Tudo que é programação cultural neste pós-pandemia tem tido um gosto especial, seja uma ida a um museu, um passeio no parque ou assistir um filme no cinema. Outro tipo de programa que Leocádia e eu vínhamos evitando – embora muita gente por aí já viesse se permitindo – eram os shows. Em maio, vimos Djavan no teatro numa oportunidade única, mas show em local aberto, com multidão e tudo, fazia mais do que o tempo de pandemia que não curtíamos.
Mas o avanço do controle da Covid somado a uma linda (embora fria) tarde de sol em Porto Alegre nos fez comparecer ao Blues Jazz Brasil Festival, ocorrido no Parque da Redenção no último dia 30. Nos moldes do antigo Festival BB Seguridade, o qual ocorreu com este nome até ano passado e que estivemos em 2016 no mesmo lugar, este evento traz sempre uma programação musical bem interessante, intercalando artistas brasileiros e estrangeiros e em um horário, das 11h às 20h30, bom tanto para quem passeia pelo parque quanto para quem vai conferir os shows ou apenas algo específico. Foi o nosso caso. Embora tenhamos dado uma passeada no famoso Brick da Redenção, feira de rua que ocorre tradicionalmente numa das avenidas que ladeiam o parque, nossa intenção maior no festival era mesmo assistir à lendária Som Imaginário, a banda mineira que, além de ser a mais célebre de apoio de Milton Nascimento mas também de Gal Costa, Erasmo Carlos e outros, tem um trabalho autoral digno dos maiores da discografia instrumental brasileira. Banda que tem como cabeça o mestre Wagner Tiso e que teve ninguém menos que Zé Rodrix, Tavito, Naná Vasconcelos e Laudir de Oliveira na formação!
Com Tiso ao piano; Luiz Alves, no baixo; Nivaldo Ornelas, nos saxofones; Robertinho Silva, na bateria; e o inglês radicado no Brasil David Chew, no violoncelo, a Som Imaginário trouxe uma hora de apresentação à altura de sua lenda. A inequívoca química de música clássica, com jazz, rock progressivo e música brasileira, uma das mais originais de toda a MPB. Eles começaram o show com a música que dá título ao seu memorável álbum de 1973, “Matança do Porco”, um jazz psicodélico e melancólico que, na ausência da guitarra original de Frederiko, ganhou no cello de Chew e no sax barítono os elementos solistas perfeitos. Até o final da música, depois de vários minutos de um crescendo, originalmente executada por uma grande orquestra, encontro no som coeso dos cinco músicos no palco força suficiente.
A lendária Som Imaginário no palco: Tiso, Robertinho, Chew, Nivaldo e Luiz
Na sequência, outra clássica: “Armina”. Também do repertório de “Matança...”, é talvez o mais célebre tema da Som Imaginário, que traz aquela emocionante melodia valseada de piano de Tiso, que a toca ao piano com uma graça imensurável. Aliás, não apenas ele mas toda a banda, visto que a música está longe de se reduzir a estes acordes. Teve também outras clássicas do repertório da banda; o jazz fusion “A3”, a prog-jazz “Banda da Capital” e o baião-rock “Os Cafezais sem Fim”, do repertório solo de Tiso.
Teve, no entanto, para além do repertório da banda, outras quatro justamente do autor que lhes motivou a formação: ninguém menos que Milton. Tiso & cia. tocaram “Maria Maria”, “Travessia”, “Vera Cruz” e uma arrasadora versão de "Cravo e Canela” como bis para desfechar.
Afora isso, algumas considerações pertinentes sobre o show e sobre o festival:
1) Embora a folclore em torno do nome de Zé Rodrix ter sido integrante da banda na primeira formação, a Som Imaginário foi, sim, melhor sem ele. Seus naturais carisma e liderança prevaleceram nos dois primeiros discos da banda, que definiu de fato seu som depois de sua saída, quando deixou de lado a marcante psicodelia e irreverência de Rodrix para assumir a sonoridade instrumental jazzística e erudita sobre as influências roqueiras e folclóricas que marcaria a Som Imaginário. Isso se percebe em “Matança do Porco”, disco ao qual, não à tona, o repertório do show foi baseado.
2) Uma semana antes, a programação do festival havia anunciado o show da “Som Imaginário & Fredera”, ou seja, o guitarrista original da banda, Frederiko. Sem a vinda dele, pelo visto de última hora chamou-se para substituir Chew, cabeça da Rio Cello Ensemble que toca há muitos com Tiso. Seria legal ver Fredera, claro, mas ficou bonita a formação com o instrumento tipicamente clássico.
3) No intervalo do show anterior, antes da Som Imaginário subir ao palco, teve apresentação da deliciosa Orleans Street Jazz Band, que sempre toca no meio da plateia. Gravamos um pedacinho do gracioso número que eles fizeram com sua sonoridade típica do sul norte-americano.
AOrleans Street Jazz Bandtocando o clássico"Hello, Dolly"
4) A programação do festival terminaria com o show do célebre Stanley Jordan com Dudu Maia. Embora sejamos fãs do guitarrista norte-americano, este era, além de previsto para algumas horas mais tarde, exatamente o mesmo show que assistimos em 2016. Desta vez, então, deixamos para outra ocasião os "magic touchs" de Jordan.
5) Ainda sobre a Som Imaginário, o público em geral recebeu com a frieza de quem nem tinha noção de quem estava assistindo – se é que estavam assistindo, pois conversando e de costas pro palco a meu ver não se faz possível. Ainda mais considerando a raridade de uma apresentação como aquelas, com a banda praticamente original e reunida apenas esporadicamente. Quiçá reconheciam Tiso, mas parava por aí para a maioria. Isso explica a reação apenas mediana da maioria, que tinha a expressão de: “esses caras devem ser importantes, mas como não quero passar vergonha por não saber, vou vibrar um pouquinho”.
6) Depois do show, apenas em casa que fomos ver pelas redes sociais que tinha um monte de amigos que também foram ao festival mas que poucos encontramos por lá. Estamos desacostumados com eventos assim. Da próxima vez, vamos estar mais ligados para promover os encontros.
7) Contudo e afora o resto, valeu muito a pena! Maravilhoso voltar aos espetáculos ao vivo.
O clima de alegria da Redenção numa ensolarada e convidativa tarde
Mais da Som Imaginário com sua formação quase original
Telões dos dois lados do palco também ajudavam a ver o show
À nossa frente, os mais atentos ao show como nós
Quanto sol! Nós curtindo o Blues Jazz Festival: de volta aos show, finalmente!
"O mundo dá adeus comovido a um dos seus maiores músicos."
Caetano Veloso
“O que eu quero fazer agora é música livre das restrições do tempo.”
Ryuichi Sakamoto
Como pode a gente se apegar a alguém que nunca se viu pessoalmente – nem sequer através da distância plateia/palco como se dá a artistas a que se assiste – e que está a quilômetros de ti, noutro país? Neste caso, não somente noutro país, mas ainda mais longe, noutro continente, no outro lado do mundo. No Japão. Ryuichi Sakamoto era, é, como um parente sanguíneo na minha casa. Ele é seguidamente convidado a entrar, sentar-se ao sofá, estender-se na cama, a cozinhar ouvindo música. Sempre aceitou os convites com a gratidão e a sapiência calma dos orientais. Embora toda esta intimidade, obviamente, o parentesco não existe. Nem sequer, como abri dizendo, conheci-o pessoalmente quando em vida - quanto menos conhecemo-nos, de ele e eu reconhecerem-se mutuamente como fazem os próximos. Eu, brasileiro fruto da África e da Europa. Ele, japonês, filho de dinastias orientais longevas.
Então, como se explica tamanha familiaridade, tamanha cumplicidade? Bastam poucas audições de sua grandiosa e universal música para se entender. Afora a proximidade dele com a música daqui do Brasil, a qual não apenas admirava como atuava a se ver pelas parcerias com Caetano Veloso, Arto Lindsay, Marisa Monte, Jacques Morelembaum e outros, a obra de Sakamoto, mesmo as mais identificavelmente orientais, pertencem ao Planeta. Até mesmo quando diversas vezes usou os elementos folclóricos típicos do Japão em sua música, Sakamoto o fez à sua maneira: abarcante, cosmopolita, conectada, democrática, inclusiva. Soava japonês, mas africano, americano, indígena, nórdico. Soava a todos os povos.
Sakamoto, de fato, são muitos. O Sakamoto do final dos anos 70, que ajudou a cunhar o synth pop e a new wave com a precursora Yellow Magic Orchestra e que tanto inspirou grupos do Ocidente como Cabaret Voltaire, Human Leaugue, New Order, Depeche Mode. O Sakamoto maestro, que regeu a Filarmônica de Tóquio. O Sakamoto dono de uma das discografias mais ecléticas e diversas da música pop, com trabalhos que vão desde o experimental à bossa nova, passando pela eletrônica, o erudito e a trilhas sonoras. O Sakamoto instrumentista, colaborador de obras marcantes do pop-rock, como da Public Image Ltd., David Sylvian, Thomas Dolby e Towa Tei. O Sakamoto que engendrava trabalhos multiplataformas, que cruzavam música, artes visuais e performance.
"Beauty", seu oitavo disco solo, de 1989, é, afora a própria nomenclatura, um resumo de uma concepção de mundo múltipla, pois humanista e libertária. Gente de todas as nacionalidades tocam em suas 11 faixas. Suíça, Senegal, Brasil, Inglaterra, Japão, Espanha, Jamaica, Índia, Estados Unidos, Burkina Faso, Canadá, Coréia... Sakamoto realizou, com a naturalidade de um mestre sensei, a conjunção difícil da world music, aventada por alguns, mas nem sempre acessível e palatável. "Beauty" aprofunda a experiência lançada em “Neo Geo”, seu álbum anterior, convidando para este passeio sonoro músicos da mais alta qualidade e diferentes vertentes, como o icônico beach boy Brian Wilson, o veterano “The Band” Robbie Robbertson, a poesia ancestral de Youssou N'Dour, os percussionistas africanos Paco Yé, Seidou "Baba" Outtara e Sibiri Outtara, os jazzistas Mark Johnson e Eddie Martinez e mais uma turba de conterrâneos arraigados na música tradicional oriental.
Do Brasil, especialmente, Arto toca guitarra, canta e coassina com ele cinco faixas, entre elas as tocantes “A Pile Of Time”, com o som característico do gayageum coreano; “Rose”, com percussões de ninguém menos que Naná Vasconcelos, e a linda “Amore”, que além da sonoridade arábica do shekere e da batida especial do talking drum, tem contracantos de N'Dour sobre os simples versos cantados pelo próprio Sakamoto: “Good morning/ Good evening/ Where are you?” De arrepiar.
Os encantos não param por aí. O craque Robert Wyatt empresta sua dolorida voz para Sakamoto versar Rolling Stones em "We Love You", que tem ainda as contribuições do congolês Dally Kimoko na guitarra, do britânico Pino Palladino no baixo, do porto-riquenho Milton Cardona no shekere e de coro multiétnico encabeçado por Wilson, Kazumi Tamaki, Misako Koja, Yoriko Ganeko e o próprio Sakamoto. Tem ainda “Calling From Tokyo”, a faixa de abertura, um art-pop com a bateria jamaicana de Sly Dunbas e a tabla indiana de Pandit Dinesh; a espetacular “Diabaram”, com a voz penetrante de N'Dour, que faz remeter a uma humanidade pacífica da Ática-Mãe quiçá perdida; a contemplativa “Chinsagu No Hana”, adaptação de canção tradicional do folclore de Okinawa, assim como “Chin Nuku Juushii”, de “Neo Geo”; “Asadoya Yunta”, cujo inconfundível som do samisém tocado pela japonesa Yoriko Ganeko lhe confere séculos de conhecimento, e “Romance”, totalmente oriental, mas totalmente planetária.
Por essa riqueza toda que a obra de Sakamoto carrega que fico chateado (mas não surpreso) com as manchetes de anúncio de sua morte, ocorrida no último dia 28, aos 71 anos. As notícias de veículos referenciais da imprensa dão conta, em sua maioria, de que: "Morre Ryuichi Sakamoto, célebre compositor que levou o Oscar por 'O Último Imperador'". Ora, Oscar é importante, sim, mas ESSE é o destaque para se falar em Sakamoto?! Pegando-se apenas o cinema, não precisa ser um fã ou profundo conhecedor de Sakamoto para apenas atentar-se a outras trilhas sonoras assinadas por ele e perceber o quanto sua obra se entrelaça com as nossas vidas há décadas, a exemplo de “De Salto Alto”, "Femme Fatale", "O Regresso" e "Black Mirror".
Sakamoto, como Akira Kurosawa, me mostrou há muitos anos que essa dicotomia Orient-Occident, tal o yin-yang taoísta, serve para a geografia ou a estadistas divisionistas. Se Kurosawa quebrou as barreiras ao levar para o cinema do Oriente Shakespeare, Dostoiévski e Gorki, intercambiando, igualmente, a cultura japonesa com o Ocidente, Sakamoto fez, a seu curso, semelhante trajeto. Ao atravessar o Greenwich com sua música, provou que não existem divisões na humanidade. Difícil ensinamento para um mundo tão desigual e superficial... E mais: mostrou que lhe existe, sim, o belo. Sakamoto, esse meu ente que se foi. Mas só de corpo físico. As outras matérias ele generosamente deixou para nós mundanos através dos sons. Por isso, estará sempre presente aqui em casa, pois sabe que a porta está permanentemente aberta para ele entrar com sua beleza e ficar quanto tempo quiser.
RYUICHI SAKAMOTO
(1952-2023)
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FAIXAS:
1. "Calling from Tokyo" (Arto Lindsay, Roger Trilling, Ryuichi Sakamoto) - 4:26
Meu
amor por Caetano Veloso resplandecia quando escutei “Circuladô”.
Como qualquer brasileiro, hora ou outra ouvia alguma música desse
artista baiano por aí. Porém, na infância (época em que já me
ligava em música, vale dizer), meu interesse por aquele cara que
apresentava um programa que achava meio chato na Globo com o Chico Buarque era menor do que para com as bandas de rock da época, RPM, Legião Urbana, Titãs, entre outros. Essas realmente me empolgavam.
Fui escutá-lo com atenção e identificação pela primeira vez em
1988 (aos 9), quando meu irmão trouxe para casa um cassete com um
dos discos dele, o qual tinha uma sonoridade leve e acústica que me
dava condições de perceber com clareza as ricas construções
melódicas, o timbre cristalino da voz e a habilidade composicional
de Caê. O disco era “Caetano Veloso”, de 1986, feito para o
mercado norte-americano que continha coisas de várias épocas de sua
obra, como “Trilhos Urbanos”, “Cá Já”, “Terra” e duas
versões magníficas em inglês: “Billy Jean” (Michael Jackson) e
“Get Out of Town” (Cole Porter). Foi então que percebi: aquilo era,
evidentemente, diferenciado. Tinha que passar a ouvi-lo com mais
atenção de modo a não correr o risco de perder algo espetacular
que se apresentava à minha frente.
E
teria perdido mesmo. Apaixonei-me por seu álbum seguinte, “O
Estrangeiro”, de 1989, outro fundamental e no qual ele inicia a
grande fase da parceria com o Ambitious Lovers Arto Lindsay e com o
eclético maestro Jacques Morelembaum. Mas o disco que realmente me
fez entrar de vez na órbita de Caetano foi “Circuladô”, de
1991. No momento em que a MTV brasileira se estabelecia como um canal
bom e vendável, a indústria musical nacional, claro, se ligou neste
filão. Como já ocorria nos Estados Unidos, músicos passaram a
produzir com a mente não só na execução das rádios, mas no
videoclipe que produziriam para passar na Music Television. Com o
antenado Caetano Veloso, não foi diferente. A música de trabalho do
álbum estreou na emissora com um ótimo clipe da Conspiração
Filmes (com a participação do grupo de teatro Intrépida Trupe),
onde o compositor apresentava algo interessantíssimo: quase só voz
e percussão durante os versos, com uma guitarra wah-wah de
leve ao fundo, explodindo num samba-reggae no refrão com percussões
e samples, “Fora da Ordem” trazia a inteligente
verborragia político-filosófica de Caetano sobre sua visão
discordante – mas ao mesmo tempo poética – da Nova Ordem
Mundial, então recentemente anunciada por Bush “pai”: “Eu
não espero pelo dia em que todos os homens concordem/ Apenas sei de
diversas harmonias bonitas, possíveis sem Juízo Final”, versava
Caetano.
“Fora
da Ordem”, mesmo sem um ritmo identificável (não é exatamente
rock, reggae, funk ou samba) estourou e virou, em pouco tempo, um hit
dos mais tocados na MTV. Ao seu final, engenhosas repetições da
frase central da letra (“Alguma coisa está fora da ordem/ Fora
da Nova Ordem Mundial...”) ditas em outros idiomas que não o
português, como francês, japonês, espanhol e inglês, intercalando
vozes do cantor e femininas – entre estas, a de Bebel Gilberto.
Esta faixa abre o disco, que adquiri na época com grande interesse
de descobrir o que mais conteria. Já na primeira audição, o lado A
do meu cassete me arrebataria, sensação que se repete até hoje.
Isso porque, depois da música que não cansava de rever todos os
dias na TV, viria uma sequência de emocionar. A começar pela faixa
que traz a ideia central do álbum: “Circuladô de Fulô”, poesia
do filólogo, ensaísta e poeta Haroldo de Campos musicado por
Caetano com absoluta genialidade. O compositor já exercitava isso desde os anos 60, tendo posto música sobre poemas de Waly Salomão,
Torquato Neto, Gregório de Matos, Paulo Leminski, entre outros. Mas
essa é sua obra-prima neste sentido. Remetendo ao baião e ao
repente do mais embrionário folclore nordestino, ao mesmo tempo traz
a dissonância da vanguarda erudita, a polifonia dos motetos
populares medievais e um toque da milenar sonoridade oriental.
Caetano desliza o poema sobre os sons, cantando linda e tecnicamente
os versos que merecem ao menos a reprodução de um trecho: “O
povo é o inventalínguas na malícia da maestria no matreiro da
maravilha no visgo do improviso/ Tenteando a travessia/ Azeitava o
eixo do sol...”. Algo da melhor poesia já escrita em nossa
literatura.
O
próprio Haroldo de Campos comentou sobre a canção: “Devo
destacar que o trabalho que ele fez, ao musicar o fragmento
'Circuladô de Fulô', de minhas 'Galáxias', é particularmente
admirável por retratar com fidelidade seu conteúdo. Ele soube
restituir-me com extrema sensibilidade o clima do meu poema, que é,
todo ele, voltado à celebração da inventividade dos cantadores
nordestinos no plano da linguagem e do som, na grande tradição oral
dos trovadores medievais”.
Minhas
emoções não parariam. De surpresa, a voz adolescente do filho mais
velho de Caetano, Moreno Veloso (ainda não o músico profissional
que se tornaria) inicia, juntamente a uma orquestra de cordas
arranjada por Morelenbaum, uma das mais belas melodias de todo o
cancioneiro de seu pai: “Itapuã”. Lírica, graciosa. Impossível
não ser tocado todas as vezes que escuto: “Itapuã, o teu sol
me queima e o meu verso teima/ Em cantar teu nome/ Teu nome sem fim”,
ou: “Abaeté/ Tudo meu e dela/ A lagoa bela sabe, cala e diz/ Eu
cantar-te nos constela em ti/ E eu sou feliz.” Ainda mais
depois de ter conhecido a praia de Itapuã e ter sentido física e
espiritualmente suas “palmas altas”, suas “águas que se movem”
e sua “areia branca”, tão “assim: Caymmi”, como dizem os
versos.
Igualmente,
toca-me fundo “Boas-Vindas”, um samba-de-roda típico da região
de onde Caetano vem, o Recôncavo Baiano. Isso porque o artista
celebra a renovação da vida com a chegada de seu novo filho, Tom,
ainda na barriga (“Lhe damos as boas-vindas, boas-vindas,
boas-vindas/ Venha conhecer a vida/ Eu digo que ela é gostosa...”),
cantando com a família e amigos (“Minha mãe e eu/ Meus irmãos
e eu/ E os pais da sua mãe...”). O eterno companheiro Gilberto Gil, com sua inconfundível batida de violão; o “príncipe” Naná
Vasconcelos, na percussão (talking drum, cerâmica e congas);
e D. Edith do Prato, tocando, como diz sua alcunha, um prato de
cozinha raspado com um talher. Ainda, Moreno, junto com os outros
músicos, mantém o ritmo nas palmas, numa verdadeira festa de
interior animada ao som de samba rural. Lindíssima.
Dando
uma estratégica pausa nessa sequência, a complexa “Ela Ela”
carrega um manancial de referências e sensações. Apenas com
Caetano à voz e Arto Lindsay na guitarra, é uma verdadeira peça
avant-garde. O característico som do instrumento de Arto, com
sua afinação diferenciada e em altas distorção e amplificação,
cria traços sonoros que se assemelham aos criados por Cage com seu
piano preparado, às cordas agudas de Ligeti, às percussões
exóticas de Xenakis e aos ruídos eletroacústicos das fitas
magnéticas de Stockhausen. Caetano, por sua vez, exercita um arranjo
vocal assimétrico e dissonante, o que, junto aos grunhidos da
guitarra, formam não uma melodia palpável, mas um corpo sonoro de
puro atonalismo. A letra, por sua vez, remete ao modernismo e ao
dadaísmo. “Ela Ela”, no entanto, não lembra apenas essas pontes
externas. Na própria obra de Caetano ele já visitara os caminhos da
vanguarda (e seguiria visitando, haja vista a “doidecafônica”
“Doideca”, do disco “Livro”, de 1997, ou “Cantiga de Boi”,
de “Noites do Norte”, 2001). Na trilha que compusera para o filme
“São Bernardo”, em 1971, nota-se também semelhanças pelo
estilo de canto. Igualmente, nas colaborações com Walter Smetak,
nas experimentações de “Araçá Azul” (1973) e “Jóia”
(1975) e na explosão moderno-nordestina “Triste Bahia”, do
memorável disco "Transa", de 1972.
Se
“Ela Ela” quebra a emotividade com seu hermetismo, “Santa
Clara, Padroeira da Televisão” volta a fazer os olhos marejarem.
Numa interessante abordagem sobre a simbologia e a relevância da
tevê, Caetano desmistifica a visão preconceituosa geralmente
atribuída a esta mídia (“Que a televisão não seja sempre
vista/ Como a montra condenada, a fenestra sinistra/ Mas tomada pelo
que ela é/ De poesia...”) e, ainda por cima, expõe
recordações e impressões pessoais muito belas (“Quando a
tarde cai onde o meu pai/ Me fez e me criou/ Ninguém vai saber que
cor me dói/ E foi e aqui ficou...”). Coisa de poeta. Ao final,
depois de todos os instrumentos calarem, ainda um improvável solo de
trompete bem jazzístico.
Viro
de lado a minha fita e me deparo com bucolismo e melancolia. É a
versão de Caetano para um baião clássico: “Baião da Penha”,
em que reduz o compasso festivo do ritmo para criar uma peça
extremamente sensível e chorosa. Caetano a canta no mais alto nível
técnico apenas acompanhado de seu próprio violão. Em seguida,
“Neide Candolina”, talvez a mais pop do disco cujo brilhante
arranjo coloca o baixo e a guitarra em segundo plano para destacar o
ritmo da bateria, o arranjo de voz criado por Bebel e,
principalmente, os samples do mestre Ryuichi Sakamoto, o
compositor japonês mais brasileiro da world music. São os
efeitos eletrônicos de Sakamoto que dão o direcionamento da canção,
que, ao que se nota só pela descrição, é diferenciada e original.
Tanto
quanto é a letra de “Neide Candolina”, que homenageia a
professora de Língua Portuguesa que Caetano tivera no primário e
com a qual me identifico tamanhamente. Isso porque eu também tive
minha “Neide Candolina”: professora Berenice Brito, a Berê. O
significado de Berê para mim, também homem das letras, é muito
parecido dada a importância formativa que ele atribui à sua mestra.
Primeiro, o fato de serem duas “pretas chiques”, “lindas”
e “elegantes”, ambas ostentando seus cabelos “pixaim
Senegal” onde estiverem, seja na “sua suja Salvador” (no
caso de Berê, na também emporcalhada Porto Alegre) ou na “Europa”
– ainda mais pelo fato de Berê ter um namorado italiano e ir para
o Velho Mundo seguidamente. Igualmente, há a parte em que ele diz:
“Tem um Gol que ela mesma comprou/ Com o dinheiro que juntou/
Ensinando Português no Central”. Dadas as devidas localidades
e modelos, Berê, que ensinou a mesma matéria a mim e a centenas e
centenas de alunos gaúchos na Intercap, tendo se aposentado
exercendo isso, também tinha um veículo próprio Wolkswagen (um
fusca). Afora todas essas coincidências, ainda o exemplo de caráter
e cidadania é característico das duas. Se Neide “nunca furou
um sinal” por ser uma “preta correta democrata social,
racial”, lembro claramente de Berenice fazendo qualquer aluno
(mesmo os que se davam bem com ela, como eu) redigir repetidas vezes
como tema de casa todo o hino nacional caso ela tivesse percebido um
erro na hora de ouvir-nos cantá-lo.
O
clima animado é substituído, em seguida, por um de epicismo e
contemplação. É “A Terceira Margem do Rio”, outra obra-prima
do disco que se trata de, nada mais, nada menos, uma das raras
parcerias de Caetano com outro mestre da música brasileira: Milton Nascimento. Encomendada para a trilha sonora do filme homônimo de
Nelson Pereira dos Santos, baseado na obra de Guimarães Rosa,
carrega a atmosfera rica e densa do escritor tanto na elegante
melodia quanto na letra de alto poder poético de Caetano. O que são
de bonitos esses versos? “Meio a meio o rio ri/ Por entre as
árvores da vida/ O rio riu, ri/ Por sob a risca da canoa/ O rio riu,
ri/ O que ninguém jamais olvida/ Ouvi, ouvi, ouvi/ A voz das
águas...”. A música, típica composição de Milton, traz seu
tom grandioso, muito brasilianista mas quase românico, e isso apenas
em violões e percussões (cerâmica, caxixi e cabaça).
Não
deixando a bola cair, “O Cu do Mundo”, bossa-nova meio rock com
direito a samples e urros da guitarra de Arto, é outras das
mais legais do disco. Lembro-me de ouvi-la na antiga (e finada)
Ipanema FM e me impressionar com aquela letra indignada e sem papas
na língua: “O furto, o estupro, o rapto pútrido/ O fétido
sequestro/ O adjetivo esdrúxulo em U/ Onde o cujo faz a curva/ (O cu
do mundo, esse nosso sítio)”. A palavra “cu” dita de forma
aberta, no título, era uma das primeiras mostras conscientes de
libertação da censura que o Brasil recentemente vivia e que
descambaria na idiotice desbocada dos Mamonas Assassinas. À medida
que as partes vão se repetindo, vão entrando as vozes convidadas:
primeiro, de Gilberto Gil e, depois, de Gal Costa, num arranjo vocal
precioso que Caetano forjaria de maneira semelhante novamente 19 anos
depois na música “Cobra Coral”, quando chamara para dividir os
microfones com ele Lulu Santos e Zélia Duncan. Até o jazzista Butch
Morris faz uma ponta em “O Cu do Mundo”, com um intenso solo de
corneta, certamente contribuição como produtor de Arto, o
pernambucano mais norte-americano da world music.
Canção
irmã de “Você é Linda” (e de “Você é Minha”, que seria
gravada seis anos depois em “Livro”) “Lindeza”, romântica e
suave, é realmente muito bela. Juntamente com o violão-base, estão
o contrabaixo, as cordas e o piano de Sakamoto, que retorna para
finalizar o disco em grande estilo num arranjo criado a seis mãos
por ele, Arto e Caetano. Um acorde grave e ressonante do piano
desfecha esse disco irrepreensível, resultado de um momento de
aperfeiçoamento das técnicas de estúdio (foi gravado no Brasil e
em Nova York, onde também foi mixado e masterizado) e de boas
parcerias com a permanente criatividade de Caetano. “Circuladô”
é tão representativo que passou a servir como referência para
outros discos do próprio autor no que se refere à arquitetura de
repertório. Além das parecenças que já mencionei durante essa
resenha, isso fica evidente ao se fazer ainda outros paralelos, como
os começos pop de “Zii et Zie” (2009, com “Perdeu”) e "Abraçaço" (2012, com “A Bossa Nova é Foda”), a
musicalização de autores da literatura como tema principal do
projeto (“Noites do Norte”, este sobre texto de Joaquim Nabuco)
ou a faixa dedicada à indignação político-social (“Haiti”, de
“Tropicália 2”, de 1993, e “A Base de Guantánamo”, de “Zii
et Zie”).
Quanto
a mim, o impacto que “Circuladô” exerceria seria ainda maior.
Com apenas 13 anos, fui ao show de sua turnê em Porto Alegre, no
antigo Teatro da Ospa, o primeiro que assisti sozinho em minha vida.
Claro que eu, negro de classe média e muito jovem, era uma entidade
estranha naquele lugar, principalmente considerando aquela Porto
Alegre de era Collor em que a maioria dos meus pares ou não se
interessava, ou se constrangia em ir ou não tinha condições de ver
um espetáculo como aquele. Mas os olhares eram mais de admiração
do que de censura. Para mim, foi divertido e emancipador. No entanto,
mais do que isso, foi a partir dali que definitivamente me apaixonei
pela obra e pelo universo de Caetano. Foi a partir dali que meu amor
por ele resplandeceu. Foi a partir dali que tudo virou fulô.
vídeo de"Fora da Ordem",Caetano Veloso
***************
FAIXAS:
1.
Fora da ordem
2.
Circuladô de fulô (Caetano Veloso/Haroldo de Campos)
3.
Itapuã
4.
Boas vindas
5. Ela
ela (Veloso/Arto Lindsay)
6.
Santa Clara, padroeira da televisão
7.
Baião da Penha (Guio de Morais/David Nasser)
8.
Neide Candolina
9. A
terceira margem do rio (Veloso/Milton Nascimento)
10. O
cu do mundo
11,
Lindeza
todas
as composições de autoria de Caetano Veloso, exceto indicadas.