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segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Grant Green - "Green Street" (1961)



“A qualidade e a quantidade de novos talentos que surgiram no jazz moderno nos últimos anos colocaram muitos dos críticos em uma situação curiosa. O empilhamento de superlativo em cima de superlativo acabou por construir uma montanha perigosamente precipitada. Depois de terem saudado a novidade mais brilhante e a mais notável, que palavras você deixa para quando surge um Grant Green?”
Leonard Feather, crítico e autor da "Nova Enciclopédia do Jazz", em texto da contracapa original de "Green Street"

Todo jazzista que se prezasse nos anos 50/60 sabia que o selo Blue Note era um nível maior a ser atingido. Não que outros como Prestige!, Verve, Atlantic, Columbia ou Savoy também não fossem objeto de desejo de músicos da época. Mas a Blue Note era um ápice. Era como se todos esses selos fossem grandes clubes da primeira divisão, mas aquele, comandado por Alfred Lion, era o campeão. Portanto, pertencer ao plantel da Blue Note significava ser um craque ou aspirante a isso. Fora os já consagrados, cuja camiseta já os estava esperando quando contratados, para estar nesse seleto time havia de se provar que merecia vesti-la. O jovem guitarrista Grant Green, passou, em 1961, aos 26 anos, por aquilo que em futebol se chama de “peneira”. Vindo do fraseado alegre e ligeiro do boogie-woogie, ou mostrava serviço nos primeiros lances ou estava fora. Claro que o talentoso Green não decepcionou, abrindo sua trajetória na gravadora marcando um golaço com “Grant's First Stand”, daquele ano.

Porém – e isso é característica dos grandes atacantes – Green era inquieto. Tanto que, naquele mesmo ano, além de gravar outros dois álbuns por selos alternativos ("Green Blues", pela Muse, e "Reaching Out", pela 1201 Music), ainda surpreenderia com outra jogada de mestre: ”Green Street”. Acompanhado por Ben Tucker, no baixo, e Dave Bailey, bateria, ele aproveita o enxuto formato de trio para destrinchar toda sua técnica apurada nos bares de St. Louis, quando foi descoberto por um embasbacado Lou Donaldson. Não à toa a surpresa do saxofonista, haja vista que Green era aprendiz de be-bop através do sopro de Charlie Parker e admirador da leveza cool de outro senhor do sax, Lester Young. “No. 1 Green Street”, que abre o disco de maneira bem didática e metalinguística, mostra um guitarrista dono de seu estilo, que mescla a herança dos mestres do sax com a influência dos “professores” do seu próprio instrumento, Charlie Christian e Jimmy Raney. O que resulta é um blues suingado em que Green desfila sua variada técnica e seus modos, como as repetições cíclicas de extrema perfeição e os paralelismos de acordes.

A sequência à abertura é muito bem articulada com um clássico: “'Round About Midnight”. Se já é difícil estragar este standard de Thelonious Monk, dá pra imaginar o que esta vira nas mãos abençoadas de Grant Green. Ele imprime groove ao sentimental tema, não sem, claro, dedilhar tanto com os dedos quanto com o coração. Das melhores versões do famoso tema. “Grant's Dimensions”, logo em seguida, assim como o nome sugere, é um hard-bop animado em que o seu autor perscruta os caminhos que o levariam, não longe dali, ao refinamento modal de “Idle Moments” (1963) e “Matador” (1964).

Outra autorreferenciável, “Green With Envy” repete a fineza do fraseado e do toque, limpo e convidativo. Para quem se criou nos barrelhouses do Meio-Oeste, articular os improvisos rápidos e precisos como o desta faixa é moleza. Aliás, corrigindo: Grant Green faz parecer fácil. Tanto ele quanto seus companheiros, como Tucker, que engendra um solo blueser da mais alta qualidade, e Bailey, que também não desperdiça seu momento de brilho, mostrando habilidade ao dialogar com a guitarra logo em seguida. As alamedas coloridas do mais cintilante verde chegam ao final com outro emblema do cancioneiro jazzístico transformado em um eficiente jazz bluesy. “Alone Together” ganha levadas e combinações típicas do saxofone, só que no timbre das cordas de uma guitarra.

Com lugar garantido no escrete da Blue Note, Green, parafraseando a gíria do futebol, era daquelas que jogavam em várias posições. Ele ainda desbravaria muita coisa antes da sua precoce morte em 1979, aos 44 anos, de ataque cardíaco. A infinita capacidade do músico o sabia fazer aproveitar com a mesma fluidez o jazz modal, o latin-jazz e o jazz-funk. E assim como os grandes craques, sofreu influência, mas também influenciou. Mark Knopfler e Stanley Jordan são dois cujo estilo de dedilhado da guitarra não deixa dúvidas de que o espírito de Green passou por aquelas cordas. Coisa de craque, cujos gramados são não apenas o seu campo, mas sua casa. Verdes, onde ele sempre morou.

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FAIXAS:

1. “Green Street” - 07:20
2. “'Round About Midnight” (Bernie Hanighen/Thelonious Monk/Cootie Williams) - 07:03
3. “Grant's Dimensions” - 07:56
4. “Green With Envy” - 09:46
5. “Alone Together” (Howard Dietz/Arthur Schwartz) - 07:12

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OUÇA O DISCO:

Daniel Rodrigues

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

Oscar 2019 - Os Indicados



E saiu a lista dos indicados ao Oscar 2019! "A Favorita", filme de época  do diretor Yorgos Lanthimos, e "Roma", do já oscarizado de Alfonso Cuarón, que concorre não somente a melhor filme como a melhor película estrangeira, são os líderes em indicações, mas "Nasce Uma Estrela" com a estrelíssima Lady Gaga, vem logo em seguida com oito e com boas chances. "Pantera Negra", de certa forma, surpreende com sete nominações, tornando-se o filme de super-heróis com maior reconhecimento neste sentido pela Academia, e o badalado “Bohemian Rhapsody”, biografia de Freddie Mercury, garantiu cinco indicações, incluindo, é claro, a de melhor ator com a ótima atuação de Rami Malek que, por sinal não terá vida fácil, especialmente contra Christian Bale, por seu papel em "Vice", e Willem Defoe, por "No Portal da Eternidade". Me surpreende um pouco a escassês de indicações para "O Retorno de Mary Poppins", que achei que fosse passar o rodo nos itens técnicos e, não tão surpreendente assim, uma vez que as qualidades de "Infiltrado na Klan" vem sendo exaltadas constantemente, mas louvável é a ascensão de Spike Lee ao time dos grandes com sua primeira indicação a melhor diretor.
Depois dessa breve passada, vamos ao que interessa. Conheça os indicados ao Oscar em 2019:


  • Melhor Filme
Pantera Negra
Infiltrado na Klan
Bohemian Rhapsody
A Favorita
Green Book: O Guia
Roma
Nasce Uma Estrela
Vice

  • Melhor Atriz
Yalitza Aparicio (Roma)
Glenn Close (A Esposa)
Olivia Colman (A Favorita)
Lady Gaga (Nasce Uma Estrela)
Melissa McCarthy (Poderia Me Perdoar?)

  • Melhor Ator
Christian Bale (Vice)
Bradley Cooper (Nasce Uma Estrela)
Willem Dafoe (No Portal da Eternidade)
Rami Malek (Bohemian Rhapsody)
Viggo Mortensen (Green Book: O Guia)

  • Melhor Atriz Coadjuvante
Amy Adams (Vice)
Marina De Tavira (Roma)
Regina King (Se a Rua Beale Falasse)
Emma Stone (A Favorita)
Rachel Weisz (A Favorita)

  • Melhor Ator Coadjuvante
Mahershala Ali (Green Book)
Adam Driver (Infiltrado na Klan)
Sam Elliott (Nasce uma Estrela)
Richard E. Grant (Poderia Me Perdoar?)
Sam Rockwell (Vice)

  • Melhor Direção
Spike Lee
Pawel Pawlikowski
Yorgos Lanthimos
Alfonso Cuarón
Adam McKay

  • Melhor Roteiro Original
The Favourite
First Reformed
Green Book: O Guia
Roma
Vice

  • Melhor Roteiro Adaptado
The Ballad of Buster Scruggs
BlacKkKlansman
Can You Ever Forgive Me?
If Beale Street Could Talk
A Star is Born

  • Melhor Figurino
The Ballad of Buster Scruggs
Pantera Negra
A Favorita
O Retorno de Mary Poppins
Duas Rainhas

  • Melhor Cabelo
Border
Mary Queen of Scots
Vice

  • Melhor Direção de Arte/Design de Produção
Black Panther
The Favourite
First Man
Mary Poppins Returns
Roma

  • Melhor Trilha Sonora
Pantera Negra
Infiltrado na Klan
Se a Rua Beale Falasse
Ilha de Cachorros
O Retorno de Mary Poppins

  • Melhor Canção Original
All the Stars – Black Panther
I’ll Fight – RBG
The Place Where Lost Things Go – Mary Poppins Returns
Shallow – A Star is Born
When A Cowboy Trades His Spurs For Wings – Ballad of Buster Scruggs

  • Melhor Fotografia
Cold War
The Favourite
Never Look Away
Roma
A Star is Born

  • Melhor Edição
Infiltrado na Klan
Bohemian Rhapsody
A Favorita
Green Book: O Guia
Vice

  • Melhor Edição de Som
Pantera Negra
Bohemian Rhapsody
O Primeiro Homem
Um Lugar Silencioso
Roma

  • Melhor Mixagem de Som
Pantera Negra
Bohemian Rhapsody
O Primeiro Homem
Roma
Nasce Uma Estrela

  • Melhores Efeitos Visuais
Avengers: Infinity War
Christopher Robin
First Man
Ready Player One
Solo: A Star Wars Story

  • Melhor Documentário
Free Solo
Hale County This Morning, This Evening
Minding the Gap
Of Fathers and Sons
RBG

  • Melhor Animação
Os Incríveis 2
Ilha de Cachorros
Mirai
Wifi Ralph
Homem-Aranha no Aranhaverso

  • Melhor Filme Estrangeiro
Capernaum
Cold War
Never Look Away
Roma
Shoplifters

  • Melhor Curta Metragem – Animação
Animal Behavior
Bao
Late Afternoon
One Small Step
Weekends

  • Melhor Curta Metragem – Documentário
Black Sheep
End Game
Lifeboat
A Night at the Garden
Period. End of Sentence.

  • Melhor Curta Metragem – Live-Action
Detainment
Fauve
Marguerite
Mother
Skin

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

Wayne Shorter - "JuJu" (1965)



“Quando escrevi a música 'JuJu', 
estava pensando na África. 
Sua estrutura é um pouco reminiscente da simplicidade de um canto africano”. 
Wayne Shorter


A cultuada banda formada pelo pianista McCoy Tyner, o baterista Elvin Jones e contrabaixista Jimmy Garrison ficou conhecida como o trio que acompanhou John Coltrane no seu período áureo por quase cinco anos. Mas, na prática, embora o êxito desse encontro e o longo período de parceria com o saxofonista autor de “A Love Supreme”, as coisas não eram assim tão exclusivas. Se e a afinidade musical fazia com que ganhassem essa marca junto a Coltrane, a mesma qualidade lhes garantia sucesso em outros projetos. Afinal, o período, primeira metade dos anos 60, era o de maior fertilidade do jazz pós-bop e, além do mais, os músicos da época conviviam e se trocavam sadiamente. Tanto que, praticamente a mesma banda, com ocasionais substituições, é responsável por discos como “Matador”, do guitarrista Grant Green (1964), “McCoy Tyner Plays Ellington”, de Tyner (1963), e outro magnífico álbum da época: “JuJu”, em que o grupo apoia outro mestre do sax alto: Wayne Shorter.

Com o mesmo vigor e brilhantismo que os faz ostentar a aura de melhor quarteto de todos os tempos do jazz, Tyner e Jones, desta feita acompanhados por outra fera do baixo, Reggie Workman, montam o palco ideal para a exibição de Shorter em “JuJu”. Numa estrutura parecida com seu disco imediatamente anterior, a obra-prima “Night Dreamer” (1964), que contava com esse mesmo time de músicos, “JuJu” inicia, assim como na abertura do outro disco, com uma intensa faixa-título. Trata-se de um bop modal em que ninguém fica para trás, nem band leader nem seus acompanhantes. O trio da “cozinha” não poupa, esbanjando inventividade nas variações sobre a escala. Tyner solta ataques abertos nas teclas brancas; Jones, polirrítmico, engendra um compasso 3/6 cheio de variantes; Workman, por sua vez, desliza os dedos em impulsos constantes sobre as cordas. Mas tudo, claro, a serviço do sopro de Shorter. Majestoso. Altivo. Carregado. Inspirado nos ritos religiosos da África ancestral (o ritual “voodoo” é a versão para “juju” no Haiti), é ele quem – com exceção do solo de Jones no meio do número – preenche do início ao fim a faixa unindo lirismo e ferocidade, disciplina e instinto.

O toque fugidio e aparentemente impreciso da abertura de “Deluge”, o tema seguinte, revela, assim que a melodia se define, que aqueles acordes eram, sim, sua assinatura. Jazz elegante e bluesy, tem um dos mais bonitos riffs criados por Shorter, exímio melodista autor de boa parte de seu próprio repertório e cujas músicas foram gravadas por vários outros artistas, de Miles Davis a Chick Corea. Assim como "Oriental Folk Song", também uma segunda faixa, no caso, no referencial “Night...”, “Deluge” guarda certo exotismo e mistério. Por contar apenas com o sax de Shorter como metal, assim como ocorre em todo o disco, a canção traz a marca forte do seu autor, que tem liberdade para desenvolver os improvisos sem “dividir” o tempo/espaço com outro solista (como em “Night...”, onde o trompete de Lee Morgan faz o segundo sopro). É Shorter brilhando livre com o rico amparo da estelar banda.

Caso da romântica “House of Jade", daquelas baladas dilacerantes de Shorter tal qual “Virgo”, igualmente terceiro número do disco anterior e cujo sentimentalismo é tão arrebatador quanto. Tyner está especialmente clássico, mostrando o quanto ele e outro genial pianista contemporâneo seu, Herbie Hancock, dialogavam. Nota-se Gershwin e Rachmaninoff no seu dedilhar onírico e inteligente, sabendo preencher o espectro sonoro com delicada precisão. Jones, capaz de oscilar da intempestividade à doçura, arrasta e bate a escovinha de leve, quando não solta a baqueta com mais intensidade nos pratos e na caixa. Workman, por sua vez, impecável ao extrair um blues triste do baixo, quase choroso. E Shorter, então?! Quanta beleza! Sopradas lânguidas, macias mas bem pronunciadas, variando das mais inventivas formas o tema central. A 3min30’, uma ligeira guinada para um blues mais embalado, quando se acelera levemente o compasso. Não o suficiente, contudo, para tirar-lhe o caráter lírico. Tyner, a pouco menos de 5min, ensaia um breve solo para, então, Shorter retornar e fechar com a mesma carga sentimental que rege “House of Jade".

Caso também de "Mahjong". Nesta, é a bateria que dá o tom, abrindo a faixa com variações de tan-tan e prato num ritmo sincopado, exótico. Tyner entra com um 3/2 modal como é sua especialidade. Aí, novamente, aparece a lindeza do riff de Shorter, em que as sonoridades orientais, tanto da Índia quanto do Extremo Oriente, se revelam mais presentes, igual o fez em "Charcoal Blues" de “Night...”. Após a abertura, Tyner, num dos momentos mais célebres do disco, engendra um solo de mão direita intrincado, enquanto sustenta com a esquerda a base. Parecem dois pianistas tocando – mas não é. Para responder a tal maravilha no mesmo nível, Shorter volta à carga para hipnotizar o ouvinte. Encadeamentos sobre uma escala de apenas 5 notas se dão em profusão, os quais vão se intensificando em figuras ora dissonantes, ora espirais. Totalmente a ver com a inspiração do tema, uma vez que o “mahjong”, um jogo de mesa de origem chinesa, tem peças que envolvem, justamente, imagens circulares.

A embalada “Yes or Not” já diz a que veio quando o sax Shorter larga soltando o riff. Depois, são quase 6min só de improviso, em que ele explora com agilidade escalas de tons inteiros formando relações diversas. No embalo, Tyner improvisa com igual desenvoltura valendo-se das mesmas premissas construtivas.

A talvez menos “espelhada” em relação a “Night...” seja, justamente, a música que encerra o álbum. Enquanto "Armageddon" finaliza aquele disco carregando na atmosfera avant-garde com dissonâncias e arroubos, a charmosa "Twelve More Bars to Go" é, como o próprio título diz, um passeio fagueiro pelas ruas de Nova York atrás de (mais 12) bares para se tomar um bourbon e ouvir um jazz. Bonito detalhe são os lances em que Shorter, na empolgação do improviso, acaba afastando o bocal do sax do microfone, gerando redução no volume da captação. O engenheiro de som, Rudy Van Gelder, com a habilidade e sensibilidade incomum que tinha, sabiamente não “corrige” a diferença nem durante a execução e nem depois. O que para muitos seria uma falha, nas mãos de Van Gelder vira um acerto divino.

Até mesmo a sonoridade límpida e equalizada dada por Van Gelder e a mais uma vez impecável arte de Reid Miles se repetem de “Night...” para “JuJu”, mostrando o quanto Shorter acertara neste conceito de obra, sua primeira pelo renomado selo Blue Note, o qual carrega toda a bagagem do hard-bop e que serviria de modelo para outros trabalhos igualmente inesquecíveis do artista logo em seguida, como “Speak no Evil”, “Etcetera” (ambos de 1965) e “Schizophrenia” (1967). No entanto, “JuJu”, tão mítico quanto estes, é, acima de tudo, um álbum único, haja vista todas essas suas qualidades, que o fazem chegar, bem dizer, à perfeição.

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FAIXAS:
1. "JuJu" - 8:28
2. "Deluge" - 6:49
3. "House Of Jade" - 6:49
4. "Mahjong" - 7:40
5. "Yes Or No" - 6:35
6. "Twelve More Bars To Go" - 5:26
Todas as composições de autoria de Wayne Shorter

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OUÇA O DISCO:

Daniel Rodrigues

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Lee Morgan - “Search for the New Land” (1964)



"A única hora que você realmente 
é você mesmo é quando está tocando." 
Helen Moore

Lee Morgan é um dos jazzistas mais admirados de todos os tempos e sobre o qual pairam várias lendas. A principal delas está, tragicamente, ligada à sua precoce morte, aos 34 anos. Motivada pelas mãos da própria esposa. A história nunca ficou totalmente esclarecida, tanto que, Helen Moore, a senhora Morgan, nunca cumpriu a devida pena judicial, apenas a moral ante a opinião pública enquanto viveu, até 1996 – fatos que estão expostos no documentário “I Called Him Morgan”, de Kasper Collin (2016). O que se tem certeza é que o trompetista foi um dos maiores talentos do jazz moderno. Após brilhantes passagens pela banda de Dizzie Gillespie e Art Blakey, construiu carreira solo a partir do final dos anos 50, a qual é, certamente, das mais brilhantes do pós-bop. Encarreirou discos irrepreensíveis, sendo um deles o que traduz em seu título a irônica metáfora de sua vida: “Search for the New Land”, de 1964.

A música de Lee Morgan era impetuosa e atrevida como ele. Altamente técnica mas sabiamente maliciosa, refletia a tumultuada vida de excessos e transgressões do músico. Ou seja: ao mesmo tempo que lhe ajudara a tornar-se esta lenda, também se encurtara. Viciado em heroína, foi resgatado pela fã Helen, mulher mais velha que o tirou das ruas em meados dos anos 60 quando ele havia penhorado quase tudo que tinha – até o próprio instrumento de trabalho, o trompete. Ela virou sua esposa, empresária e cuidadora. Morgan, irrefreável, agradeceu drogando-se novamente e ficando com outra. Suficiente para, em uma noite de fevereiro de 1972, num clube de jazz de Nova York onde ele estava tocando, ela dirigir-se até lá para alvejá-lo no coração com a arma que ganhou do próprio marido. Morria o homem, nascia a lenda.

“Seach for the New Land”, faixa-título que abre o disco, é a materialização de toda a carga emocional e musical que Morgan atingiu. Poucas vezes no jazz moderno uma música se fez tão naturalmente completa e conceitual. À época, Morgan, com apenas 26 anos, já havia absorvido em seu hard bop afiado as estruturas modais que John Coltrane popularizara com seu clássico quarteto e os ritmos do novo R&B. “Search...”, desse modo, sintetiza essas tendências, numa estrutura harmônica cheia de altos e baixos, que põe a faixa ora na linha bop, ora num saboroso blues suingado, ora namorando com a avant-garde. Para tanto, o trompetista conta com a estelar ajuda de outros igualmente lendários como ele: Herbie Hancock, ao piano; Wayne Shorter, no saxofone; Grant Green, na guitarra; Billy Higgins; na bateria; e Reggie Workman, no baixo. A melodia é cíclica e onírica, com suas passagens melancólicas e sensuais em tom menor e suas viradas antecedidas de finais falsos reavivados pelo maravilhoso dedilhado de Workman. A construção melódica favorece que o time talentoso de músicos dê um verdadeiro espetáculo nos solos individuais. Pouco mais de 15 minutos de absoluto deleite. Tranquilamente, um tema do nível dos maiores clássicos do jazz moderno, como uma “All Blues” (Miles Davis), “Giant Steps” (Coltrane), “Maiden Voyage” (Hancock) ou "Well, You Needn't" (Thelonius Monk).

Lee e Helen: um caso de amor e ódio que resultou numa das
maiores lendas do jazz
A animada “The Joker”, na sequência, serve para trazer novamente o ouvinte para o mundo real depois da hipnose da faixa inicial. Aqui, é o clima boêmio das ruas e da noite nova-iorquina que prevalece. Shorter tem a primazia do primeiro solo, precedido do jovem band-leader, que faz o ambiente esquentar e passa a vez para os também moços Hancock (24 anos) e Green (29) que, num momento memorável, fazem piano e guitarra conversarem, repetindo o encontro de dois anos antes nos discos “Feelin' The Spirit” e “Goin’ West”, de Green. "Mr. Kenyatta", mais circunspecta, mostra Morgan exercitando aquilo que melhor sabia: notas despojadas e abusadas, mas dono de um pensamento musical capaz de arquitetar solos como se fossem histórias. Shorter, sagaz, segue na mesma linha arrojada, enquanto Hancock, Higgins e Workman seguram todas por detrás. Cabe ao dedilhado ágil de Green a continuidade dos solos, que passa a bola para Hancock demonstrar a mais pura habilidade com a mão esquerda. Para fechar, Morgan estufa os pulmões e retoma, elevando a tonalidade e intensificando o “despojamento controlado” que lhe era peculiar.

O título da faixa seguinte já indica o clima que virá: "Melancholee". No entanto, na linha de “Search...”, um misto de tristeza e sensualidade. Logo em seguida, Green, no melhor exercício modal, improvisa sobre os acordes em escala do piano, enquanto o chorus é dito pelos sopros. Lindeza pura até aí. Mas tem mais! Morgan, Hancock e Shorter, nesta ordem, experimentam um pouquinho cada um a dor sentida do tema. Bebem um bourbon sem gelo para afogar as mágoas e soltam acordes lânguidos, chorosos. Como falou Helen Morgan em uma entrevista pouco antes de morrer referendo-se ao sentimento que percebia no som da maioria dos jazzistas negros explorados pelos empresários brancos àquela época, anos 50/60: “Era um som tão triste. Você podia ouvir a melancolia na música se ouvisse com bastante atenção”.

Para encerrar num ânimo menos down, a bluesy "Morgan the Pirate" faz jus ao título brincalhão. Novamente, show de Morgan empunhando o seu instrumento. União entre alma e técnica num solo extenso tomado de fluidez e lirismo. É Green o responsável por estabelecer a ligação entre os dois sopros, visto que, depois dele, o sax de Shorter entra rasgando. Higgins inclui na combinação da levada o aro da caixa para a participação de Hancock, que, igualmente, emana maravilhas dos teclados para finalizar o número.

A perfeição estética e formal de “Search...” o coloca entre os mais célebres álbuns do gênero, seja da década de 60, seja da geração do hard bop, entre os discos do selo Blue Note ou mesmo da história do jazz. Se a vida errante de seu autor o impediu de levar mais tempo adiante sua genialidade, obras como esta dignificam sua trajetória. E se Morgan, com sua mente inventiva e instintiva, buscava desvairadamente por uma nova lenda, talvez não se apercebesse que esta se encontrava mais perto do que ele imaginava. Dento dele próprio.


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FAIXAS
1. "Search for the New Land" – 15:45
2. "The Joker" – 5:04
3. "Mr. Kenyatta" – 8:43
4. "Melancholee" – 6:14
5. "Morgan the Pirate" – 6:30
Todas as músicas compostas por Lee Morgan

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quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Música da Cabeça - Programa #36



Aqui o programa é assim: bom da cabeça e saudável do pé. Sim, o Música da Cabeça entre no ritmo mais brasileiro de todos para comemorar o Dia do Samba, ocorrido dia 2. Mas não só de telecoteco se faz o nosso programa! Tem o rock britânico dos The Beatles e dos The Smiths; a MPB de Luiz Melodia e dos Os Paralamas do Sucesso; o jazz hard-bop de Grant Green - Blue Note Records e muito mais. Quer aproveitar toda essa diversidade? Escuta o programa de hoje e chama no pé!. É as 21h, pela Rádio Eletrica. Produção, apresentação e pandeiro, Daniel Rodrigues.


quarta-feira, 1 de abril de 2015

John Coltrane - “A Love Supreme” (1965)




"Vi a Deus.”
Genesis 32:30





Alice Coltrane viu seu marido descer as escadas vindo da sala onde costumava trabalhar na casa em que viviam em Long Island, Nova York. Fazia cinco dias que mal saía de lá. Musicista e compositora como ele, Alice entendia muito bem a situação. Ele parecia cansado das obsessivas horas de trabalho, mas “inusitadamente sereno”, relatou Alice. “Parecia Moisés descendo a montanha. Foi lindo. Ele me disse: ‘Esta é a primeira em vez que me veio toda a música que quero gravar, como uma suíte. Pela primeira vez, tenho tudo, tudo pronto.’” O ano era 1964. Visivelmente, não se tratava de uma situação comum. O desgaste dele era justificável, visto que também altamente recompensador. Naquele dia de setembro, começo do outono nos Estados Unidos, John William Coltrane, depois de horas de concentração (e, ao que tudo indica, também contrição), havia composto integralmente todas as músicas daquela que se tornaria sua obra-prima e um marco da música em todos os tempos: “A Love Supreme”.

Gravado em apenas uma sessão, em 9 de dezembro de 1964, e lançado em fevereiro do ano seguinte, “A Love Supreme” logo se tornaria uma referência essencial não só para toda a geração posterior do jazz como Archie Sheep, Pharoah Sanders, Grant Green, Wynton e Brandford Marsalis, John McLaughlin e o próprio filho Ravi Coltrane, mas para músicos de outros estilos: a turma do rock clássico (Greatful Dead,Joni Mitchell, Santana, Jimi Hendrix), punks (Patti Smith, Tom Verlaine, Bono Vox), roqueiros mais atuais (Bob GillespieMobyPeter Buck), músicos da soul (Gil Scott-Heron, Marvin Gaye, Stevie Wonder) e da vanguarda (Steve Reich, Carla Bley, Lester Bowie, Frank Lowie). Porém, mais do que somente um espelho musical, “A Love Supreme” passou a dar também inspiração tanto política, visto que, na época, seu sucesso ajudou a inflamar o discurso racial de um grupo em formação chamado Black Panthers, quanto espiritual, como um manuscrito sagrado a ser decifrado. “Você entenderá a mensagem [de ‘A Love Supreme’] quando estiver pronto, como nos ensina a filosofia hindu. Se não estiver pronto, terá de recuar, se preparar e caminhar tudo de novo”, sentencia o baixista Reggie Workman, que tocara na banda de Coltrane em 1961, no livro “A Love Supreme: a criação do álbum clássico de John Coltrane”, do jornalista e pesquisador norte-americano Ashley Kuhn.

O livro do jornalista Ashley Kuhn
que disseca o grande álbum de Coltrane
De fato, para muitos Coltrane é um anjo que pousou por aqui com saxofone e asas e que, por apenas 41 anos, promoveu prodígios, deixando um lastro de beleza e amor. Nascido na Carolina do Norte em 1926 e criado na Filadélfia, o habilidoso instrumentista começou tocando clarinete, mas logo passou para o sax alto. Nos anos 40, integrou a bjg-band de Dizzie Gillespie, escola para a maioria dos jazzistas de alto nível, e a King Kolax Band ao lado de Charlie Parker, quando trocou o sax alto pelo tenor tendo em vista que o Bird já dominava o alto como ninguém. Nos anos 50, dado o seu reconhecível talento e estilo, é chamado para integrar o mágico quinteto de Miles Davis ao lado de Red Garland, Paul Chambers e Philly Joe Jones. Também com Miles, no final daquela década, compõe a banda que gravaria o mítico "Kind of Blue", considerado por muitos o melhor disco da história do jazz. O vício em heroína (comum aos músicos de jazz da época), no entanto, quase o faz abandonar a carreira. Mas após uma tortuosa recuperação, por volta de 1957, limpa-se das drogas e volta à ativa em alto nível e decidido a cumprir uma “missão musical”.

É justamente a trajetória de Coltrane como band leader que o impulsionaria ao status de um dos maiores músicos de sua época, formando a mística em torno de si e de sua obra. Se todas as experiências anteriores ajudaram a forjar o solista sui generis e o compositor criativo cunhado no be-bop, hard-bop, jazz modal e free-jazz, foi o contato com o pianista Thelonious Monk, no final dos anos 50, a chave para o encontro interior de Coltrane. Era a liga que faltava a este neto de bispo protestante com fortes raízes religiosas que tencionava transmitir em música algo transcendente e pessoal, numa concepção que incorporasse o hinduísmo, a astrologia, a filosofia ocidental, a cabala, a herança africana e, obviamente, um autorreconhecimento da presença de Deus.

Nas breves semanas que esteve com o didático e transgressor Monk, jazzista de fortes influências em Messiaen e Bártok que não se furtava em criar estranhas transições melódicas e mudanças rítmicas, Coltrane achou seu caminho. Foi quando vieram, por exemplo, obras autorais como “Blue Train”, "My Favourite Things", “Giant Steps”, “Africa/Brass” e “Olé”, todos essenciais a qualquer discoteca. É nesta época, também, que ele forma a banda que o acompanharia em várias gravações e shows e que comporia o time de “A Love...”: McCoy Tiner (piano), Elvin Jones (bateria) e Jimmy Garrison (baixo). Há três anos apoiado por esta formação, Coltrane caminhava firmemente para a música de vanguarda, espelhando-se nos trabalhos Charles Mingus, Ornette Coleman e Cecyl Taylor. Após o bem recebido “Crescent”, de 1963, “A Love...” era o sucessor aguardado pela crítica e público. “O que John Coltrane trará dessa vez?” “Em que ponto ele evoluirá com sua música?”, indagavam.

A resposta a essas perguntas não foi difícil de ser respondida. “A Love...” trazia o ápice da genialidade composicional, de arranjo e improvisação de John Coltrane. Além disso, carregava, do primeiro ao último acorde, todo um misticismo e espiritualidade que de pronto foram captados pelos fãs. E, ao invés de ser taxado como algo “menor” ou meramente “religioso”, este fator engrandeceu a obra. Não por acaso: “A Love...” consegue, em sua musicalidade vanguardista mas universal referenciar todo seu legado precedente, do jazz clássico de Count Basie e Dexter Gordon, o jazz moderno de Miles e Monk, passando pelo erudito de Messiaen e Stravinsky e pelos contemporâneos dele (Coleman, Herbie Hancock, Lee Morgan, Sonny Rollins, Wayne Shorter) sem suprimir sua subjetividade como indivíduo, como ser espiritual.

As quarto faixas de “A Love...” compõem uma “oferenda a Deus”, ideia que o próprio Coltrane deixaria clara no poema da contracapa original. “Vamos cantar todas as canções a Deus”, diz em um dos versos. E é isso que se sente na música. “Acknowledgement” acende os caminhos. Numa das mais marcantes aberturas de álbum da discografia jazz, um gongo rufa, como se soltasse cristais sonoros pelo ar. Surge a imagem de uma portada celeste abrindo-se sob uma radiante luz branca. É a elevação do espírito materializada em sons. No que o ressono oriental começa a apagar-se, vem o sax alto junto aos pratos, o piano e o baixo, que entram para manter de forma suave a seriedade da introdução. Um fraseado de sax é vigorosamente tocado, numa benção de boas-vindas. A invocação dura aproximadamente 35 segundos e, antes que a sensação de levitação se dissipe, Garrison entra com um acorde de quatro notas, que é o verdadeiro riff da canção, pois transforma em som as cadências do nome do álbum – afinal, como não intuir que naquele dedilhado está sendo dito: “A Love Supreme”? Tanto o é que, no final da faixa, depois de um verdadeiro show multitonal de Trane, de uma explosão polirrítmica de Jones e de um passeio pelos acordes de Tyner, Coltrane larga o bocal do instrumento e, com humildade e devoção, entoa com sua própria voz ao microfone: “a love supreme/ a love supreme...”, repetidas vezes.

Antes, no entanto, “Acknowledgement” nos dá uma sensação de intensidade e paixão. Coltrane inicia seu solo com acordes suaves e firmes, tal um orador de igreja. À medida que a emoção toma conta, sua “fala” vai se tornando insistente, adicionando ao lirismo inicial altas cargas de solenidade, graça e pesar. Vêm, então, ondas de alegria, acompanhadas com sabedoria pela mão esquerda de sensibilidade astral de Tyner e pela batida 6/8 de Jones, a qual remete aos ritmos latinos e afro-caribenhos. O baterista ainda sustenta a condução rítmica nos pratos, como lhe é característico. Coltrane pula de tom para tom repetidamente, numa desconstrução melódica que normalmente soaria desconfortável aos ouvidos, mas que, no contexto, demonstra sua “profunda ressonância espiritual”, como diz o escritor e biógrafo Lewis Porter. No ápice, o saxofonista dá uma guinada que joga o tom lá para cima, elevando a emotividade. Até que a intensidade cai e, depois das impressionantemente simétricas 37 repetições do riff pelo sax, a voz entra para entoar o mantra. No final, a banda desce um tom inteiro, preparando a cama para a parte 2 da suíte.

Rudy Van Gelder, o técnico de som com mãos de cirurgião, faz a colagem perfeita para a entrada do outro take: “Resolution” – minha preferida do disco. Talvez a mais “tradicional” do álbum, visto que, a priori, trata-se de um hard-bop bluesy como os que todos ali eram profundamente conhecedores. Porém, parece que, mais uma vez, a carga incorpórea dada à música por Coltrane e a banda eleva o “material” a outro patamar. O baixo abre sozinho, engenhosamente quieto, num preâmbulo lento e carregado de blues. Isso antecipa uma virada ruidosa, quando a banda entra explodindo e Coltrane, principalmente, detonando o riff. Ele novamente exercita saltos de modulação, subindo e descendo as escalas e imputando drama com seu saxofone. Tyner, invariavelmente inteligente, providencia um acompanhamento de ambivalência harmônica, dando liberdade ao solista. Em seguida, o líder empurra todo o quarteto para uma série de clímaces marcados por gritos ríspidos de seu sax, instigados pelos rolos da bateria e os pratos nervosos de Jones. Garrison, por sua vez, destaca-se pela combinação de notas curtas e precisas com outras longas e ressonantes.

Cabe a Jones fechar “Resolution” com uma virada na caixa e uma batida no prato de condução, pois é o baterista quem, num solo exuberante – que celebra os mestres do instrumento do jazz (Jo Jones, Art Blakey, Max Roach) e os influenciados do rock (Ginger Baker, Keith Moon, Mitch Mitchell) –, inicia a terceira sequência de “A Love...”: “Pursuance”. Usando baquetas de madeira, retoma a polirritmia africana e o toque caribenho, estabelecendo um ritmo saltitante e gingado que se incorpora ao seu estilo democrático da bateria, o qual se vale dos timbres de todo o aparato: caixa, tan-tan, pratos, tambor e bumbo.

A “procura” pela iluminação de Coltrane atinge limites épicos nesta faixa – gravada de primeira num irrepreensível take. Na primeira parte, sobre o ainda improviso da bateria (Jones, na verdade, não para de solar até o fim de sua participação na faixa), apenas apresenta o tema, dando a deixa para a rica e engenhosa improvisação de Tyner. O pianista sai ordenando uma sucessão de frases livres de pura inventividade melódica, criando quase uma nova estrutura à música. Aparecem com clareza seus característicos voicings, saltos de três intervalos acima da tônica da melodia que fazem o ouvinte saltar do sofá. Pura energia, pura música.

Detalhe para ouvidos atentos: a “deixa” de Tyner para Coltrane acontece segundos antes do esperado, forçando o atento e novamente cirúrgico Van Gelder a aumentar o volume do microfone do sax (detalhe perceptível na amplitude do som dos pratos de Jones). É quando Coltrane entra para serpentear em vários motivos surgidos ali, no calor do momento, conduzindo frases frenéticas até as alturas. Erupções, dissonâncias, ruídos roucos, ideias cíclicas do tema original, citações do riff de “Acknowledgement”. Tudo isso condensado em apenas 2 minutos e meio. É o momento de maior expressividade de improviso de Trane, quando a minissinfonia que é “A Love...” atinge o que seria seu allegro vivace. Como diz Kahn: esta parte é “o coração do álbum”.

Mas não para por aí: Coltrane chama Jones para a prece. Extremamente cúmplices, o sax e a bateria de um e de outro, velhos parceiros, atingem um nível de diálogo telepático. Jones dispara uma fuzilaria de rolos, estrondos e batidas nos pratos. Coltrane responde com grunhidos tumultuosos do seu arco. Ambos se homogeneízam, sem definir quem comanda e quem acompanha. Para finalizar, Jones metralha viradas na caixa e Garrison, já em pleno improviso, tem sua vez de realce com um solo de três minutos. Idas e vindas, menções ao tema do primeiro número e, claro, da própria “Pursuance”, são ouvidas num improviso hábil e “intrigante” do contrabaixo, como classificou outro craque do instrumento, Ron Carter.

Depois da fúria de “Pursuance” e do balanço de “Resolution”, o clima meditativo do início do disco vem com força total para finalizá-lo na tocante “Psalm”. Tão distinta que parece isolar-se do restante, como um recolhimento ao altar para a oração. Sequência de “Pursuance” (foi gravada no mesmo histórico take), é nada mais nada menos do que a declamação quieta e etérea de Coltrane do seu poema da contracapa. Frase por frase, sem melodia cantarolável, sem centro tonal. Apenas acompanhado dos acordes atmosféricos do piano de Tyner e do baixo de Garrison, além dos pratos de Jones, que ainda surpreende ao operar inusitados tímpanos de orquestra, os quais dão um ar ao mesmo tempo introspectivo, solene e raveliano. E quem “declama” é o sax, e não a voz. Num movimento inverso ao de “Acknowledgement”, quando começa o disco indo da melodia para a palavra, aqui, no final dele, Coltrane vai da palavra para a melodia. Lê-se num dos versos a citação de um trecho dos salmos bíblicos do livro do Gênesis: “Vi a Deus face a face, e a minha alma foi salva”. Ninguém duvida que John Coltrane de fato tenha tocado o divino.

Em vida, ainda deu tempo de o músico gravar mais um trabalho fundamental do jazz, “Ascension”, de 1966, ponte determinante entre o free-jazz e a avant-garde. Se é coincidência que seus últimos dois discos se chamam “um amor supremo” e “ascensão”, não se tem certeza. O fato é que, acometido de um câncer (o qual se desconfia que ele já soubesse da existência antes de compor “A Love Supreme”) foi, um ano depois, levado por seus colegas alados para habitar, definitivamente, nos céus. E ao que tudo indica, em paz. Pelo menos é o que o seu testamento musical nos diz. A morte prematura; a aura espiritual de “A Love...”; a única apresentação ao vivo do repertório do disco (em Antibes, na França, show que compõe a edição especial do CD); a dimensão de sua influência ao longo dos tempos; tudo isso dá corpo à mitologia em torno de Coltrane e sua obra.

No entanto, mais do que qualquer atributo, o fato é que “A Love...” foi concebido com a alma, e é isso que emana do sulco toda vez que se põe o disco para tocar mesmo hoje em 2015, 50 anos depois de seu lançamento. Elvin Jones, talvez o músico que melhor tenha se entendido com Coltrane entre os diversos que tocaram com ele nos 28 anos de carreira do saxofonista, parece compreender com profundidade o porquê da passagem do colega e amigo por essas bandas terrenas e o legado de “A Love...”: “Quem quiser saber o que foi John Coltrane tem de conhecer ‘A Love Supreme’. É como o apogeu da vida de um homem, a história completa de uma vida inteira. Quando alguém quer se tornar um cidadão americano, deve fazer o juramento de fidelidade diante de Deus. ‘A Love Supreme’ é o juramento de John.”

Não tenho dúvida que a alma de John Coltrane foi salva.
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FAIXAS:
1. A Love Supreme, Pt. 1: “Acknowledgement” - 7:47
2. A Love Supreme, Pt. 2: “Resolution” - 7:25
3. A Love Supreme, Pt. 3: “Pursuance” – 10:43
5. A Love Supreme, Pt. 4: “Psalm” – 7:40

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segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Lee Morgan – “The Sidewinder” (1964)





“Quando a melodia de ‘The Sidewinder’
me veio à mente,
não estava pensando naquele tipo de cobra,
mas sim num cara mau”.

Lee Morgan



O trompetista norte-americano Lee Morgan é um dos maiores nomes da história do jazz, inegavelmente. Porém, seu caminho poderia ter sido ainda mais frutífero não fossem essas coisas inexoráveis da vida. No caso dele, a morte. Porém, durante os 36 anos em que esteve no planeta Terra iluminando-o com sua música, o período entre 1963 e 1964 lhe é especialmente relevante. Foi quando ele produziu algumas de suas mais significativas obras. Poderia muito bem falar aqui do hard bop “The Gigolo”, com sua explosão soul de “Yes I Can, No You Can't”, que lançou, em 1965, com uma afinadíssima banda (Harold Mabern, piano; Bob Cranshaw, baixo; Billy Higgins, bateria; e o mestre Wayne Shorter, no sax tenor). Podia, igualmente, voltando dois anos no tempo, exaltar o brilhante “Search for the New Land”, cuja faixa-título é dos colossos do jazz mundial mas que, para além disso, é inteiramente radioso, contando com os mesmos Higgins e Shorter e mais as luxuosas adições de Reggie Workman, no baixo, e os dedos mágicos de Grant Green na guitarra e de Herbie Hancock ao piano. Ainda caberia trazer o obscuro bop modal “Tom Cat”, em que Morgan se juntara, logo depois, às feras Jackie McLean (sax alto), Curtis Fuller (trombone), McCoy Tyner (piano), Cranshaw (baixo) e seu “padrinho” Art Blakey (bateria).
Porém, a fase era tão produtiva que Morgan não ficou apenas nesses grandes feitos. Outro deles pode ser considerado ainda mais revolucionário e esplendoroso: “The Sidewinder”. Juntamente com o já resenhado aqui nos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS "Empyrean Isles", de Hancock, compõe o duo de discos que lançaram, há exatos 50 anos, as bases do jazz-funk, inspirando toda uma geração de jazzistas (Vince GuaraldiMiles Davis, Green, Henri Mancini, João Donato, Don Salvador) além da soul music e do pop-rock. Foram os discos que fizeram o jazz sair do chão. A beleza formal dos acordes complexos ganha aqui ainda mais malícia, gingado, groove.
Nascido na Filadélfia, o prodígio Edward Lee Morgan começou pré-adolescente a soprar seu instrumento inspirado em Miles, Clifford Brown – seu ídolo – e Dizzy Gillespie, com quem tocara no início da carreira. Em 1956, aos 19 anos, tem a chance de integrar a The Jazz Massangers de Blakey, mesmo ano em que assina pela primeira vez com o selo Blue Note, do qual saiu quatro anos e sete discos depois. Nessa época já se via o virtuosismo, a fluência e o vigor de seu toque, destacando os poderosos registros agudos, estilo que foi aperfeiçoando ao longo dos anos (inclusive, na célebre participação como sideman em “Blue Train”, memorável álbum de John Coltrane de 1957). Até que, após passagens por gravadoras menores, em 1963 retorna à “casa” e, com a mão Rudy Van Gelder na mesa de som e produção de Alfred Lion (além da sempre linda arte de Reid Miles na capa), leva ao estúdio da Blue Note, em Nova York, os camaradas Cranshaw e Higgins juntamente com as feras Joe Henderson, no sax alto, e a Barry Harris, no piano, para registrar “The Sidewinder”.
Como todo bom jazzista, Morgan é altamente ligado ao blues. Entretanto, ele injeta ao rhythm’n’blues uma carga ainda inédita do funk oriundo das ruas dos guetos urbanos, que tinham, desde os anos 50, na figura de James Brown, Otis Redding, Solomon Burke e Aretha Franklin seus principais representantes. A química foi infalível. A faixa-título faz as honras de abertura, mostrando como se faz jazz com inteligência, apuro técnico e alma soul. Cranshaw dedilha um acorde de quatro notas que desencadeia uma explosão de groove, com Higgns, brilhante, metendo swing na caixa e no prato; Harris, segurando tudo num gostoso tempo 2 x 2; e os sopros, que mandam ver no chorus. Impossível não balançar o esqueleto! Tão lindos quanto o improviso de Morgan, de Harris e de Henderson – músico experiente como Morgan que de cara já diz a que veio –, o de Cranshaw, atrevido, fecha a sequência de solos, quando a banda retoma inteira para concluir o número. Para coroar o feito de Morgan, ninguém menos que uma de suas principais inspirações, James Brown, regravou a faixa menos de um ano depois. O Godfather of Soul gostou tanto da homenagem que pôs a The James Brown Band a executar uma mais acelerada versão de “The Sidewinder” em “James Brown Plays James Brown: Yesterday and Today”, com nada menos que um naipe de cinco metais à frente.
“Totem Pole”, com base de acordes circulares do baixo, traz uma estrutura mais tradicional do hard bop. Porém, os solos são de uma malemolência inquestionável. Morgan arranja o seu numa combinação orgânica com o piano de Harris, que dialoga com o trompete durante todo o improviso. Nesta, Handerson, que já havia soltado as garras na anterior, realiza um de seus mais memoráveis solos. Capaz de unir a bossa-nova e o be-bop a um virtuosismo de cores parkerianas, ele incrementa a música com seu estilo particular.
“Gary's Notebook” traz ainda mais embalo e um riff complexo, tocado com simetria pelos sopros. De encher os olhos. Morgan mais uma vez se dá o direito de iniciar os improvisos, ditando um toque fluente e variante que Henderson e Harris seguem com desenvoltura. Na mesma linha e ritmo, "Boy, What A Night" é mais uma de impressionar pela sincronia de toda a banda, seja no chorus ou nos momentos de realce dos instrumentos. Desta vez, é o sax de Henderson que inicia os trabalhos, num conceito interessante em que ele estende as notas, criando intervalos diferenciados e elásticos. Que Morgan é sempre um espetáculo é sabido; mas nesta Harris não fica para trás, seja na marcação swingada da base, seja no solo, certamente o destaque da faixa. Tomada de blues, a improvisação do piano bem poderia figurar em qualquer rock de Little Richard ou Jerry Lee Lewis.
Colorida, “Hocus Pocus” fecha o álbum em alto astral. Morgan eleva a escala, num tocar radiante. Van Gelder inteligentemente deixa o microfone captar ao fundo a empolgação de algum dos músicos, que acompanha com a voz algumas frases dos instrumentos (provavelmente o próprio band leader) – o que faz lembrar Charles Mingus em sua ode ao blues “Oh Yeah”, de 1962. Henderson e Harris mantêm o clima e a qualidade indiscutível. Perto do final, Higgns, dos principais responsáveis pelo conceito do álbum, uma vez que o amarra de ponta a ponta com um ritmo gingado e bluesy, ganha seus momentos de improviso também, conversando com o trompete de Morgan. Este, por sua vez, também não deixa terminar a gravação sem emitir suas peculiares notas agudas, que surpreendem o ouvido e o deliciam ao mesmo tempo.
“The Sidewinder” entrou para a história como o maior sucesso de Lee Morgan, atingindo o 10º lugar na categoria R&B da Billboard. Os anos subsequentes iriam alçar o músico cada vez mais ao posto de um dos grandes do jazz universal, ao lado de craques da sua geração como Sonny Rollins, Hancock, Shorter, Henderson, Cannonball Adderley, Ornette Coleman e Coltrane. Porém, como havia ocorrido com este último em 1967, vitimado por um câncer, os céus tinham outros planos para Lee Morgan. Todo aquele talento foi bruscamente ceifado por um brutal assassinato pelas mãos da própria esposa, de quem recebeu um tiro no coração quando tocava num clube em Nova York em 1972. O motivo? Não se sabe. O crime ainda hoje é mal explicado. O que a levou a cometer tal ato? Será que, domesticamente, Morgan encarnava o tal “cara mau” a quem o próprio se referiu? Não se sabe – e nem importa. Resta, sim, sua obra, que somente um cara com uma boa dose de “maldade” podia ter criado. Uma maldade no sentido de “malícia”. Afinal, não há males que vêm para bem?
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FAIXAS:
1 - The Sidewinder – 10:25
2 - Totem Pole – 10:11
3 - Gary's Notebook – 6:03
4 - Boy, What a Night – 7:30
5 - Hocus Pocus – 6:21
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Lee Morgan  - "The Sidewinder"




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terça-feira, 16 de setembro de 2014

Herbie Hancock - "Empyrean Isles" (1964)

 



Hancock estreita as fronteiras entre o hard bop, encontrando brilhantemente um sugestivo equilíbrio entre o bop tradicional, 

injetando-lhe grooves do soul,

e experimental, jazz pós-modal.” 

Stephen Thomas Erlewine,

crítico musical e biógrafo




O jazz já era o maior gênero musical norte-americano desde os anos 20, mas é inegável que as décadas de 50 e 60 foram memoráveis para sua história. A cada ano, vários artistas – muitos em seu auge; alguns, iniciando; outros, veteranos em plena forma – lançavam um ou mais álbuns impecáveis e inovadores, considerados fundamentais até hoje, fosse pela Impulse!, Blue Note, ECM, Atlantic, Columbia, Verve e outros selos. Destes, a passagem de 1963 para 1964 talvez seja a que reúna o crème de la creme pós-Segunda Guerra. Provavelmente, iguale-se apenas ao revolucionário ano de 1959, que presenteou o mundo com as inovações modais de "Kind of Blue", do Miles Davis, com o libelo free jazz de “The Shape of Jazz to Come”, do Ornette Coleman, e o petardo hard-bop “Giant Steps”, do John Coltrane. Se nem tanto em transformação do estilo, o quinto ano da década de 60 não fica para trás em qualidade e importância. Gravaram-se, durante seus 365 dias, por exemplo, joias como "Night Dreamer", do Wayne Shorter, "Matador", do Grant Green” (ambos já resenhados aqui nos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS), “Out to Lunch”, do Eric Dolphy, e “Witches and Devils”, do Albert Ayler. Todos completando expressivos 50 anos em 2014.

Um dos mais felizes desses cinquentões foi registrado a 17 dias do mês de junho daquele fatídico ano para o jazz. Foi quando, pela Blue Note, um dos maiores mestres da música moderna entrou nos estúdios Van Gelder, em New Jersey, com um timaço que tinha Freddie Hubbard, no trompete, corneta e flugelhorn, Ron Carter, no baixo, e Tony Williams, na bateria. Aquele dia marcaria a sessão de gravação de mais uma obra-prima do jazz: “Empyrean Isles”, do pianista, compositor e arranjador Herbie Hancock. Um dos mais versáteis, influentes, celebrados e até controversos ícones da música mundial, Hancock, aos 64 anos de vida e mais de 50 de carreira, já foi do be-bop ao break, passando pelo afro-jazz, fusion, funk, modal, clássico e outros gêneros, seja pilotando o piano ou o sintetizador. E sempre com a maior integridade, sem perder seu fraseado característico e a complexidade harmônica inspirada em músicos de diversas vertentes como Bill EvansMiles DavisJames BrownGeorge GershwinTom Jobim e Sergei Rachmaninoff. Como seus mestres, serve de referência não só para a geração do jazz que lhe sucedera mas, igualmente, a músicos de outros estilos como Joni Mitchell, Jeff BeckStevie Wonder, Brian Jackson, Dom Salvador, Ike White, Marcos Valle, Public Enemy, entre centenas de outros.

Quinto disco solo do músico, “Empyrean Isles” é o exemplo máximo do hard-bop hancockiano e cuja influência e profusão através dos tempos é das mais fortes de sua trajetória ainda em plena atividade. A começar por dois monumentos do jazz moderno: "One Finger Snap" e "Oliloqui Valley". A primeira, ritmada e pulsante, começa com Hubbard arrebentando na corneta sobre uma base swingada de Williams, que, com as baquetas, conjuga com equilíbrio caixa, chipô e prato de ataque. Mas, como o próprio título sugere, a preciosidade está nos dedos de Hancock. Como diria Ed Motta, “a mão esquerda mais inteligente do mundo”. Um show de agilidade e engenhosidade de improviso. La no fim, quando se pensa que tocaram o chorus derradeiro, Tony Williams ainda apresenta um arrasador solo para, daí sim, desfecharem. Uau!

Já "Oliloqui...” quem começa incrivelmente é Carter, com seu toque trasteado inconfundível. Mais cadenciada e bluesy, nesta é o pianista quem inicia os trabalhos de improvisação, novamente (e como sempre!) com a mais alta qualidade que se pode esperar. Um fraseado limpo, cristalino, soul mas erudito ao mesmo tempo. Hubbard, por sua vez, também não deixa por menos, com um solo de emoção crescente que concilia lirismo e agilidade. O mestre Carter, que havia iniciado tão marcantemente a faixa com sua assinatura sonora, tem a chance de desenvolvê-la ainda mais. É tão bonito e impactante que o restante da banda para que ele toque, voltando, em seguida, todo o conjunto ao riff inicial. Mais um solo de trompete, atilado e curto, para terminar o número em desce-som.

E o que dizer da maravilhosa "Cantoloup Island"? Um colosso da música do século XX. Que base do piano, que harmonia, que groove, que chorus! Os quatro parecem saber tocar a melodia desde crianças tamanha a naturalidade do arranjo, que se resolve entre o quarteto intuitivamente, sabendo com exatidão a hora de cada um entrar, a precisão da cadência, o ataque ou a supressão certa em cada solo. No chorus, repetido a cada estampido seco de Williams na caixa, como um comando, é de uma beleza indecifrável a delicadeza do quase sugestivo último acorde ao final de cada frase, pronunciado propositadamente fraco, como uma respiração, como um suspiro que o ouvido já sabe como será – a adora confirmar o que já sabia depois que o escuta. A sensação que se tem em "Cantoloupe ..." é rara em música. Como Dear Prudence, dos Beatles, seu riff é tão natural e sugestivo que é como se sempre estivesse ali, no ar; só nós que, seres limitados, não o ouvimos. É preciso esses gênios mal acionem as moléculas para que, atritadas, gerem o som e percebamos o óbvio. Longe da conjectura matemática do serialismo dodecafônico, intricada e lógica, a previsibilidade delas é sentida no coração.

Mas mais do que o conhecido riff funky (muito bem “chupado” pelo grupo Us3 em sua “Cataloop”, em 1993, porém inevitavelmente inferior), Hubbard e Hancock desenvolvem solos que experimentam os limites do hard-bop. Hubbard, logo após o primeiro chorus, sobe um tom e entra rasgando, guinada inteligentemente acompanhada por toda a banda no mesmo instante. Um dos solos mais clássicos do cancioneiro jazz. Em seguida, cabe ao próprio Hancock, criador da obra, imprimir-lhe uma carga descomunal de groove como até então não se vira no jazz. Era James Brown materializando-se na “simplicidade complexa” do jazz.

Para fechar, “The Egg”, em extensos mas nem de longe monótonos 14 minutos, um exercício minimalista brilhante e desafiador. Primeiro, pela base de piano repetitiva em um esquisito tempo 4 + 3. Junto a isso, a bateria de Williams, não menos criativa, mantém o compasso em curtos rufares. Por fim, claro, as improvisações individuais de cada um: prolongadas, em que cada músico usa da inventividade de forma livre, namorando com o avant-garde que Coltrane, Ayler e Don Cherry desenvolveriam a partir de então. O diálogo com a vanguarda já se sente quando Carter surpreende e saca um arco para fazer de seu baixo uma espécie de cello, tangendo as cordas ao invés de dedilhá-las. Nisso, Hancock faz a música ganhar outras dimensões, passeando pelo free jazz, retornando ao cool dos anos 50, mas, mais do que isso, remetendo aos eruditos contemporâneos em lances de pura atonalidade. Quanta musicalidade! Em “The Egg”, Hancock antecipa o jazz fusion que ele mesmo ajudaria a criar anos depois. O fim da faixa, que também encerra o disco, é tão arrojado quanto sua abertura, como se um piano tivesse quebrado e repetisse somente e justo aqueles acordes.

Um disco memorável que, afora a data comemorativa, merece ser reouvido e revisto a qualquer época, tamanha sua qualidade e importância. Junto com outro trabalho definitivo do soul jazz, “The Sidewinder”, do trompetista Lee Morgan (do mesmo ano!), “Empyrean Isles”, com seus riffs e levadas funk somados à sua engenhosidade harmônica, inspiraram toda a geração posterior de jazzistas (Chick CoreaVince Guaraldi, Hubert Laws, irmãos Marsalis) e não-jazzistas, como a Blacksplotation dos anos 70, o pop dos anos 80 e músicos de todas as partes do planeta até hoje que chega a ser difícil até dimensionar. E essa força perdura desde aquele longínquo 1964. A fase era tão fértil que, pouco menos de um ano depois, Hancock comandaria a mesma banda no também espetacular “Maiden Voyage”, avançando ainda mais alguns passos em estética e forma. Mas os 50 anos desta outra obra-prima serão completos somente ano que vem...


Herbie Hancock - "Cantaloupe Island"


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FAIXAS:
  1. "One Finger Snap" – 7:20
  2. "Oliloqui Valley" – 8:28
  3. "Cantaloupe Island" – 5:32
  4. "The Egg" – 14:00
todas as faixas compostas por Herbie Hancock

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