Aproveitando a data comemorativa do Dia dos Pais, lembramos aqui de filmes que, sob enfoques distintos entre si, abordam o tema da paternidade. Produções de diferentes nacionalidades e épocas que, a seu modo, trazem, por conta das peculiaridades culturais e históricas, também diferentes formas de expressão daquilo que é ser pai. Porém, uma coisa fica evidente em todos estes títulos: o amor. Seja incondicional, conflituoso, arrependido, culpado ou manifesto, está lá sentimento que norteia a relação entre eles, pais, e seus filhos.
Fazendo uma panorâmica, vê-se que há menos filmes significativos sobre pais do que de mães. Pelo menos, aqueles em que o pai é protagonista e não simplesmente uma figura acessória. Até por isso, torna-se interessante levantar uma listagem como esta no dia dedicado a eles. Escolhemos 9 títulos, afinal, estamos no dia 9. E detalhe: selecionamos apenas filmes premiados, desde Oscar até premiações estrangeiras ou nacionais. Indicações imperdíveis aos que ainda não viram, lembrança bem vinda aos que, como eu, terão a felicidade de revê-los - de preferência, com seus pais.
PAI PATRÃO, irmãos Taviani (Itália, 1977)
Baseado no romance autobiográfico de Gavino Ledda, conta a
história da dura infância e adolescência do escritor quando, aos seis anos, é
obrigado pelo pai a abandonar os estudos para trabalhar no campo. Todas as suas
tentativas de mudar de vida são abortadas pela ignorância e violência do
patriarca. Aos 20 anos, ainda analfabeto, Gavino acaba entrando para o
exército, onde adquire, enfim, algum conhecimento. Renunciando à carreira
militar, ele volta à sua terra para seguir estudando. No entanto, o choque com
o pai é inevitável.
Explorando a linda paisagem e luz naturais da região da
Sardenha, “Pai Patrão” é um tocante e contundente drama que põe a nu extremos
da relação entre pais e filhos, fazendo-se psicanalítico mesmo naqueles confins
da Itália. O pai (muito bem interpretado por Omero Antonutti) é uma
representação do quanto os instintos do bicho homem falam mais alto quando a
ignorância impera. O amor, existente – e contraditoriamente motor disso tudo –,
submerge diante do medo e da insegurança de uma pessoa despreparada para
aspectos da paternidade. A abordagem dos Taviani é crítica ao ressaltar o
comportamento de vários personagens muito próximo ao de animais. Também,
surpreendem ao desviar em alguns momentos o foco dos protagonistas, mostrando
ações e pensamentos de outros que os rodeiam, evidenciando sentimentos muito
parecidos com os de Gavino e de seu pai.
Gavino, já adulto, encara seu pai: amor e ódio
Palma de Ouro no Festival de Cannes, “Pai Patrão” foi a afirmação
dos irmãos Vittorio e Paolo Taviani como importantes cineastas da
cinematografia moderna italiana a partir dos anos 70, uma vez que tinham como
herança a responsabilidade de fazer jus à obra de gênios já consolidados como
Fellini, Antonioni e Pasolini. Os Taviani, no entanto, cunharam um estilo mais
próximo ao dos neo-realistas, principalmente De Sica, no engenhoso jogo de
grandes e médios com primeiros planos, adicionando a isso um modo sempre muito
peculiar de contar as histórias, este, próprio do cinema moderno.
A FONTE DA DONZELA, de Ingmar Bergman (Suécia, 1960)
Na Suécia do século XIV, um simples casal cristão dono de uma propriedade rural incumbe a filha Karin (Birgitta Pettersson), uma adolescente pura e virgem, de levar velas para a igreja da região. No caminho, ela é estuprada e assassinada por dois pastores de cabras. Quando a noite chega, ironicamente os dois vão pedir comida e abrigo para os pais de Karin, onde são recebidos cordialmente. Porém, ao descobrirem a tragédia, os pais são tomados pelo sentimento de ódio.
Temas recorrentes na obra do sueco, a morte, a religiosidade e a compaixão servem de tripé para essa história magistralmente dirigida por Bergman. O contraste entre luz e sombra da fotografia em preto-e-branco do mestre Sven Nykvist realça, principalmente a partir da segunda metade da fita, a polaridade emocional da trama: bem e mal, Deus e Diabo, brutalidade e candura, vingança e perdão, vida e morte. O dilema recai sobre o pai, interpretado pelo lendário Max Von Sydow (recentemente morto, no último mês de março), que, com o coração dilacerado e pressionado pela mulher a matar os criminosos, perde a cabeça. E sua religiosidade? E a culpa em sujar-se de sangue? E a dor sua e da esposa? Isso aplacará a perda? Como administrar tudo isso?
filme "A Fonte da Donzela"
Vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e do Globo de Ouro na mesma categoria, esta obra-prima de Bergman valoriza, como em “Pai Patrão”, os elementos da natureza (água, pedra, sol, terra) como representação dos desafios essenciais da vida, mas difere do filme dos Taviani no tratamento da relação pai-filho. Se no outro a questão centra-se na distância emocional entre os personagens, aqui, é a morte que se impõe como separação. Por este ângulo, mesmo num filme transcorrido na Idade Média, “A Fonte da Donzela” é atualíssimo, pois traz um dilema muito comum na sociedade urbana atual: o de como os pais se posicionam diante da perda de um filho vitimado pela violência. Afinal, trata-se de uma obra incrível e significativa a qualquer época.
STALKER, de Andrei Tarkowski (Rússia, 1979)
Em um país não nomeado, a suposta queda de um meteorito criou uma área com propriedades estranhas, onde as leis da física e da geografia não se aplicam, chamada de Zona. Dentro dela, segundo reza uma lenda local, existe um quarto onde todos os desejos são realizados por quem pisa seu chão. Com medo de uma invasão da população em busca do tal quarto, autoridades vigiam o local e proíbem a entrada de pessoas. Apenas alguns têm a habilidade de entrar e conseguir sobreviver lá dentro: os chamados "stalkers". É aí que um escritor, um cientista querem entrar e contratam um stalker para guiá-los lá dentro. No caminho até o quarto, vão passar por rotas misteriosas e muitas vezes, mutáveis, que simbolizam uma ida ao subconsciente e a verdades de suas próprias naturezas nem sempre afáveis. Acontece que este stalker (Alexandre Kaidanovski) quer salvar a sua filha mutante e desenganada alcançando o misterioso quarto.
Talvez o melhor filme de Tarkowski, “Stalker” é uma ficção-científica hermética e reflexiva sobre o homem e a sua existência, sendo a questão da paternidade a chave para tal reflexão. Trazendo a atmosfera onírica comum aos filmes do russo, vale-se do fantástico de “Solaris” (1971), porém burilando-lhe o cerebralismo existencial. A narrativa, transcorrida num clima de suspensão do tempo/espaço, tem como motor o amor de um pai desesperado em salvar sua filha. Ou seja: assim como em “Solaris”, a percepção difusa da realidade é totalmente explicável pelo estado de angústia vivido pelo protagonista. É como se, participante de sua busca, o espectador também adentre naquele mundo surreal. A sempre brilhante fotografia sombreada, o cenário apocalíptico e o recorrente uso de elementos sonoro-visual-narrativos como a água (símbolo da vida) unem-se ao ritmo muito peculiar, pois contemplativo e poético, de Tarkowski.
Os três homens adentram a Zona, mas é o pai que carrega a motivação mais genuína
Vencedor do Prêmio Especial do Júri do Festival de Cannes de 1980, este filme ímpar na história do cinema alinha-se, em verdade, com outros filmes de arte do gênero ficção científica produto do período de Guerra Fria, em que a noção temporal é imprecisa, a humanidade jaz desenganada, o estado comprometeu-se e os avanços tecnológicos, promessas de avanço no passado, não deram tão certo assim no presente. Haja vista “Alphaville” (Godard, 1965), “Laranja Mecânica” (Kubrick, 1972) e “Fahrenheit 451” (Truffaut, 1966). Esse compromisso de crítica recai ainda mais sobre Tarkowski como cidadão da Rússia, um dos pilares da tensão planetária junto com os Estados Unidos.
KRAMER VS. KRAMER, de Robert Benton (EUA, 1979)
Se já falamos da questão paterna nos confins da Itália rural, na Idade Média e num lugar imaginário, aqui o tema é colocado na modernidade urbana norte-americana. No enredo, Ted Kramer (Dustin Hoffman), leva seu trabalho acima de tudo, tanto da família quanto de Joanna (Maryl Streep), sua mulher. Descontente com a situação, ela sai de casa, deixando Billy, o filho do casal, com o pai. Ted, então, tem que se deparar com a necessidade de cuidar de uma vida que não apenas a dele, dividindo-se entre o trabalho, o cuidado com o filho e as tarefas domésticas. Quando consegue ajustar a estas novas responsabilidades, Joanna reaparece exigindo a guarda da criança. Ted porém se recusa e os dois vão para o tribunal lutar pela custódia de Billy.
“Kramer vs. Kramer” é arrebatador. Começando pelas interpretações dos magníficos Hoffman e Maryl. No entanto, mesmo com o talento que os é inerente, não estariam tão bem não fosse o roteiro contundente, que aprofunda o drama familiar e social aos olhos do espectador. Os diálogos são tão reais e bem escritos, que naturalmente transportam o espectador para situações conflituosas da vida cotidiana, gerando identificação com os personagens. Quantos pais já não foram despedidos do emprego justo no momento em que estava tentando se erguer. E qual pai não ficaria desesperado e sentindo-se culpado por um acidente com seu filho, principalmente quando o acontecido pode ser usado pela mãe para justificar a perda da guarda?
Ted aprendendo e gostando de ser pai
Tamanho êxito como obra não passou despercebido. O filme foi o principal vencedor do Oscar de 1980, abocanhou os de Melhor Filme, Diretor, Ator, Atriz Coadjuvante e Roteiro Adaptado, além de vários Globo de Ouro e outros festivais. Exemplo de drama da cinematografia norte-americana, uma vez que o filme de Robert Benton consegue unir atuações muito bem dirigidas, um roteiro “europeizado”, visto que forte e realista – feito raro em Hollywood – e um enredo tocante, mas que facilmente poderia escorregar para o piegas ou uma enfadonha DR. Filmado no mesmo ano de “Stalker”, traz a figura do pai em um momento de autorreconhecimento desta condição, ao passo de que o filme russo, esta condição já foi compreendida. No entanto, em ambas as produções, a distância entre as culturas são movidas pela mesma busca de um pai pela sobrevivência do filho.
A BUSCA, de Luciano Moura (Brasil, 2012)
Filme brasileiro relativamente recente, renova o olhar para o problema da distância entre pais e filhos (estado inicial e propulsor da narrativa de “Kramer...”) por questões sentimentais não resolvidas ou dialogadas. Theo Gadelha (Wagner Moura) e Branca (Mariana Lima) são casados e trabalham como médicos. O casal tem um filho, Pedro (Brás Antunes), que desaparece quando está perto de completar 15 anos. Para piorar a situação, Theo fica sabendo que Branca quer se separar dele e que seu mentor (Germano Haiut) está à beira da morte. Theo sai em busca do filho sumido, viagem que o impele a se redescobrir e a ressignificar a relação com o filho.
Road-movie muito bem realizado, “A Busca” tem na atuação de Moura, principalmente, a grande força da obra. Ele transmite ao espectador desde a irascibilidade e insensibilidade de um homem controlador e fechado em si próprio até, conforme o trama se desenrola nos lugares que percorre em busca do filho, passar pelo desespero, a frustração, a esperança e o encontro consigo mesmo. Todos estes momentos perfeitos por uma grande solidão emocional, estado ao qual o caminho lhe dá condições de repensar e transformar.
Wagner Moura em etapa do trajeto em busca de seu filho e de si mesmo
Vencedor do Prêmio do Público no Festival do Rio 2012, “A Busca” lembra o recorrente mote narrativo de filmes iranianos, a se citarem “Vida e Nada Mais”, “Gosto de Cereja”, “O Círculo” e “O Balão Branco”. Sempre há algo a se buscar, seja alguém ou algo que não se sabe exatamente ao certo. Metáfora da vida, essa busca simboliza a passagem do tempo e a (mesmo que não acontece durante o filme) inevitável morte, que um dia alcançará a todos independentemente da rota. Essa simbologia ganha ainda mais realce pelo fato de se tratar da genealogia sanguínea, ou seja: a única possibilidade de não-morte. O longa de Luciano Moura reafirma o entendimento de que, mais do que o final, o importante mesmo é o que se faz na jornada.
IRONWEED, de Hector Babenco (EUA, 1987)
Francis Phelan (Jack Nicholson) e Helen Archer (Maryl Streep, olha ela aí de novo!) são dois alcoólatras que vivem mendigando nas ruas tentando sobreviver às lembranças do passado: Ela, deprimida por ter sido uma cantora e pianista cheia de glórias e hoje estar na sarjeta. Já o caso dele é o que tem a ver com o tema em questão: o motivo por viver como um vagabundo é a não superação do trauma de ter sido o responsável pela morte do filho, ao deixá-lo cair no chão ainda bebê 22 anos antes. Ao mesmo tempo, Francis precisa voltar à realidade, e conseguir um emprego para dar um pouco de conforto à companheira Helen, já muito doente e enfraquecida. E o sentimento de pai do protagonista é, ao mesmo tempo, pena e salvação, uma vez que se configura como a única força capaz de tirá-lo da condição de mendicância.
Ainda mais do que “Kramer...”, “Ironweed” é um filme sui generis na cinematografia dos Estados Unidos, e isso se deve, certamente, ao olhar sensível do platino-brasileiro Hector Babenco. Com o aval dos estúdios para fazer uma produção própria em terras yankees após o grande sucesso do oscarizado “O Beijo da Mulher Aranha”, produção financiada com dinheiro norte-americano mas bastante brasileira em conteúdo e abordagem, o cineasta transpõe para as telas – com a habilidade de quem havia extraído poesia do abandono infantil – o romance de William Kennedy e dá de presente para dois dos maiores atores da história do cinema um roteiro redondo. Isso, ajudado pela fotografia perfeita do craque Lauro Escorel e edição de outra perita, Anne Goursaud, responsável pela montagem de filmes com “Drácula de Bram Stocker” e “O Fundo do Coração”, ambos de Francis Ford Coppola.
cenas de "Ironweed"
“Ironweed” levou o prêmio da New York Film Critics Circle Awards de Melhor Ator para Nicholson, embora tenha concorrido tanto a Oscar quanto Globo de Ouro. Babenco foi um cineasta tão diferenciado que, conforme contou certa vez, Nicholson, bastante sensibilizado com o filme que acabara de realizar, procurou-o um dia antes da estreia e pediu para ir à sua casa para o reverem juntos e que, durante aquela sessão particular, segurou bem firme na mão de Babenco e não a soltou até terminar.
À PROCURA DA FELICIDADE, de Gabriele Muccino (EUA, 2007)
Chris (Will Smith) enfrenta sérios problemas financeiros e Linda, sua esposa, decide partir e deixá-lo. Ele agora é pai solteiro e precisa cuidar de Christopher (Jaden Smith), seu filho de 5 anos. Chris tenta usar sua habilidade como vendedor de aparelhos de exames médicos para conseguir um emprego melhor, mas só consegue um estágio não remunerado numa grande empresa. Seus problemas financeiros, inadiáveis, não podem esperar uma promoção nesta empresa e eles acabam despejados. Chris e Christopher passam, então, a dormir em abrigos ou onde quer que consigam um refúgio, como o banheiro da estação de trem. Mas, apesar de todos os problemas, Chris continua a ser um pai afetuoso e dedicado, encarando o amor do filho como a força necessária para ultrapassar todos os obstáculos.
Se é difícil a vida de um pai solteiro na América urbana, como em “Kramer...”, imaginem um jovem-adulto negro e pobre 30 anos atrás? Baseado na história real do empresário Chris Gardner, este comovente filme tem alguns trunfos em sua realização. Primeiramente, o de trazer à luz a superação individual de um negro na sociedade norte-americana e no meio corporativo capitalista, ainda hoje majoritariamente dominado por brancos. Segundo, por revelar Jaden, filho de Will na vida real que, além de uma criança graciosa, é talentoso, vindo a lograr uma carreira de sucesso a partir de então a exemplo do pai, também um talento mirim no passado. Por fim, o êxito de consolidar Will como um dos mais importantes nomes de sua geração, daqueles Midas de Hollywood capazes de fazer brilhar onde quer que ponham a mão.
Will e Jaden: pai e filho no cinema e na vida real
Além de indicações ao Oscar e ao Globo de Ouro, “À Procura da Felicidade” faturou o NAACP Image Award de Melhor Filme mas, principalmente, premiou pai e filho por suas maravilhosas atuações. Will, o Phoenix Film Critics Society Awards. Já o pequeno Jaden levou não só este como o MTV Movie Award de Melhor Revelação. A sintonia entre pai e filho na frente e atrás das câmeras é captada com delicadeza pelo cineasta italiano Gabriele Muccino, que se valeu desta química para transpor para o cinema esta história inspiradora para qualquer pessoa, quanto mais, para um pai.
UP: ALTAS AVENTURAS, de Pete Docter (EUA, 2009)
Carl Fredricksen é um solitário idoso vendedor de balões que está prestes a perder a casa em que sempre viveu com sua esposa, a falecida Ellie. Após um incidente, Carl é considerado uma ameaça pública e forçado a ser internado. Para evitar que isto aconteça, ele põe balões em sua casa, fazendo com que ela levante voo e vá em direção a Paradise Falls, na América do Sul, onde ele e Ellie sempre desejaram morar. Porém, Carl descobre que um “problema” embarcou junto: Russell, um menino de 8 anos.
A divertida e tocante animação, dirigida pelo assertivo Pete Docter (dos dois primeiros “Toy Story” e “Wall-E”), é das mais felizes realizações da Disney/Pixar. Acertos técnicos inquestionáveis como é de costume ao megaestúdio, mas principalmente, no enredo e nas metáforas que suscita. A simbologia do voo como elevação espiritual, da velhice e a proximidade com a morte é uma delas, bem como a casa como representação do corpo e daquilo que há no interior de cada um. Mas a trama toca também na questão da amizade, da lealdade e da paternidade, mas não necessariamente sanguínea. O ranzinza Carl, contrariado de princípio com a presença de Russell, vai se afeiçoando ao menino e compreendendo a importância do papel e da figura para este de um pai, o qual, ocupado com sua vida, pouco lhe dá atenção. As altas aventuras vividas por eles provam o quanto o pai também pode ser o que adota. Não no papel, mas no sentido mais emocional da palavra. Com o coração. O garoto, por sua vez, traz para o melancólico cotidiano de Carl, além de confusões – afinal, criança dá trabalho também – vida. Ah, e nisso inclui também a tiracolo um cãozinho, o simpático (e falante!) Dug.
O trio impagável de "Up": paternidade de quem adota com o coração
“Up” ganhou Oscar e Globo de Ouro de Melhor Filme de Animação e Melhor Trilha Sonora (Michael Giacchino), e chegou a concorrer a Oscar de Filme com títulos como “Guerra ao Terror” (vencedor), “Bastardos Inglórios”, “Avatar” e “Preciosa”, um feito para uma animação que seria igualado apenas por “Toy Story 3”, um ano depois. Uma qualidade do filme é que, devido à sua abordagem fantástica e resolução da trama, dificilmente terá uma continuidade, que, assim como acontece com várias outras animações, seguidamente entregam a primeira realização pela inconsistência e pela mera repetição caça-níquel. Vale muito também a pena assistir a versão brasileira dublada, que tem Chico Anysio impagável como Carl Fredricksen em um dos últimos trabalhos do humorista antes de morrer.
RAN, de Akira Kurosawa (Japão/França, 1985)
Adaptação de “Rei Lear”, de William Shakespeare, retrata de forma épica e brilhante o Japão feudal do século XVI, onde um velho senhor da guerra Hidetora, patriarca do clã Ichimonji (Tatsuya Nakadai), renuncia ao poder, entregando o seu império e conquistas aos três filhos: Taro, Jiro e Saburo. Tarô, o mais velho, seguindo a tradição do patriarcado japonês, torna-se o líder do clã e recebe o Primeiro Castelo, centro do poder, ficando Jiro e Saburo, respectivamente, com o Segundo e o Terceiro Castelo. Hidetora retém para si o título de “Grande Senhor” para permanecer com os privilégios Contudo, ele subestima como o poder recém-descoberto dos filhos irá corrompê-los e levá-los a virarem-se uns contra os outros.
Obra-prima, “Ran” é mais uma adaptação de Shakspeare que Akira Kurosawa promoveu de forma pioneira no cinema japonês – assim como para com outros autores não-orientais como Dostoiévski, Gorky e Arsenyev. Porém, desta vez em cores, diferentemente do que fizera em 1957 adaptando “Macbeth” em “Trono Manchado de Sangue”, o que amplia a magnífica fotografia em grandes planos, o desenho de cena primoroso, os figurinos em que os tons simbolizam estados psicológicos e cenografia que remete ao milenar teatro japonês.
trailer de "Ran"
“Ran” levou o Oscar de Melhor Figurino e concorreu a Melhor Direção de Arte, Fotografia e Diretor, sendo a primeira e última vez que Kurosawa seria nomeado pela Academia. A tragédia teatral ganha uma dimensão ainda mais bela na tela grande, mais do que adaptações anteriores da mesma peça, ao retratar os desacertos internos dos Ichimonji, evidenciando um problema recorrente em famílias poderosas, que é a briga pelo poder e o desafio à autoridade e figura do pai. Numa produção digna do anseio de seu realizador, "Ran" revela conflitos e sentimentos muito genuínos como inveja, cobiça e orgulho e questionando a ancestralidade como formas de manutenção (ou não) do sangue.
Daniel Rodrigues com colaborações deLeocádia Costa e Cly Reis
Uma das grandes atuações femininas na história do cinema,
Marilia em "Pixote", de Babenco
Sempre admirei demais Marília Pêra. Desde as atuações em novelas, em tempos que era possível e saudável assisti-las, como aquela rica decadente e sem noção que ela fez em “Brega & Chique”, a Rafaela Alvaray. Quem viu as telenovelas dos anos 70 deve ter recordações ótimas. Era das artistas completas, das raras, que cantava, dançava, encenava e atuava, tanto em drama quanto em comédia. Foi no cinema que Marília me cativou de fato, seja no apaixonante "Bar Esperança", no engraçado “Tieta do Agreste” ou no emocionante “Central do Brasil”, todos em que faz papéis memoráveis. Além disso, tenho para mim que uma das 10 melhores atuações femininas da história do cinema é dela: em "Pixote, A Lei do Mais Fraco", do Hector Babenco (1980). Coisa do nível de uma Giulieta Masina em "A Estrada da Vida", de uma Maryl Streep em "Kramer vs Kramer", de uma Hanna Schygulla em "O Casamento de Maria Braun".
Misto de realidade e ficção, "Pixote" criou uma atmosfera em que o limite entre um e outro se estreitam. O desafio de tornar essa fronteira verossímil, sem que pendesse para o tom amador do empirismo nem para a artificialidade do conhecimento técnico das artes cênica e cinematográfica, era bastante difícil. Qual seria o ponto de harmonização dessa necessária tensão – afinal, o filme, produto necessariamente industrial, se constituía fundamentalmente de um substrato orgânico da miséria social, algo quase documental?
A resposta estava encarnada em Marília Pêra. É ela quem, representando a prostituta Sueli, exerce a função mais do que a de atriz, mas a de “centro tonal” da narrativa. Babenco, sempre muito sensível – como os bons comunistas realmente engajados –, entendeu que isso era papel mais dela como atriz do que dele como diretor. Ele concebeu, conduziu e deu o norte. Porém, a possível interação entre os dois polos, real e imaginário, pobreza e riqueza, excluídos e incluídos, foi dada a Marília naturalmente. Não sei nem se isso de fato ocorreu no set de filmagem de maneira consciente, mas fica bastante evidente nas cenas em que ela contracena com os pivetes, principalmente com o próprio Pixote, o autobiográfico Fernando Ramos da Silva. É mais do que contracenar: é, através das artes cênicas, abrir um espaço de diálogo entre antagonismos sociais.
É exemplar a cena deles no quarto do motel, logo após duas mortes ocorridas ali, em que os sentimentos mais pulsantes e inatos se revelam de um e de outro, do instinto de maternidade à agressividade intransponível. Toda a profundidade antropológica envolvida naquela cena não é realizável apenas pelo o que o roteiro prevê. O peso de fazerem se aproximar através da dramaturgia esses dois universos antagônicos é, claro, comum a todos: equipe, diretor e atores, nessa ordem de complexidade. Exige uma percepção séria e comprometida com o objeto que se está manipulando. Nisso, o desafio cabido a Fernando, vindo da rua e interpretando um alter ego, é enorme, haja vista a óbvia dificuldade que não-atores têm em desempenhar algo crível, ainda mais num nível elevado ao contracenar com atores formados e experientes. É intrincado dar naturalidade à artificialidade intrínseca do encenar quando o que se está expressando é algo que se lhe é tão natural. Porém, a priori é mais fácil que o contrário, o de cobrir de naturalidade o desconhecido por meio da arte da interpretação. Principalmente quando se tem um ambiente propício – coisa que Babenco e sua equipe de fato arranjaram, visto a honestidade do projeto –, desempenhar-se é melhor do que a algo estranho a si.
"Pixote, A Lei do Mais Fraco", de Hector Babenco
Entretanto, a verdadeira profundidade recai sobre o profissional nessa hora. E é aí que Marília Pêra foi exímia. Como principal interlocutora do núcleo amador – e, mais a fundo, da casta excluída da sociedade abordada no filme – com o produto cultural de massa, ela fez a ponte entre os referidos mundos discordantes. Marília, com o aval de Babenco, pôs-se nesse limiar emocional e ajudou sobremaneira a fazer uma coisa cuja arte moderna raramente consegue com vigor e pungência: eliminar as barreiras entre alta e baixa cultura. Materializar as páginas dos livros de Ciências Políticas é para poucos. É, sim, para aqueles que saem só do discurso e se levam à prática. O filme cumpre isso a custa de sofrimento, tristeza e choque. E Marília, enquanto agente consciente e espiritual do conceito central da obra, representa tudo isso.
Se em “Pixote” é impactante ver Fernando trazendo a sua realidade crua para a frente da tela, é igualmente surpreendente Marília perscrutando um estado que não lhe pertence, que é o da loucura e da miséria. Ou será que pertence? A explicação disso se chama: atriz.
Parabéns, Marília. Como diz Chico Buarque: “para sempre é sempre por um triz”.
Tem filmes que se transformam “da moda” e geram tanta
discussão – nem sempre merecidamente – que é quase “chover no molhado” falar-lhes
a respeito. É o caso de “Não Olhe para Cima”, que estreou no Netflix e em
alguns cinemas pelo mundo – claro, com intenções de Oscar, visto que somente o
streaming lhe impede de concorrer ao prêmio. Porém, a comédia sarcástica com lances
de suspense de Adam McKay (“A Grande Aposta”, “Vice”) tem, sim, merecimento em
ser tão comentado, ainda mais porque a celeuma a qual gerou é mundial e não
restrita apenas ao país no qual foi produzido. A enxurrada de comentários nas
redes sociais que correlacionam aspectos do filme à realidade brasileira, no entanto,
não é à toa, visto que os terríveis tempos de bolsonarismo parecem-lhe estar
retratados fielmente. Só por isso, mesmo que esteja sendo repetitivo, já merece se tecerem algumas observações.
Seja norte-americana, brasileira ou de qualquer lugar que o
valha, “Não Olhe...” é um retrato tristemente muito bem traçado dos tempos de
pós-verdade no qual vivemos. O longa conta a história de dois cientistas (os
astrônomos Randall Mindy, vivido por Leonardo DiCaprio, e Kate Dibiasky, Jennifer
Lawrence) que descobrem um corpo espacial sólido gigante que está vindo em
direção à Terra e tentam alertar autoridades e imprensa para que providências
sejam tomadas antes que as consequências sejam fatais. Porém, são envolvidos em
um jogo político de interesses em que a ciência não é lavada a sério (alguma
semelhança com políticos e pessoas que negam a vacina ou à própria existência do
Coronavírus?). Pior: suas figuras e discurso são distorcidos e transformadas em
produto ao bel prazer da mídia. A dupla de pesquisadores tenta encampar uma
peregrinação na imprensa e acaba na Casa Branca, mas nada parece ser suficiente
para que as pessoas “olhem para cima” de forma racional e despida de interesses
próprios.
“Não Olhe...” expõe a máxima contradição dos tempos atuais:
a de que não é a vida que imita a arte, e, sim, o contrário. O negacionismo, o ódio ao conhecimento, a polarização de ideias, a exaltação da ignorância, o interesse político-econômico
e a intransigência ideológica estão todos evidentes. A semelhança – e a bizarrice
–é tanta, que os mesmos famigerados memes que o filme mostra se produzirem sem
controle se aplicam perfeitamente à realidade fora da ficção, como no
paralelo de personagens do filme e figuras públicas brasileiras que corre pelas
redes sociais: a presidente Orlean (Meryl Streep) comparada a Jair Bolsonaro; o
filho da presidente Jason (Jonah Hill) com o deputado federal Carlos Bolsonaro;
Randall com o microbiologista Átila Iamarino; e Kate com a bióloga Natália
Pasternak– que, aliás, ela mesma identificou-se com a personagem.
Afora a edição ágil de Hank Corwin e a direção bem conduzida
por McKay, que faz o longo filme não ter “barriga”, tamanho é o proveito do
roteiro, as atuações são um destaque à parte. Maryl, deusa, está tragicamente
magnífica no papel da patética presidente; DiCaprio, o maior de sua geração, mais
uma vez dando o tamanho certo para o personagem; Jennifer, igualmente bem; e
especialmente Mark Rylance, que vive o egoico magnata Peter Isherwell, cuja figura
amorfa e andrógena denotam o quão perigosos são estes novos donos do mundo como
Musk e Bezos.
No entanto, o que se destaca antes de tudo em “Não Olhe...”
é seu roteiro, digno de Oscar. Escrito pelo próprio McKay (que levou a estatueta de Roteiro Adaptado em 2016 por "A Grande Aposta"), traz um retrato sem perdão
da sociedade contemporânea em seus tempos líquidos de conexões digitais e
desconexões humanas. A história é um
compêndio de percepções muito acertadas de um mundo de radicalismos político,
ideológico e, num entendimento mais profundo, religioso. É o império do absurdo, que só pode nos levar a um
desastre irreparável. O longa guarda também uma metáfora de alerta para a
questão climática no planeta: nesse ritmo de descontrole do ecossistema, o resultado
será a destruição da vida como a conhecemos.
Atuações de gala abrilhantam o perspicaz "Não Olhe..."
Neste turbilhão de opiniões que o filme suscita, é interessante,
contudo, perceber o mesmo comportamento autodestrutivo que este critica em
relação à sociedade atual. Ou seja, a mentalidade está tão incrustrada que aqueles
que deveriam ter mais condições de avaliar a obra como uma oportunidade de
reflexão (independentemente se a consideram boa ou não, isso é irrelevante),
são, justamente, os que tentam “lacrar”, mostrando-se os verdadeiros cegos. Uma
crítica especializada, por exemplo, apontou que “Não Olhe...” é fadado a ser
esquecido pela história por ser “um filme confuso, sem foco, pouco engraçado e,
pior de tudo, que já nasce velho”. Ora, primeiramente, que não é incomum nos
depararmos com filmes que, mesmo discutíveis em qualidade, marcam, sim, uma
época, haja vista “A Primeira Noite de um Homem”, não necessariamente brilhante
mas marcante para a geração baby boomer, ou o celebrado “Forrest Gump”, que justifica a barbárie social norte-americana de uma forma um tanto leviana. Entretanto,
a questão vai além disso, pois não cabe a um ou outro dizer se a obra vai ou
não perdurar: é um conjunto de fatores históricos, sociais e culturais que determinam,
independente dos gostos pessoais. Avaliações como estas só reforçam, mascarada
ou ignorantemente, o monstrengo autoritário e superpoderoso da sociedade digital-capitalista.
Dada a pertinência de “Não Olhe...” na leitura de nossos
tempos – importante lembrar os detratores, aliás, que o filme foi escrito antes da
pandemia, aumentando seu mérito – é muito difícil imaginar que seja esquecido
no futuro. O que me deixa, inclusive, minimamente reconfortado considerando que a história não se baseia no exemplo brasileiro. Ou seja: esta onda de ultradireita e neofascismo não pertence somente a nós, brasileiros, o que significa que mais nações podem estar passando por isso e percebendo seus malefícios. Mas espero, sim, que o filme seja lembrado daqui a algum tempo como a antítese de um mundo para o
qual caminhávamos em épocas passadas, mas que, a certa altura, percebendo o
erro que cometíamos, tenhamos conseguido retomar a rota do bom senso e do
humanismo. Quem sabe, assim, findar essa era atual para iniciar uma outra.