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domingo, 4 de abril de 2021

Claquete Especial de Páscoa - 7 filmes sobre a Paixão de Cristo (ou quase isso)




Pode parecer piegas, mas gosto de assistir filmes sobre a Paixão de Cristo na época da Páscoa. Confesso que sou daqueles espectadores que as emissoras, sem constrangimento de serem repetitivas e óbvias, conseguem atingir. Em país católico como o Brasil, no que entra a Semana Santa, começam a pipocar produções de diferentes épocas sobre a Via-Crucis. 

Por mais óbvio que seja, contudo, muitos desses filmes são bastante interessantes, visto que motivam os realizadores, essencialmente cristãos em sua maioria, a produzirem algo que lhes faz muito sentido, que lhes é caro em termos de crença e visão de mundo. Por isso, invariavelmente saem realizações caprichadas, maiúsculas, quando não, superproduções que se destacam, inclusive, na filmografia de alguns grandes cineastas. Casos de John Huston, David Lean e Franco Zefirelli, para ficar em três. 

Então, sem medo de soar enfadonho, vão aqui sete títulos sobre a saga bíblica que, mesmo não sendo-se católico, é, sem dúvida, uma grande história. Digna de filme (s). 


“Paixão de Cristo”
, de Mel Gibson (EUA, 2004)

Mesmo com pé atrás com relação a Mel Gibson em produções nas quais atua, tenho que admitir que os filmes dirigidos pelo ator australiano merecem respeito. Este, em especial, além de trazer uma abordagem realística das últimas horas de Cristo, com cenas de alta violência e crueldade – o que deve ter sido bem verdade – tem o rigor de ser inteiramente falado em aramaico e latim, línguas usadas na época de Jesus Cristo. Sem “estrelas”, é uma realização, por mais criticada que tenha sido à época de seu lançamento, bastante sóbria e circunspecta. 

Ultraviolência na Via-Crucis: controverso filme de Gobson


“A Última Tentação de Cristo”
, de Martin Scorsese (EUA/Canadá, 1988)

O filme que provocou o "cancelamento" de Scorsese, por parte do Vaticano, que fez uma séria marcação ao cineasta após realizar esta ousada adaptação da obra de Níkos Kazantzákis. Blasfema, diria a Igreja. Mas o filme é uma preciosidade. Além da história, que traz uma visão alternativa do que poderia ter sido a vida – e a morte – de Cristo, tem no papel do Messias o ótimo Willem Dafoe, mais Harvey Keitel, Harry Dean Stanton e David Bowie. A trilha, vencedora do Grammy de Melhor Álbum New Age e uma das mais emblemáticas do cinema, é de Peter Gabriel. Polêmico, este as TVs não passam muito, não...






cena de Cristo sendo tentado por Satã em “A Última Tentação de Cristo”



“A Idade da Terra”
, de Glauber Rocha (Brasil, 1980)

Outro título não muito lembrado para a Páscoa, até por conta de sua visão extremamente pessoal, alegórica e crítica da vida de Jesus, da Igreja e das estruturas de poder. Aliás, não uma vida, mas quatro! Geraldo Del Rey, Tarcísio Meira, Jece Valadão e Antônio Pitanga vivem, cada um, a personificação de um Cristo em diferentes realidades sociais: um negro, um militar, um índio e um guerrilheiro. No Brasil, Cristo não precisa de Via-Crucís: ele é crucificado simbolicamente um pouco todo dia. Último filme do gênio do Cinema Novo, que, assim como quase ocorreu com Scorsese, foi seu calvário. Desiludido com a péssima recepção da obra, o cineasta morreria meses depois de seu lançamento.

As quatro personificações de Cristo na visão de Glauber



“A Maior História de Todos os Tempos”
, de George Stevens, 
David Lean e Jean Negulesco (EUA, 1965)

O cara jogou xadrez com o Diabo e encarnou Jesus. Só mesmo um grande ator como Max Von Sydow para se prestar a esses dois extremos com tamanha entrega e competência. Traz ainda no elenco o “épico” Charlton Heston, além de Martin Landau e Telly Savalas. Épico com letra maiúscula codirigido por três feras da Hollywood clássica, George Stevens, David Lean e Jean Negulesco. Bem tradicional em abordagem, o que contrabalanceia as nossas sugestões anteriores. 

Von Sydow: haja versatilidade para quem já deu um "plá" com o Tinhoso...



“A Vida de Brian”
, de Terry Jones (Inglaterra, 1979)

Se é pra blasfemar, então vamos com tudo: “A Vida de Brian”, o hilariante longa da turma da Monthy Pyton, que desfaz a sempre penosa e triste história da Via Sacra de Jesus. Aliás, o filme não é exatamente sobre a vida do filho de Deus, e sim de um pobre coitado, sonso e azarado que é confundido com o Messias. O azar é tanto que o cara, mesmo tentando escapar de todas as maneiras, acaba por ser crucificado junto com o Salvador, numa das cenas mais “épicas” do cinema de comédia, quando cantam “Olhe Sempre o Lado Bom da Vida” ao final. Dando aqui uma letra, a cena, com sua ironia, traz uma mensagem positiva que muito falta ao catolicismo quando se refere ao tema.






a hilária cena da crucificação de "A Vida de Brian"



“O Evangelho Segundo São Mateus”
, de Pier Paolo Pasolini (Itália, 1964)

Quando fizemos um adendo na abertura em que dissemos que nem todos os realizadores eram necessariamente católicos, a referência era tanto a Glauber Rocha quanto, especialmente, a Pasolini. Anarquista e gay, o genial diretor italiano realizou por vontade própria a vida do Salvador através do poético texto eclesial. Talvez, o distanciamento crítico de seu posicionamento político e a sua sensibilidade de poeta – e, claro, seu talento único como cineasta – tenham lhe habilitado a realizar aquele que é o mais fiel filme sobre Jesus e seus ensinamentos – indicado, inclusive, pela Biblioteca do Vaticano, que teve que se render à obra de um filho não-abençoado.






filme completo "O Evangelho Segundo São Mateus”



“Rei dos Reis”
, de Nicholas Ray (EUA, 1961)

Quem não se lembra de filmes como este ou “A Bíblia” na Sessão da Tarde da Sexta-Feira Santa? Mais um típico épico bíblico norte-americano dos anos 60, assim como "A Maior História..." a superprodução de Nicholas Ray tem narração de Orson Welles e trilha de Miklós Rózsa e roteiro de Ray Bradbury. Remake do filme mudo de Cecil B. de Mille, de 1927, em suas mais de três horas de duração, traça a vida de Jesus Cristo, do nascimento até a ressurreição, baseando-se nos quatro evangelhos canônicos (Mateus, Marcos, Lucas e João), além dos escritos do historiador romano Tácito.

Sermão da Montanha encenado grandiosamente por Ray



Daniel Rodrigues

domingo, 12 de junho de 2016

COTIDIANAS nº 440 ESPECIAL DIA DOS NAMORADOS - Namorada... é que é serpente



Filippo tinha duas paixões na vida: cinema e Aurora. Mas comecemos pela mais analisada e analisável: o cinema.
Embora fosse farmacêutico, Filippo gostava mesmo era de sétima arte. Não no sentido de fazer cinema, mas de apreciá-lo. Era dedicado na sua profissão, e a cumpria muito bem. Mas os “24 quadros por segundo”, a magia do cinema, era o que realmente lhe movia. Era o que recheava sua cabeça inventiva e romântica. De certa forma, a vida de farmacêutico até o ajudava a dedicar-se ao que gostava: além de os horários na farmácia favorecerem, pois lhe davam a noite para poder ver o que queria, também ganhava o suficiente para ir ao cinema, comprar filmes e, solteiro, assistir a vários deles na TV a cabo madrugada adentro. E não era com blockbusters ou aventuras explosivas que Filippo se animava. Era cinéfilo mesmo, na verdadeira acepção da palavra. Conhecia cinema a fundo: europeu, asiático, norte-americano, alternativo, indiano, russo e por aí vai. De qualquer escola, movimento ou polo produtivo, fosse Cinema Novo Japonês ou Dogma 95, noir ou Realismo Fantástico, Filippo conhecia ao menos alguma coisa representativa.
De todas as nacionalidades do cinema, entretanto, a que mais lhe agravada era a italiana. Não necessariamente pela descendência, mas porque adorava a picardia, o conceito fotográfico, o sabor do idioma e o humor sarcástico do cinema da Itália até nos filmes não propriamente de comédia. Claro que admirava as obras dos mestres Fellini, Pasolini, Antonioni, Petri, De Sica, Visconti. Mas se deliciava mesmo era com as comédias italianas. Títulos como “Volere, Volare”, “Ladrões de Sabonete”, “O Incrível Exército de Brancaleone” e “O Monstro“ faziam-lhe a cabeça. Uma delas, porém, era a sua preferida, não apenas entre as comédias, mas entre todas as escolas, movimentos, nacionalidades e filmografias: “Parente... É Serpente”. O longa de Mario Monicelli era seu filme de cabeceira, o primeiro de todas as suas listas. Só havia um contrassenso nisso: Filippo não tinha este filme em sua videoteca. Já tivera, mas o perdera – e isso tinha uma explicação incômoda para ele. Mas exceto o fator estritamente emocional, que em seguida explicaremos, a priori, para um colecionador – ainda mais para quem gostava tanto de “Parente... É Serpente” – isso era uma falha gravíssima. Chegava a culpar-se por não tê-lo mais em sua prateleira: “Por que fui fazer a besteira de deixar o filme com ela?”
“Ela” quem? A Aurora, ora. Sim, Aurora, a segunda paixão de Filippo, aquela cuja análise é um tanto mais intrincada do que a de cinema. Mas tentemos: moça um pouco mais magra que o normal, talvez por sua estatura um pouco acima da média, era naturalmente sexy mesmo não fazendo o estilo “gostosona”. Esteticamente era bem proporcional: bunda, coxas, peitos, boca, cintura: tudo sem exagero mas sem faltar nada. Porém, o que lhe fazia sensual mesmo era seu jeitinho, o jeitinho que encantava os homens. Foi assim com Filippo naquele churrasco na casa do Douglas há quase seis anos: encantamento. Mas não só ele: o Maikinho, o Ventura, o Biboca, o Haroldo e até o dono da casa, noivo, gamaram naquela misteriosa fotógrafa lépida, faceira e desatenta aos olhares desejosos. A Priscila, a noiva do Douglas, levara a amiga na festa para fazer uns registros fotográficos despretensiosamente e sem cobrar nada, pois ela queria treinar a luz com a nova lente que acabara de comprar. Mas o que embasbacou de verdade a galera não foram as fotos, mas, sim, a própria Aurora fotografando. Era um show ao vivo do tal “jeitinho”. Com seu cabelo preto curtinho e espetado, ela passava de um lado para o outro, se agachava, se contorcia, falava sozinha, fazia careta quando encostava o visor no olho, punha uma pontinha da língua para fora da boca vermelha de batom para conferir o resultado. Era descolada, espontaneamente alegre e de gestos largos, como se não se importasse com a presença dos átomos à sua volta para exercê-los com liberdade, com iluminação própria. Uma esfinge. Uma aurora.
Ocorreu que o jeitinho de Aurora não bateu com o de mais ninguém naquela festa, apenas com o jeito nerd de Filippo. Os óculos de armação grossa estilo anos 60, o cabelo arrumado cujo corte permitia ao menos uma franja subversiva e a cabeça quadrada que comportava ricos olhos verdes trazidos de Bérgamo pelos bisavós na primeira leva da imigração italiana ao Rio Grande do Sul, cativaram a aparentemente distraída Aurora. Na verdade, confessou depois a Filippo, ela o percebera logo que entrara pela porta, sentado num banquinho tomando uma cerveja com o copo americano quase vazio. Até lhe mostrou uma série de fotos que batera dele com zoom, de longe, para não dar na vista o interesse. Fotos encantadas, que Filippo, todo bobo, não cansava de ver e rever mesmo anos depois.
Foi bonito o romance dos dois. Aurora foi a primeira namorada de verdade de Filippo, a primeira a quem ele realmente se afeiçoara. Já Filippo foi para Aurora o encontro de algo que ela precisava para preencher sua alma inquieta e perscrutadora. Era como se ele fosse um necessário prego cravado no chão segurando a barra de sua saia de modo que ela não saísse correndo desordenadamente mundo afora. Os quase dois anos de relacionamento correram com mais alegrias do que brigas. Na verdade, belicismo não era uma característica de nenhum dos dois. Apenas ocorria, isso sim, momentos de total tristeza de Aurora. Inexplicáveis. Tão sem justificativa visível que, no dia seguinte, aparecia ela de novo lépida e faceira como se nada tivesse acontecido. Filippo, por amor ou covardia, relevava.
O romance avançava para um enlace permanente: Aurora mudara-se para o apê de Filippo na Barão do Triunfo, no Menino Deus, e estabeleceram uma bonita rotina conjugal. Viajavam juntos e planejavam outras viagens; preparavam baldes de pipoca para as sessões de cinema na sala; iam ao super toda semana repor a dispensa; faziam sexo com bastantes frequência e prazer; levavam o Golias ao veterinário; pagavam a mensalidade da facúl de Aurora; compravam pão para o café da manhã do dia seguinte; essas coisas.
Tudo harmonioso, não fosse o tal jeito misterioso de Aurora. Embora gostasse de Filippo, sua ligação com ele, ou melhor, com os relacionamentos amorosos, guardava complexidades. Com o passar do tempo, foi ficando mais e mais inquieta. Ela parecia sempre estar em busca de algo que não encontrava – ou preferia não encontrar para permanecer buscando. Filippo nunca escutara dela, por exemplo, um “eu te amo”. Pelo contrário, costumava ouvir de Aurora, em tom brincadeira, outra sentença: “eu não sou casável”. E no mais, Filippo inconscientemente sabia que o seu prego cravado no chão não conteria Aurora para sempre, pois uma hora ou outra a barra do vestido se rasgaria e ela, enfim, sairia desorientada pelo planeta Terra.
A desagradável suspeita de Filippo se confirmara: a frase não tinha nada de brincadeira. Com a justificativa de fazer uma pós em São Paulo, Aurora um dia pegou sua mala e seus equipamentos fotográficos e foi morar na como ela agitada Sampa. Fim do romance, assim, sem mais nem menos, sem muita explicação. Sem olhar Filippo nos olhos na despedida. Como uma fuga, como uma busca por algo que provavelmente nem ela sabia o quê.
Não precisa dizer que Filippo ficou arrasado. Até parara de assistir filmes por um bom tempo, de modo a não gravar uma impressão ruim da obra por causa de sua inevitável fossa. Gostava muito de cinema para deixar que uma paixão maculasse a outra. “Imagina rever ‘Persona’ do Bergman nesse estado deplorável!”, pensava em sua melancolia cinéfila. “Aurora”, do Murnau, então: nem pensar! Um dia, chegara ao ponto de escondê-lo, pois seus olhos teimosamente percorriam a fileira de DVD’s na parede para baterem justo naquele maldito título: “Aurora”. No entanto, no momento em que engaiolava o clássico de Murnau, Filippo percebeu que, pouco antes na prateleira, organizada por ordem alfabética de cineastas, vagava uma caixinha. Era no “M” de Monicelli. Sim, faltava-lhe “Parente... É Serpente”. Numa recapitulação de milésimos de segundo, lembrara-se que emprestara para Aurora logo que começaram a namorar, ainda quando não moravam juntos. Ela levara para casa para assistir sozinha o filme predileto do recente namorado, num gesto de afeição dela. Já o de Filippo era de quem já acreditava naquele relacionamento, pois emprestar um item de sua coleção era uma raridade, e fazê-lo justamente com “Parente... É Serpente”, então! Uma prova de amor eterno.
Não foi eterno. Depois da tristeza pela separação, Filippo foi se recuperando do jeito que dava. Anos se passaram, namorou umas duas moças, transou com essas e mais outras três sem compromisso, mas não se firmou com nenhuma delas. Ia levando, mas sempre com Aurora lá no fundo da cabeça. Já se acostumara à vida sem ela e sem seu filme preferido. E como não convinha ir atrás dela, foi à cata do filme. Bateu aquela vontade de revê-lo, que todo cinéfilo tem para como suas fitas queridas de tempos em tempos. Pesquisou no site da Cultura e... “esgotado”. “Ok: vou procurar no site da Saraiva”. Igual. Livraria da Folha... idem. Todo comprador de internet sabe que não achar o que quer nesses sites é um mau sinal. Provavelmente é porque o produto não está disponível mesmo. Já aflito, fez uma busca genérica no Google pelo título do filme mais a palavra “comprar”. Nada, nem no Mercado Livre, onde só encontrara um VHS para vender – e ele não tinha mais videocassete há anos.
Mesmo pouco acostumado em baixar filmes, tentou ainda achar em sites de torrent e, incrível: não tinha também! Nem no Youtube, que, mesmo que tivesse, para Filippo, um colecionador à moda antiga, não cabia se contentar em tê-lo com uma imagem pixelada e correndo o risco de dessincronizar áudio do vídeo. Sim, tinha que se convencer: “Parente... É Serpente” estava fora de catálogo.
Ele se maldizia. Não convencido, pegou um dia um pedaço do horário de almoço e foi a um brique na Alberto Bins, onde sabia ter muita coisa rara. Com medo de receber de cara a má notícia do dono da loja, foi ele mesmo procurar. Em meio àquela zona totalmente fora de ordem, logo percebeu que não era possível achar qualquer coisa ali dada a bagunça, a pouca iluminação e a quantidade amazônica de DVS’s, CD’s, livros, revistas, vinis, VHS’s e até fitas cassete. Tudo junto e misturado. Um museu abarrotado e empoeirado. Podia até ser que tivesse o que procurava, mas não conseguiria achar por si só no pouco tempo que dispunha, só com muita sorte. Precisaria, enfim, consultar o dono da loja:
- Ei, tu tem o DVD do filme “Parente... É Serpente”?
- Não. – respondeu secamente sem pestanejar e nem olhar para Filippo.
- Mas tu tem certeza? Tu nem parou pra pensar, não consultou aí o computador. – disse Filippo, apontando com o queijo para um notebook dinossáurico do qual o homem não tirava os olhos.
- Tenho certeza. Esse filme tá fora de catálogo. – respondeu com a segurança de quem conhece o mercado em que atua enquanto Filippo escutava sua digitação e o som de aviso de bate-papo do Facebook saltarem do note.
- Puxa... É que, sabe, eu tinha esse filme, mas emprestei...
- Pra uma mina?
- É... pra uma namorada. – falou Filippo, constrangido com a previsibilidade de seu ato. – Ele se mudou pra São Paulo, e daí...
- Cara: que besteira que tu fez, hein? – tirando os olhos do Facebook e finalmente olhando para Filippo. – Esse filme é tri bom. Faz tempo que eu vi. Ih! Um tempão. E vou te dizer uma coisa: tu perdeu uma grana. Esse DVD é uma raridade hoje em dia. Nem no Mercado Livre tu encontra.
- É, eu já sei.
- Eu sei como é: já fiz essa merda também. O que a gente não faz por uma buceta, né? – disparou o homem, rindo, tentando criar uma cumplicidade machista.
- Não é isso, cara. – respondeu imediatamente Filippo franzindo a testa.
Mais emputecido pela busca frustrada do que ofendido com o outro, Felippo preferiu sair da loja e ir embora. Mas numa coisa ele tinha que concordar com aquele sujeito grosseiro: que besteira foi fazer em deixar o filme com Aurora! Perdera a amada e o filme amado ao mesmo tempo.
Anos se passaram até que, um dia, quando Filippo já se acostumara com a condição “sem Aurora” e “sem filme predileto”, algo improvável acontece. Voltando do Zaffari da Getúlio Vargas em direção à sua casa, Filippo dobra a esquina e com quem ele se depara? Aurora. Ela, um caminhão de mudanças estacionado na calçada e várias caixas sendo transportadas para dentro de um prédio a duas quadras de seu apartamento. Ambos pararam e se olharam com surpresa.
- Oi, Lippo!
- Oi... Aurora. Tu aqui?... – falou, apontando com o queixo para o prédio.
- Sim! Tô me mudando pra cá. Legal, né? Voltei pra Porto por que... tava com saudade daqui, do meu lugar, dos amigos. E também pra ficar perto da mãe, que anda doente. Lembra da mãe, né, dona Doralice?
- Sim, claro que lembro.
- Pois é. A mãe tá morando aqui pertinho, naquele condomínio ali na Barbedo com a Getúlio, sabe? E com esses problemas dela, o meu irmão morando em Londres, não tinha ninguém pra ficar com ela, que tá velhinha.
- Que coisa... Manda um beijo pra tia Doralice. E melhoras pra ela.
- Mando, mando, sim – disse animada, sorrindo graciosamente.
Ficaram se olhando sem trocar palavras por alguns segundos, ele segurando as sacolas brancas do Zaffari nas duas mãos, ela abraçando uma caixa grande com o número 39 escrito com hidrocor preta, que fez Filippo lembrar-se imediatamente do filme de Hitchcock, “Os 39 Degraus”, e da cena do carro de “Blow Up”, do Antonioni.
- Então: casou? – indagou ela, interrompendo o silêncio.
- Eu? Não. E tu?
- É, também não. – disse Aurora, sorrindo novamente. – Tive uns rolos em São Paulo, um outro em Budapeste, que eu passei um tempo lá. Até cheguei a morar junto por um tempo, mas, sabe como eu sou, né? “Não sou casável”, rsrs.
- É, eu sei...
- Tu não casou mesmo, então?
- Só se for com a farmácia e com meus filmes. – brincou Filippo, e os dois riram.  – A propósito: tu te lembra que eu te emprestei, faz anos isso, o meu DVD do “Parente... É Serpente”? Sabe, aquela comédia italiana do Mario Monicelli, que eu gostava muito, que eu vira e mexe comentava. Eu te emprestei antes de a gente... morar...
- Humm, acho que sei... Não lembro direito. Tenho uma vaga lembrança.
- Tu te lembra, sim: a gente até comentava que um dos personagens tinha o meu nome. Deve tá em alguma dessas tuas caixas aí.
- Não me lembro de ter visto lá em casa... Porque tu sabe, né? Minhas coisas são sempre uma bagunça! Pode ser que esteja nas minhas coisas. Tenho que procurar. É que foi tão rápida a mudança lá em São Paulo, tudo na correria, que só soquei tudo pra dentro e me toquei de lá. Nem sei direito o que tem dentro dessas caixas. Não vou estranhar se eu abrir alguma e encontrar um bicho, rsrs.
- Vai ver, tu encontra não o filme, mas uma serpente de verdade!
Riram juntos.
- Por falar em bicho, e o Golias? – lembrou-se ela, interessada.
- Foi morar com a mãe lá em Faria Lemos. Vida de cachorro velhinho não combina mais com a correria da cidade, apartamento, concreto. Agora tá curtindo uma casa com pátio e verde lá na Serra.
- Querido! Saudade dele.
Novo silêncio, agora por falta de assunto.
- Então... tchau.
- É, tenho que terminar aqui a mudança. – afirmou Aurora, convencendo-se.
- E eu tenho fazer meu almoço. A gente se fala, agora que estamos pertinho de novo, né?
- Sim! Meu celular novo com prefixo 51 é esse aqui – disse-lhe, soltando a caixa e pegando um cartão de dentro da bolsa. Ele anotou o seu celular atrás de um segundo cartão dela e despediram-se com dois beijinhos.
- Se tu achares o meu filme, me avisa, tá?
Filippo não acreditou que ela fosse ligar, e nem ele ligaria. Procurou-a no Face, achou seu perfil, mas não solicitou amizade. Adicioná-la no WhatsApp, nem pensar. Não iria atrás dela por orgulho e pela mágoa ainda mal resolvida, a qual despertara naquela semana desde que a revira.
Mas ela ligou:
- Alô?
- Oi Lippo! É a Aurora! Que tu tá fazendo?
- Eu? Tô em casa, organizando umas coisas, dando um tapa na casa, uma faxina. Por quê?
- É que eu tinha um job pra fazer agora de noite, um evento de um cliente, mas mixou. O cara desmarcou comigo em cima do laço. Tu vê, que desgraçado?!... Daí, eu pensei: por que não convidar o Lippo pra vir conhecer o meu novo apê?
- Sei...
- A gente podia jantar alguma coisinha. Tu sabe que eu não sou boa na cozinha, né? Continuo não sendo. Mas a gente chama um sushi, uma pizza, assiste um filme, sei lá. Tá tudo meio com cara de mudança aqui ainda, mas tu é de casa. Que tu acha?
- Bem... é que eu...
- Ah, Lippo, não vem com desculpa! Tu tá faxinando a casa numa sexta-feira às seis da tarde. É sinal que tu não tem nada melhor pra fazer! Diz que vem, diz que vem!
- Tá, Aurora. Acho que eu vou, sim. Deixa eu tomar um banho, que eu cheguei da farmácia e não parei. Mais tarde eu bato aí.
- Oba! Que bom que tu vem. Vou também dar uma organizada na casa pra te receber.
- E vem cá: por acaso o tal filme que tu pensou de a gente ver é o meu?
- De que filme tu tá falando, Lippo?
 - O “Parente... É Serpente”, Aurora! Que tu disse que ia procurar, pra ver se ainda tava contigo. Tu achou?
- Sinceramente, Lippo, não encontrei nada, pelo menos não nas caixas que eu abri até agora. Na real, tô achando que esse filme não tá comigo, viu? Acho que tu emprestou pra outra pessoa, outra namorada... e tá confundindo.
- Eu tenho certeza que te emprestei, Aurora. Faz tempo, mas foi pra ti. Mas, tá: deixa pra lá. Dá um tempinho que daqui a pouco tô chegando aí.
Filippo tomou banho mas vestiu-se despreocupadamente, pois não tinha a menor esperança de que alguma coisa voltasse a acontecer entre Aurora e ele depois de tanto tempo. Estava errado. Jantinha regada a vinho chileno, sala iluminada só pela luz da tevê, ela contando histórias de São Paulo e da Hungria, ele, dos aprontos do Golias, e não demorou muito. Conversa vem, conversa vai: pintou clima. A transa foi bonita e apimentada como nos velhos tempos, ali mesmo na sala e depois no quarto, madrugada adentro. Fluiu. Parecia que os anos nem haviam se passado. Aurora se entregou com prazer, linda nua. Filippo, no céu, dormiu exausto e suspenso com a sensação de que fora picado novamente pelo veneno deleitoso de sua Aurora.
Naquele sábado era sua folga, então, relaxado, Filippo deixou o sono se estender e acordou no meio da manhã ouvindo o barulho de chuva no vidro da janela. Sozinho. Não precisou chamar mais de duas vezes por Aurora para concluir que ela já não estava. Seus equipamentos sobre a cômoda não se encontravam mais ali. Decerto, tinha trabalho para fazer. Vestiu-se, bateu a porta do apartamento e desceu o elevador para voltar para casa. Não tinha porque ficar esperando ela voltar. No hall, o porteiro lhe avistou e o chamou:
- O senhor que é o senhor ‘Felipo’?
- Sim, sou eu mesmo – respondeu desconfiado.
- Dona Aurora deixou isso aqui pro senhor. Ela já tava saindo pelo portão, toda cheia de cousa, mala, bolsa, máquina de retrato, mas daí voltou aqui e disse pra mim lhe entregar isso aqui, que ela não queria voltar no apartamento pra não acordar o senhor.
E lhe estendeu a encomenda.
- A que hora foi isso?
- Cedo da manhã, senhor. Umas 6 horas.
Filippo finalmente tinha de volta seu DVD de “Parente... É Serpente”. Por dentro do plástico da caixinha, tapando a capa, um bilhete escrito a mão por Aurora:
“Lippo,
Tenho um trabalho (dava para ver escrita, por debaixo da rasura de caneta, a palavra “em”) longe, muito longe.
Na Índia.
Vou ficar seis meses fora, se não mais. Não sei ainda.
Não espera por mim, tá? Me desculpa. Tu sabe como eu sou.
Adorei te rever.
Te amo.
Adeus.”
Não assinou. Apenas gravou um beijo com seu batom cor vermelho-coral.
Felippo mal se despediu do porteiro. Atravessou a passos anestesiados a rua já molhada pela chuva que começava a apertar e foi para casa. Chegando, imediatamente repôs seu DVD perdido na prateleira sem revê-lo. Pegou, sim, o filme de Murnau, que desencarcerou do armário. Mesmo subvertendo uma norma de cinéfilo, de não assistir a um filme mudo de manhã – pois filme mudo é para ser visto no cinema ou de noite –, mecanicamente pôs para rodar aquele romance de final feliz. Sob a luz do dia, que vazava pelos cantos da janela fechada, lágrimas desesperançadas corriam soltas de seu rosto enquanto revia “Aurora”, tantas que se igualavam à quantidade de pingos da chuva que lá fora molhavam a calçada.



para Luis.


terça-feira, 25 de agosto de 2015

"Adeus à Linguagem", de Jean-Luc Godard (2015)



"Aqueles que não têm imaginação
buscam refúgio na realidade."
frase que aparece na tela
no início do filme



Um dos poucos diretores que me fazem correr para o cinema para assistir a seus filmes é Jean-Luc Godard, talvez por ser um dos últimos vivo de uma turma que mudou o cinema. Fellini já foi, Truffaut já foi, Hitchcock já foi, Kubrick foi, Pasolini, Bergman, Tarkovski, Glauber... Quem está aí? Scorsese, Copolla, Saura, Allen, Wenders...talvez Trier, mais atualmente. Mas Godard é um daqueles poucos que se confunde com a história do cinema, uma dos que criaram uma escola, um dos que estabeleceram uma nova linguagem. E é a propósito de linguagem que trata seu novo filme, aliás, é, em tese, uma despedida dela. "Adeus à  Linguagem" é, como vem sendo seu cinema nos últimos anos, muito mais um exercício anaítico, estilistico, filosófico e visual do que um filme convencional com trama, cronologia, personagens, cenários, etc.
A natureza, um dos elementos investigados por
Godard em seu ensaio cinematográfico
tem belíssimas imagens proporcionadas pelo 3D
Exatamente por se fixar na LINGUAGEM, Godard explora e extrapola todas as suas possibilidades, não importando-se, mesmo, de causar desconforto no espectador com imagens desfocadas, ruídos, cortes abruptos, diálogos incompletos e incoerentes, entendendo que tais recursos por si só já fazem parte de uma indução de sentidos e portanto ao ser apresentada e interpretada, já passa a ser linguagem. Godard examina  LINGUAGEM de forma absolutamente ampla, destrincha a palavra e todos seus significados para, no fim das contas mostrar o quão deficiente está a comunicação das pessoas, as relações humanas. Examina a linguagem do corpo, da filosofia, da cor, da sensação, da estranheza, da natureza, das relações humanas, do silêncio e tanto lhe interessa a amplitude do tema que, mesmo a breve trama centrando-se em um casal que discute a relação àquela moda francesa t´pica da nouvelle vague, o personagem principal, se é que podemos chamar assim, a aprtir de certo momento passa a ser um cachorro, que de certa forma simboliza a pureza da linguagem, a perfeita comunicação através da não-comunicação.
Roxy, o cão do próprio Godard,
é, de certa forma,
o protagonista do filme.
Se já corro para ver um Godard no cinema normalmente, este em 3D, me fez ir mais rápido ainda ao cinema, uma vez que produções alternativas assim não duram muito em grandes salas com qualidade e tecnologia para exibição deste recurso, até porque os donos do negócio estão mais é interessados em tirar logo o chato do filme europeu que vai ser visto por meia dúzia de gatos pingados pra lotar a casa com algum Vingadores ou Senhor dos Aneis da vida. Na verdade, perdi a paciência com o 3D rapidamente. Vi duas ou três coisas, uma só que valera a pena, e de resto pareceu-me que não compensava visualmente para a dor de cabeça a incômodo que me causava a utilização daqueles óculos. Mas, enfim, tinha curiosidade para ver como um cineasta bom, com ideias, viesse a utilizar o recurso.
Os tradicionais letreiros do diretor,
lançados na tela, também servem-se 
produtivamente do 3D.
Sim, já tinha visto o Hugo Cabret do Scorsese mas devo admitir que me decepcionei um pouco. Todo mundo ficou muito fascinado e tudo mais, mas para mim pareceu meramente um grande carnaval estético com uma pitada poética cinematográfica que não foi suficiente para torná-lo um bom filme, mas isso já é outra história. Quanto a Godard, acho que utilizou a LINGUAGEM 3D muito bem no que se propunha e o resultado, para quem já cansou de ver só explosões saltando da tela, é interessante e válido. Desfoca o 3D, o duplica de forma genial, ironiza o próprio título utilizando um  "Ah", num plano avançado e um "Dieux" ao fundo naqueles seus tradicionais letreiros na tela, salienta um móvel, uma mão, um elemento qualquer saltando da tela, brinca com as palavras, com a comunicação, com o visual, com a linguagem. O que posso dizer é que a tecnologia colaborou com a LINGUAGEM do diretor que tem sua identidade tão consolidada e sua linha de discussão já tão estabelecida, que mesmo que quisesse dar adeus a ela, não conseguiria. Bem-vindo à nova linguagem, Godard.




Cly Reis

segunda-feira, 10 de março de 2014

Erik Satie - "Entr'acte" (1924)



“Satie estava recomeçando a história
da música europeia mais uma vez.”
Reinbert de Leeuw




Este é um ÁLBUNS FUNDAMENTAIS que bem pode ser também um Claquete, pois filme e trilha estão totalmente conectados, uma vez que imagem e som não existiriam um sem o outro. Esse conceito integral tão típico das artes cênicas e visuais só poderia vir de artistas que souberam antever o que hoje é chamado de arte contemporânea. Sim, antever, afinal estamos falando de uma obra datada de 1924. A música? A peça “Entr’acte”, do compositor vanguardista francês Erik Satie. O filme correspondente é outra joia, dirigida pelo cineasta René Clair, o mesmo de clássicos do cinema mundial “A Nós a Liberdade” (1931), a “versão europeia” de “Tempos Modernos”, de Chaplin.

Clair chamou Satie para um desafio a que os dois, inquietos como eram, se instigaram. A proposta era a seguinte: o pintor e poeta Francis Picabia, desgostoso com os companheiros de dadaísmo, quis cutucar, igualmente, os surrealistas. Redigiu, então, um balé para o grupo Ballets Suédois, que estrearia em Paris, em pleno Théâtre des Champs-Élysées. O jocoso nome da produção dizia tudo: “Relâche”, o aviso que se colocava na porta dos cinemas quando as sessões eram suspensas. Isso ainda não era nada: no dia da avant-première, um dos cartazes do espetáculo trazia um aviso provocativo ao público: “Se você não gostar, o caixa lhe venderá apitos por dois centavos.” Pois o balé, com apitaços de vaia ou não, conteria dois atos e, no intervalo, seria apresentado um curta-metragem dirigido por Clair cuja trilha, assim como a de todo o espetáculo, coube a Satie. O resultado dessa química foi tão afrontosa que a música do filme se destaca a dos dois movimentos da dança, sendo inclusive desvinculada deles. Ou seja, um deboche homérico, uma vez que justamente a programação secundária (momento de dispersão e que exige menor concentração do público) é a mais representativa de todo o programa, pondo-se acima do principal.

Tal índole de ruptura e escárnio são típicos de Satie, um inclassificável compositor em constante mutação ao longo dos tempos. Ele já havia, àquela altura, composto obras marcantes para a história evolutiva da música europeia (“Relâche” é seu último trabalho antes de morrer, em 1925), como o tríptico “Gymnopédies” (1888) – com seus incomuns 18 compassos contínuos de apenas seis (!) notas, sem desenvolvimento nem transição, apenas um instante prolongado – e outras inovadoras peças, como o balé “circense-surrealista” “Parade”, que causou furor em 1917. Influenciado pela música de DebussyRavel e Stravinsky, bem como pelos modernistas franceses do Les Six, misturava o ragtime americano e a sonoridade fútil do teatro de variedades ao clima do cotidiano de uma Paris em efervescência cultural – deste o esoterismo ocultista até o populismo dos cabarés. Satie circulava por todas as correntes (dadaísmo, futurismo, surrealismo, cubismo, expressionismo, simultaneísmo) sem, contudo, filiar-se a nenhuma delas. Em “Entr’acte”, compõe uma peça totalmente despojada, sem cadência nem compasso definido: apenas marcação de ritmo e harmonia, relegando a segundo plano a melodia. O motivo sonoro, maldito feito uma engenhoca que se estragou naquele ponto, vai e volta, mecanicamente, doentiamente. “Entr’acte” é, assim, a gênese do minimalismo. A repetição e as cacofonias incômodas ao ouvido mostram o quanto Satie prenunciava os tempos esquizofrênicos da sociedade pós-moderna, em que a emoção vira produto e o homem vira máquina. Evidente esta analogia na sequência do funeral, em que todos os convidados, parecendo bestas, estão fora do tempo, até que o próprio caixão dá no pé e todos passam, simbolicamente, a correr atrás da morte. Aqui, Satie faz uma paródia da “Marcha Fúnebre” de Chopin, em que sua escrita para piano, rítmica e sem firulas, revela a influência da música de dance-hall e da vida urbana moderna.

Como na trilogia “Quatsi”, da dupla Godfrey Reggio-Philip Glass, “Entr’acte” é um filme-música (ou a música-filme, tanto faz). Dura pouco mais de 20 minutos, suficientes para entrar para a história da música no século XX e marcar o movimento surrealista no cinema, tendo sido produzido, inclusive, cinco anos antes de “Um Cão Andaluz”, de Luís Buñuel e Salvador Dalí (não é de se estranhar que a estreia de ambos os filmes tenha rendido enorme bafafá na sociedade parisiense da época). Ali já estavam, porém, vivas, as inovações técnicas (câmera na mão, efeitos de luz e lente, sobreposições, distorções visuais, enquadramentos incomuns) e conceituais (roteiro não-linear, narrativa poética, descompasso temporal da ação/personagem, desconstrução psicológica do palco-cenário) que marcariam o cinema avant-garde. O curta foi influência direta para o brasileiro Mário Peixoto em sua obra-prima “Limite” (1930) e para o “cinema de poesia”, que vai da Pier-Paolo Pasolini e Jean-Luc Godard a Júlio Bressane.

A Paris daquele início de século XX dava todos os elementos para essa ebulição criativa. A Cidade-Luz fervia em sua beomia noturna. Estavam lá a esta época algumas das mais inteligentes cabeças das artes em todas as frentes: Pablo Picasso, Ernest Hemingway, Coco Chanel, Stravinsky, Marcel Duchamp. Jean Renoir, Jean Cocteau, Man Ray, Gertrude Stein, David Milhaud e os próprios BuñuelDalí, Clair e Satie. Com tanta produção, os rótulos empregados eram os mais diversos. “Entr’acte”, um típico produto consciente do entre-Guerras, capta esse espírito de diversidade, homogeneizando todas as vertentes. O filme é uma alegoria irônica e pessimista do futuro, como a antecipação das apropriações ideológico-simbólicas da publicidade (a bailarina em slow-motion vista em total contraplongê que vai e volta com a função de “encantar os olhos”), a erotização da violência através do artefato militar (o canhão “varão” que desencadeia a desordem no início do filme) e a fragilidade e a vigília da vida moderna em época de olhos digitais e mídia a la big brother (os dois homens manipulando a cidade em um tabuleiro feito marionete). Já a música, inegavelmente dadaísta, traduz isso a seu jeito: tal como Satie inaugurara em “Parade” sete anos antes, uma nova arte de colagem sonora é criada: melodias interrompidas quando ainda mal começaram, dissonâncias em abundância, ritmos entrelaçados e sobrepostos, ataques inesperados e paradas fora do tempo, fugas quebradas que “homenageiam” um passado já desfeito. Wagner, ópera italiana, escola austríaca, romantismo, classicismo: “nunca mais!”, bradava.

Havia quem criticasse Satie por suas miniaturas musicais com escalas pouco convencionais, harmonias estranhas e uma total ausência de virtuosismo instrumental, reduzindo-o a um compositor de fracos recursos técnicos. Se o era, é mais louvável ainda, pois sua criatividade e capacidade transformadora são tamanhas que não é exagero dizer que ele é um dos precursores do espírito “faça você mesmo”, o grito dos punks, estes, os revolucionários roqueiros do fin de siècle. O fato é que uma obra tão significativa como “Entr’acte” exerceu influência direta na vanguarda pós-Segunda Guerra, tanto no meio erudito quanto no jazz e no rock. Para citar quatro exemplos expressivos: Terry Riley, em seu eletro-minimalista “A Rainbow in Curved Air”, de 1969; a mente “saudavelmente doentia” de Syd Barrett em “The Piper at the Gates of Down”, do Pink Floyd, do mesmo ano; as primeiras obras de Glass, tanto “Music in 14 Parts” (1971-74) quanto “Music with Changing Parts” (1971); e a maestrina jazzista Carla Bley em “Musique Mecanique” (1978). Se tamanho alcance não é digno de elogio, é, no mínimo, reflexo da recorrente contradição que caracterizaria os ilógicos e amorais tempos de hoje. Tempos, aliás, aos quais Satie já se fazia pertencer mesmo não vivendo neles. E para que precisaria?

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O CD traz ainda a íntegra de “Relâche”, com seus dois movimentos interpostos por “Entr’acte”, e a obra “Trois Morceaux en Forme de Poire” – que contém a conhecida peça “Maniere de commencement” e “Ragtime Parade”, arranjo posterior ao balé “Parade” escrito por Hans Ourdine –, todos em versão para piano. No vídeo, a trilha de “Entr’acte” é arranjada para orquestra, com regência de Henri Sauguet, de 1967.
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Ouça o Disco, Assista o Filme:
Erik Satie Entr'acte



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FAIXAS:
I. Trois Morceaux en forme de poire:

1. Maniere de commencement - 4:05
2. Prolongation de meme - 0:47
3. Lentement - 1:27
4. Enlevé - 2:43
5. Brutal - 2:12
6. En plus - 2:21
7. Redite - 1:31
8. Ragtime Parade - 2:33

II. Relâche - Premier Acte:
9. Ouverture - 1:09
10. Projection - 0:42
11. Rideau - 0:24
12. Entrée de la Femme - 1:14
13. "Musique" - 0:37
14. Entrée de l'Hommes - 0:38
15. Danse de la Porte tournante - 0:54
16. Entrée des Hommes - 0:39
17. Danse des Hommes - 0:42
18. Danse de la Femme - 1:04
19. Final - 1:15

III. Entr'acte:
20. Cheminées, ballons qui explosent - 1:29
21. Gants de boxe et allumettes - 0:42
22. Prises d'air, jeux d'echecs et bateaux sur les toits - 0:57
23. La Danseuse et figures dans l'eau - 0:42
24. Chasseur; et début de l'enterrement - 1:25
25. Marche fúnebre - 0:51
26. Cortege au ralenti - 1:35
27. La Poursuite - 1:10
28. Chute du cerceuil et sortie de Borlin - 1:00
29. Final (écran crevé et fin) - 1:05

IV. Relâche - Deuxieme Acte:
30. Musique de Rentrée - 0:56
31. Rentrée des Hommes - 0:54
32. Rentrée de la Femme - 1:15
33. Les Hommes se dévetissent - 0:34
34. Danse de l'Homme et de la Femme - 1:13
35. Les Hommes reganent leur place et retrouvent leurs pardessus - 0:51
36. Danse de la Brouette - 1:21
37. Danse de la Couronne - 0:57
38. La Danseur depose la Couronne sur la tete d'une specatrice - 0:46
39. La Femme rejoint son fauteuil - 1:05
40. Petite Danse Finale (la Queue du Chien) – 0:43







domingo, 9 de agosto de 2020

Claquete Especial Dia dos Pais - 9 filmes sobre paternidade


Aproveitando a data comemorativa do Dia dos Pais, lembramos aqui de filmes que, sob enfoques distintos entre si, abordam o tema da paternidade. Produções de diferentes nacionalidades e épocas que, a seu modo, trazem, por conta das peculiaridades culturais e históricas, também diferentes formas de expressão daquilo que é ser pai. Porém, uma coisa fica evidente em todos estes títulos: o amor. Seja incondicional, conflituoso, arrependido, culpado ou manifesto, está lá sentimento que norteia a relação entre eles, pais, e seus filhos. 

Fazendo uma panorâmica, vê-se que há menos filmes significativos sobre pais do que de mães. Pelo menos, aqueles em que o pai é protagonista e não simplesmente uma figura acessória. Até por isso, torna-se interessante levantar uma listagem como esta no dia dedicado a eles. Escolhemos 9 títulos, afinal, estamos no dia 9. E detalhe: selecionamos apenas filmes premiados, desde Oscar até premiações estrangeiras ou nacionais. Indicações imperdíveis aos que ainda não viram, lembrança bem vinda aos que, como eu, terão a felicidade de revê-los - de preferência, com seus pais.


PAI PATRÃO, irmãos Taviani (Itália, 1977)

Baseado no romance autobiográfico de Gavino Ledda, conta a história da dura infância e adolescência do escritor quando, aos seis anos, é obrigado pelo pai a abandonar os estudos para trabalhar no campo. Todas as suas tentativas de mudar de vida são abortadas pela ignorância e violência do patriarca. Aos 20 anos, ainda analfabeto, Gavino acaba entrando para o exército, onde adquire, enfim, algum conhecimento. Renunciando à carreira militar, ele volta à sua terra para seguir estudando. No entanto, o choque com o pai é inevitável.

Explorando a linda paisagem e luz naturais da região da Sardenha, “Pai Patrão” é um tocante e contundente drama que põe a nu extremos da relação entre pais e filhos, fazendo-se psicanalítico mesmo naqueles confins da Itália. O pai (muito bem interpretado por Omero Antonutti) é uma representação do quanto os instintos do bicho homem falam mais alto quando a ignorância impera. O amor, existente – e contraditoriamente motor disso tudo –, submerge diante do medo e da insegurança de uma pessoa despreparada para aspectos da paternidade. A abordagem dos Taviani é crítica ao ressaltar o comportamento de vários personagens muito próximo ao de animais. Também, surpreendem ao desviar em alguns momentos o foco dos protagonistas, mostrando ações e pensamentos de outros que os rodeiam, evidenciando sentimentos muito parecidos com os de Gavino e de seu pai.

Gavino, já adulto, encara seu pai: amor e ódio
Palma de Ouro no Festival de Cannes, “Pai Patrão” foi a afirmação dos irmãos Vittorio e Paolo Taviani como importantes cineastas da cinematografia moderna italiana a partir dos anos 70, uma vez que tinham como herança a responsabilidade de fazer jus à obra de gênios já consolidados como Fellini, Antonioni e Pasolini. Os Taviani, no entanto, cunharam um estilo mais próximo ao dos neo-realistas, principalmente De Sica, no engenhoso jogo de grandes e médios com primeiros planos, adicionando a isso um modo sempre muito peculiar de contar as histórias, este, próprio do cinema moderno.


A FONTE DA DONZELA, de Ingmar Bergman (Suécia, 1960)

Na Suécia do século XIV, um simples casal cristão dono de uma propriedade rural incumbe a filha Karin (Birgitta Pettersson), uma adolescente pura e virgem, de levar velas para a igreja da região. No caminho, ela é estuprada e assassinada por dois pastores de cabras. Quando a noite chega, ironicamente os dois vão pedir comida e abrigo para os pais de Karin, onde são recebidos cordialmente. Porém, ao descobrirem a tragédia, os pais são tomados pelo sentimento de ódio.

Temas recorrentes na obra do sueco, a morte, a religiosidade e a compaixão servem de tripé para essa história magistralmente dirigida por Bergman. O contraste entre luz e sombra da fotografia em preto-e-branco do mestre Sven Nykvist realça, principalmente a partir da segunda metade da fita, a polaridade emocional da trama: bem e mal, Deus e Diabo, brutalidade e candura, vingança e perdão, vida e morte. O dilema recai sobre o pai, interpretado pelo lendário Max Von Sydow (recentemente morto, no último mês de março), que, com o coração dilacerado e pressionado pela mulher a matar os criminosos, perde a cabeça. E sua religiosidade? E a culpa em sujar-se de sangue? E a dor sua e da esposa? Isso aplacará a perda? Como administrar tudo isso?

filme "A Fonte da Donzela"

Vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e do Globo de Ouro na mesma categoria, esta obra-prima de Bergman valoriza, como em “Pai Patrão”, os elementos da natureza (água, pedra, sol, terra) como representação dos desafios essenciais da vida, mas difere do filme dos Taviani no tratamento da relação pai-filho. Se no outro a questão centra-se na distância emocional entre os personagens, aqui, é a morte que se impõe como separação. Por este ângulo, mesmo num filme transcorrido na Idade Média, “A Fonte da Donzela” é atualíssimo, pois traz um dilema muito comum na sociedade urbana atual: o de como os pais se posicionam diante da perda de um filho vitimado pela violência. Afinal, trata-se de uma obra incrível e significativa a qualquer época.


STALKER, de Andrei Tarkowski (Rússia, 1979)

Em um país não nomeado, a suposta queda de um meteorito criou uma área com propriedades estranhas, onde as leis da física e da geografia não se aplicam, chamada de Zona. Dentro dela, segundo reza uma lenda local, existe um quarto onde todos os desejos são realizados por quem pisa seu chão. Com medo de uma invasão da população em busca do tal quarto, autoridades vigiam o local e proíbem a entrada de pessoas. Apenas alguns têm a habilidade de entrar e conseguir sobreviver lá dentro: os chamados "stalkers". É aí que um escritor, um cientista querem entrar e contratam um stalker para guiá-los lá dentro. No caminho até o quarto, vão passar por rotas misteriosas e muitas vezes, mutáveis, que simbolizam uma ida ao subconsciente e a verdades de suas próprias naturezas nem sempre afáveis. Acontece que este stalker (Alexandre Kaidanovski) quer salvar a sua filha mutante e desenganada alcançando o misterioso quarto.

Talvez o melhor filme de Tarkowski, “Stalker” é uma ficção-científica hermética e reflexiva sobre o homem e a sua existência, sendo a questão da paternidade a chave para tal reflexão. Trazendo a atmosfera onírica comum aos filmes do russo, vale-se do fantástico de “Solaris” (1971), porém burilando-lhe o cerebralismo existencial. A narrativa, transcorrida num clima de suspensão do tempo/espaço, tem como motor o amor de um pai desesperado em salvar sua filha. Ou seja: assim como em “Solaris”, a percepção difusa da realidade é totalmente explicável pelo estado de angústia vivido pelo protagonista. É como se, participante de sua busca, o espectador também adentre naquele mundo surreal. A sempre brilhante fotografia sombreada, o cenário apocalíptico e o recorrente uso de elementos sonoro-visual-narrativos como a água (símbolo da vida) unem-se ao ritmo muito peculiar, pois contemplativo e poético, de Tarkowski.

Os três homens adentram a Zona, mas é o pai que carrega a motivação mais genuína
Vencedor do Prêmio Especial do Júri do Festival de Cannes de 1980, este filme ímpar na história do cinema alinha-se, em verdade, com outros filmes de arte do gênero ficção científica produto do período de Guerra Fria, em que a noção temporal é imprecisa, a humanidade jaz desenganada, o estado comprometeu-se e os avanços tecnológicos, promessas de avanço no passado, não deram tão certo assim no presente. Haja vista “Alphaville” (Godard, 1965), “Laranja Mecânica” (Kubrick, 1972) e “Fahrenheit 451” (Truffaut, 1966).  Esse compromisso de crítica recai ainda mais sobre Tarkowski como cidadão da Rússia, um dos pilares da tensão planetária junto com os Estados Unidos.


KRAMER VS. KRAMER, de Robert Benton (EUA, 1979)

Se já falamos da questão paterna nos confins da Itália rural, na Idade Média e num lugar imaginário, aqui o tema é colocado na modernidade urbana norte-americana. No enredo, Ted Kramer (Dustin Hoffman), leva seu trabalho acima de tudo, tanto da família quanto de Joanna (Maryl Streep), sua mulher. Descontente com a situação, ela sai de casa, deixando Billy, o filho do casal, com o pai. Ted, então, tem que se deparar com a necessidade de cuidar de uma vida que não apenas a dele, dividindo-se entre o trabalho, o cuidado com o filho e as tarefas domésticas. Quando consegue ajustar a estas novas responsabilidades, Joanna reaparece exigindo a guarda da criança. Ted porém se recusa e os dois vão para o tribunal lutar pela custódia de Billy.

“Kramer vs. Kramer” é arrebatador. Começando pelas interpretações dos magníficos Hoffman e Maryl. No entanto, mesmo com o talento que os é inerente, não estariam tão bem não fosse o roteiro contundente, que aprofunda o drama familiar e social aos olhos do espectador. Os diálogos são tão reais e bem escritos, que naturalmente transportam o espectador para situações conflituosas da vida cotidiana, gerando identificação com os personagens. Quantos pais já não foram despedidos do emprego justo no momento em que estava tentando se erguer. E qual pai não ficaria desesperado e sentindo-se culpado por um acidente com seu filho, principalmente quando o acontecido pode ser usado pela mãe para justificar a perda da guarda?

Ted aprendendo e gostando de ser pai
Tamanho êxito como obra não passou despercebido. O filme foi o principal vencedor do Oscar de 1980, abocanhou os de Melhor Filme, Diretor, Ator, Atriz Coadjuvante e Roteiro Adaptado, além de vários Globo de Ouro e outros festivais. Exemplo de drama da cinematografia norte-americana, uma vez que o filme de Robert Benton consegue unir atuações muito bem dirigidas, um roteiro “europeizado”, visto que forte e realista – feito raro em Hollywood – e um enredo tocante, mas que facilmente poderia escorregar para o piegas ou uma enfadonha DR. Filmado no mesmo ano de “Stalker”, traz a figura do pai em um momento de autorreconhecimento desta condição, ao passo de que o filme russo, esta condição já foi compreendida. No entanto, em ambas as produções, a distância entre as culturas são movidas pela mesma busca de um pai pela sobrevivência do filho.


A BUSCA, de Luciano Moura (Brasil, 2012) 

Filme brasileiro relativamente recente, renova o olhar para o problema da distância entre pais e filhos (estado inicial e propulsor da narrativa de “Kramer...”) por questões sentimentais não resolvidas ou dialogadas. Theo Gadelha (Wagner Moura) e Branca (Mariana Lima) são casados e trabalham como médicos. O casal tem um filho, Pedro (Brás Antunes), que desaparece quando está perto de completar 15 anos. Para piorar a situação, Theo fica sabendo que Branca quer se separar dele e que seu mentor (Germano Haiut) está à beira da morte. Theo sai em busca do filho sumido, viagem que o impele a se redescobrir e a ressignificar a relação com o filho.

Road-movie muito bem realizado, “A Busca” tem na atuação de Moura, principalmente, a grande força da obra. Ele transmite ao espectador desde a irascibilidade e insensibilidade de um homem controlador e fechado em si próprio até, conforme o trama se desenrola nos lugares que percorre em busca do filho, passar pelo desespero, a frustração, a esperança e o encontro consigo mesmo. Todos estes momentos perfeitos por uma grande solidão emocional, estado ao qual o caminho lhe dá condições de repensar e transformar.

Wagner Moura em etapa do trajeto em busca de seu filho e de si mesmo
Vencedor do Prêmio do Público no Festival do Rio 2012, “A Busca” lembra o recorrente mote narrativo de filmes iranianos, a se citarem “Vida e Nada Mais”, “Gosto de Cereja”, “O Círculo” e “O Balão Branco”. Sempre há algo a se buscar, seja alguém ou algo que não se sabe exatamente ao certo. Metáfora da vida, essa busca simboliza a passagem do tempo e a (mesmo que não acontece durante o filme) inevitável morte, que um dia alcançará a todos independentemente da rota. Essa simbologia ganha ainda mais realce pelo fato de se tratar da genealogia sanguínea, ou seja: a única possibilidade de não-morte. O longa de Luciano Moura reafirma o entendimento de que, mais do que o final, o importante mesmo é o que se faz na jornada.


IRONWEED, de Hector Babenco (EUA, 1987)

Francis Phelan (Jack Nicholson) e Helen Archer (Maryl Streep, olha ela aí de novo!) são dois alcoólatras que vivem mendigando nas ruas tentando sobreviver às lembranças do passado: Ela, deprimida por ter sido uma cantora e pianista cheia de glórias e hoje estar na sarjeta. Já o caso dele é o que tem a ver com o tema em questão: o motivo por viver como um vagabundo é a não superação do trauma de ter sido o responsável pela morte do filho, ao deixá-lo cair no chão ainda bebê 22 anos antes. Ao mesmo tempo, Francis precisa voltar à realidade, e conseguir um emprego para dar um pouco de conforto à companheira Helen, já muito doente e enfraquecida. E o sentimento de pai do protagonista é, ao mesmo tempo, pena e salvação, uma vez que se configura como a única força capaz de tirá-lo da condição de mendicância.

Ainda mais do que “Kramer...”, “Ironweed” é um filme sui generis na cinematografia dos Estados Unidos, e isso se deve, certamente, ao olhar sensível do platino-brasileiro Hector Babenco. Com o aval dos estúdios para fazer uma produção própria em terras yankees após o grande sucesso do oscarizado “O Beijo da Mulher Aranha”, produção financiada com dinheiro norte-americano mas bastante brasileira em conteúdo e abordagem, o cineasta transpõe para as telas – com a habilidade de quem havia extraído poesia do abandono infantil – o romance de William Kennedy e dá de presente para dois dos maiores atores da história do cinema um roteiro redondo. Isso, ajudado pela fotografia perfeita do craque Lauro Escorel e edição de outra perita, Anne Goursaud, responsável pela montagem de filmes com “Drácula de Bram Stocker” e “O Fundo do Coração”, ambos de Francis Ford Coppola.

cenas de "Ironweed"

“Ironweed” levou o prêmio da New York Film Critics Circle Awards de Melhor Ator para Nicholson, embora tenha concorrido tanto a Oscar quanto Globo de Ouro. Babenco foi um cineasta tão diferenciado que, conforme contou certa vez, Nicholson, bastante sensibilizado com o filme que acabara de realizar, procurou-o um dia antes da estreia e pediu para ir à sua casa para o reverem juntos e que, durante aquela sessão particular, segurou bem firme na mão de Babenco e não a soltou até terminar.


À PROCURA DA FELICIDADE, de Gabriele Muccino (EUA, 2007)

Chris (Will Smith) enfrenta sérios problemas financeiros e Linda, sua esposa, decide partir e deixá-lo. Ele agora é pai solteiro e precisa cuidar de Christopher (Jaden Smith), seu filho de 5 anos. Chris tenta usar sua habilidade como vendedor de aparelhos de exames médicos para conseguir um emprego melhor, mas só consegue um estágio não remunerado numa grande empresa. Seus problemas financeiros, inadiáveis, não podem esperar uma promoção nesta empresa e eles acabam despejados. Chris e Christopher passam, então, a dormir em abrigos ou onde quer que consigam um refúgio, como o banheiro da estação de trem. Mas, apesar de todos os problemas, Chris continua a ser um pai afetuoso e dedicado, encarando o amor do filho como a força necessária para ultrapassar todos os obstáculos.

Se é difícil a vida de um pai solteiro na América urbana, como em “Kramer...”, imaginem um jovem-adulto negro e pobre 30 anos atrás? Baseado na história real do empresário Chris Gardner, este comovente filme tem alguns trunfos em sua realização. Primeiramente, o de trazer à luz a superação individual de um negro na sociedade norte-americana e no meio corporativo capitalista, ainda hoje majoritariamente dominado por brancos. Segundo, por revelar Jaden, filho de Will na vida real que, além de uma criança graciosa, é talentoso, vindo a lograr uma carreira de sucesso a partir de então a exemplo do pai, também um talento mirim no passado. Por fim, o êxito de consolidar Will como um dos mais importantes nomes de sua geração, daqueles Midas de Hollywood capazes de fazer brilhar onde quer que ponham a mão.

Will e Jaden: pai e filho no cinema e na vida real
Além de indicações ao Oscar e ao Globo de Ouro, “À Procura da Felicidade” faturou o NAACP Image Award de Melhor Filme mas, principalmente, premiou pai e filho por suas maravilhosas atuações. Will, o Phoenix Film Critics Society Awards. Já o pequeno Jaden levou não só este como o MTV Movie Award de Melhor Revelação. A sintonia entre pai e filho na frente e atrás das câmeras é captada com delicadeza pelo cineasta italiano Gabriele Muccino, que se valeu desta química para transpor para o cinema esta história inspiradora para qualquer pessoa, quanto mais, para um pai. 


UP: ALTAS AVENTURAS, de Pete Docter (EUA, 2009)

Carl Fredricksen é um solitário idoso vendedor de balões que está prestes a perder a casa em que sempre viveu com sua esposa, a falecida Ellie. Após um incidente, Carl é considerado uma ameaça pública e forçado a ser internado. Para evitar que isto aconteça, ele põe balões em sua casa, fazendo com que ela levante voo e vá em direção a Paradise Falls, na América do Sul, onde ele e Ellie sempre desejaram morar. Porém, Carl descobre que um “problema” embarcou junto: Russell, um menino de 8 anos.

A divertida e tocante animação, dirigida pelo assertivo Pete Docter (dos dois primeiros “Toy Story” e “Wall-E”), é das mais felizes realizações da Disney/Pixar. Acertos técnicos inquestionáveis como é de costume ao megaestúdio, mas principalmente, no enredo e nas metáforas que suscita. A simbologia do voo como elevação espiritual, da velhice e a proximidade com a morte é uma delas, bem como a casa como representação do corpo e daquilo que há no interior de cada um. Mas a trama toca também na questão da amizade, da lealdade e da paternidade, mas não necessariamente sanguínea. O ranzinza Carl, contrariado de princípio com a presença de Russell, vai se afeiçoando ao menino e compreendendo a importância do papel e da figura para este de um pai, o qual, ocupado com sua vida, pouco lhe dá atenção. As altas aventuras vividas por eles provam o quanto o pai também pode ser o que adota. Não no papel, mas no sentido mais emocional da palavra. Com o coração. O garoto, por sua vez, traz para o melancólico cotidiano de Carl, além de confusões – afinal, criança dá trabalho também – vida. Ah, e nisso inclui também a tiracolo um cãozinho, o simpático (e falante!) Dug.

O trio impagável de "Up": paternidade de quem adota com o coração
“Up” ganhou Oscar e Globo de Ouro de Melhor Filme de Animação e Melhor Trilha Sonora (Michael Giacchino), e chegou a concorrer a Oscar de Filme com títulos como “Guerra ao Terror” (vencedor), “Bastardos Inglórios”, “Avatar” e “Preciosa”, um feito para uma animação que seria igualado apenas por “Toy Story 3”, um ano depois. Uma qualidade do filme é que, devido à sua abordagem fantástica e resolução da trama, dificilmente terá uma continuidade, que, assim como acontece com várias outras animações, seguidamente entregam a primeira realização pela inconsistência e pela mera repetição caça-níquel. Vale muito também a pena assistir a versão brasileira dublada, que tem Chico Anysio impagável como Carl Fredricksen em um dos últimos trabalhos do humorista antes de morrer.


RAN, de Akira Kurosawa (Japão/França, 1985)

Adaptação de “Rei Lear”, de William Shakespeare, retrata de forma épica e brilhante o Japão feudal do século XVI, onde um velho senhor da guerra Hidetora, patriarca do clã Ichimonji (Tatsuya Nakadai), renuncia ao poder, entregando o seu império e conquistas aos três filhos: Taro, Jiro e Saburo. Tarô, o mais velho, seguindo a tradição do patriarcado japonês, torna-se o líder do clã e recebe o Primeiro Castelo, centro do poder, ficando Jiro e Saburo, respectivamente, com o Segundo e o Terceiro Castelo. Hidetora retém para si o título de “Grande Senhor” para permanecer com os privilégios Contudo, ele subestima como o poder recém-descoberto dos filhos irá corrompê-los e levá-los a virarem-se uns contra os outros. 

Obra-prima, “Ran” é mais uma adaptação de Shakspeare que Akira Kurosawa promoveu de forma pioneira no cinema japonês – assim como para com outros autores não-orientais como Dostoiévski, Gorky e Arsenyev. Porém, desta vez em cores, diferentemente do que fizera em 1957 adaptando “Macbeth” em “Trono Manchado de Sangue”, o que amplia a magnífica fotografia em grandes planos, o desenho de cena primoroso, os figurinos em que os tons simbolizam estados psicológicos e cenografia que remete ao milenar teatro japonês.

trailer de "Ran"

“Ran” levou o Oscar de Melhor Figurino e concorreu a Melhor Direção de Arte, Fotografia e Diretor, sendo a primeira e última vez que Kurosawa seria nomeado pela Academia. A tragédia teatral ganha uma dimensão ainda mais bela na tela grande, mais do que adaptações anteriores da mesma peça, ao retratar os desacertos internos dos Ichimonji, evidenciando um problema recorrente em famílias poderosas, que é a briga pelo poder e o desafio à autoridade e figura do pai. Numa produção digna do anseio de seu realizador, "Ran" revela conflitos e sentimentos muito genuínos como inveja, cobiça e orgulho e questionando a ancestralidade como formas de manutenção (ou não) do sangue.


Daniel Rodrigues
com colaborações de Leocádia Costa e Cly Reis