A capa original, em cima, e a da reedição de 2003 |
“Foi uma época de muita coisa.
Eu
voltei da Europa na turnê que eu fiz com o Paulo Moura,
logo depois do show do
Bituca com o ‘Clube da Esquina’.
É um disco que eu compus todo na Europa,
chamado ‘Matança do Porco’.
Música que, inclusive, tem no disco ao vivo do
Milton,
o ‘Milagre dos Peixes Ao Vivo’.
Você vê que as ideias estavam ali.
Foi
a nossa época de laboratório mesmo.
Serviu para o resto das nossas vidas.”
Wagner Tiso
Milton Nascimento foi sempre o cabeça e congregador do chamado Clube da
Esquina, esse time de artistas de Minas Gerais que mudou a cara da MPB desde a
conturbada segunda metade dos anos 60 de Ditadura Militar no Brasil. Em torno
de Bituca – e muitas vezes até motivados por ele, como no caso de Fernando Brant e Lô Borges – se configurou a movimentação musical que trouxe novas
linguagem e referências à música brasileira e até mundial se se considerar seu
pioneirismo naquilo que passou a se chamar tempo depois de world music. Wayne Shorter, Sarah Vaughan, Quincy Jones, Eric Clapton, Paul Simon, Carminho entendem isso muito bem. Porém, dos diversos
talentos surgidos à época e/ou junto com Bituca, um deles é quase tão
fundamental: o maestro Wagner Tiso. Surpreendentemente autodidata (o
saxofonista e clarinetista Paulo Moura, exímio arranjador, apenas lhe deu
toques sobre teoria), é naturalmente dono de um estilo de tocar piano e de
orquestrar que bebe no colorido de Claude Debussy e na força expressiva de
Richard Wagner, além de sua veia sacra, a qual adquiriu ainda pequeno nas
igrejas do interior de Minas que frequentava. Se Milton é o símbolo do Clube da
Esquina, principal compositor e propulsor da cena, Tiso é o centro harmônico, o
homem que aperfeiçoou a ideia e lhe deu lastro.
Tiso, sempre muito ligado a Milton Nascimento (ambos são naturais de
Três Pontas), já era o principal arranjador e regente dos trabalhos deste desde
o LP “Milton”, de 1970, mesmo ano em que, juntamente com Luis Alves (baixo), Frederyko
(guitarra) e Robertinho Silva (bateria) forma uma banda de apoio para o
parceiro. Assim surgiu a Som Imaginário,
para a qual ainda foram convocados para completar o grupo nada mais, nada menos
que três craques: Tavito (violão), Zé Rodrix (voz, órgão, flautas) e Naná
Vasconcelos (percussão). Um time de primeira. Além das essenciais participações
nos trabalhos de Milton e na de gente do calibre de MPB-4, Marcos Valle, Gal Costa, Odair José, Sueli Costa, dentre outros, a banda mantinha também carreira
própria. Depois de dois discos em que Rodrix comandava os microfones (“Som
Imaginário”, de 1970, e “Nova Estrela”, de 1971) a Som Imaginário, sem este e
Naná, sintetiza sua sonoridade psicodélica e até lisérgica e compõem um álbum
totalmente instrumental: “Matança do
Porco”, de 1973. Nele, a MPB se junta com felicidade ao rock progressivo,
ao jazz e à música clássica em seis canções assinadas por Tiso em que todos os
músicos se esmeram nos instrumentos. Solos magníficos, arranjos deslumbrantes e
orquestrações idem, cujas regências tiveram ainda a fina colaboração de Moura,
maestro Gaya e Arthur Verocai. Este último trabalho de estúdio do grupo é uma
obra-prima da música instrumental no Brasil.
“Armina”, com sua melodia valseada e melancólica, não apenas abre o
disco com o piano altamente erudito de Tiso como, igualmente, recorta-o todo,
aparecendo em vinhetas/excertos entre os outros cinco temas durante todo o
decorrer, desfechando-o também, inclusive. A canção dá o clima do álbum, cujo
peso do rock, o swing do samba-jazz e a energia do fusion são ciclicamente reconduzidos à
atmosfera do tema-tronco, o qual traça uma linha entre o litúrgico e o a
herança modernista do folclórico bachiano de Villa-Lobos. Entretanto, na
alquimia natural da Som Imaginário, de cara se ouve um potente jazz-rock de baixo-guitarra-bateria-órgão,
que faz um pequeno preâmbulo para, aí sim, dar lugar ao piano de Tiso. Depois
de um lindo solo, que traz delicadeza ao número, a banda retorna vigorosa – a
melodia lembra “I Want You (She's So Heavy)”, dos Beatles, na parte do “She so heavyyyy...”, para ver o nível
de grandioculência – para um exímio e longo solo da guitarra rasgante de Frederyko,
ao estilo de John McLaughlin. Por volta de 4 minutos e meio, param todos os
instrumentos elétricos para novamente ouvir-se o dedilhado acústico do piano,
fazendo ressurgir a valsa tristonha.
Agora sob o som de um piano elétrico, “A 3”, extremamente moderna, sintoniza
com o que Hermeto Pascoal, Airto Moreira e João Donato vinham fazendo nos
Estados Unidos àquela época e embasbacando os gringos: um jazz brasileiro com
ritmo, harmonias complexas e uma habilidade musical peculiar dos trópicos. Show
de perícia de toda a banda, que, levados pelos teclados, ganham o
acompanhamento da percussão do mestre Chico Batera e da flauta de outro professor,
Danilo Caymmi. Uma curta e orquestrada “Armínia”, arregimentada por Verocai – e
na qual se notam os toques de sua sofisticação harmônica, principalmente na
predileção pelos metais ouvidos ao final –, antecipa “A nº 2”, que inicia como
um samba cadenciado conduzido por uma linha de órgão. Vão se adicionando as
melodiosas vozes dos Golden Boys, solos da guitarra e cordas, num crescendo de
emoção. Até que, pouco antes dos 5 minutos, o baixo de Luis manda um groove e a música dá uma virada para um jazz-funk estupendo. Tiso troca o órgão para
o Hammond; Luis e Fredera, mantendo a base em repetições ágeis; Robertinho;
segurando o ritmo na variação caixa/prato de ataque. Arrasador. Digno de um
“Headhunters”, de Hancock, ou “On the Corner”, de Miles Davis.
A faixa-título, que eu conheci no disco de Milton, “Milagre dos Peixes
Ao Vivo” (1974), surpreendendo-me por demais já daquela feita, não perde em
nada no estúdio. Aliás, até ganha, tendo em vista que os registros ao vivo da
época eram deficitários tecnologicamente (o caso). Além do mais, o próprio
Bituca empresta aqui a sua voz. Então: serviço completo, nada faltando.
Sugestivo, o título remete ao arcaico ritual de abate de suínos típico do
folclore português e que, obviamente, devido a seus requintes de crueldade,
exprime algo de visceral e funesto vivido à época no Brasil de Regime Militar.
Como se tratava de uma canção “sem letra”, os milicos a consideraram inofensiva
e deixaram passar pela censura. Isso faz com que “Matança do Porco”, música e disco,
alinhem-se, pela via de um “silêncio resistente”, a “Milagre dos Peixes” de
estúdio, daquele mesmo ano de 1973, que os militares censuraram praticamente
todas as letras, transformando-o, forçadamente, num álbum semi-instrumental.
Este aqui é instrumental de propósito, pois não há palavras para exprimir o
sentimento nefasto que se presenciava. Os sons, dados à imaginação, falam por
si.
Nos mais de 11 minutos da canção “Matança do Porco”, ponto alto do
disco, deságuam boa parte da musicalidade construída pela turma do Clube da
Esquina. Seguindo a atmosfera erudita que domina o álbum, trata-se de um pequeno
réquiem transgressor, entre o rock e o jazz. Traz o vigor de um rock
progressivo, que lembra o Pink Floyd psicodélico pré-"Wish You Were Here",
ainda mais pela novamente excelente performance
de Frederyko debulhando a guitarra – e não deixando nada a dever a um David
Gilmour. O primeiro “movimento” inicia lento com acordes 2/2 de Tiso ao piano,
que exercita uma breve introdução (Kyrie e
Gloria) enquanto vão entrando aos poucos
os outros instrumentos até chegar na guitarra, que, distorcida, se adona do
campo. São quase 5 minutos de um solo dividido em dois momentos (algo que se
poderia intitular como “A Preparação”, Credo,
e “A Desforra”, Sanctus) que vai num crescendo
e toma uma carga emotiva tamanha com o poder de carregar consigo os outros
integrantes, ao final igualmente em êxtase. Robertinho dá um show de rolos e
condução; Tiso, centro da peça, lança impressionantes ataques e improvisos
jazzísticos. O ritual de morte chega a seu ápice. O sangue escorre. Morte.
Valendo-se fartamente de seu conhecimento erudito, Tiso corta mais uma
vez a canção para, numa fusão para um segundo ato, arregimentar a partir dali
uma volumosa orquestra Odeon (conduzida por Gaya), a qual toca uma melodia
triste (um Benedictus), como uma
prece à ignorância humana. Entram o coro dos Golden Boys formando um cantochão
gregoriano. Junto, para realçar ainda mais a beleza melancólica do tema, a
guitarra volta a marcar a base e Milton soma ao coro o seu inconfundível
timbre, executando vocalises arrepiantes. O final, no órgão, desfecha-a num
evidente tom fúnebre de Missa dos Defuntos, até voltar ao toque quase de
cantiga de roda dos primeiros acordes. Agnus
Dei. Um desbunde. O porco e o cidadão brasileiro, perseguidos e sem voz,
foram abatidos. “Quem é animal e quem é
gente?”, fica a pergunta.
Depois de tanta magnitude, uma gostosa “Armina” com ares de bossa-nova ameniza
o astral visitando Tom Jobim e Billy Blanco. “Bolero”, na sequência, é uma
balada com riff bem rural escrita em
parceria com Luis, Robertinho e Milton, este último de quem evidentemente
partiu a ideia do violão-base tocado por Tavito, outro dos coautores. Nova
mostra de habilidade dos músicos em que Tiso, principalmente, se destaca
manipulando os dois pianos, assim como a flauta de Danilo Caymmi. O filho do
gênio baiano é quem dá os primeiros acordes de “Mar Azul”, outro samba-jazz moderníssimo feito para os
dedos de Tiso maravilharem num Hammond, tanto quanto Tavito ao violão 12
cordas. Da segunda metade para o fim, é geral o show de improvisos. Jazz
brasileiro puro.
A intensidade orquestral finaliza este histórico álbum com a quarta e
última seção de “Armina”, novamente com o toque de Verocai, que carrega nas
cordas e metais no início para, aos poucos, verter a sonoridade para as
madeiras, numa transição extremamente apurada e apenas perceptível quando a
flauta entoa a última nota, haja vista que aumenta um tom para terminar não num
registro suave, mas grave como deveria ser. Na capa da reedição em CD, de 2003,
vê-se um plano geral de uma mesa dá bem a dimensão do período de tristeza e
decadência que o País um dia se colocou: copos, garrafas de cerveja e de
uísque, todos vazios, acompanham um cinzeiro lotado de cinzas e baganas e um papel
surrado sobre um dos copos – que bem pode ser uma carta a um ente querido
impossível de ser postada por causa do cerco da ditadura ou uma confissão de
suicídio.
Naquele 1973, o enganoso “milagre brasileiro” do governo Médici
escondia ainda mais as torturas, perseguições e exílios promovidos desde o
AI-5, de cinco anos antes. As guerrilhas eram enfraquecidas e a população,
quando não ignorante, se calava à força. Sem precisar dizer quase nenhuma
palavra, “Matança do Porco” e “Milagre dos Peixes” formam um dos mais potentes
libelos contra a opressão da ditadura militar no Brasil, duas sinfonias em nome
da liberdade que todo brasileiro decente de então merecia. É o poder da música,
é a magia dos sons. Sons capazes de despertar o imaginário de quem consegue
entender o que é dito pelo coração.
FAIXAS:
01. Armina
02. A3
03. Armina (Vinheta)
04. A n° 2
05. A Matança do Porco
06. Armina (Vinheta 2)
07. Bolero (Tiso/Milton Nascimento/ Robertinho Silva/Tavito/Luis Alves)
08. Mar Azul (Tiso/Alves)
09. Armina (Vinheta 3)
todas as músicas compostas por
Wagner Tiso, exceto indicadas.
OUÇA O DISCO:
por Daniel Rodrigues
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