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terça-feira, 9 de abril de 2013

Mostra “VOCÊ ESTÁ AQUI”, de Daniel Escobar – Galeria Mamute – Porto Alegre / RS








A mostra que começa a dimensionar onde realmente cada um de nós está no mundo, fica mais duas semanas na Galeria Mamute e apresenta cinco obras do artista plástico Daniel Escobar.
Para os amantes da deriva e da perambulação por cidades (a quem me alio por vocação) a mostra de Daniel tem muito desses caminhos trilhados por cidades como Porto Alegre, Belo Horizonte e New York. Daniel convive com os espaços numa versão tridimensional. Ele está dentro dos espaços, seja afetivamente, seja por estar perambulando mesmo.
Daniel nasceu em Santo Ângelo e formou-se em Artes Visuais no Instituto de Artes da UFRGS. Seu trabalho está em coleções públicas de alguns museus referenciais no mundo das artes. No exterior, está no Canadá, na Devry Smith Frank LLP, em Toronto; em New York, no Crowell and Moring Law Firm; em solo brasileiro, no Museu de Arte da Pampulha, em Beagá; no Museu de Arte do RS (MARGS); no Museu de Arte Contemporânea do RS (MAC/RS), em Porto Alegre; e nos Museus de Arte Contemporânea de Jataí (GO) e do Paraná (PR).
A ideia é pensarmos num conjunto de situações onde realidade e representação dos lugares parece fundir-se para que finalmente possamos nos identificar como habitantes destas cidades reais e fictícias. Em sua produção mais recente, Daniel aborda paisagens do desejo criadas pelo entretenimento e o consumo. Existe muito de publicidade nestas obras buscando trazer à tona várias camadas que constroem o que vemos somente na superfície. Neste sentido, a cidade ganha ares de sonhos, mistura-se aos mapas, ícones e tours labirínticos, deixando você imerso em pura fantasia.
A mostra tem curadoria de Bernardo José de Souza, que é curador associado da 9ª Bienal do MERCOSUL, curador independente do MAC/RS e Ecarta, professor de Pós-Graduação em Moda na ESPM, Coordenador de Cinema, Vídeo e Fotografia na PMPA. 
Conheça os trabalhos que fazem parte da mostra na Galeria Mamute:


  • Sala 1
Scroll, 2013: É um mapa do local da exposição e seu entorno. O mapa obtido no Google Maps a partir da imagem projetada sobre a parede e, em seguida, redesenhada através da sobreposição de fitas adesivas, que constroem o traçado urbano sobre a parede.

Scroll, 2013,
foto: Drigo Cardoso

Permeável – série “Perto demais”, 2012: A publicidade está nesta obra através de outdoors e cartazes sobrepostos, perfurados em formato de 1,50 x 2,20cm. “Perto demais” faz parte de uma série de trabalhos desenvolvidos com empresas, que fazem esse material e descartam o excedente. O perfurador que Daniel utiliza transforma essas imagens em rendas de papel, com imagens porosas, instaurando, assim, um novo tempo de observação com imagens enigmáticas.


  • Sala 2
Continuous, 2012: Papel, metal e fragmentadoras de papel. Uma instalação que gera acúmulos de papel em cada suporte. No centro da instalação, as tiras de papel vindas de diferentes direções – aliás, da outra sala –, constroem uma trama que redesenha a malha urbana da parte planejada da cidade de Belo Horizonte. É uma ideia de mapa em processo que representa a cartografia e o espaço real das cidades, sempre em constante processo de transformação.


Continuous, 2012
(foto: Drigo Cardoso)
Atlas de Anatomia Urbana, 2012: Recorte sobre guia turístico de Belo Horizonte, nas dimensões de 21 x 23 x 2,5cm. A série toma como ponto de partida a fragmentação do mapa da cidade em regiões para a sua apresentação em um guia turístico. Os guias são escavados, então se vê o que está no seu interior, conferindo, assim, um caráter escultórico ao objeto.


Atlas de Anatomia Urbana
(foto: site)

  • Sala 3
The World, 2011: Apresenta numa mesa 12 guias de viagem, no formato de 10 x 23 x 20cm cada.  A obra surge da ideia de projetar fisicamente um mundo ficcional produzido pela indústria do turismo, utilizando guias de viagem de diversos lugares do mundo. As imagens, recortadas e levantadas das páginas, ganham cenários tridimensionais que lembram os livros pop-up. A maquete mistura realidade e ficção. A atmosfera escurecida da sala com foco de luz somente sobre os livros deixa o visitante mergulhado num mundo paralelo de sonho.


The World, 2011
(foto: site)

Se você está em Porto Alegre, pegue seu mapa de viagem, abandone a bússola e venha conhecer o trabalho de Daniel Escobar. Embarque nessa deriva e perambule conosco.

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Entrevista com o artista



Teaser de apresentação


 
SERVIÇO:
Mostra “Você Está Aqui” , de Daniel Escobar
Curadoria: Bernardo José de Souza
Local: Galeria Mamute (Rua Caldas Júnior, 375 – Centro Histórico – Porto Alegre)
Visitação: Até 19 de abril, das 14 às 18h, de segunda a sexta

Mais informações:
www.danielescobar.com.br
www.galeriamamute.com.br



 por Leocádia Costa

terça-feira, 1 de outubro de 2013

"Biografia Incompleta" Exposição Coletiva – Museu de Arte Contemporânea - Niterói /RJ (08/08/2013)









Eu reencontrando o MAC, em Niterói
Ao lado da amorosa companhia de Leocádia Costa, que empresta seu olhar fotográfico para este registro, voltei ao MAC, em Niterói (RJ), o qual havia visitado em 2011 e me impressionado muito com aquele traçado em forma uma flor, de um cálice, lindo de qualquer ângulo que se contemple. Dois anos depois, constatei que a admiração pela obra de Niemeyer continua intacta naquela arquitetura tão poética e em plena simbiose com a natureza local, simbiose aparentemente improvável haja vista o desenho futurista e quase extraterrestre que é o prédio do museu.

A obra de Antônio Dias
que deu nome à mostra
Como se não bastasse a beleza e grandiosidade da natureza e da arquitetura num radiante domingo de sol e praia, que já valeriam o passeio, deparei-me com exposições maravilhosas em seu interior. Uma delas é a da mostra Biografia Incompleta, que reuniu obras do colecionador João Sattamini que compreende quase 30 anos com peças de alguns dos principais artistas da vanguarda das artes plásticas brasileira: Antonio Dias, Loio-Pérsio, Nelson Leirner, Raymundo Colares e Rubens Gerchman. Tomadas de sarcasmo, crítica e personalidade, as obras desses artistas ligados ao neoconstrutivismo, corrente das artes plásticas brasileira iniciada nos anos 60 que, de forma pungente e mordaz, traz novos elementos ao construtivismo e ao abstratismo próprios de uma nova realidade urbana, como a cultura de massas (quadrinhos, cinema americano, publicidade, erotismo) e a vida social (violência, religiosidade, censura, política, indústria). Incrivelmente atuais para um “Brasil ano 2000”.

Acrílico sobre madeira Raymundo Colares
Isso fica evidente nas obras de Raymundo Colares, que, em telas que brincam a tridimensionalidade, explora os elementos kitsch, dos quadrinhos, da dinâmica da montagem do cinema e até do àquela época já midiatizado universo do automobilismo. “Objeto ônibus”, da série de 1969, é um tinta esmalte industrial sobre metal que traz bem esta ideia. Outra, um belo acrílico sobre madeira, é magnífico em sua simplicidade conceitual, movimento e ideia de equilíbrio.

Antonio Dias, um dos dois únicos vivos entre os cinco artistas junto com Nelson Leirner, é dono de uma obra altamente peculiar marcada pelo minimalismo e pela exploração minuciosa de texturas visuais, porém não menos crítica, valendo-se, por exemplo, da secura visual dos códigos binários da linguagem dos computadores para expor sua indubitável simbologia maniqueísta. Além disso, revela fortemente a massificação imperialista através dos debochados grafismos em inglês. Sua identificação com o pop é absurdamente atual. Uma das obras expostas, “The Place”, poderia ser a capa de qualquer disco de artista tecno. O aspecto enterteinment, no entanto, se esvai rapidamente: a crítica, presente, está na observância de que o escrito “mente” (mind) encontra-se disperso no nada (preto da tela), enquanto que a palavra “mapa” (“map”), ou seja, aquilo que a mente deveria circunscrever, é justamente a que está localizada dentro de um espaço delimitado. Outro quadro, o que dá nome à exposição, é um acrílico sobre tela que lança, em poucos elementos simbólicos, a dimensão das utopias do mundo moderno: o “desejo” tão distante do percurso do traço.

"Milagre", de Nelson Leirner
A seleção de Leirner é outra espetacular. Numa linguagem própria que, igualmente, caminha entre o severo e o deboche, vale-se de técnicas inovadoras e até insólitas (colagem de asas de borboleta em sua Santa Ceia), além de miniaturas e recursos “não nobres” para as artes plásticas, como a serigrafia e o off-set da publicidade.  A religiosidade católica, moral e eticamente comprometida, assim como a violência urbana, convivem sem nenhuma fronteira. Dois brilhantes: “Milagre”, serigrafia e pintura sobre madeira em que Nossa Senhora de Fátima ganha traços e dimensões pop e tupiniquins ao colocar-lhe aos pés suplicantes mendigos da cidade grande; e, a mais impressionante, “São Sebastião do Rio de Janeiro” (2002), assustadoramente atual numa cidade de balas perdidas e de dessacralização dos mitos pela ação humana, um conjunto de imagens sacras enfileiradas ao lado de “patrióticas“ flâmulas em que cada um dos santos têm cravado no peito uma bala de revólver. Impossível não se lembrar dos versos de “Estação Derradeira”, de Chico Buarque: “São Sebastião crivado nublai minha visão/ Na noite da grande fogueira desvairada”.

Se Leirner tem correlação com a MPB, Rubens Gerchman está essencialmente ligado à vanguarda da música brasileira. Dono de uma arte que mistura erotismo e dinheiro, violência  e beleza, morro e asfalto, futebol e escola de samba, tradição e ruptura, Gerchman, irônico e crítico ao extremo, é diretamente ligado ao tropicalismo (é dele a arte da capa de “Tropicália”, de 1967, e, inspirados em uma peça homônima sua, Caetano Veloso e Gilberto Gil escreveram, para este mesmo disco, a canção “Lindonéia”, cheia de críticas à esquizofrenia mortífera e ao endeusamento do belo da sociedade moderna), o que fica evidente em suas obras daquela época (décadas de 60 e 70): coloridamente tropicais e conscientemente globalizadas e cáusticas.
"Monalou", a Monalisa
fascista de Gerchman
Suas “monalisas” dão diretamente este tom: uma, “Monalou” (tinta óleo sobre fotográfica colada em eucatex, 1975) a quebra do elemento clássico (a perspectiva ao fundo da personagem, aqui chapada e carregada de simbologia política), a outra, a revelação/massificação (a Gioconda com beiços de negra). Maravilhoso e forte, igualmente, o quadro em que um acontecimento da mídia dos anos 60, o sumiço de um ajudante de obra durante a Ditadura Militar pego pela polícia por um suposto porte de drogas, serve de denúncia e mostra de inconformismo. Ele se vale da linguagem corriqueira e sensacionalista dos jornais e da dissolução folclore/cultura pop para evidenciar de forma ainda mais reveladora a realidade obscura. Alguma semelhança com o caso Amarildo não é mera coincidência.

Igualmente revolucionário em conceito (seu falso díptico, que, na verdade, forma um tríptico, é muito interessante), porém trabalhando volumes e cores com a intenção de não atribuir-lhes nenhuma associação figurativa, acabou deixando Loio-Pérsio um tanto deslocado dentro da mostra se comparado ao impacto e transgressão dos outros autores. Um lapso da curadoria (Luiz Guilherme Vergara) totalmente perdoado, tendo em vista o enorme acerto da seleção como um todo.



Abaixo, mais alguns momentos da mostra:



Denúncia social na obra
de Rubens Gerchman

Eu diante da versão tupiniquim
da Monalisa de Gerchman

O 'díptico-tríptico' de Loio-Pérsio

"Ônibus ônibus",
Raymundo Collares

"The Place", de Antônio Dias,
capa de disco de tecno

Visitantes se deparando com o São Sebastião
crivado de balas, de Leiner



terça-feira, 19 de agosto de 2014

ARQUIVO DE VIAGEM - Museu Oscar Niemeyer (MON) - Curitiba / PR



A impactante visão do "olho"
espelhado do MON


Mais do que qualquer exposição ou parque (e olha que lá têm muitos), certamente o que mais me impactou em Curitiba foi o Museu Oscar Niemeyer, o MON. É fantástica a emoção que se tem ao chegar pela estreita Rua Marechal Hermes, no bairro Centro Cívico, e, ao desvencilhar o olhar das árvores do entorno, dar de frente com aquele impressionante olho suspenso e espelhado. Tal como foi quando estivemos Leocádia e eu no MAC, de Niterói, no Rio, ao ver aquela nave-flor totalmente integrada com a natureza e a topografia.

Rampa de entrada para o
prédio principal com a torre
e o lago artificial
Nesta obra, a arquitetura de Niemeyer, embora num ambiente menos privilegiado naturalmente do que o de Niterói, traz novamente esta sensação impactante e de fusão com o que lhe cerca. O MON une duas épocas de sua carreira e da Arquitetura como um todo. Isso porque o projeto original foi composto pelo arquiteto em 1967 para as instalações do Instituto de Educação. Esta primeira obra comportava já o prédio em linhas retas que fica ao fundo, o qual dá de costas para o Parque Polonês, uma área verde de convívio ligada à outra de mata fechada. Pois em 2002, Niemeyer, já em sua fase mais madura, foi chamado para reelaborar o projeto, onde seria construído, enfim, o museu que leva seu nome.

Em primeiro plano,
a escultura em aço, La Luna,
de Niemeyer
Escultura em bronze do
modernista Bruno Giorgi
Foi quando se ergueu o chamado “olho”, que, na verdade, foi inspirado no formato de uma pinha de araucária, árvore característica da região e daqui do Sul. Sobre um lago artificial, o olho – cujo traço da borda em concreto armado branco é de uma beleza infindável – é sustentado por uma “sutil” base retangular, a “Torre”, em cor amarelo-canário, onde se estampam a traço preto desenhos do mestre que dialogam com outros feitos por ele em Niterói para o Caminho Niemeyer, obra também pertencente à sua última fase. Digo “sutil”, pois, como é natural em Niemeyer, as dimensões gigantescas se aliam à precisão das proporções dentro do todo, fazendo com que se percebam claramente os volumes, distinguindo o que é menor e o que é maior. O que não quer dizer que o “menor” seja necessariamente pequeno. Pelo contrário: ao todo, são 35 mil metros quadrados de área construída. Somente dentro da base amarela, vimos depois, há três andares de espaço expositivo mais o do próprio olho anexo. Isso, rodeado de rampas curvas que, além da função de acesso e mobilidade, emprestam movimento ao desenho.

Espaço Niemeyer traz maquetes, fotos e vídeos
dos principais projetos do arquiteto pelo mundo
Ao fundo, então, o prédio principal, distribuído em três pisos. Reto, amplo, moderníssimo. À Bauhaus. A estrutura do prédio é de concreto protendido, que permite vencer os grandes vãos da edificação com um enorme arrojo estrutural. Nele, estão nove salas de exposição, a maioria do museu. Além das mostras temporárias, há duas permanentes que cabem muito bem serem destacadas. A primeira fica na área externa do subsolo, que é o Pátio das Esculturas. Ali é possível perambular entre obras de Tomie Ohtake, Xico Stockinger, Erbo Stenzel, Amélia Toledo, Bruno Giorgi e até do Niemeyer.

Leocádia percorre o tunel a la "Solaris"
que liga o prédio principal
à "torre do olho"
A outra exposição permanente digna de realce refere-se ao próprio Oscar Niemeyer, num espaço reservado à sua obra, com projetos, fotos e maquetes do arquiteto de vários países do mundo, como os clássicos Cassino da Pampulha, o MAC, o Ibirapuera, as obras de Brasília, o Centro Cultural Le Havre (Paris), entre outros. Interessantíssimo, embora a proposta seja generalista, visto que não apresenta projetos dele menos famosos mas tão legais quanto, como a sede do Partido Comunista da França, em Paris, ou o Palazzo Mondadori, em Milão, Itália. Mas pra arrematar o desbunde, saindo dali, um lindo corredor em concreto que liga o prédio principal à torre, o qual passa por debaixo do lago artificial da entrada. Desenhada em curvas, dá a sensação de se estar percorrendo os corredores da nave espacial do "Solaris", do Tarkovski – só para se ter uma ideia do barato que dá.

Nós entre as esculturas
Enfim, para nós que, aonde vamos, procuramos sempre conhecer algo do Niemeyer que tenha no local, foi uma visita mais uma vez deslumbrante. Um museu organizadíssimo que, mesmo que não se veja nenhuma exposição, por si só, vale como passeio.

Para quem quer saber mais sobre o MON: www.museuoscarniemeyer.org.br










vídeo do Espaço Niemeyer - por Leocádia Costa




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As 'costas do olho', com o desenho
da Ártemis dançarina de Niemeyer
Museu Oscar Niemeyer
Endereço: Rua Marechal Hermes 999, Centro Cívico – Curitiba/PR
Visitação: Terça a domingo (10h às 18h)
Entrada: R$6,00








texto:
vídeo:

sexta-feira, 11 de abril de 2014

“Antonio Dias – Potência da Pintura” – Fundação Iberê Camargo – Porto Alegre/RS







"Estudos pictóricos de antônio Dias"
Estivemos Leocádia Costa e eu numa das exposições daquelas que nos dissemos: “não podemos deixar de ir”. Pois a referida mostra é “Potência da Pintura”, do artista plástico paraibano Antonio Dias, que está na Fundação Iberê Camargo até 18 de maio. Vimos obras deste craque da arte contemporânea em dois momentos quando estivemos no Rio de Janeiro em 2013: na grande (e até dispersiva) mostra coletiva “O Colecionador”, no MAR (Museu de Artes do Rio de Janeiro), no Rio, e na sucinta (mas bela) exposição "Biografia Incompleta", no MAC (Museu de Arte Contemporânea), em Niterói, a qual me motivou a escrever sobre à época. Portanto, a oportunidade de rever Antonio Dias e numa individual na nossa cidade é um programa dos que consideramos imperdíveis. 
De fato, valeu a pena a visita. Com curadoria do crítico e historiador Paulo Sergio Duarte, apresenta um recorte da produção mais recente de Dias. São pinturas e esculturas produzidas entre 1999 e 2011 que revelam os questionamentos atuais do artista, que se volta com força para as questões pictóricas do pigmento, do plano e da composição. Porém, não deixando de lado a ideia de tridimensionalidade (característicos de sua produção dos anos 60 e 70, mais conhecida pelo público), uma vez que usa elementos da estrutura de objetos bidimensionais de forma sutil em quadros e esculturas que se descolam do tempo, do simples “aqui e agora”, reelaborando outra (e talvez improvável) dimensão temporal. As linhas dos quadros, impositivamente retas, se conjugam entre si ora para trás, ora para frente, criando duas ou até três “camadas” de tempo, encaixando-se, sobrepondo-se, desafiando-se umas às outras.
"Gigante dormindo e cachorro latindo"
No texto do curador, este questiona com perspicácia o “valor” cronológico da recentidade das obras de Dias, subjetivando tal aspecto: “O que temos diante de nossos olhos não é uma acumulação de trabalho, nem a acumulação de um patrimônio tal como o capital de um portfólio de aplicações nas bolsas de valores; o que temos é o resultado mais recente de uma luta simbólica entre a matéria e o pensamento que atravessou muitas brigas até chegar a esse ponto; esse é o trabalho do artista”.
Criada na geração de artistas dos anos 50/60 que reelaboraram a maneira de ver a modernidade e seus ícones: sexo, violência, capitalismo, tecnologia, segregação político-social, indústria cultural e outros (antevendo, aliás, com olhar bastante mordaz a pós-modernidade), Antonio Dias segue com seu olhar perspicaz sobre o funcionamento desequilibrado da sociedade atual – basta verificar o precário equilíbrio das latas na obra “Duas Torres” (2002), que, embora não seja brilhante em termos de execução, remete claramente à fácil sujeição dos seres humanos ao perigo vista nos ataques terroristas do 11 de Setembro.
Em termos de técnica, são interessantíssimas as texturas e sensações pictóricas distintas e até díspares (do vermelho-sangue puro à psicodelia hi-tech e a aparência envelhecida). Já as pequenas esculturas em bronze e cerâmica (“Gigante dormindo e cachorro latindo” e “O bem e o mal”, por exemplo) dão-nos a verdadeira noção da vacuidade da era “big brother”: casas que, sem telhado, abertas à devassidão da privacidade, nos abrigam a espiar as formas desproporcionais de objetos e seres soltos no vazio e na secura monótona da vida alheia.
Passado, presente e futuro dialogando
em um possível equilíbrio
Se tais obras refletem o pensamento crítico de Dias, não poderia faltar o sarcasmo que marca toda a boa geração de artistas plásticos a qual ele pertence (leia-se: Rubens Gerchman, Hélio Oiticica, Rogério Duarte e outros). O artista usa seu humor de maneira mais aguda na obra saborosamente intitulada “Seu marido”. Embora deslocada do restante da mostra (foi colocada no átrio da Fundação, inclusive, longe quatro andares das restantes), constitui-se num retrato divertido e crítico do homem contemporâneo. Trata-se de um boneco cujas formas de cabeça, pernas, braços, tronco e rabo (?!) se indistinguem: todas repetem o mesmo formato de uma espécie de bastão amarelo e peludo. Aparentemente apático, de tempos em tempos o “bicho” desperta, sacudindo-se todo de forma patética e despropositada por alguns instantes, até que volta àquela insossa imobilidade inicial.

Seria este sacolejo estúpido o único movimento possível da defasada figura do macho doméstico nos dias de hoje? Forte suposição. Com meu respeito a todas as senhoras: qualquer semelhança conceitual (e, quem sabe, até corpórea...) com seus homens de dentro de casa não é mera coincidência. 

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Eu e "Seu Marido"


SERVIÇO:

exposição: "Antonio Dias – Potência da Pintura"
onde: Fundação Iberê Camargo  (Av. Padre Cacique, 2000 – Porto Alegre/RS)
até: 18 de maio de 2014
horário: terça a domingo, das 12h às 19h, quintas até as 21h (entrada gratuita)
Curadoria: Paulo Sergio Duarte













terça-feira, 24 de novembro de 2009

200 Melhores Músicas de Todos os Tempos

Saiu uma dessas listas da Rolling Stone com as 200 melhores músicas de todos os tempos.
Concordo com muitas, é lógico, discordo de alguma ordem que outra mas fundamentalmente me parece uma lista excessivamente conservadora. Só foi no certo. Não arrisca quase nada acima dos anos 80. Pode ser que o crítico, os críticos, os votantes, sei lá quem, realmente achem que não existe nada que valha a pena nos últimos tempos, mas assim parece uma lista de melhores até 1975, com raras exceções.
Exceção louvável é ver o Nirvana com justiça já figurar nas 10 primeiras posições.
Vale pela curiosidade:

1. Bob Dylan "Like a Rolling Stone" 1965
2. Rolling Stones "(I Can't Get No) Satisfaction" 1965
3. John Lennon "Imagine" 1971
4. Marvin Gaye "What's Going On" 1971
5. Aretha Franklin "Respect" 1967
6. Beach Boys "Good Vibrations" 1966
7. Chuck Berry "Johnny B. Goode" 1958
8. Beatles "Hey Jude" 1968
9. Nirvana "Smells Like Teen Spirit" 1991
10. Ray Charles "What'd I Say" 1959
11. The Who "My Generation" 1966
12. Sam Cooke "A Change Is Gonna Come" 1965
13. Beatles "Yesterday" 1965
14. Bob Dylan "Blowin' in the Wind" 1963
15. The Clash "London Calling" 1980
16. Beatles "I Want to Hold Your Hand" 1964
17. Jimi Hendrix "Purple Haze" 1967
18. Chuck Berry "Maybellene" 1955
19. Elvis Presley "Hound Dog" 1956
20. Beatles "Let it Be" 1970
21. Bruce Springsteen "Born To Run" 1975
22. The Ronettes "Be My Baby" 1963
23. Beatles "In My Life" 1966
24. Impressions "People Get Ready" 1965
25. Beach Boys "God Only Knows" 1966
26. Beatles "A Day in the Life" 1967
27. Derek and the Dominos "Layla" 1971
28. Otis Redding "Sitting on the Dock of the Bay" 1968
29. Beatles "Help!" 1965
30. Johnny Cash "I Walk the Line" 1956
31. Led Zeppelin "Stairway To Heaven" 1971
32. Rolling Stones "Sympathy For The Devil" 1968
33. Ike and Tina Turner "River Deep, Mountain High" 1966
34. Righteous Brothers "You've Lost That Lovin' Feelin'" 1964
35. The Doors "Light My Fire" 1967
36. U2 "One" 1991
37. Bob Marley and the Wailers "No Woman No Cry" 1974
38. Rolling Stones "Gimme Shelter" 1969
39. Buddy Holly and the Crickets "That'll Be the Day" 1957
40. Martha and The Vandellas "Dancing In The Street" 1964
41. The Band "The Weight" 1968
42. The Kinks "Waterloo Sunset" 1967
43. Little Richard "Tutti Frutti" 1956
44. Ray Charles "Georgia On My Mind" 1960
45. Elvis Presley "Heartbreak Hotel" 1956
46. David Bowie "Heroes" 1977
47. Simon and Garfunkel "Bridge Over Troubled Water" 1969
48. Jimi Hendrix "All Along The Watchtower" 1968
49. The Eagles "Hotel California" 1977
50. Smokey Robinson and the Miracles "The Tracks Of My Tears" 1965
51. Grandmaster Flash and The Furious Five "The Message" 1982
52. Prince "When Doves Cry" 1984
53. Sex Pistols "Anarchy In The UK" 1977
54. Percy Sledge "When A Man Loves A Woman" 1966
55. The Kingsmen "Louie Louie" 1963
56. Little Richard "Long Tall Sally" 1956
57. Procol Harum "Whiter Shade Of Pale" 1967
58. Michael Jackson "Billie Jean" 1983
59. Bob Dylan "The Times They Are A-Changin'" 1963
60. Al Green "Let's Stay Together" 1971
61. Jerry Lee Lewis "Whole Lotta Shakin' Goin' On" 1957
62. Bo Diddley "Bo Diddley" 1957
63. Buffalo Springfield "For What It's Worth" 1968
64. Beatles "The She Loves You" 1964
65. Cream "Sunshine of Your Love" 1968
66. Bob Marley and the Wailers "Redemption Song" 1968
67. Elvis Presley "Jailhouse Rock" 1957
68. Bob Dylan "Tangled Up In Blue" 1975
69. Roy Orbison "Cryin'" 1961
70. Dionne Warwick "Walk On By" 1964
71. Beach Boys "California Girls" 1965
72. James Brown "Papa's Got A Brand New Bag" 1965
73. Eddie Cochran "Summertime Blues" 1958
74. Stevie Wonder "Superstition" 1972
75. Led Zeppelin "Whole Lotta Love" 1969
76. Beatles "Strawberry Fields Forever" 1967
77. Elvis Presley "Mystery Train" 1956
78. James Brown "I Got You (I Feel Good)" 1965
79. The Byrds "Mr. Tambourine Man" 1968
80. Marvin Gaye "I Heard It Through The Grapevine" 1965
81. Fats Domino "Blueberry Hill" 1956
82. The Kinks "You Really Got Me" 1964
83 Beatles "Norwegian Wood" 1965
84. Police "Every Breath You Take" 1983
85. Patsy Cline "Crazy" 1961
86. Bruce Springsteen "Thunder Road" 1975
87. Johnny Cash "Ring of Fire" 1963
88. The Temptations "My Girl" 1965
89. Mamas And The Papas "California Dreamin'" 1966
90. Five Satins "In The Still Of The Nite" 1956
91. Elvis Presley "Suspicious Minds" 1969
92. Ramones "Blitzkrieg Bop" 1976
93. U2 "I Still Haven't Found What I'm Looking For" 1987
94. Little Richard "Good Golly, Miss Molly" 1958
95. Carl Perkins "Blue Suede Shoes" 1956
96 Jerry Lee Lewis "Great Balls of Fire" 1957
97. Chuck Berry "Roll Over Beethoven" 1956
98. Al Green "Love and Happiness" 1972
99. Creedence Clearwater Revival "Fortunate Son" 1969
100. Rolling Stones "You Can't Always Get What You Want" 1969
101. Jimi Hendrix "Voodoo Child (Slight Return)" 1968
102. Gene Vincent "Be-Bop-A-Lula" 1956
103. Donna Summer "Hot Stuff" 1979
104. Stevie Wonder "Living for the City" 1973
105. Simon and Garfunkel "The Boxer" 1969
106. Bob Dylan "Mr. Tambourine Man" 1965
107. Buddy Holly and the Crickets "Not Fade Away" 1957
108. Prince "Little Red Corvette" 1983
109. Van Morrison "Brown Eyed Girl" 1967
110. Otis Redding "I've Been Loving You Too Long" 1965
111. Hank Williams "I'm So Lonesome I Could Cry" 1949
112. Elvis Presley "That's Alright (Mama)" 1954
113. The Drifters "Up On The Roof" 1962
114. Crystals "Da Doo Ron Ron (When He Walked Me Home)" 1963
115. Sam Cooke "You Send Me" 1957
116. Rolling Stones "Honky Tonk Women" 1969
117. Al Green "Take Me to the River" 1974
118. Isley Brothers "Shout - Pts 1 and 2" 1959
119. Fleetwood Mac "Go Your Own Way" 1977
120. Jackson 5, "I Want You Back" 1969
121. Ben E. King "Stand By Me" 1961
122. Animals "House of the Rising Sun" 1964
123. James Brown "It's A Man's, Man's, Man's, Man's World" 1966
124. Rolling Stones "Jumpin' Jack Flash" 1968
125. Shirelles "Will You Love Me Tomorrow" 1960
126. Big Joe Turner "Shake, Rattle And Roll" 1954
127. David Bowie "Changes" 1972
128. Chuck Berry "Rock & Roll Music" 1957
129. Steppenwolf "Born to Be Wild" 1968
130. Rod Stewart "Maggie May" 1971
131. U2 "With or Without You" 1987
132. Bo Diddley "Who Do You Love" 1957
133. The Who "Won't Get Fooled Again" 1971
134. Wilson Pickett "In The Midnight Hour" 1965
135. Beatles "While My Guitar Gently Weeps" 1968
136. Elton John "Your Song" 1970
137. Beatles "Eleanor Rigby" 1966
138. Sly and the Family Stone "Family Affair" 1971
139. Beatles "I Saw Her Standing There" 1964
140. Led Zeppelin "Kashmir" 1975
141. Everly Brothers "All I Have to Do is Dream" 1958
142. James Brown "Please Please Please" 1956
143. Prince "Purple Rain" 1984
144. Ramones "I Wanna Be Sedated" 1978
145. Sly and the Family Stone "Every Day People" 1968
146. B-52's "Rock Lobster" 1979
147. Iggy Pop "Lust for Life" 1977
148. Janis Joplin "Me and Bobby McGee" 1971
149. Everly Brothers "Cathy's Clown" 1960
150. Byrds "Eight Miles High" 1966
151. Penguins "Earth Angel (Will You Be Mine)" 1954
152. Jimi Hendrix "Foxy Lady" 1967
153. Beatles "A Hard Day's Night" 1965
154. Buddy Holly and the Crickets "Rave On" 1958
155. Creedence Clearwater Revival "Proud Mary" 1964
156. Simon and Garfunkel "The Sounds Of Silence" 1968
157. Flamingos "I Only Have Eyes For You" 1959
158. Bill Haley and His Comets "(We're Gonna) Rock Around The Clock" 1954
159. Velvet Underground "I'm Waiting For My Man" 1967
160. Public Enemy "Bring the Noise" 1988
161. Ray Charles "I Can't Stop Loving You" 1962
162. Sinead O'Connor "Nothing Compares 2 U" 1990
163. Queen "Bohemian Rhapsody" 1975
164. Johnny Cash "Folsom Prison Blues" 1956
165. Tracy Chapman "Fast Car" 1988
166. Eminem "Lose Yourself" 2002
167. Marvin Gaye "Let's Get it On" 1973
168. Temptations "Papa Was A Rollin' Stone" 1972
169. R.E.M. "Losing My Religion" 1991
170. Joni Mitchell "Both Sides Now" 1969
171. Abba "Dancing Queen" 1977
172. Aerosmith "Dream On" 1975
173. Sex Pistols "God Save the Queen" 1977
174. Rolling Stones "Paint it Black" 1966
175. Bobby Fuller Four "I Fought The Law" 1966
176. Beach Boys "Don't Worry Baby" 1964
177. Tom Petty "Free Fallin'" 1989
178. Big Star "September Gurls" 1974
179. Joy Division "Love Will Tear Us Apart" 1980
180. Outkast "Hey Ya!" 2003
181. Booker T and the MG's "Green Onions" 1969
182. The Drifters "Save the Last Dance for Me" 1960
183. BB King "The Thrill Is Gone" 1969
184. Beatles "Please Please Me" 1964
185. Bob Dylan "Desolation Row" 1965
186. Aretha Franklin "I Never Loved A Man (the Way I Love You)" 1965
187. AC/DC "Back In Black" 1980
188. Creedence Clearwater Revival "Who'll Stop the Rain" 1970
189. Bee Gees "Stayin' Alive" 1977
190. Bob Dylan "Knocking on Heaven's Door" 1973
191. Lynyrd Skynyrd "Free Bird" 1974
192. Glen Campbell "Wichita Lineman" 1968
193. The Drifters "There Goes My Baby" 1959
194. Buddy Holly and the Crickets "Peggy Sue" 1957
195. Chantels "Maybe" 1958
196. Guns N Roses "Sweet Child O Mine" 1987
197. Elvis Presley "Don't Be Cruel" 1956
198. Jimi Hendrix "Hey Joe" 1967
199. Parliament "Flash Light" 1978
200. Beck "Loser" 1994

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

cotidianas #412 - Bob, o cão-herói




imagem do filme "Vira-Lata"
A infância de minha mãe foi muito pobre, muito carente, muito necessitada. Meus avós tiveram muitos filhos e nem sempre puderam dar o que de melhor desejavam, nem materialmente e, muitas vezes por questões de obrigações, trabalho e preocupações, nem emocionalmente, o que fazia com que as crianças buscassem esse refúgio entre elas mesmas e muitas vezes em mascotes, cachorros de rua que eram adotados quase naturalmente, ao entrarem no pátio e ficarem, e que acabavam com o passar do tempo ganhado o carinho da família e deixando sua marca entre os integrantes dela. Aproveito que falei dos olhos do Mac para lembrar de outra história de cachorros da infância da minha mãe, muito bonita e que carrega um pouco de cada elemento dos que coloquei anteriormente.
O Bob era um desses vira-latas que entrara no pátio, fora ficando e de repente era um membro da família. A época era difícil como fora muitas vezes e meu avó, Seu Betinho, desempregado, ia cedo para a rua para procurar trabalho. Em casa, a Dona Isaura ia tentando se virar como dava. Improvisava na comida, usava a criatividade, conseguia um emprestado aqui, um fiado ali e ia conseguindo tocar a casa de modo que as crianças, no mínimo, tivesses uma comida decente. Enquanto isso, meio que alheias a os problemas, mergulhadas em seus brinquedos de infância, bolitas, jogo de taco, carrinhos de lomba, as crianças faziam sua tradicional algazarra na frente da casa. Tudo isso vigiados pelos atentos olhos do Bob que ficava ali como se fizesse parte da brincadeira. Não era raro que, de vez em quando, enquanto a meninada se divertia, se ouvisse o açougueiro, furioso, enxotando o Bob de dentro do seu estabelecimento, aos berros e palavrões, o que fazia a molecada cair ainda mais na gargalhada.
E era neste mesmo açougue que minha avó pedia para minha mãe, que era a mais velha das meninas, ir buscar alguma carne para dar uma incrementada na modesta comida que preparava todos os dias. Certo dia a pequena Iara foi mais uma vez à casa de carnes e mais uma vez, como nas últimas semanas, sem dinheiro. O açougueiro que havia sido paciente, generoso até mesmo, dizia agora que havia chegado a seu limite e que não poderia mais vender fiado. Não, não adiantava insistir. A mirrada menina de olhos verdes, sem alternativa, voltou para casa e relatou à mãe que não conseguira levar a carne, que o açougueiro não concordara em vender-lhe fiado mais uma vez. Aquilo era terrível, pois não só o homem da carne, mas os outros comerciantes começavam a não querer mais dar-lhes crédito. O que fariam? Talvez, naquele dia, pela primeira vez, não tivesse comida para dar aos filhos.
Dona Isaura, então, talvez para ganhar tempo e pensar no que faria, disse à filha que fosse brincar com os outros enquanto preparava alguma coisa. Quando saía pelo pátio de chão batido, cabisbaixa, entendendo que as coisas estavam muito mais difíceis do que poderia imaginar, foi que a garota Iara viu Bob entrando no pátio, faceiro, com o rabo balançando, e  com um enorme pedaço de fígado bovino na boca arrastando na terra. Que traquinas! Por certo aproveitara uma distração do açougueiro entrara e pegara o pedaço de carne. Teria sido aquele bichinho iluminado por Deus naquele momento? Salvara a família.
"Manhêêê, o Bob trouxe um pedaço de carne!'.
Tiraram o naco de fígado da boca do cãozinho, sem maior resistência, esperaram a reação do açougueiro se desse falta de alguma coisa e como não aconteceu, limparam a carne e prepararam um saboroso almoço. O pedaço era grande, teriam refeição certa para alguns dias, sendo assim, não faria falta tirar um pedaço para o Bob, afinal ele mais do que ninguém merecia. Como era justo Bob ganhou um generoso pedaço, o que ele mesmo havia mordido, é claro. Recompensa justa para um herói.


Cly Reis

sexta-feira, 11 de outubro de 2019

cotidianas #651 - ESPECIAL DIA DAS CRIANÇAS - Nossa senhora



Era meu pai quem exigia de mim e de meus irmãos que, desde pequenos, chamássemos os mais velhos de “senhor” e“senhora”, o que era, naturalmente, praticado dentro de casa. Pelo menos a mim nunca foi um problema, pois a relação entre obediência e liberdade em minha infância e adolescência não passavam somente pela forma de se dirigir a palavra aos outros. Até estranhava ver os coleguinhas chamarem seus pais pelo primeiro nome. Mas para a minha mãe, Iara, talvez mais do que ao meu próprio falecido pai, por algum motivo que apenas intuía este pronome de tratamento combinava-lhe muito.  

Já disse mais de uma vez que minha mãe é uma das grandes responsáveis por ter me tornado um homem das letras, né? Não por ser advogada, mas por um jeito de ser mais sensível. Ela, assim como foram minha madrinha, sua irmã Lurdes, e minha avó paterna, dona Edith, é uma excelente contadora de histórias, o que certamente me inspirou para a vida. Mais do que a boa memória para relembrar fatos remotos, a fineza da construção narrativa e o tino de observar que determinado recorte temporal rende um destaque, um tratamento diferenciado para além do restante da vida cotidiana, por mais banal que este possa parecer, é coisa de gente abençoada com um dom. 

Caso não meu, mas dela, minha mãe. Desde a infância tomada de dificuldades de toda ordem, do financeiro ao machismo, da saúde ao preconceito, da exclusão social à violência doméstica, soube, com uma capacidade divina, transformar fatos melancólicos e tristes em episódios engraçados, graciosos e até fantásticos. Dignos da mais alta literatura de um Tchékov, um Erico, um Joyce. Ou não seria exatamente isso as histórias do cachorro Mac, da visão que teve do Coelho da Páscoa ou do Bob, o cão herói, devidamente recuperadas aqui no blog por meu irmão?

E essa graça especial não aparece só quando ela conta histórias, mas também quando as reconta. Sempre adorei essas repetições, pois não raro surgem elementos novos àquele enredo que realçam ainda mais a oralidade. Pois ocorreu justo isso recentemente, numa dessas recontações dela. O ano era 1966 e a cidade, Porto Alegre. Mas a Porto Alegre dos moradores da periferia – no caso, a vila Cefer, na zona leste da cidade, uma das resistentes áfricas negras da capital gaúcha. Minha mãe, aos 17 anos, frágil de saúde e de condições de vida na casa em que (sobre)vivia com os pais e os vários irmãos, adoeceu. Acometeu-lhe a tuberculose, doença infecciosa estigma de pobreza no Brasil.

A jovem Iara, precisando de tratamento, foi buscar atendimento onde lhe era possível no serviço público: na Unidade Sanitária São José do Murialdo, o Sanatório Partenon. Este Centro Social foi o precursor no Rio Grande do Sul da medicina comunitária para atendimento a pessoas com tuberculose. Ainda hoje em funcionamento na Av. Bento Gonçalves, no bairro Partenon, distancia-se aproximadamente 4 quilômetros da Cefer, Nada tão longe assim, não fosse essa distância ter de ser empreendida a pé pela debilitada jovem. Em plena noite. 

Horas depois, chegou. Já na recepção, a primeira assessoria de Deus. Enquanto aguardava atendimento, os próprios atendentes do Sanatório, sem constrangimento e nem escrúpulos diante de uma mulher jovem, negra e pobre, descaradamente apontavam o dedo em sua direção e cochichavam entre si, soltando olhares de pretensa consternação. Minha mãe estava desenganada pelos médicos e ainda não havia sido informada disso. Porém, a jovem Iara, misto de pureza e da tal assistência divina, não se incomodou com aquela atitude desrespeitosa. Mas não por segurança em si, a qual ainda precisaria muito para erigir, mas porque achou que não era com ela. Naquela sala de espera quase vazia, o destino pôs-lhe às costas, a alguns bancos atrás, um rapaz embriagado, caindo pelas tabelas, todo roto e sujo. Um pobre diabo. Assim, ela safou-se da humilhação, pois, não sabendo de tamanha gravidade de seu próprio caso, entendeu que eram ao infeliz bêbado que se dirigiam os comentários insensíveis dos atendentes. Vejam só.

Mas o pior (ou o melhor) estava por vir. O que era para ser uma consulta virou, dada a gravidade do seu problema pulmonar, em uma internação imediata. Ela precisaria baixar por tempo indeterminado. Acontece que aquela seria a primeira vez que passaria uma noite longe de casa e, ainda, sem poder avisar ninguém, afinal, se ricos já não tinham telefone àquela época, imagina a família da minha mãe. Ficaria ali, por imposição, sozinha e longe da mãe, a minha avó Isaura, seu porto-seguro, pessoa que viveu mais de 70 anos sem acreditar em religião, mas que nem por isso deixou de transmitir aos filhos – e a ela, em especial – um imenso sentido de fé. Mas nem a maior crença do mundo faria com que vó Isaura não ficasse preocupada, se não, desesperada, com a ida sem retorno da filha. Não havia o que fazer, apenas rezar.

Se aquila situação inesperada já seria motivo de aflição para uma menina hoje, imagine para uma adolescente daquela época, doente e despreparada, como a inocente Iara. Sentia-se como uma criança solta no mundo. Medo: foi o que sentiu quando foi posta sozinha num dos espaçosos quartos do andar térreo, cujas amplas janelas envidraçadas expunham apenas um assombroso matagal fechado vizinho ao sanatório. Dava a impressão de ser uma grande tela onde, na cabeça assustada de Iara, podiam surgir de dentro da noite figuras aterrorizantes a qualquer momento. Um filme de terror onde ela era a protagonista.

A sensação era de total desamparo. Total solidão. “O que fazer!”, pensava? Somente com os olhos para fora do lençol, minha mãe pôs-se a fazer outra coisa que sempre soube muito bem além de contar histórias: rezar. Precisava que algo a ajudasse a sair daquela aflita e crítica situação. Foi então que, do tal janelão à sua frente, formou-se uma enorme imagem de Nossa Senhora. Nítida, cândida e iluminada por uma luz até aquele exato momento inexistente. A santa, com olhar firme e tranquilizador, tomava a janela inteira e olhava para ela, Iara, em resposta àquele genuíno pedido de socorro. Minha mãe, como que por um milagre, adormeceu sem perceber. No dia seguinte, um médico sanitarista chamado Moacyr Scliar a atendeu e, contrariando o diagnóstico fatal dado por colegas anteriormente, afirmou-lhe que a ajudaria a recuperar-se. E foi o que fez na prática médica e não só com palavras, embora fosse muito afeito a elas como a própria paciente.

Até aqui, é onde minha mãe sempre nos contou. Qualquer um diria que, dada a maravilha dos fatos, já seria suficiente para encerrar a história. Mas tem mais. Sabe aquela pitada de novo elemento narrativo adicionado por minha mãe às próprias contações a que me referi anteriormente? Pois, então: entra agora. Porém – como também lhe é de costume –, este novo item dialoga, quase sempre, com outra história. 

Desta vez, o ano é 2017, Rio de Janeiro, bairro da Tijuca, mês de fevereiro. Meu irmão havia se acidentado andando de bicicleta na rua, o que o levou a passar por duas sérias cirurgias no cotovelo direito. A horas de receber alta, meu irmão inventou de nos dar um susto tremendo tendo uma embolia. Todos nós recorremos àquilo que aprendemos com dona Iara: a reza. A contrição dela, no entanto, envolveu novamente uma figura abençoada. Da janela do quarto do hospital em que meu irmão estava, minha mãe enxergava a estátua de uma santa (real esta, aliás), a qual ela nem sabia qual era. Prática, pensou: “é tu mesma!”  Vai que tivesse amizade com Nossa Senhora, fosse vizinha de porta ou frequentassem o mesmo clube! E deu certo: foi a esta que minha mãe rogou pela recuperação de meu irmão, mostrando que a sua linha de comunicação com a galera lá do alto continuava em dia mesmo tantos anos depois.

Pois que, a pouco tempo, em suas orações, um raciocínio aparentemente óbvio veio-lhe explicar a graça obtida no passado e na ocasião mais recente. Relembrando-se da inesquecível imagem de Nossa Senhora que lhe salvou quando mais se sentiu desprotegida, minha mãe observou, atrás da santa, uma outra imagem: a de minha avó Isaura em posição de reza. Com as pequenas mãos unidas em gesto de súplica pela filha que, naquele episódio do Sanatório de Porto Alegre, não sabia onde estava. Só pedia, com fé, que Nossa Senhora zelasse.

Foi aí que minha mãe ligou os pontos: a mesma energia que ela enviou a meu irmão para que se recuperasse, foi a que minha avó, sem nenhuma outra alternativa a fazer, emanou a quilômetros de distância para que ela, minha mãe, ficasse bem naquele remota noite de 1966. E em ambos os casos mediado pela mãe de todos, Nossa Senhora, cujo coração abarca e simboliza o maior amor do mundo: o amor de mãe. Nossa Senhora, que é homenageada neste dia 12 de outubro, também celebrado como Dia das Crianças.

No entanto, não é coincidência tanta proximidade no calendário: pouquinho antes da data da santa, comemoramos outra data – pelo menos, na minha família. O dia 11, na véspera, é quando Iara Terezinha Reis Rodrigues completa anos de vida. Hoje, em 2019, especialmente, 70 deles. Setentinha. Após gerar três filhos e cuidar de outros tantos, superar um problema de saúde grave, nutrir um casamento de décadas, ser a primeira a fazer faculdade na família, ganhar uma merecida aposentadoria por anos de serviços prestados ao sistema público e contar e recontar diversas histórias deliciosas de se ouvir, minha mãe chega a este marco da jornada de uma pessoa neste plano. Viva, cheia de gás, sorrisos e coisas a ensinar. A mim, ela deu de presente não só a vida como parte do seu dom da narrativa. Aos meus irmãos, de quem tenho certeza da permissão de falar por eles, sei que também devem tudo a ela. A nossa senhora, assim, no diminutivo, pra não assustar suas colegas lá de cima.


por Daniel Rodrigues
foto: Leocádia Costa
(Parque Lage, set/2019)
(a Iara, Antonio, Clayton e Karine)