofisticação.
A faixa seguinte abre com o que diria o meu amigo João César Nazário, o grande Alemão: uma guitarrada pra levantar defunto. “Drive Back” tem os solos mais lancinantes de todo o disco. Os puristas da guitarra acham que Neil é um mau músico, que não tem técnica. Pode até ser. Ele não é nenhum Larry Carlton, Allan Holdsworth ou Steve Vai. Mas o feeling deste homem é incrível. Carregando esta selvageria nas seis cordas, tem mais uma letra detonando: “O que te levar pela noite/ tá certo pra mim/ quando chegar a hora de dizer adeus/ Vou te fazer ver/ Que você não me conhece/ Não vou te ligar/ Não estarei aqui/ pra te lembrar/ o que você me disse/ Quando te mostrei/ pela manhã/ Deixa te dizer/ Dirija de volta pra sua velha cidade/ Quero acordar com ninguém por perto”. Restou alguma dúvida, querida?
“Cortez the Killer” é a faixa mais conhecida do disco. Ele a regravou em “Live Rust” e ainda toca em seus shows. A letra conta a história de Hernán Cortes, um conquistador espanhol que derrotou o império asteca de Montezuma, comandando um dos grandes massacres de índios da história do mundo ocidental. “Ele veio dançando através da água/ com seus galeões e arma/ À procura do novo mundo/ naquele palácio no sol/ Na praia estava Montezuma/ com suas folhas de coca e pérolas/ E nos lugares onde andava/ com os segredos das palavras... E as mulheres eram todas bonitas/ E os homens eram formes e fortes/ Eles ofereceram suas vidas em sacrifício/ para que outros pudessem continuar”. Durante sete minutos e 29 segundos, Neil e o Crazy Horse contam esta história de conquista e dizimação dos mais fracos.
Depois de tudo, a última faixa dá uma folga pras guitarras e Neil resgata uma canção do abortado projeto de reunião de CSN&Y em 1974, no Hawaii, com “Through my Sails”. Nela, os quatro cavaleiros do country rock mesclam suas vozes em harmonias perfeitas ao som do violão de Young, do baixo de Stephen Stills e das congas do convidado Russ Kunkel. As coisas realmente não estavam fáceis para eles nesta tentativa de reencontro. Os sentimentos eram conflitantes e Neil os captura bem falando de velejar, um dos esportes favoritos de seu irmão e rival de música, Stills: “Ainda fitando as luzes da cidade/ No Paraíso eu me elevo/ Incapaz de descer/ por razões que não sei explicar/ total confusão/ Desilusão/ Coisas novas que estou aprendendo... Vento soprando através das minhas velas/ Parece que estou longe/ Deixando o vento soprar/ através de minhas velas”.
Mesmo tendo as guitarras na linha de frente e dando a impressão de ser um disco ensolarado, especialmente após as tragédias de “Tonight's the Night”, “Zuma” não deixa de ser um disco carregado de uma raiva inerente a tudo que estava acontecendo na época. Além disso, esta foi uma das fases mais complicadas de Neil Young com as drogas, as mulheres, as parcerias musicais que não decolavam, o nascimento de um filho com paralisia cerebral e a morte rondando tudo o tempo inteiro. Como a carreira de Young é pontuada por momentos de rara beleza, como "Everybody Knows This Is Nowhere", “After the Gold Rush”, “Tonight's the Night”, “Rust Never Sleeps”, entre muitos outros, “Zuma” tende a ficar num patamar secundário. Mas é meu disco favorito dele por todos estes motivos relatados acima.
Dois anos depois, Neil se reúne com a nata dos músicos de Nashville mais uma colaboradora que iria acompanhá-lo por muito tempo, a cantora Nicolette Larson, e gravaria o seu disco mais conhecido e menos neurótico de todos: “Comes a Time”. Mas esta é outra história.
**************************

FAIXAS:
1. Don't Cry No Tears - 2:34
2. Danger Bird -                6:54
3. Pardon My Heart - 3:49
4. Lookin' For A Love - 3:17
5. Barstool Blues - 3:02
6. Stupid Girl - 3:13
7. Drive Back - 3:32
8. Cortez The Killer - 7:29
9. Through My Sails - 2:41

************************** 
OUÇA O DISCO

por Paulo Moreira


quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Cartola - "Cartola" (1976)



"A delicadeza visceral de Angenor de Oliveira é patente quer na composição, quer na execução. (...) Trata-se de um distinto senhor emoldurado pelo Morro da Mangueira. A imagem do malandro não coincide com a sua. A dura experiência de viver como pedreiro, tipógrafo e lavador de carros, desconhecido e trazendo consigo o dom musical, a centelha, não o afetou, não fez dele um homem ácido e revoltado. A fama chegou até sua porta sem ser procurada. O discreto Cartola recebeu-a com cortesia. Os dois conviveram civilizadamente. Ele tem a elegância moral de Pixinguinha, outro a quem a natureza privilegiou com a sensibilidade criativa, e que também soube ser mestre de delicadeza".
Carlos Drummond de Andrade



O escritor Ariano Suassuna, numa hilária passagem de uma palestra que proferira em 2012, comenta sobre a desqualificação da cultura no Brasil e cita como exemplo uma matéria do jornalista Carlos Eduardo Miranda, a qual dizia ser o guitarrista da banda pop-brega Calipso, Chimbinha, um “gênio”. Suassuna, do alto de sua sabedoria, ironiza indagando que, se for usar o termo “gênio” para alguém como o famigerado Chimbinha, o que lhe resta para qualificar Mozart? De fato, o adjetivo é forte e sofre de constante vulgarização nos tempos atuais, a ponto de chegar a uma total inadequação como esta. Porém, há casos em que chamar algo ou alguém de genial é mais do que cabível: é a única forma de classificar. É o caso de Angenor de Oliveira, um dos maiores compositores que a música (popular? Brasileira? Mundial?) já viu. De vida oscilante entre a fama e a dureza, foi nesta segunda que se consagrou. Os anos de lida difícil como pedreiro serviram se não por outro motivo pelo menos de uma coisa: por conta do justificável cuidado que tinha com a preciosa cabeça – de onde saíam as tais genialidades –, protegia-a dos dejetos de obra usando um chapéu coco. O suficiente para os colegas de broxa e argamassa lhe darem o apelido que viraria a alcunha artística definitiva deste Mozart do morro: Cartola.

Completando 40 anos de seu lançamento, o segundo disco do sambista é a consolidação de uma era iniciada na virada do século XIX para o XX quando negros ex-escravos e filhos deles migraram do Nordeste para o Rio de Janeiro, a capital brasileira que veria o nascimento do gênero musical essencialmente nacional: o samba urbano. Após gravar o também fundamental álbum de estreia, em 1974, igualmente homônimo e recheado de clássicos da MPB, Cartola viu-se, aos 67 anos de idade, finalmente alçar ao estrelato. Mas, como dito, antes de chegar a isso travou muitas batalhas com o destino. Sua vida cheia alegrias e tristezas foi o verdadeiro reflexo do negro pobre brasileiro: mesmo com tamanho talento, a discriminação e as dificuldades raciais e socioeconômicas muitas vezes se sobrepuseram. Aos 8 anos, nos anos 10, já tocava cavaquinho e acompanhava os blocos carnavalescos. Mas a fome atingia a ele e a sua família, tendo de dividir-se entre o pinho e o trabalho desde cedo. Na adolescência, em 1928, fundou a primeira agremiação de samba do Rio, a famosa Estação Primeira de Mangueira, época em que já compunha vários sambas, muitos deles sucessos na voz de Carmen Miranda, Francisco Alves e Mário Reis (mesmo que não recebesse crédito às vezes, ou seja, não fosse pago pela autoria). Pouco depois, tem de abandonar os estudos, pois a mãe morre e passa a se sustentar sozinho. Até que contrai meningite e, em seguida, fica viúvo, afastando-se por uma década do violão pelo desgosto. Volta à cena por acaso num café de Ipanema quando Sérgio Porto o descobre lavando carros num prédio do bairro. O ano era 1956, e corria pelos botecos a lenda de que mito Cartola havia morrido. Não: a vida não havia conseguido derrubá-lo. Pouco tempo dali, com ajuda de amigos e admiradores, monta com a segunda e derradeira esposa, D. Zica, o bar Zicartola, página importante na história da música popular brasileira que viu, por exemplo, jovens como Paulinho da Viola nasceram para a música. Claro, sob a bênção de Cartola, a partir dali fadado finalmente só aos aplausos.

Chegados os anos 70, o qual não se imaginava ser a última década da vida de Cartola (podia-se pelo menos suspeitar, dada a idade avançada e o organismo judiado), um de seus admiradores, o produtor musical João Carlos Bozelli, o Pelão, deu-se conta de uma coisa importantíssima: mesmo com o tardio mas devido reconhecimento, Cartola não tinha ainda um disco solo! Vários o gravaram dos anos 20 até então, tendo suas composições já imortalizadas na música brasileira mais do que o próprio autor. Mas ele mesmo, cantando e protagonizando, havia apenas uns poucos e esparsos registros. Diversas das joias compostas por ele ao longo de 60 anos e cantadas por outros intérpretes – “Não posso viver sem ela” (Ataulfo Alves, 1941), “O Sol Nascerá” (Isaura Garcia, 1964), “Sim” (Elizeth Cardoso, 1965), "Festa da vinda" (Elza Soares, 1973) – juntaram-se, então, a canções novas que, tal o poder operado pelos gênios, tornaram-se clássicos atemporais imediatamente. É o caso de “O Mundo É Um Moinho”, samba-canção que abre o segundo disco e que traz um dos mais belos poemas da língua portuguesa, algo do nível de Camões ou Vinícius. A exatidão formal dos versos sobre o requinte harmônico é aquilo que um Chico Buarque sempre buscou. “Preste atenção querida/ De cada amor tu herdarás só o cinismo/ Quando notares estás a beira do abismo/ Abismo que cavastes com teus pés.”. A melodia é primorosa, como se o amigo (e admirador) Heitor Villa-Lobos tivesse posto em partitura um samba. No luxuoso arranjo, assinado por Dino 7 Cordas, a flauta do virtuose Altamiro Carrilho e o violão solo de um então jovem chamado Guinga. Perfeição é pouco.

Na mesma linha temática de perda da amada, “Minha” (“Minha/ Ela não foi um só instante/ Como mentiam as cartomantes/ Como eram falsas as bolas de cristal”) traz a tradicional elegância poética e composicional de Cartola, a qual o poeta Drummond chamou de “delicadeza visceral”. É isso que se sente noutra de suas imortais canções, esta, um dos hinos da Mangueira: “Sala de Recepção”. “Habitada por gente simples e tão pobre/ Que só tem o sol que a todos cobre/ Como podes, Mangueira, cantar?”. Com esse questionamento, que percorre todo um paradigma sociocultural dos povos marginalizados e sua bravia cultura – a qual prescinde de estudo formal, haja vista que um poeta e compositor de fina estampa como Cartola tinha apenas o primário –, tem a ajuda do registro agudo da cantora Creusa, equilibrando o tom moderado e elegante do canto de Cartola. E com que beleza são cantados os versos! “Pois então saiba que não desejamos mais nada/ A noite e a lua prateada/ Silenciosa, ouve as nossas canções”.

Outra das antigas, sucesso já nos anos 40, “Não Posso Viver sem Ela” vem num arranjo redondo de partido-alto, favorecendo a voz declamativa de Cartola – esta, acompanhada, na segunda parte, por um coro feminino. O trombone inicia anunciando os acordes-base. Segue desenhando frases do sopro a faixa inteira com a majestosa “cozinha” que traz Elton Medeiros no ganzá e caixa de fósforos; Gilson de Freitas, no surdo; Jorginho do Pandeiro no seu instrumento originário; Nenê, na cuíca; mais Meira ao violão; Canhoto no cavaquinho e Dino 7 Cordas tangendo as próprias. Mais um samba romântico, cujo refrão é uma aula de uso poético do idioma lusófono: “Pode ser que ela ouvindo os meus ais/ Volte ao lar pra viver em paz”. Isso se chama “rima rica”, meus senhores. Paulinho da Viola, valorizador de Cartola desde sempre, a gravaria numa versão de igual qualidade em 1983.

Mais uma gloriosa é “Preciso me Encontrar”, única do disco não composta por Cartola junto com “Senhora Tentação” (de Silas de Oliveira, originalmente gravada por Elizeth Cardoso em 1967 com o título “Meu Drama”). Esta é de outro mestre do samba: o portelense Candeia. Abertura mais do que marcante ao som de um fagote e o dedilhado aberto do violão, erudita e melancólica. A versão choro de Marisa Monte, de 1989, é muito legal, mas inesquecível mesmo é a cena de “Cidade de Deus” em que esta, a original, faz trilha para a fuga frustrada do personagem Cabeleira: “Deixe-me ir/ Preciso andar/ Vou por aí a procurar/ Rir pra não chorar.” Simplicidade dos versos e uma síntese narrativa impressionante que caíram como uma luva ao filme.

“Peito Vazio”, outra das recentes à época da gravação, é mais uma de tirar o fôlego tamanha sua riqueza melódica, seja na estrutura harmônica airosa, seja na poética romântico-parnasiana. Chico Buarque, no documentário “Palavra (En)Cantada“, disse-se impressionado com tal capacidade inata de Cartola e desses sambistas do morro, uma vez que provavelmente jamais tiveram acesso à literatura parnasiana ou romântica. O belo samba “Aconteceu” (“Aconteceu/ Eu não esperava, mas aconteceu/ Todo o bem que fiz, se fiz, ela esqueceu”), também nesta linha, antecede outra prova da criatividade superior do Mozart da Mangueira: “As Rosas não Falam”. Assim como “O Mundo é um Moinho” (e outras composições sui-generis como “Acontece”, do álbum anterior, e “Nós Dois”, de 1977), pode-se classificar como uma obra-prima – é tida como a 13ª maior música da MPB em votação da revista Rolling Stone Brasil.

Ouvindo-se “As Rosas não falam”, a comparação com um músico erudito não parece exagerada, o que ratifica em carta medida a percepção manifestada por Chico. Quem conhece o "Vocalise, Op.34,Nº14", do compositor, maestro e pianista russo Sergei Rachmaninoff talvez nunca tenha percebido a semelhança da melodia desta com a música de Cartola. Não que o sambista não pudesse admirar algo deste tipo – pelo contrário, tinha sensibilidade musical suficiente para tal. Mas é bastante improvável que tenha se inspirado em Rachmaninoff ou mesmo escutado a peça – repetindo-a inconscientemente ou “chupando-a” conscientemente – antes de inventar os acordes deste samba. Proposital ou não, é-lhe elogiável. O arranjo, o qual conta novamente com a flauta de Carrilho, favorece o brilhantismo cristalino da melodia e da harmonia. E o que dizer da riqueza literária desses versos: “Queixo-me às rosas, que bobagem/ As rosas não falam/ Simplesmente as rosas exalam/ O perfume que roubam de ti, ai”?

“Sei Chorar”, de ritmo animado mas de letra igualmente sobre um amor desiludido, abre caminho para mais uma genial: “Ensaboa”. Lundu em dueto novamente com Creusa, se situa entre a reverência à linguagem ancestral africana, repetindo os cantos de trabalho das lavadeiras rurais, e a poesia modernista, no emprego fonético da sintaxe, no ritmo interno das palavras e na abordagem social do tema central. Marisa Monte também gravaria essa nos anos 90 numa linda versão em que lhe intensifica o aspecto rítmico. Finalizando o disco mais um clássico: “Cordas de aço”. Metalinguística, é a simbiose entre emoção e técnica, entre artista e sua arte. “Ai, essas cordas de aço/ Este minúsculo braço/ Do violão que os dedos meus acariciam/ Ai, esse bojo perfeito/ Que trago junto ao meu peito/ Só você, violão, compreende porque/ Perdi toda alegria”.

O historiador e pesquisador musical brasileiro José Ramos Tinhorão conta, em seu “História Social da Música Popular Brasileira”, que, na Rio de Janeiro do final do século XIX e início do XX, “as camadas populares urbanas viviam um dinâmico processo de grande riqueza cultural”.  Foi nesta época que surgiram os primeiros blocos carnavalescos e os primeiros nomes do samba, tanto na Zona Portuária e arredores quanto no Estácio de Sá e nas periferias e morros, como o da Mangueira, o que deu a luz à Cartola. Tardios, os dois primeiros discos dele, além de conterem a mais alta qualidade musical, formam um arquivo de importância documental e antropológica incomensuráveis dentro da cultura brasileira e dos processos sociais da América negra. Por razões socioculturais e econômicas nefastas e vergonhosas, demorou meio século para que o óbvio acontecesse, processo idêntico ao ocorrido com outros bambas como Clementina de Jesus, Nelson Sargento, Nelson Cavaquinho, Ismael Silva e Adoniran Barbosa. Todos só gravariam trabalhos solo na terceira idade e na última década de suas vidas. Se isso é um resultado das tais desvalorização e vulgarização da cultura a qual Suassuna diz ainda acometer o Brasil, ao menos, em algum momento, os moinhos do mundo sopraram a favor da genuína genialidade. E se a fama chegou até a porta de Cartola sem ser procurada, como frisou Drummond, o fez com o devido respeito e deferência, enquanto que o discreto Cartola recebeu-a com a cortesia de um verdadeiro nobre.


*************** 
FAIXAS:
1. O Mundo é um Moinho
2. Minha
3. Sala de Recepção
4. Não Posso Viver sem Ela (Cartola/Bide)
5. Preciso me Encontrar (Candeia)
6. Peito Vazio (Cartola/Elton Medeiros)
7. Aconteceu
8. As Rosas não Falam
9. Sei Chorar
10. Ensaboa
11. Senhora de Tentação (Meu Drama) (Silas de Oliveira)
12. Cordas de aço

todas as faixas compostas por Cartola, exceto indicadas.

************** 
OUÇA O DISCO:



quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

cotidianas #64 - Quadrilha



QUADRILHA

João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.

Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, 18 de outubro de 2023

cotidianas #810 - "Não Se Mate"




Homem carregando a própria cabeça até o topo para deixar que role ladeira abaixo
"Homem carregando a própria cabeça até o topo
para deixar que role ladeira abaixo" - Susano Corrreia
Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será.


Inútil você resistir
ou mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh não se mate,
Reserve-se todo para
as bodas que ninguém sabe
quando virão,
se é que virão.


O amor, Carlos, você telúrico,
a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas,
vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe
de quê, praquê.


Entretanto você caminha
melancólico e vertical.
Você é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam.
O amor no escuro, não, no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém,
ninguém sabe nem saberá.

********************

"Não se Mate"
(Carlos Drummond de Andrade)

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

"Bom Dia, Manhã - Poemas", de Grande Othelo - Ed. Topbooks (1993)




"Grande Othelo foi um imenso brasileiro, um dos maiores de todos os tempos: ator, músico, cantor, apresentador de televisão, grande do teatro e do cinema, gênio nascido no ventre mestiço do Brasil. Tão gênio brasileiro quanto Oscar Niemeyer, Carlos Drummond de Andrade e Pelé."
Jorge Amado

"O autor por excelência do Brasil."
José Olinto

Há determinados artistas brasileiros que deixam um vácuo quando morrem. Aqueles que vão inesperadamente como foi com Elis Regina, Chico Science, Raphael Rabello, Cássia Eller e, mais recentemente, com Gal Costa. Eles provocam essa sensação de um buraco que se abre e que nunca mais será preenchido. Tanto quanto aqueles que, comum mais antigamente, despediam-se com menos idade do que seria normal à atual expectativa de vida, casos de Tom Jobim (67), Emílio Santiago (66), Mussum (53) e Tim Maia (55). 

Sebastião Bernardes de Souza Prata, o Grande Othelo é um desses vazios. Aliás, fazem 30 anos deste vazio, tão grande que parece contradizer com a diminuta estatura deste homem de apenas 1m50cm de altura. Mesmo que menos prematuro como os já citados (morreu aos 78 anos), sua vida marcada pela infância dura e pela vida adulta boêmia, não o poupou de roubar-lhe, quiçá, uma década cheia. Mas o que este brasileiro deixou como legado se reflete (ao contrário dos citados acima, músicos por natureza) em mais de um campo artístico. Grande Othelo foi um gênio na arte de atuar, mas deixou marcas indeléveis na música popular e na poesia.

"Bom Dia, Manhã" cristaliza essa magnitude de Grande Othelo, o homem das palavras, sejam as da dramaturgia, as dos sambas ou as dos poemas. Lançado em 1993 e com organização de Luiz Carlos Prestes Filho, o livro reúne um bom compêndio de mais de 100 textos poéticos do artista que eternizou em seu nome o ícone shakesperiano. Não haveria o livro, por óbvio, ser menos do que isso. Com sua inteligência incomum e fluência natural de escrita, Grande Othelo alterna da mais singela confissão existencial ao romantismo sentimental, a malandragem e a alta literatura, os sambas e o parnasianismo, passando pelas homenagens aos amigos e as observâncias da vida e das mazelas do mundo. Tudo numa linguagem de "puras palavras", como definiu o escritor José Olinto, sem cerebralismos e dotados de cadências existenciais.

Em “Nada”, o poeta escreve: “Na saga das tuas solidões/ Vão surgindo outras/ Em outros corações”. A compreensão do amor “desromantizado” de “Homem e Mulher” é também digna de escrita, assim como “Estrada”, que narra o descompasso de um homem velho e uma mulher mais jovem. Os sambas, no entanto, são uma delícia à parte. Como os que coescreveu com Herivelto Martins  “Fala Claudionor” ou o clássico “Bom dia Avenida”, de 1944, feito quando a Prefeitura do Rio de Janeiro resolveu acabar com o Carnaval na referencial Praça Onze, a Sapucaí do início do século XX: “Vão acabar com a Praça Onze/ Não vai haver mais escola de samba/ Não vai/ Chora tamborim/ Chora o morro inteiro”. Mas há ainda o samba-fantasia “Penha Circular”, o samba-crônica “Rio, Zona Oeste”, o samba inacabado “A boemia cantou”, o samba não-cantado por Elizeth Cardoso “Ao som de um violão”.

Representativo da raça negra em uma época de inúmeras dificuldades para o exercício deste ativismo, Grande Othelo mesmo assim posiciona-se por meio de suas palavras. Semelhante ao que ocorrera com outro ícone preto made in Brazil, Pelé, Othelo (que bem pode ser considerado um Pelé dos palcos, pois possivelmente o maior da sua área) bastava existir para representar resistência. Mas faz mais. “Sou no momento que passa/ A expressão mais forte/ De uma raça”, escreveu em “Neste momento: eu!”. Leu, com o olhar de menino sábio, a lenda gaúcha do Negrinho do Pastoreio, que ele mesmo representou no cinema em 1973, dirigido pelo tradicionalista Nico Fagundes:

“O negrinho descerá e subirá cañadas
Em correrias desenfreadas...
Beberá a água das sangas
E sempre sozinho, pois ninguém o vê.
Mas quando voltar há de trazer
A felicidade procurada por você.”

Não é uma delicadeza de apreciação? Estas e muitas mais delicadezas estão em "Bom Dia, Manhã", cuja leitura se dá com o prazer de quem ouve um samba, de quem lê uma crônica, de quem reflexiona a própria condição humana. É difícil imaginar o que Grande Othelo teria feito se tivesse vivido, quem sabe, mais 10 anos – nada alarmante nos tempos de hoje em que senhores da faixa dos 87-88 anos são Tom Zé ou Roberto Menescal, ativos e joviais. Mas é impossível não sentir falta dele vivo, aqui presente. Pensar que aquele Macunaíma, aquele Espírito de Luz, aquele parceiro de Carmen Miranda, aquele Cachaça, aquele farol do povo brasileiro não está mais é reconhecer o vazio que isso provoca. Um vazio grande, como o que este pequeno Othelo carregava no nome.

**********

Trio de Ouro 


Daniel Rodrigues

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

COTIDIANAS nº 262 Especial Natal - "Natal: Uma Crônica Para Pessoas Não Apressadas"

"Natal: Uma Crônica Para Pessoas Não Apressadas"


por Armindo Trevisan


Uma das observações mais profundas que li sobre o Natal foi a de um célebre paleontologista e teólogo jesuíta, Pierre Teilhard de Chardin (1881-1955), que cito de memória, parafraseando-a:
            O Verbo de Deus, Filho de Deus, igual ao Pai e ao Espírito Santo, entrou no mundo sem rumor, formando-se no seio de uma virgem que vivia em Nazaré.
            Sem rumor, também, nasceu o Menino, que Manuel Bandeira chamou “o nosso Menino”, numa gruta, em Belém, a pequenina cidade donde era originário o Rei David - do qual a Virgem descendia.
            O Menino foi colocado numa mangedoura, na qual sua mãe o aqueceu com os panos de que dispunha, e pelo bafo de dois animais, que representavam os animais saídos da Arca de Noé: um boi e um burro. O burro seria, talvez, o ancestral de outro burro, o que carregaria Jesus na sua entrada triunfal em Jerusalém, quando o Rabi foi aclamado pelos habitantes de Jerusalém, inclusive pelas crianças.
            O silêncio, com que o mundo acolheu a vinda do Criador à terra, foi acompanhado de outro silêncio, o dos campos da Judéia onde pastores apascentavam seus rebanhos.
            Os únicos a terem falado foram os Anjos. Falaram e cantaram, anunciando aos homens, amados por Deus, que o Salvador tinha vindo à terra para trazer a paz.
            Num poema da Divina Comédia, Dante celebrizou essa paz num incomparável verso:
            -A sua vontade é a nossa paz.
            É verdade que, no contexto poético de Dante, a paz era uma espécie de tradução do termo hebraico shalom, que significa a felicidade.
            As estrelas permaneciam silenciosas no firmamento. Elas costumam transmitir umas às outras suas mensagens misteriosas, sem nunca apelarem para as palavras.
             O Salmo 19 adverte:
            -Não há palavras para os dias que comunicam uns a outros seu discurso. Deles não se ouve som algum, embora suas vozes se façam ouvir por toda a terra”...
            Apesar de silenciosas, as estrelas do Oriente não permitiram que passasse inobservado o fenômeno divino da Encarnação do Verbo, que se inseriu na conturbada História da Humanidade. Uma das estrelas tomou a si a iniciativa de guiar três Reis Magos, vindos do Irã, ao humilde Presépio, que se situava numa cidade que ainda  hoje existe, já agora num território dilacerado por tensões étnico-religiosas.
            Que maravilhoso seria se, na comemoração do Natal, as nações cristãs, concordassem em instituir um minuto de silêncio em homenagem a tão grande Mistério!
            Seria preciso que não se ouvisse som algum em nosso mundo!
Seria preciso que a paz, silenciosa como as estrelas (ao contrário de nossos ícones que, para serem ovacionados, inflamam as multidões) entrasse nos corações na ponta dos pés, e aí fizesse adormecer as almas ao som da Noite Feliz, traduzida para o português por um frei franciscano de Petrópolis, o qual preferiu o adjetivo feliz ao adjetivo original alemão stille: Noite Silenciosa!
            Não seria tão complicado fazer rimar Noite Silenciosa com Solitária Rosa!
            Existe, em toda a parte uma, ou várias rosas solitárias. Aqui e acolá, descobre-se uma mulher silenciosa, um homem silencioso, um cachorro silencioso, uma coisa silenciosa.
            A alegria tende a exceder seus limites. As dores e as tristezas são, por temperamento, introvertidas. Profundamente silenciosas.  
            Podemos, pois, orar:
            Noite Silenciosa,
            Noite Feliz:
            ajuda-nos a encontrar a Deus,
            ou antes,
            a sermos encontrados por Ele!




Escritor, teólogo, filósofo, ensaísta, crítico de arte, poeta e cronista gaúcho, Armindo Trevisan nasceu em Santa Maria, em 1933. Doutor em Filosofia pela Universidade de Fribourg, Suíça. Bolsista da Fundação Calouste Gulbenkian em 1969 e 1974. Professor de História da Arte e Estética na UFRGS, de 1973 a 1986. Lecionou no Curso de Pós-Graduação em Artes Visuais da UFRGS até 1999. Vencedor do Prêmio Nacional de Poesia Gonçalves Dias (1964), pela União Brasileira de Escritores, com “A Surpresa de Ser” (comissão julgadora composta por Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Cassiano Ricardo). Em 1972, ganhou o Prêmio Nacional de Brasília para Poesia Inédita, por “O Abajur de Píndaro”. Em 1997, venceu o Prêmio APLUB de Literatura pelo livro “A Dança do Fogo”. Em 2001, foi Patrono da Feira do Livro de Porto Alegre. Já em 2004, recebeu o Prêmio Fato Literário, dado a personalidade ou instituições que mais contribuíram com as letras gaúchas. Tem poemas e ensaios traduzidos em alemão, italiano, espanhol e inglês.

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Milton Nascimento - "Geraes" (1976)

 

"Esses gerais são sem tamanho."
Guimarães Rosa, "Grande Sertão: Veredas"

"Sou o mundo, sou Minas Gerais."
Da letra de "Para Lennon e McCartney", de Lô Borges, Marcio Borges e Fernando Brant


Tom Jobim e o desenho sinuoso e sensual da Rio de Janeiro. 

Dorival Caymmi e a Bahia dos pescadores e santos do candomblé. 

Moondog e as pradarias inóspitas do Wyoming. 

Robert Johnson e as infinitas plantações de algodão do Mississipi. 

Violeta Parra e a imensidão das cordilheiras andinas. 

É sublime quando um músico consegue atingir tamanha simbiose entre ele e seu espaço, a ponto de passar a representar, através de sua arte, uma paisagem física. É como se ele fosse, por intermédio dos sons, não originário deste lugar, mas, sim, o próprio lugar.

Milton Nascimento é um destes seres que, como o próprio nome indica, nasce e gera a própria terra, Minas Gerais. O homem que integra a seu próprio nome um estado inteiro, o seu mundo. E não digam que Mi(lton) Nas(cimento) é mera coincidência linguística! Mais correto é afirmar que os Deuses - os do candomblé, da Igreja, muçulmanos, indígenas, todos aqueles que perfazem a cultura mineira - assim quiseram a este carioca desgarrado abraçado como um filho pelos morros de cor ferrosa das Gerais, os quais, junto à lúdica maria fumaça, ele mesmo representa na icônica capa em desenho a próprio punho. Como um ser pertencente àquela terra a qual se homogeiniza. 

Em meados dos anos 70, Milton já havia percorrido muita estrada de terra na boleia de um caminhão. Na faixa dos 35 anos, pai, casado, consagrado no Brasil e no exterior, idolatrado e gravado por Elis Regina, mentor do movimento musical mais cult da modernidade brasileira, autor de algumas das obras mais icônicas do cancioneiro MPB. O reconhecido talento como compositor, cantor, arranjador e agente catalisador misturava-se, agora, com a sabedoria da maturidade - como se ainda coubesse mais sabedoria a este ser nascido gênio. Quase que naturalmente a quem já havia ganhado o centro do País e desbravado o principal mercado fonográfico do mundo, o norte-americano, Milton, então, volta-se à sua própria essência: a terra que lhe é e a qual pertence. 

Mas Milton, carinhosamente chamado de Bituca por quem o ama, não faz isso sozinho, visto que convoca seu talentoso Clube da Esquina, reforçando o time de amigos, inclusive. Se "Minas", a primeira parte deste duo de álbuns gêmeos, explora a grandiosidade das geraes Guimarães Rosa de Drummond, seja em sons e letras, "Geraes" solidifica essa ideia quase que como um milagre: um homem torna-se seu próprio som. Ou melhor: transforma-se em montanha para, do alto de topografia, emitir a sonoridade da natureza. Samba, rock, soul, folk, jazz, toada, sertanejo, candombe, trova, oratório... world music, não só por acepção, mas por intuição, é o termo mais adequado para classificar.

A ligação entre uma palavra e outra, entre um título e outro, entre um disco e outro, se dá pelo mesmo acorde que desfecha “Simples”, última faixa de "Minas", e abre, em ritmo de toada mineira, a linda "Fazenda" (“Água de beber/ Bica no quintal/ Sede de viver tudo/ E o esquecer/ Era tão normal que o tempo parava"). A religiosidade católica do povo, traço cabal da cultura mineira, transborda tanto em "Cálix Bento", com a marca do violão universal de Milton e o emocionante arranjo de Tavinho Moura sobre tema da Folia de Reis do norte de Minas, quanto em "Lua Girou", outro tema do folclore popular – este da região de Beira-Rio, na Bahia – vertida para o repertório pela habilidosa mão do próprio Bituca. 

O lado político, claro, está presente. Milton, consciente da situação do País e jamais acovardado, não havia esquecido das recentes retaliações da censura que quase prejudicaram seu "Milagre dos Peixes", de 3 anos antes, um verdadeiro milagre de ter sido gestado com tamanha qualidade. O parceiro e produtor Ronaldo Bastos, além da concepção da capa, é quem pega junto em "O Menino", escrita anos antes pelos dois em homenagem ao estudante Edson Luís, assassinado em 1968 em um confronto com a polícia no restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro, episódio que uniu a sociedade em protestos que culminaram com a famosa Passeata dos Cem Mil contra a Ditadura Militar. E que luxo a banda que o acompanha: João Donato (órgão), Nelson Angelo (guitarra), Toninho Horta (guitarra), Novelli (baixo), e Robertinho Silva (bateria). Com a mira militares a outros artistas naquele momento, como Chico Buarque, Milton pode, enfim, lançar a música e não se calar diante da barbárie. 

Quem também garante o grito de resistência é um recente e igualmente genial amigo, com quem tanto e tão bem Milton produziria a partir de então. Justamente o então visado Chico Buarque. É com ele que Milton canta a canção-tema do filme "Dona Flor e Seus Dois Maridos", de Bruno Barreto, um sucesso de bilheteria no Brasil à época, "O que Será (À Flor da Pele)". Fortemente política, a letra, cantada com melancolia e até tristeza, reflete os tempos de iniquidade humana: "O que será que será/ Que dá dentro da gente que não devia/ Que desacata a gente, que é revelia/ Que é feito uma aguardente que não sacia/ Que é feito estar doente duma folia/ Que nem dez mandamentos vão conciliar/ Nem todos os unguentos vão aliviar/ Nem todos os quebrantos, toda alquimia/ Que nem todos os santos, será que será...". Gêmea de "O que Será (À Flor da Terra)", Milton retribui o convite e divide com Chico os microfones desta última no álbum dele naquele mesmo ano, o não coincidentemente intitulado “Meus Caros Amigos”


Milton e Chico: encontro mágico promovido à época
de "Geraes" e que deu maravilha à música brasileira

A maturidade filosófico-artística de Milton era tão grande, que as dimensões do que é grande ou pequeno, do que é parte ou geral, se reconfiguram numa consciência elevada de humanidade. A ligação universal de Milton com sua terra passa a significar o ligar-se a América Latina. Afinal, sua Minas é, como toda a latinoamérica, dos povos originários. “San Vicente” e "Dos Cruces", de "Clube da Esquina”, já traziam essa semente que “Geraes”, mais do que “Minas”, solidificaria, que é essa visão ampla do território, dos povos. Primeiro, na realização do sonho de cantar Violeta Parra com Mercedes Sosa. Apresentada a Milton por Vinícius de Moraes, La Negra divide com Milton os microfones da clássica “Volver a los 17”. Igualmente, vê-se o encontro dos rios do Prata e São Francisco, que não poderiam deixar de fazer brotar aquilo que os perfaz e lhes dá sentido: água. É com o conjunto de jovens chilenos deste nome, amigos recém conhecidos, que Milton instaura de vez, na acachapante “Caldera”, a alma castelhana dos hermanos na música popular brasileira – convenhamos, muito mais do que os músicos da MPG, cuja proximidade regional do Rio Grande do Sul propiciaria tal fusão mais naturalmente. É o canto dos Andes – mas também de Minas – sem filtro. 

As amizades, aliás, estão presentes em todos os momentos, e o território de Milton é como uma grande aldeia onde ele, consciente de seu papel de pajé, mantém a egrégora sob a força do amor. Fernando Brant, parceiro desde os primeiros tempos, coassina aquela que talvez seja a música mais sintética de todo o disco: “Promessas De Sol”. A sonoridade latina das flautas andinas, a percussão marcada pelo tambor leguero, o violão sincrético de Milton e os coros constantes e tensos dão à canção a atmosfera perfeita para um os mais fortes discursos políticos que a Ditadura presenciou em música. “Você me quer belo/ E eu não sou belo mais/ Me levaram tudo que um homem precisa ter”. Épica, como uma ópera guarani, a melodia vai escalando de um tom baixo para, ao final, se encerrar com intensos vocais de Milton bradando, denunciativo: “Que tragédia é essa que cai sobre todos nós?” 

Parece que não cabe mais emoção num álbum como este. Mas cabe. A brejeira “Carro De Boi”, de Cacaso e Maurício Tapajós (“Que vontade eu tenho de sair/ Num carro de boi ir por aí/ Estrada de terra que/ Só me leva, só me leva/ Nunca mais me traz”) casa-se com a inicial “Fazenda” seja na ludicidade ou na sonoridade ao estilo de cantiga sertaneja. Mas tem também a jazzística e comovente “Viver de Amor”, em que novamente Ronaldo, desta vez em parceria com o excepcional Toninho Horta, compõem para a voz cristalina de Milton uma das canções românticas mais marcantes de toda a discografia brasileira. Ronaldo, múltiplo, também tira da cartola mais uma vez com Milton outra joia do disco, que é o samba-jongo “Circo Marimbondo”. Assim como Milton, de ouvido tão absoluto quanto sensível, fizera ao contar com a voz de Alaíde Costa para cantar com ele "Me Deixa em Paz" em “Clube da Esquina”, aqui ele vai na fonte mais inequívoca para este tipo de proposta musical que une África e Brasil: Clementina de Jesus. Na percussão, além de Robertinho no tamborim e surdo, também outros craques da “cozinha”: Chico Batera, no agogô; Mestre Marçal, cuíca; Elizeu e Lima, repique; e Georgiana de Moraes, afochê. E que delícia ouvir o canto anasalado e potente da deusa Quelé acompanhada pelo coro de Tavinho, Miúcha, Chico, Georgiana, Cafi, Fernando, Bebel, Ronaldo, Bituca, Vitória, Toninho e toda a patota! 

Para encerrar? A música que conjuga o primeiro e o segundo disco, o corpo e o espírito: “Minas Geraes”. O violão carregado de traços étnico-culturais de Milton, sua voz que escapa do peito emoldurando-se ao vento, a docilidade das madeiras, a singeleza do toque do bandolim. Clementina, em melismas, embeleza ainda mais a canção, lindamente orquestrada por Francis Hime – outro novo amigo cooptado por Milton da turma de Chico. Tudo converge para um final emocionante, que, como os próprios versos dizem, saem do “coração aberto em vento”: “Por toda a eternidade/ Com o coração doendo/ De tanta felicidade/ Todas as canções inutilmente/ Todas as canções eternamente/ Jogos de criar sorte e azar”. 

Ouvindo-se “Minas” e “Gerais”, duas obras não somente maduras como altamente densas, simbólicas e encarnadas, é impossível não ser fisgado pelo mistério da música de Milton Nascimento. Encantamento que remete ao mistério da criação, o mistério da vida. Wayne Shorter, parceiro de Milton e mutuamente admirador, quando perguntado sobre esta esfinge que é a obra do amigo, diz: “Bem, ouça você mesmo, pois não há palavras para descrever. Apenas sinta”. Milton, que completa 80 anos de vida sobre o mundo, o seu mundo, é tudo isso: uma força da natureza. Ele é mais do que música: é som em estado puro. É mais que tempo: é a harmonia do espaço. 

Milton é mais do que homem: é pedra. Eterna.

********

É impressionante perceber hoje, em retrospectiva, que o encontro de dois gênios da música brasileira se deu exatamente na época deste trabalho. Depois de aberta a porteira da fazenda de Milton para Chico, só vieram coisas lindas. Além de parcerias nos anos subsequentes - inclusive no célebre "Clube da Esquina 2", de 1978 - naquele mesmo ano de 1976 os dois se reuniriam para gravar o compacto "Milton & Chico", lançado oficialmente um ano depois. Incluído em "Geraes" na versão para CD, esta gravação clássica dos dois traz duas faixas: a melancólica "Primeiro de Maio", que denuncia a vida oprimida do trabalhador brasileiro no feriado dedicado a ele, e "O Cio da Terra", também combativa e ligada ao trabalhador, mas do campo, que se tornaria uma das canções emblemáticas do repertório tanto de Chico quanto de Milton.

********


FAIXAS:
1. "Fazenda" (Nelson Angelo) - 2:40
2. "Calix Bento"(Folclore popular - Adap.: Tavinho Moura) - 3:30
3. "Volver a los 17" - com Mercedes Sosa (Violeta Parra) - 5:10
4. "Menino" (Milton Nascimento/ Ronaldo Bastos) - 2:47
5. "O Que Será (À Flor da Pele)" - com Chico Buarque (Chico Buarque) - 4:10
6. "Carro de Boi" (Maurício Tapajós/ Cacaso) - 3:40
7. "Caldera (instrumental)" - com Grupo Agua (Nelson Araya) - 4:25
8. "Promessas do Sol" - com Grupo Agua (Milton Nascimento/ Fernando Brant) - 5:00
9. "Viver de Amor" (Toninho Horta/ Ronaldo Bastos) - 2:34
10. "A Lua Girou" (Milton Nascimento) - 3:42
11. "Circo Marimbondo" - com Clementina de Jesus (Milton Nascimento/ Ronaldo Bastos) - 2:55
12. "Minas Geraes" com Grupo Agua e Clementina de Jesus (Novelli/ Ronaldo Bastos) - 5:13

Faixas bônus da versão em CD:
13. "Primeiro De Maio" - com Chico Buarque (Milton Nascimento/ Chico Buarque) - 4:46
14. "O Cio Da Terra" - com Chico Buarque (Milton Nascimento/ Chico Buarque) - 3:48


********

OUÇA O DISCO
Milton Nascimento - "Geraes" 


Daniel Rodrigues