Os Sons de Estimação
A psichodelic era dos anos 60,
sensacionalmente rica, produziu alguns dos maiores talentos da música mundial. John Lennon, Paul McCartney, Jimmi Hendrix, Sid Barret, Ray Davies, Brian Jones, Arthur Lee, Arnaldo Baptista, Lou Reed, Rocky Erikson, Frank Zappa e mais uma
dezena de cabeças geniais. Todos produziram, quando não vários, pelo menos um
trabalho fundamental para a história da música pop. Porém, um destes expoentes,
também surgido à época, criou algo sem precedente dentro da discografia do rock.
Ele é Brian Wilson, líder e principal compositor do The Beach Boys. A obra: “Pet Sounds”, de 1966, uma joia rara da
música do século XX, comparável aos mitológicos "Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band" ou "The Dark Side of the Moon". Requintado e perfeito do início ao
fim, é repleto de detalhismos que somente a mente obsessiva de Brian Wilson
poderia conceber, o que, somado a seu empenho, conhecimento técnico e alta
sensibilidade, resultou num disco inovador em técnicas de gravação, conceito
temático, estrutura composicional, instrumentalização, arranjos, entre outros
aspectos.
“Pet Sounds”,
diz a lenda, surgiu de um sentimento de competitividade alimentado por Brian,
um perturbado jovem com então 24 anos cujo quadro esquizofrênico era
danosamente potencializado pelo vício em LSD. Para piorar: a relação com o pai
era péssima, a ponto de, numa ocasião de briga entre os dois, levar uma pancada
tão forte que o deixou surdo de um dos ouvidos – motivo pelo qual, reza outra
lenda, teria concebido e gravado “Pet Sounds” em mono, uma vez que não conseguia
perceber fisicamente os sons em estéreo. Todo este quadro e o temperamento
vulcânico fizeram com que Brian, maravilhado mas enciumado com o resultado que
os Beatles haviam atingido com seu “Rubber Soul”, lançado cinco meses antes, se
pusesse na missão de superar a obra dos rapazes de Liverpool.
E conseguiu.
“Pet Sounds”
é uma pequena sinfonia barroco-pop jamais superada, nem pelo próprio Beach Boys.
Brian deixa para trás a pecha de mera banda de surf music creditada a eles (o que já se vinha notando desde “The
Beach Boys' Christmas Album”, trabalho
anterior da banda) e se lança na composição, produção, arranjo e
condução de todo o trabalho, resultado de longas e exaustivas pesquisas à
teoria musical e às musicas erudita, folclórica, jazz e pop. O desbunde já
começa na faixa de abertura, a clássica “Wouldn't It Be Nice”. O som fino e
lúdico do harpschord executa uma ciranda,
que faz a abertura de “Pet...” lembrar a de outro LP histórico da época, "The Velvet Underground and Nico", de um ano depois, cujo sonzinho inicial vem de
outras cordas, as de uma delicada caixinha de música. Mas a semelhança para por
aí, pois, se “Sunday Morning” do Velvet varia para um sereno pop-jazz francês,
a dos Beach Boys ganha amplitude e cor. O som do cravo repete o tempo três vezes
até que é interrompido bruscamente por um forte estrondo seco em staccato da percussão. Aquele contraste
entre o agudo cristalino das cordas e o timbre grave da batida faz da abertura
do disco uma das mais belas, conceituais e inteligentes da discografia rock.
Além disso, a música que se desenvolve a partir dali é absolutamente linda.
Elevando o tom, joga o ouvinte num jardim da infância de sons vibrantes e
coloridos num ritmo de banda marcial, onde já se nota que Brian vinha com tudo
em seu desafio pessoal: som cheio, polifonia, coros em contracanto, abundância
de instrumentos e ornados, consonância e equilíbrio total entre graves e
agudos.
Um dos
principais recursos utilizados por Brian no disco para obter esse resultado é a
concepção múltipla da obra como um todo, seja na unidade entre as faixas, na
harmonia ou no arranjo das peças. Bem ao estilo da música barroca dos séculos
XVII e XVIII, ele vale-se da variedade instrumental e, numa decorrência mais
impressionista, de timbres, uma vez que extrai sonoridades de toda a escala
diatônica através de cordas, sopros, percussão, vozes, teclados e até
eletrônicos. Há vários instrumentos exóticos, como mandolin, harpa francesa, ukulele, english corn, banjo, tack piano e temple block. A obsessão de Brian de superar o Fab Four, sabendo da prática dos "rivais" de valerem-se
de variados instrumentos em estúdio, pode ser constatada, inclusive, na
quantidade de instrumentos usados em todo o disco: cerca de 40, tocados por
quase 70 músicos diferentes, incluindo a banda em si: os irmãos Carl (vocais,
guitarra) e Dennis Wilson (vocais, bateria) mais Al Jardine (vocais, tamborim),
Bruce Johnston e Mike Love (ambos, vocais), além do próprio Brian (vocais,
órgão, piano). A belíssima balada “You Still Believe in Me”, das minhas
preferidas, vale-se deste conceito polifônico. Além de baixar o tom da faixa
inicial, explora mais ainda a riqueza dos ornamentos barrocos, como na
complexidade melódica dos corais, que funcionam como um instrumento de teclado
que acompanha o toque do cravo. A percussão, detalhada, vai do sutil som de
sininho a tambores de orquestra, os quais dão um final épico à faixa em curtos
rufares.
Outro trunfo
do disco, na tentativa de Brian de superar até a produção de George Martin para
com os Beatles, é a adoção do modelo de gravação multitrack. Usando vários takes
de vozes e instrumentos tocando ao mesmo tempo e uns sobre os outros, consegue
atingir, assim, timbres únicos. Isso foi possível pelo ouvido apurado de Brian
que, grande fã do produtor Phil Spector, “inventor” das teenage symphonies nos anos 50, chupou-lhe a ideia do “wall of sound”, refinando-a. A “muralha
de som” de Spector aproveitava o estúdio como instrumento, explorando novas
combinações de sons que surgem a partir do uso de diversos instrumentos
elétricos e vozes em conjunto, combinando-os com ecos e reverberações. Isso se
nota em todo o disco, como em “That’s Not Me”, outra espetacular. Lindíssima a
voz de Love, que, limpa e sem overdub,
desenha toda a canção, enquanto a base se sustenta num órgão, nos acordes de ukulele (guitarrinha havaiana) e na combinação
grave/agudo da percussão, em que o tambor e o chocalho ditam o ritmo. “Don't
Talk (Put Your Head on My Shoulder)” é outra balada que faz, novamente, cair o
andamento para um ar melancólico. Mas que balada! Tristonha, romântica e, como
num ornamento rococó, toda cheia de enlevos. Nesta, Brian capricha na
orquestração.
Por falar em
orquestração, duas merecem destaque neste aspecto. A primeira, a não menos
lírica “I’m Waiting for the Day”, que oscila entre um ritmo de balada, levada
por um suave órgão, e momentos de empolgação, quando, lindamente, vozes em
contracanto se juntam a flautas e uma percussão densa em que o tímpano se
destaca na marcação. A orquestra, no entanto, entra por apenas rápidos
segundos, suficientes para pintar a música com alguns traços, quando, lá para o
fim da faixa, logo após Brian cantar com doçura os versos: “I’m waiting for the
day when you can love again”, violinos e cellos,
sem dar pausa entre o fim da vibração da voz e o ataque de suas cordas, aparecem
juntos em um fraseado lírico como uma suave nuvem sonora, integrando voz e
instrumentos. Depois desse breve sonho, estes e todos os outros instrumentos voltam
para encerrar a canção em tom maior, com a voz solo cantando: “You didn't think that/ I could sit around
and let him work...”, enquanto um dos coros faz: “Ah aaah ah/ ah, aaah, ah...”, em três tempos, e o outro vocalisa: “doo- doo/ doo-roo/ doo- doo/ doo-roo...”,
em dois. Estupendo.
A segunda
especial em termos de arregimentação é "Let's Go Away for Awhile”. Como a
faixa-título – uma rumba estilizada em que o compositor se vale da diversidade
de instrumentos que vão desde sopros, como sax alto e trombone, e percussão,
reco-reco e (pasmem!) latas de Coca-Cola, até um método de filtragem de entrada
de som do alto-falante, que dá uma sonoridade específica à guitarra –, é
instrumental, prestando mais um tributo à tradição medieval, uma vez que o
conceito de dissociar música da dança ou do teatro iniciou-se, justamente, com
mestres como Scarlatti e Vivaldi nesta época. Perfeita em harmonia, é quase um pequeno concerto para vibrafone, que conta também com um breve solo de bloco de
madeira, finalizando com um arrepiante diálogo entre bateria e tímpano de
orquestra, sustentados por um arranjo de cordas de caráter grandioso.
Depois do tom
médio de “Let’s...”, o ânimo volta às alturas com a graciosa “Sloop John B”. Na
introdução, outra clássica no disco, um toque de sininho e uma nota de flauta que
se estende, ambos marcados pelo tic-tac
de um metrônomo, dando início à alegre canção, com Brian, Love e Carl
alternando a voz solo e na qual não falta beleza no arranjo das vozes em
contraponto. Brian consegue dar colorações lúdicas a uma canção folclórica
tradicional do Caribe, criando uma música em que dá a impressão de que toda a
caixa de brinquedos ganhou vida e saiu a tocar pelo chão do quarto, cada um com
um instrumento: o soldadinho do Forte Apache com a tuba, o marinheiro com o
tamborim, o indiozinho Pele-Vermelha com os sinos, o playmobil com o clarinete e assim por diante.
Para os
apaixonados por “Pet Sounds” como eu, que o conhecem de trás pra diante, o
final da extrovertida “Sloop...” traz uma emoção especial, pois é sinal de que
vem, na sequência, “God Only Knows”. Magistral, numa palavra. A música que fez
o gênio Paul McCartney sentir inveja alinha-se em magnitude a ícones da música
moderna como "Like a Rolling Stone", "Bolero", "A Day in the Life", "Águas de Março" ou "Summertime". Com uma aura ao mesmo tempo celestial, emocionada e
suplicante, “God...” não poupa o coração dos diletantes, pois o órgão e o toque
do oboé já largam entoando em alto e bom som. Na suave percussão, chocalhos e temple block. As cordas e sopros,
igualmente perfeitos. A voz de Carl transmite uma emoção intensa e não menos
lírica. Após uma segunda parte em que sobe uma gradação, adensando a
emotividade, a faixa se encerra sob belíssimas frases dos sopros e uma
orquestração a rigor, quando as vozes de Carl, Brian e Johnston se misturam,
criando um efeito onírico tal como um Cantus
Firmus, tipo de melodia extraída dos cantochões polifônicos medievos em
louvor ao Senhor. Impossível não lembrar, ouvindo-a, da famosa sequência do filme "Boogie Nights" em que a câmera sobrevoa os cenários mostrando os rumos
tomados na vida de cada personagem, como se Deus estivesse vendo o destino de todos
e dissesse: “só Eu sei”.
“I Know
There's an Answer” (que, nas extras, vem na versão “Hang on to Your Ego“, com
mesma melodia e letra diferente) mantém a beleza polifônica e reforça uma outra
base conceitual do disco: a “teoria dos afetos”. Princípio básico da música
barroca, estabelece correspondência entre os sentimentos e os estados de
espírito humanos. A alegria, consonante, por exemplo, é expressa através dos
tons maiores, acontecendo o inverso para o sentimento de tristeza, em matizes
menores e dissonantes em forma. Por isso, as idas e vindas durante todo o disco
de temas calmos e/ou românticos alternados com outros alegres e mais pulsantes.
Isso que acontece novamente com a “agitada” “Here Today”, que antecede outra
obra-prima de Brian e Cia.: o baladão “I Just Wasn't Made for These Times”.
Com base de cravo, num clima dos oratórios de Bach e Häendel, percussão que
equilibra temple blocks, bateria e
tímpanos, além de impressionantes contracantos, traz ainda uma inovação em
termos de música pop: o electro-theremin,
sintetizador muito usado pela vanguarda erudita da eletroacústica que pouco (ou
nunca) havia sido usado em rock até então. E Brian não só usa como,
inteligentemente, aplica-o de uma forma genial, pois, integrando uma ferramenta
sonora moderna a outras marcantes da Idade Média (como o cravo e o tímpano), a
faz homogeneizar-se ao coro, como se instrumento e voz, natureza e espírito,
Deus e homem fossem a mesma matéria.
Se os Beatles de “Rubber...” louvavam o amor à sua Michelle, Brian, em mais uma estocada, vinha com a lenta e definitiva “Caroline No” com suas combinações de bongô/chocalho e hammond mantendo a base, além do engenhoso solo de cello com trombone, desfechando vitoriosamente o LP original.
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Se parasse por aí, já estava de bom tamanho, mas até os extras são dignos de nota. Haja visto a curta e brilhante “Unreleased Backgrounds”, toda a capella e na qual Brian evoca os mais ricos motetos barrocos – claro, numa roupagem pop e com a cara dele. Afinadíssimo, ele puxa um “lá”, prolongando seu corpo e baixando gradualmente a escala por cerca de 15 segundos até cair totalmente. O “good Idea”, ouvido ao fundo dito por algum dos integrantes da banda no estúdio mostra que a coisa agradou, motivando todos a se juntarem num coro. Eles exercitam melismas com acidentes, formando um verdadeiro canto gregoriano moderno. Lindíssimo. Depois disso, ainda há a ótima instrumental “Trombone Dixie”, em que, de uma feita, homenageiam o célebre bluesman Willie Dixie e evidenciam a sutil fronteira entre o folk e o erudito.
Brian Wilson vencera o desafio a que ele mesmo se propôs: apenas cinco meses depois, os Beach Boys superavam com “Pet Sounds” os Beatles de “Rubber Soul”. A história da música pop nunca mais seria a mesma, tendo em vista a alta influência deste trabalho para uma infinidade de outros artistas, que vão desde Zombies, Pink Floyd e R.E.M., passando por Van Morisson, Genesis, Blur e, claro, os próprios Beatles. Mas a instabilidade emocional e o vício em drogas de Brian não o deixariam prosseguir combatendo no front da música pop – pelo menos, não à altura de Lennon, McCartney, Harrison e Ringo. Três meses adiante, o Quarteto de Liverpool se reinventa novamente e lança o espetacular “Revolver”; no ano seguinte, o histórico “Sgt. Peppers...”; logo em seguida, emendam o fecundo “Álbum Branco”. Brian perde o passo e não consegue mais conceber uma obra com início, meio e fim, quanto menos uma grandiosa como a que criou. Mas, para sorte da humanidade, havia dado tempo do mundo conhecer “Pet Sounds”, o álbum que é mais do que um “disco de cabeceira”, mas os verdadeiros “sons de estimação”.
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FAIXAS:
1. Wouldn't It Be Nice - 2:26 (Wilson, Asher, Mike
Love)
2. You Still Believe in Me - 2:31
3. That’s Not Me - 2:30
4. Don't Talk (Put Your Head on My Shoulder) - 2:53
5. I’m Waiting for the Day – 3:06
6. Let's Go Away for a While - 2:21
7. Sloop John B - 2:54
8. God Only Knows - 2:46
9. I Know There's an Answer - 3:10 (Wilson, Terry
Sachen, Love)
10. Here Today
- 2:55
11. I Just Wasn't Made for These Times - 3:10
12. Pet Sounds - 2:23
13. Caroline, No - 2:54
14. Unreleased Backgrounds - :50
15. Hang on to Your Ego – 3:17
16. Trombone
Dixie – 2:53
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