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segunda-feira, 31 de agosto de 2015

cotidianas #390 - Os Olhos de Mac


Forte, soturno, superior, mágico, misterioso, penetrante, místico, diabólico, poderoso, sedutor, letal. O título, de entrelinhas enigmáticas, poderia, num primeiro instante, fazer qualquer leitor mais sugestionável pensar em qualquer uma destas características atribuindo-a ao referido olhar. Mas perdoe-me o leitor derrubar o ar de mistério com o qual ele mesmo já começava a cobrir a história esperando talvez uma intrincada história policial de um policial sagaz e um vilão artimanhoso difícil de ser apanhado, um assustador conto de possessão demoníaca, uma tramam internacional de espionagem. Não é nada disso. Perdoem-me decepcioná-los, talvez, mas devo dizer-lhes que os olhos de Mac com os quais resolvi estampar o título desta crônica não passam de olhos de cachorro. Sim, olhos de um cão vira-lata. Um cachorro que minha mãe tivera na infância e que cujo olhar pedinte costumava ser tão condoído, tão sentido, tão compadecedor que minha avó consagrou-o em expressão para definir a cara dos próprios filhos quando dirigiam-se a elas para pedir alguma coisa. "Não me vem com esses olho de Mac!", dizia a Dona Isaura espantando qualquer eventual pedido antes mesmo que acontecesse, já adivinhando o desejo pela cara súplice de algum dos filhos, que normalmente, diante da prévia negativa, colocava o rabinho entre as pernas e dava meia volta, sem nem mesmo tentar levar  adiante a solicitação a que se propunha, muitas vezes depois de ter-se enchido de coragem por horas a fio. Algo do tipo, "não quero nem quero saber o que tu tá pensando em vir me pedir (ou até sei) mas nem quero ouvir e mesmo se eu ouvir, minha resposta será não". Um verdadeiro banho de água fria.
Não, olhos de Mac não funcionavam com a Dona Isaura.
Com a Dona Iara, minha mãe, até funcionava. Apesar de ter levado adiante a expressão criada por minha vó e utilizá-la muitas vezes lá em casa para mim ou para os meus irmãos, muitas vezes a fachada de durona derretia com um olho de Mac bem planejado e executado. Afinal, a técnica do olho de Mac tem que ser muito bem aplicada para que dê resultados e se for pode render ótimos frutos.
Vá, tente. Tente com sua mãe, namorada, esposa. Peça aquela coisa que elas normalmente negariam. Infelizmente eu não tenho uma foto do Mac aqui para demonstrar os zóio que aquele guaipeca faria. Mas acho que não é necessário. Acho que você entendeu a técnica.
Forte, soturno, superior, mágico, misterioso, penetrante, místico, diabólico, poderoso, sedutor, letal? Não¹. Apenas suplicante, manhoso, dengoso, cativante, choroso, apiedante. Nada mais que uma cara de cachorro pidão. Sim, isso sim são Olhos de Mac.



Cly Reis

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Exposições "Oxalá Que Dê Bom Tempo", "Don't You (Forget About Me)" e "Versão Oficial" - MAC Niterói -RJ











O MAC, uma obra de arte por si só.
O Museu de Arte Contemporânea de Niterói já é por si só uma grande obra de arte e uma visitação é sempre justificada independente do que estiver exposto em seu interior, mas tendo ido ao MAC dia desses com pretexto de um encontro de amigos, acabei por me deparar com três exposições, cada uma interessante sua maneira. A primeira delas, a principal e a mais destacada no espaço é a "Oxalá Que Dê Bom Tempo", da artista Regina Vater, que, bem diversificada no que diz respeito a técnicas e recursos, apresenta pinturas, instalações, fotografias, pinturas, vídeo, propõe uma reflexão sobre as relações de corpo, natureza, tempo e espaço. Bastante instigante e estimulante o trabalho da artista.
Em outra das exposições, "Don't You (Forget About Me)", de menor destaque, no corredor externo da área de exposições, o niteroiense Rafael Alonso com uma espécie de arte pop e ilusões ópticas propõe uma forma menos convencional de se ver a paisagem. Cores vibrantes, formas abstratas e sensações visuais estimulam os olhos e a maneira de reenxergar o que está à nossa volta.
A última delas, bastante diminuta e relegada a um cantinho também no anel externo de circulação, é a "Versão Oficial" que poderia ser a mais interessante delas com um pouco mais de espaço, aprofundamento e melhor apresentação. A pequena mostra organizada pelo pernambucano Bruno Faria destaca capas de LP's com ênfase para seus projetos gráficos e todo o significado que venham a conter (estético, artístico, político, social, etc.) fazendo com que de certa forma, as mesmas passem a limpo a história brasileira a partir dos anos 60. a ideia é boa mas parece-me mal executada. A exposição espremida num final de corredor, sem maiores atenções de estrutura ou informação, emoldurando um toca-discos que tocava clássicos da música brasileira, no fim das contas ficou parecendo mais uma banca de discos usados. Vi que havia atrás dos discos, nas paredes alguma informação sobre a obra mas não fica claro para o visitante se ele pode retirar o objeto do lugar e mesmo assim, quando se retira, ao recolocar ele fica instável em sua fixação e o interessado logo se intimida em não deixar cair outros como fatalmente terá acontecido com algum. Mas para mim, adorador de música, da discografia nacional e apreciador da arte das capas de álbuns, mesmo com todos os defeitos ainda assim foi bastante interessante e válida tendo lembrado muto uma seleção feita pelo ClyBlog há não muito tempo atrás sobre as melhores capas de discos do Brasil em todos os tempos..
Além das exposições, o museu ainda apresenta um pequeno espaço interativo para as crianças "brincarem" de arte com lápis de cor, cordas e com os elementos orgânicos como conchas, pedras e grãos numa extensão da exposição da artista Regina Vater.
Como eu disse no início, se nada disso lhe interessar, se não é seu tipo de arte, não vê graça nessas coisas, o próprio MAC e a maravilhosa paisagem que se pode apreciar dele já são motivos suficientes e válidos para uma visita.


A instalação que dá nome à exposição de Regina Vater,
"Oxalá que dê bom tempo"

Os elementos naturais e orgânicos na obra de Regina Vater:
"Mar de Tempo", pedras em um recipiente cerâmico

As naturezas vivas de Regina Vater

O tropicalismo presente na obra da artista com "Mulher Mutante"

Série fotográfica da artista

Instalação "Cascavida", foló com cascas de ovos 


A forma da mulher misturando-se à da paisagem.

Aqui o trabalho de Rafael Alonso e sua
"Don't You (Forget About Me)"

O olho e apercepção desafiadas na obra de Rafael.

Este blogueiro tendo como fundo as obras da exposição
(foto: José Júnior)


A exposição "Versão Oficial" e a convergência com a de Regina Vater,
o Tropicalismo

Capas de discos que contam não somente a história da música do Brasil,
como a da arte, comportamento e sociedade.

Alguns dos trabalhos mais importantes e expressivos
da arte de dar imagem a um álbum expostos em "Versão Oficial"

O espaço bastante exíguo e espremido
passa uma sensação de se estar num sebo de discos usados.

A agulha no vinil
(foto: José Júnior)


No espaço infantil das artes, papai blogueiro fazendo arte
com sua melhor criação artística
(foto: José Júnior)


Pedriscos, cascas, sementes e uma obra de arte
(foto: José Júnior)

Lá de cima, do vidro inclinado da "nave", pode-se ver a praia lá embaixo.
(foto: José Júnior)



texto: Cly Reis
fotos: Cly Reis e  José Júnior

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

cotidianas #412 - Bob, o cão-herói




imagem do filme "Vira-Lata"
A infância de minha mãe foi muito pobre, muito carente, muito necessitada. Meus avós tiveram muitos filhos e nem sempre puderam dar o que de melhor desejavam, nem materialmente e, muitas vezes por questões de obrigações, trabalho e preocupações, nem emocionalmente, o que fazia com que as crianças buscassem esse refúgio entre elas mesmas e muitas vezes em mascotes, cachorros de rua que eram adotados quase naturalmente, ao entrarem no pátio e ficarem, e que acabavam com o passar do tempo ganhado o carinho da família e deixando sua marca entre os integrantes dela. Aproveito que falei dos olhos do Mac para lembrar de outra história de cachorros da infância da minha mãe, muito bonita e que carrega um pouco de cada elemento dos que coloquei anteriormente.
O Bob era um desses vira-latas que entrara no pátio, fora ficando e de repente era um membro da família. A época era difícil como fora muitas vezes e meu avó, Seu Betinho, desempregado, ia cedo para a rua para procurar trabalho. Em casa, a Dona Isaura ia tentando se virar como dava. Improvisava na comida, usava a criatividade, conseguia um emprestado aqui, um fiado ali e ia conseguindo tocar a casa de modo que as crianças, no mínimo, tivesses uma comida decente. Enquanto isso, meio que alheias a os problemas, mergulhadas em seus brinquedos de infância, bolitas, jogo de taco, carrinhos de lomba, as crianças faziam sua tradicional algazarra na frente da casa. Tudo isso vigiados pelos atentos olhos do Bob que ficava ali como se fizesse parte da brincadeira. Não era raro que, de vez em quando, enquanto a meninada se divertia, se ouvisse o açougueiro, furioso, enxotando o Bob de dentro do seu estabelecimento, aos berros e palavrões, o que fazia a molecada cair ainda mais na gargalhada.
E era neste mesmo açougue que minha avó pedia para minha mãe, que era a mais velha das meninas, ir buscar alguma carne para dar uma incrementada na modesta comida que preparava todos os dias. Certo dia a pequena Iara foi mais uma vez à casa de carnes e mais uma vez, como nas últimas semanas, sem dinheiro. O açougueiro que havia sido paciente, generoso até mesmo, dizia agora que havia chegado a seu limite e que não poderia mais vender fiado. Não, não adiantava insistir. A mirrada menina de olhos verdes, sem alternativa, voltou para casa e relatou à mãe que não conseguira levar a carne, que o açougueiro não concordara em vender-lhe fiado mais uma vez. Aquilo era terrível, pois não só o homem da carne, mas os outros comerciantes começavam a não querer mais dar-lhes crédito. O que fariam? Talvez, naquele dia, pela primeira vez, não tivesse comida para dar aos filhos.
Dona Isaura, então, talvez para ganhar tempo e pensar no que faria, disse à filha que fosse brincar com os outros enquanto preparava alguma coisa. Quando saía pelo pátio de chão batido, cabisbaixa, entendendo que as coisas estavam muito mais difíceis do que poderia imaginar, foi que a garota Iara viu Bob entrando no pátio, faceiro, com o rabo balançando, e  com um enorme pedaço de fígado bovino na boca arrastando na terra. Que traquinas! Por certo aproveitara uma distração do açougueiro entrara e pegara o pedaço de carne. Teria sido aquele bichinho iluminado por Deus naquele momento? Salvara a família.
"Manhêêê, o Bob trouxe um pedaço de carne!'.
Tiraram o naco de fígado da boca do cãozinho, sem maior resistência, esperaram a reação do açougueiro se desse falta de alguma coisa e como não aconteceu, limparam a carne e prepararam um saboroso almoço. O pedaço era grande, teriam refeição certa para alguns dias, sendo assim, não faria falta tirar um pedaço para o Bob, afinal ele mais do que ninguém merecia. Como era justo Bob ganhou um generoso pedaço, o que ele mesmo havia mordido, é claro. Recompensa justa para um herói.


Cly Reis

segunda-feira, 13 de março de 2017

ARQUIVO DE VIAGEM – Caminho Niemeyer - Niterói/RJ – 04/01/2017




“Não foi difícil projetar para Niterói, porque esta é uma cidade de orla tão bela que possibilita a criação a céu aberto, como um itinerário cultural e religioso.” 
Oscar Niemeyer

Já havia ido duas vezes a Niterói por conta, obviamente, do Museu de Arte Contemporânea, o MAC, aquele monumento que a cidade carioca abriga. Entretanto, sempre tivemos curiosidade de conhecer também o Caminho Niemeyer, altamente recomendado por concentrar o segundo maior conjunto arquitetônico assinado por esse genial brasileiro depois de Brasília, e também por estes serem alguns de seus últimos projetos construídos. Aliás, Oscar Niemeyer nos é um dos fatores turísticos mais instigantes sempre que viajamos, e isso em várias partes do mundo. Embora conheçamos pessoalmente apenas algumas delas e apenas brasileiras, todo local que conte com construções suas, seja São Paulo, Belo Horizonte, Tel Aviv, Paris, Milão ou Nova York, são, se não pelo óbvio, destinos turísticos interessantes também por conterem obras do arquiteto em suas paisagens.

Pois é a paisagem litorânea de Niterói, beirada à Baía de Guanabara e a qual se contempla a cidade do Rio de Janeiro ao fundo, que faz cenário para o Caminho Niemeyer, que finalmente visitamos Leocádia, Carolina e Iara em nossa estada no Rio em dezembro. Ao todo, ali na Praça Popular de Niterói, são 3 prédios – sem contar com o administrativo, simples mas bonito: a Fundação Oscar Niemeyer, o Memorial Roberto Silveira e o Teatro Popular de Niterói. Mas ao longo da orla da cidade há também outros edifícios espalhados: o Terminal de Barcas de Charitas, o Centro Petrobras de Cinema e a Praça JK. Da catedral da cidade, que deve ser erguida, vimos o lindo projeto: um alto prédio que remete a um galero religioso.

O exuberante teatro com formar que
lembram o corpo feminino
Embora não tenhamos conseguido entrar em nenhum deles, visto que fomos num horário da manhã que não havia nenhum funcionamento, admirar os prédios e integrar-se com eles já vale a visita à Praça. O Teatro Popular é um desbunde. Com traços artísticos que lembram o curvilíneo corpo feminino, dialoga com outras de suas últimas obras, como o Museu Oscar Niemeyer (MON), de Curitiba. É o prédio que mais interage com a natureza da Baía entre todos dali, até pela proximidade com o mar. Isso se percebe tanto no foyer inferior, com pilotis espaçados que lhe conferem profundidade e amplitude, quanto no andar de cima, entre o mural com a marcha do MST e a entrada para o teatro. O desenho da bailarina, o mesmo do MON, está lá em impressão feita sobre os ladrilhos. Por falar no traço de Niemeyer, o espetacular mural, propositadamente incompleto, traz a ideia das transformações sociais ainda em curso em que o povo virá a protagonizar na ideia sonhadora do comunista Niemeyer. O Teatro traz ainda os vidros escuros que abrem “olhos” na arquitetura, mesmo material usado nos outros prédios, dando unidade ao complexo.

O Memorial Roberto Silveira lembra bastante a Oca do Ibirapuera, em São Paulo, e o Museu Nacional da República Honestino Guimarães, de Brasília, mas num formato menor, como uma pequena nave espacial branca ali assentada. Já o da Fundação Oscar Niemeyer – cujo conteúdo original fora transferido para a sede da mesma em Brasília, estando atualmente funcionando uma sessão administrativa da prefeitura de Niterói – foi possível subir a rampa curva e admirar o olho d'água logo abaixo, que dialoga com a Baía de Guanabara  (assim como, mais adiante mas dentro do mesmo complexo de obras, o MAC o faz novamente, porém espelhando do alto do morro a água do mar).

Não deu pra tirar mais fotos, que o sol começou a ficar castigante a certa altura, mas esses registros aqui dão noção do quão deslumbrante é.

Espaço amplo do foyer com vista para a cidade do Rio

Leocádia integrando-se à arquitetura do Teatro do Povo

Eu em frente ao belíssimo painel desenhado por Niemeyer em homenagem à luta no campo

Caminhando em direção à Oca

Na entrada do Memorial Roberto Silveira 

Mais um detalhe do fabuloso Teatro, as bailarinas, as mesmas vistas no MON, em Curitiba

Na rampa de acesso ao prédio da Fundação Niemeyer


texto: Daniel Rodrigues
fotos: Leocádia Costa, Carolina Costa e Daniel Rodrigues

sexta-feira, 11 de abril de 2014

“Antonio Dias – Potência da Pintura” – Fundação Iberê Camargo – Porto Alegre/RS







"Estudos pictóricos de antônio Dias"
Estivemos Leocádia Costa e eu numa das exposições daquelas que nos dissemos: “não podemos deixar de ir”. Pois a referida mostra é “Potência da Pintura”, do artista plástico paraibano Antonio Dias, que está na Fundação Iberê Camargo até 18 de maio. Vimos obras deste craque da arte contemporânea em dois momentos quando estivemos no Rio de Janeiro em 2013: na grande (e até dispersiva) mostra coletiva “O Colecionador”, no MAR (Museu de Artes do Rio de Janeiro), no Rio, e na sucinta (mas bela) exposição "Biografia Incompleta", no MAC (Museu de Arte Contemporânea), em Niterói, a qual me motivou a escrever sobre à época. Portanto, a oportunidade de rever Antonio Dias e numa individual na nossa cidade é um programa dos que consideramos imperdíveis. 
De fato, valeu a pena a visita. Com curadoria do crítico e historiador Paulo Sergio Duarte, apresenta um recorte da produção mais recente de Dias. São pinturas e esculturas produzidas entre 1999 e 2011 que revelam os questionamentos atuais do artista, que se volta com força para as questões pictóricas do pigmento, do plano e da composição. Porém, não deixando de lado a ideia de tridimensionalidade (característicos de sua produção dos anos 60 e 70, mais conhecida pelo público), uma vez que usa elementos da estrutura de objetos bidimensionais de forma sutil em quadros e esculturas que se descolam do tempo, do simples “aqui e agora”, reelaborando outra (e talvez improvável) dimensão temporal. As linhas dos quadros, impositivamente retas, se conjugam entre si ora para trás, ora para frente, criando duas ou até três “camadas” de tempo, encaixando-se, sobrepondo-se, desafiando-se umas às outras.
"Gigante dormindo e cachorro latindo"
No texto do curador, este questiona com perspicácia o “valor” cronológico da recentidade das obras de Dias, subjetivando tal aspecto: “O que temos diante de nossos olhos não é uma acumulação de trabalho, nem a acumulação de um patrimônio tal como o capital de um portfólio de aplicações nas bolsas de valores; o que temos é o resultado mais recente de uma luta simbólica entre a matéria e o pensamento que atravessou muitas brigas até chegar a esse ponto; esse é o trabalho do artista”.
Criada na geração de artistas dos anos 50/60 que reelaboraram a maneira de ver a modernidade e seus ícones: sexo, violência, capitalismo, tecnologia, segregação político-social, indústria cultural e outros (antevendo, aliás, com olhar bastante mordaz a pós-modernidade), Antonio Dias segue com seu olhar perspicaz sobre o funcionamento desequilibrado da sociedade atual – basta verificar o precário equilíbrio das latas na obra “Duas Torres” (2002), que, embora não seja brilhante em termos de execução, remete claramente à fácil sujeição dos seres humanos ao perigo vista nos ataques terroristas do 11 de Setembro.
Em termos de técnica, são interessantíssimas as texturas e sensações pictóricas distintas e até díspares (do vermelho-sangue puro à psicodelia hi-tech e a aparência envelhecida). Já as pequenas esculturas em bronze e cerâmica (“Gigante dormindo e cachorro latindo” e “O bem e o mal”, por exemplo) dão-nos a verdadeira noção da vacuidade da era “big brother”: casas que, sem telhado, abertas à devassidão da privacidade, nos abrigam a espiar as formas desproporcionais de objetos e seres soltos no vazio e na secura monótona da vida alheia.
Passado, presente e futuro dialogando
em um possível equilíbrio
Se tais obras refletem o pensamento crítico de Dias, não poderia faltar o sarcasmo que marca toda a boa geração de artistas plásticos a qual ele pertence (leia-se: Rubens Gerchman, Hélio Oiticica, Rogério Duarte e outros). O artista usa seu humor de maneira mais aguda na obra saborosamente intitulada “Seu marido”. Embora deslocada do restante da mostra (foi colocada no átrio da Fundação, inclusive, longe quatro andares das restantes), constitui-se num retrato divertido e crítico do homem contemporâneo. Trata-se de um boneco cujas formas de cabeça, pernas, braços, tronco e rabo (?!) se indistinguem: todas repetem o mesmo formato de uma espécie de bastão amarelo e peludo. Aparentemente apático, de tempos em tempos o “bicho” desperta, sacudindo-se todo de forma patética e despropositada por alguns instantes, até que volta àquela insossa imobilidade inicial.

Seria este sacolejo estúpido o único movimento possível da defasada figura do macho doméstico nos dias de hoje? Forte suposição. Com meu respeito a todas as senhoras: qualquer semelhança conceitual (e, quem sabe, até corpórea...) com seus homens de dentro de casa não é mera coincidência. 

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Eu e "Seu Marido"


SERVIÇO:

exposição: "Antonio Dias – Potência da Pintura"
onde: Fundação Iberê Camargo  (Av. Padre Cacique, 2000 – Porto Alegre/RS)
até: 18 de maio de 2014
horário: terça a domingo, das 12h às 19h, quintas até as 21h (entrada gratuita)
Curadoria: Paulo Sergio Duarte













sexta-feira, 11 de outubro de 2019

cotidianas #651 - ESPECIAL DIA DAS CRIANÇAS - Nossa senhora



Era meu pai quem exigia de mim e de meus irmãos que, desde pequenos, chamássemos os mais velhos de “senhor” e“senhora”, o que era, naturalmente, praticado dentro de casa. Pelo menos a mim nunca foi um problema, pois a relação entre obediência e liberdade em minha infância e adolescência não passavam somente pela forma de se dirigir a palavra aos outros. Até estranhava ver os coleguinhas chamarem seus pais pelo primeiro nome. Mas para a minha mãe, Iara, talvez mais do que ao meu próprio falecido pai, por algum motivo que apenas intuía este pronome de tratamento combinava-lhe muito.  

Já disse mais de uma vez que minha mãe é uma das grandes responsáveis por ter me tornado um homem das letras, né? Não por ser advogada, mas por um jeito de ser mais sensível. Ela, assim como foram minha madrinha, sua irmã Lurdes, e minha avó paterna, dona Edith, é uma excelente contadora de histórias, o que certamente me inspirou para a vida. Mais do que a boa memória para relembrar fatos remotos, a fineza da construção narrativa e o tino de observar que determinado recorte temporal rende um destaque, um tratamento diferenciado para além do restante da vida cotidiana, por mais banal que este possa parecer, é coisa de gente abençoada com um dom. 

Caso não meu, mas dela, minha mãe. Desde a infância tomada de dificuldades de toda ordem, do financeiro ao machismo, da saúde ao preconceito, da exclusão social à violência doméstica, soube, com uma capacidade divina, transformar fatos melancólicos e tristes em episódios engraçados, graciosos e até fantásticos. Dignos da mais alta literatura de um Tchékov, um Erico, um Joyce. Ou não seria exatamente isso as histórias do cachorro Mac, da visão que teve do Coelho da Páscoa ou do Bob, o cão herói, devidamente recuperadas aqui no blog por meu irmão?

E essa graça especial não aparece só quando ela conta histórias, mas também quando as reconta. Sempre adorei essas repetições, pois não raro surgem elementos novos àquele enredo que realçam ainda mais a oralidade. Pois ocorreu justo isso recentemente, numa dessas recontações dela. O ano era 1966 e a cidade, Porto Alegre. Mas a Porto Alegre dos moradores da periferia – no caso, a vila Cefer, na zona leste da cidade, uma das resistentes áfricas negras da capital gaúcha. Minha mãe, aos 17 anos, frágil de saúde e de condições de vida na casa em que (sobre)vivia com os pais e os vários irmãos, adoeceu. Acometeu-lhe a tuberculose, doença infecciosa estigma de pobreza no Brasil.

A jovem Iara, precisando de tratamento, foi buscar atendimento onde lhe era possível no serviço público: na Unidade Sanitária São José do Murialdo, o Sanatório Partenon. Este Centro Social foi o precursor no Rio Grande do Sul da medicina comunitária para atendimento a pessoas com tuberculose. Ainda hoje em funcionamento na Av. Bento Gonçalves, no bairro Partenon, distancia-se aproximadamente 4 quilômetros da Cefer, Nada tão longe assim, não fosse essa distância ter de ser empreendida a pé pela debilitada jovem. Em plena noite. 

Horas depois, chegou. Já na recepção, a primeira assessoria de Deus. Enquanto aguardava atendimento, os próprios atendentes do Sanatório, sem constrangimento e nem escrúpulos diante de uma mulher jovem, negra e pobre, descaradamente apontavam o dedo em sua direção e cochichavam entre si, soltando olhares de pretensa consternação. Minha mãe estava desenganada pelos médicos e ainda não havia sido informada disso. Porém, a jovem Iara, misto de pureza e da tal assistência divina, não se incomodou com aquela atitude desrespeitosa. Mas não por segurança em si, a qual ainda precisaria muito para erigir, mas porque achou que não era com ela. Naquela sala de espera quase vazia, o destino pôs-lhe às costas, a alguns bancos atrás, um rapaz embriagado, caindo pelas tabelas, todo roto e sujo. Um pobre diabo. Assim, ela safou-se da humilhação, pois, não sabendo de tamanha gravidade de seu próprio caso, entendeu que eram ao infeliz bêbado que se dirigiam os comentários insensíveis dos atendentes. Vejam só.

Mas o pior (ou o melhor) estava por vir. O que era para ser uma consulta virou, dada a gravidade do seu problema pulmonar, em uma internação imediata. Ela precisaria baixar por tempo indeterminado. Acontece que aquela seria a primeira vez que passaria uma noite longe de casa e, ainda, sem poder avisar ninguém, afinal, se ricos já não tinham telefone àquela época, imagina a família da minha mãe. Ficaria ali, por imposição, sozinha e longe da mãe, a minha avó Isaura, seu porto-seguro, pessoa que viveu mais de 70 anos sem acreditar em religião, mas que nem por isso deixou de transmitir aos filhos – e a ela, em especial – um imenso sentido de fé. Mas nem a maior crença do mundo faria com que vó Isaura não ficasse preocupada, se não, desesperada, com a ida sem retorno da filha. Não havia o que fazer, apenas rezar.

Se aquila situação inesperada já seria motivo de aflição para uma menina hoje, imagine para uma adolescente daquela época, doente e despreparada, como a inocente Iara. Sentia-se como uma criança solta no mundo. Medo: foi o que sentiu quando foi posta sozinha num dos espaçosos quartos do andar térreo, cujas amplas janelas envidraçadas expunham apenas um assombroso matagal fechado vizinho ao sanatório. Dava a impressão de ser uma grande tela onde, na cabeça assustada de Iara, podiam surgir de dentro da noite figuras aterrorizantes a qualquer momento. Um filme de terror onde ela era a protagonista.

A sensação era de total desamparo. Total solidão. “O que fazer!”, pensava? Somente com os olhos para fora do lençol, minha mãe pôs-se a fazer outra coisa que sempre soube muito bem além de contar histórias: rezar. Precisava que algo a ajudasse a sair daquela aflita e crítica situação. Foi então que, do tal janelão à sua frente, formou-se uma enorme imagem de Nossa Senhora. Nítida, cândida e iluminada por uma luz até aquele exato momento inexistente. A santa, com olhar firme e tranquilizador, tomava a janela inteira e olhava para ela, Iara, em resposta àquele genuíno pedido de socorro. Minha mãe, como que por um milagre, adormeceu sem perceber. No dia seguinte, um médico sanitarista chamado Moacyr Scliar a atendeu e, contrariando o diagnóstico fatal dado por colegas anteriormente, afirmou-lhe que a ajudaria a recuperar-se. E foi o que fez na prática médica e não só com palavras, embora fosse muito afeito a elas como a própria paciente.

Até aqui, é onde minha mãe sempre nos contou. Qualquer um diria que, dada a maravilha dos fatos, já seria suficiente para encerrar a história. Mas tem mais. Sabe aquela pitada de novo elemento narrativo adicionado por minha mãe às próprias contações a que me referi anteriormente? Pois, então: entra agora. Porém – como também lhe é de costume –, este novo item dialoga, quase sempre, com outra história. 

Desta vez, o ano é 2017, Rio de Janeiro, bairro da Tijuca, mês de fevereiro. Meu irmão havia se acidentado andando de bicicleta na rua, o que o levou a passar por duas sérias cirurgias no cotovelo direito. A horas de receber alta, meu irmão inventou de nos dar um susto tremendo tendo uma embolia. Todos nós recorremos àquilo que aprendemos com dona Iara: a reza. A contrição dela, no entanto, envolveu novamente uma figura abençoada. Da janela do quarto do hospital em que meu irmão estava, minha mãe enxergava a estátua de uma santa (real esta, aliás), a qual ela nem sabia qual era. Prática, pensou: “é tu mesma!”  Vai que tivesse amizade com Nossa Senhora, fosse vizinha de porta ou frequentassem o mesmo clube! E deu certo: foi a esta que minha mãe rogou pela recuperação de meu irmão, mostrando que a sua linha de comunicação com a galera lá do alto continuava em dia mesmo tantos anos depois.

Pois que, a pouco tempo, em suas orações, um raciocínio aparentemente óbvio veio-lhe explicar a graça obtida no passado e na ocasião mais recente. Relembrando-se da inesquecível imagem de Nossa Senhora que lhe salvou quando mais se sentiu desprotegida, minha mãe observou, atrás da santa, uma outra imagem: a de minha avó Isaura em posição de reza. Com as pequenas mãos unidas em gesto de súplica pela filha que, naquele episódio do Sanatório de Porto Alegre, não sabia onde estava. Só pedia, com fé, que Nossa Senhora zelasse.

Foi aí que minha mãe ligou os pontos: a mesma energia que ela enviou a meu irmão para que se recuperasse, foi a que minha avó, sem nenhuma outra alternativa a fazer, emanou a quilômetros de distância para que ela, minha mãe, ficasse bem naquele remota noite de 1966. E em ambos os casos mediado pela mãe de todos, Nossa Senhora, cujo coração abarca e simboliza o maior amor do mundo: o amor de mãe. Nossa Senhora, que é homenageada neste dia 12 de outubro, também celebrado como Dia das Crianças.

No entanto, não é coincidência tanta proximidade no calendário: pouquinho antes da data da santa, comemoramos outra data – pelo menos, na minha família. O dia 11, na véspera, é quando Iara Terezinha Reis Rodrigues completa anos de vida. Hoje, em 2019, especialmente, 70 deles. Setentinha. Após gerar três filhos e cuidar de outros tantos, superar um problema de saúde grave, nutrir um casamento de décadas, ser a primeira a fazer faculdade na família, ganhar uma merecida aposentadoria por anos de serviços prestados ao sistema público e contar e recontar diversas histórias deliciosas de se ouvir, minha mãe chega a este marco da jornada de uma pessoa neste plano. Viva, cheia de gás, sorrisos e coisas a ensinar. A mim, ela deu de presente não só a vida como parte do seu dom da narrativa. Aos meus irmãos, de quem tenho certeza da permissão de falar por eles, sei que também devem tudo a ela. A nossa senhora, assim, no diminutivo, pra não assustar suas colegas lá de cima.


por Daniel Rodrigues
foto: Leocádia Costa
(Parque Lage, set/2019)
(a Iara, Antonio, Clayton e Karine)